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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O talho self-service da Disney

Hugo Gomes, 18.03.25

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Sim, há polémicas a serem abordadas, decisões recuadas ao ponto de servir a gosto ao sedento público e as críticas daí geradas, bem como a cedência às transições políticas. Há muito por onde começar enquanto contexto desta produção, só que não desejo vergar por aí — são outros tópicos e outros esclarecimentos. Gostaria, antes, de falar deste fenómeno: o dos “live-action remakes” da Disney. Para que servem? Para onde querem ir? O que se passa, afinal?

Snow White” era, desde a sua génese, um dos mais tremidos nesta transcrição humana, não havia volta a dar, o material com que se reflete, o filme de 1937, foi um dos pioneiros da História da Animação — a primeira longa-metragem nesse género — e, para a Disney, um dos seus diamantes brutos, que tal como a Coroa Inglesa, ostenta e insufla a mística de incalculabilidade e, mesmo assim, exibida no centro de todo o ambiente museológico. Este processo de transformar as suas animações em ação real — muitos deles meras fotocópias — é, perversamente, mais do que uma simples captação de nostalgia; em termos psico-sociológicos, configura-se como uma via mercantil que se apresenta como abrigo a uma nova geração de espectadores-adultos, refugiados no medo constante do quotidiano e da atualidade, que encontram neste gesto um alívio provisório para a sua ansiedade permanente. “Aqui não vos acontece nada” — a relembrar a propagandista frase de Vasco Santana em “O Pátio das Cantigas" (1942) sob as letras garrafais de Salazar, e segurança é o que prometem: um antídoto proustiano, efémero e reconfortante.

Contudo, há também um ego e, simultaneamente, um egoísmo por parte do estúdio nestes projectos: o de se pavonear com estes contos enquanto exclusividades criações suas. Ignora-se, assim, que “Snow White”, tal como grande parte daquilo que compõe a chamada “magia Disney” (com o castelinho nos créditos iniciais em plena festividade), não é mais do que uma reinterpretação disneyliana de velhos contos, lengalengas, tradições orais ou até romances e magnus opus da literatura mundial. Mas o sucesso tem destas ‘coisas’: ultrapassa, ou melhor, sobrepõe-se e reconta a História, sob uma única perspetiva — a dos vencedores. Sabiam que a Disney detém os direitos dos sete anões? Daí que grande parte das adaptações alheias do famoso conto dos Grimm apresente um outro número desses seres amigáveis e de personalidades definidas na unilateralidade. A Disney criou a narrativa de que estes domínios intelectuais são obras suas, peças de marca registada da sua fábrica, e trata-os como tal. O público vai na artimanha e segue a lógica apresentada — os alter-factos.

Snow White” faz dessa entrada a reinvenção da reinterpretação, com claras fidelidades ao produto que o estúdio apresentou há décadas. Trata-se de um canibalismo convicto: produzir e consumir a sua própria carne. E aqui, com o realizador Marc Webb (“(500) Days of Summer”) a dançar valsa com a sua própria insignificância autoral, assumindo-se um tarefeiro estandardizado numa obra que trespassa uma única voz. Para além de se notar, gratuitamente, a sua esquizofrenia, depois de ter sido adiado da sua data original e subjugado a refilmagens e reversões, o filme parece não querer esconder a sua desorientação — o seu dilema entre manter o clássico ou ceder ao avant-garde sociológico. Nem uma coisa, nem outra.

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Artificial, falso até às costuras, sem personagens desenvolvidas e com uma abruptidade no seu final. Rachel Zegler é um boneco, Gal Gadot outro, e o resto são adereços. Nesta feita, perante um trabalho que raspa o fundo do tacho, volto à questão que me levou a este texto: vale a pena fingirmos que a Disney construiu “Branca de Neve” de raiz e é a única com direitos para a reavivar e assassinar constantemente, como bem entender?

A animação original continua lá, sem nostalgias, porque é História do Cinema a ser fabricada em frente aos nossos olhos — os seus movimentos e a perfeição com que a dinâmica destes se conjugava numa ação-narrante em 80 minutos de duração (inédito para o seu tempo), para além de ter sido um dos primeiros jumpscares das nossas infâncias coletivas (mas isso já são outros contos e recontos). Em tempos, a instituição arriscava. Hoje, reage apenas ao medo do trambolhão financeiro.

Sequela perdida no Oceano!

Hugo Gomes, 26.11.24

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Com mais de 600 milhões de dólares mundiais no bolso, “Moana” (“Vaiana”, 2016) foi, até à data, o último grande êxito, sublinha-se, original da animação Disney, um facto que há alguns seria motivação para olear a linha de montagem e avançar com “novas” historietas. Só que a Disney de hoje não é a Disney arriscada de tempos e tempos (basta nomear a época), é uma Disney imediata, sedenta pelos números facturados e relatórios win-win esbarrados na face dos estúdios rivais, em conformidade com um outro tipo de público, mais conformista, mais apreensivo em relação a novas direções. 

Alguns originais massacrados ou decepcionantes no teste da bilheteira conduziram o estúdio aos sintomas agravantes da sequelite, tivemos um “Frozen” no vácuo da reciclagem (e já com promessas de um terceiro), e agora uma continuação de “Moana”, projeto oriundo de uma série Disney+ fracassada e condensada à ordem de longa-metragem. E nota-se essa decisão em cima do joelho, nem que seja pelo rol de personagens secundárias amorfas que acompanham a jornada heroica e um tanto emancipante da homónima protagonista. 

Enquanto o original detinha um certo A a B e consequentemente C em termos narrativos - uma epopeia dinamizada entre a princesa de uma tribo da Polinésia e um semideus de nome Maui (com voz de Dwayne Johnson) na busca de uma deusa enclausurada, tendo como mérito despachar o “animal fofinho para vender pelúcias” para terceiro plano e colocou um galináceo bobo enquanto comic relief. Contudo neste segundo filme, a ‘coisa’ complica, “mais e mais” como ordena a bitola dogmática de sequela, e uma evidente desorientação a reinar, não apenas marítima, mas para com os rumos onde o argumento deseja chegar e como tal, ressoa prejudicialmente na tal demanda heroica. 

Uma dessas personagens secundárias, bastante inútil até, funciona como uma engenheira náutica com óbvio transtorno de déficit de atenção, a sua aura parece resumir toda esta conjugação de nome filme com peças musicais pouco inspiradas (claramente a ausência do anterior compositor e letrista Lin-Manuel Miranda faz-se sentir), um extravio … E como não poderia deixar de ser, sinal dos nossos tempos, ainda nos vem com promessas para um terceiro capítulo. 

James Earl Jones(1931-2024): um ator com voz enquanto corpo, e corpo enquanto voz

Hugo Gomes, 10.09.24

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Com Almirante James Greer em "The Hunt for Red October" (John McTiernan, 1990), papel que repetiria por mais duas vezes (1992 e 1994, ambos sob a batuta de Phillip Noyce)

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Como Balthazar, o Rei Mago, no bíblico "Jesus of Nazareth" (Franco Zeffirelli, 1977)

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Field of Dreams (Phil Alden Robinson, 1989)

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Pilotando o Enola Gay em "Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb" (Stanley Kubrick, 1964)

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Foi a voz de Mufasa na animação "The Lion King" (Roger Allers & Rob Minkoff, 1994), repetiu a façanha na versão em hiper-realista de 2019.

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Outra voz célebre, a de Darth Vader, o vilão e "anti-heroi" da saga "Star Wars"

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"Coming to America" (John Landis, 1988)

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"Exorcist II: The Heretic" (John Boorman, 1977)

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Vilão de peso em "Conan The Barbarian" (John Milius, 1982)

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No atípico western "Grim Prairie Tales: Hit the Trail... to Terror" (Wayne Coe, 1990)

Estará na altura de a Disney eutanasiar a Marvel?

Hugo Gomes, 10.11.23

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Há uns dias, a Variety publicou um artigo exaustivo denominado de “Crisis at Marvel” [com assinatura de Tatiana Siegel], que seguindo a trajetória tremida da “fábrica de super-heróis” da Disney desde 2020, tentava ‘penetrar’ numa eventual crise criativa, financeira e executiva. Num dos pontos que vai desde o encolher de ombros à situação de “Blade” (o que faremos com o Diurno?), até ao embaraço envolto de Jonathan Majors e o seu processo judicial (o ator seria o grande vilão pós-Thanos neste novo ciclo) e por fim, a incerteza que o seu novo capítulo, "The Marvels", constantemente adiado, poderia manifestar num box-office que dava sinais de "fadiga" ao subgénero.

Nia DaCosta, a realizadora e recém-sequestrada a esta pretensiosa linha de produção, tentou acalmar com declaração de estarmos perante uma obra colorida e cheia de humor e respeitosa para com as suas personagens, isto, reconhecendo o cansaço deste cinema nas audiências e ainda a expansão do universo Marvel que retiraria o entusiasmo dos espectadores, atribuindo a termo “trabalho de casa” à sua imperativa e entrelaçada continuidade. Com a estreia do filme que prossegue as aventuras da personagem de Brie Larson (Captain Marvel) e consequentemente a novas caras nessas demandas heróicas, apercebemos não só da exaustão no público (isto em época pós-Barbenheimer) como também da limitação palpável que a fórmula parece atingir ou de já ter atingido. 

Diria que foi em 2017 que "Logan" de James Mangold quebraria o subgénero, trazendo a mortalidade como a última pedra da arquitetura; o resto seriam divagações e variações do mesmo, por vezes liderando projetos mais ambiciosos do que os executados ("Endgame", ou melhor a razão para esta crise identitária) e por vezes autorais ("Zack Snyder’s Justice League"), com "The Marvels", somos remetidos às origens da sua própria ambição. Se, por um lado, temos a enésima peça desse universo, palavra que substitui franchise nesses "vales de estranheza", por outro, temos o esquemático, o efêmero e a infantilidade a tomar as rédeas.

Ou seja, se o primeiro ponto leva-nos a uma narrativa em permanente ganchos com os filmes anteriores, os paralelos e agora, com as séries de televisão, do outro, sob o medo e ameaça da “fadiga”, levou-se a um brutal corte na duração, dando a nós o “filme mais curto” da saga. Seria um alívio para as contínuas reclamações de “filmes longos”, principalmente no cinema de super-heróis, é igualmente o calcanhar de Aquiles em todo este projeto, porque com isso somos encaminhados a um rasurado desenvolvimento às três pancadas quanto às suas personagens, sem ênfases nem humanização (mais um vilão para esquecer … oops, já esqueci), e um enredo que nos primeiros 10 minutos já está por si saturado e enfadado. Pois é, mais um macguffin, mais um Fim do Mundo para ser adiado, mais uma equipa, mais uma lição, o mesmo dos mesmo, sem volta a dar. 

O final abre a porta para mais “multiverso”, tema deste arco narrativo marvelesco que vem consolidar a ideia de zero consequências, e ainda a opção de apostar em lides mais joviais, contrariando as audiências fiéis que “cresceram” ao longo destes 15 anos de filmes prescritos e que clamam por variações mais adultas e negras. “The Marvels” é genérico até à quinta casa e em comparação com os restantes “episódios”, é uma parede artística que a Disney terá que derrubar a todo o custo. Porém, outras vozes levantam, e questionam um cenário mais pragmático, o de matar este Universo, dar o seu devido ponto final. Não há vergonha nisso. Agora, transladá-lo para o pequeno ecrã (leia-se streaming em formato série), isso sim, já é vergonhoso.   

A.I. por A.I., no que é que o cinema "original" se tornou?

Hugo Gomes, 29.09.23

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É na atualidade pertinente (com uma greve sindicalista de argumentistas e atores à mistura) que nos chega um filme como "The Creator", uma produção distópica apropriada pela Disney (uma vez que a 20th Century Studios, sem a Fox, é apenas uma fachada), que viabiliza uma luta entre uma sociedade militarista, mas humana (EUA, quem mais?) e uma nação mista com androides de A.I. nas lides de uma insurreição. "A A.I. é 'amiga'", lê-se nas entrelinhas, encontrando refúgio num super-país multicultural situado em territórios asiáticos não definidos (só que reconhecíveis). Oriente contra Ocidente e vice-versa... Que leituras geopolíticas, bem como sociais, podemos fazer aqui!?

Apesar de poucos recursos e financiamento, mas com ideias e cautela em abundância, Gareth Edwards passou de "Monsters" (2010) - um "darling" indie de ficção científica com extraterrestres girafídeos a invadir o nosso mundo e um drama intimista como pano de fundo - para milionários capítulos de sagas duradouras (ora "Rogue One", uma versão lobotomizada de "Star Wars" agraciado excessivamente pelos adeptos, ora "Godzilla", o reboot à americana com espírito nipónico-trash), embarcando posteriormente no meio-termo naquilo que tem sido catalogado como uma distopia original, o que levanta algumas questões quanto aos termos a serem usados, e muito mais nas consequências pós fenómeno “Barbenheimer” ainda por apurar.

A verdade é que é através da sua não-originalidade que "The Creator" transmite uma sensação de frescura, uma mera máscara facial, tal como aquela "vendida" aos seres sintéticos que “sonham com a ovelha elétrica” (saudação a Phillip K. Dick, porque em nenhum momento “Blade Runner” abandonou a minha mente), inspirada por lugares exóticos, como a Ásia vista através de postais ou em coletivas memórias oriundas do nosso século passado (é difícil não pensar no Vietname, sob os seus signos cinematográficos, quando assistimos às inúmeras intervenções militares dirigidas por uma ácida Allison Janney). Nesse sentido, o seu lado não-franchisado - se for bem-sucedido no teste do box-office - poderá promover uma nova onda de produções em Hollywood (a revenda de produções recicladas como "originais", matando a sede de um público em tremenda secura criativa). No entanto, o Cinema não deve ser apenas visto como um negócio, mas também como um veículo de ideias, e, como a ficção científica é um género repleto delas, esperava-se mais do que simplesmente o mero emaranhamento dos velhos tópicos. As ideias estão apenas soltas como borboletas, orbitando em torno do seu objeto graciosamente, porque a maior parte do filme consiste (e insiste) em lugares-comuns, presos a um esquemático mundo construído, e de nariz empinado (ai, “cinema adulto para massas”, julga ele).

São clichés até à quinta casa, reunião de elementos básicos para o espectáculo global, previsivelmente priorizando a emoção (manipuladora) em detrimento da razão, ou, melhor dizendo, da ideologia (escondida naquele molho de choraminguices). E para um filme que aborda questões pertinentes, esperava-se mais discernimento do que instinto contido, mais do que plataformas messiânicas ou sacrifícios heróicos, e acima disso, além de um dominante belicismo. Em suma, "The Creator" fala sobre a humanidade nas A.I. (uma convergência de "espécies", como é referido em certo momento), mas soa como se fosse criação da mesma, seja a nível argumentativo (e narrativo), seja a nível técnico (é preciso ir além do "bem filmado" e considerar que tipo de personalidade, vulgo simbolismos, as imagens nos trazem). É um barrete disfarçado, com mais fama que proveito.

Raya e a automatização do "caça-memórias"

Hugo Gomes, 08.03.21

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É certo que em relação à Disney temos por hábito revelar uma sede insaciável por uma fonte de nostalgia. Memórias agarradas às infâncias de gerações que assumiam as animações disnescas como eventos cruciais no seu percurso de crescimento pessoal e emotivo. Não querendo ser o vilão da história, serei eu a quebrar a “magia” confortante desse limbo – o tempo não volta atrás, por isso é escusado procurar nestas novas produções, uma inocência que nós, enquanto crianças de supostos futuros risonhos, víamos e guardávamos no sigilo da nossa feliz ignorância. Com “Raya and the Last Dragon”, a última criação do estúdio nesse departamento animado, é mais que esclarecedor que tudo é ligado por fórmulas … e valha-nos Deus … já nem sequer esforçam a contornar essa inércia.

Fantasia que une mitologia e folclore do sudeste asiático com uma mensagem clara de Paz Mundial (a utopia servida de solução para um mundo cada mais dividido e polarizado), o filme, que é dos mais adultos desde o fracassado “The Black Cauldron” (1985), é um festim de animação como manda a tecnologia mais avançada hoje disponível, e obviamente, um feito noticiado na representatividade na indústria (as vozes originais estão encarregues a atores asiáticos ou de descendência asiática), mas impedido de avançar nos seus territórios criativos pela imperatividade de uma narrativa formatada.

Infelizmente é este o resultado que nos é oferecido, e ao mesmo tempo não querendo desdenhar a eficácia desses mesmos truques, porém, não encontramos motivos de felicidade no somente “bom trabalho”. Depois de “Soul” (sabendo tratar-se de uma animação com selo Pixar, mas a esta altura do campeonato tudo pertence ao mesmo “patrão”), o arrojo ficou à porta para nos entregar mais do mesmo.

Contudo, há uma lição aprendida no meio disto tudo, a ausência de momentos musicais, possivelmente evitando a exaustiva coletânea reunida no campeão de box-office (mas perdedor criativo) que foi “Frozen 2” (2019). Uma ausência que garante-nos um enredo fluido e sem quebras, como o rio crucial que atravessa toda esta jornada.

Disney desvanece mitologia

Hugo Gomes, 18.12.19

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Alerto o leitor que, mesmo sem spoilers, para fins de analogia e de crítica, poderão existir pormenores ou sugestões subliminares quanto ao enredo.

Em jeito de despedida, esta nova trilogia (canónica) de “Star Wars” chega ao fim com uma questão: será possível ainda contar novas histórias numa mitologia gasta e acorrentadas ao loop analítico dos seus fãs?

A resposta é sim, praticável, o problema é a capitalização, ou melhor, a forma como este universo encontra-se a ser explorado na sombra da Disney, a sua nova proprietária que colocou George Lucas num canto. Primeiro, há uma recorrência constante ao terreno familiar por este legado, a nostalgia mercantil espremida e abusada de forma a deixar cair as réstias do seu sumo. Depois é o senso comum entranhado nas “majors” em relação ao que definem de entretenimento para as massas. Por outras palavras, são os enredos minados de rodriguinhos que não deixam margem de surpresa ao espectador. Tudo se torna previsível, mesmo quando um franchise com 40 anos de longevidade deu muito os seus frutos.

O problema aqui, meus caros, não se trata de ser ou não ser adepto destas viagens interestelares, dos duelos de sabres de luz ou do grito característico de Chewbacca. A fraqueza deste registo é não ser esta a história que um fã pediria como desfecho (até “Avengers: Endgame” teve mais respeito pelos seus seguidores).

Deixemos então a competência dos desempenhos (Daisy Ridley e Adam Driver continuam como os lemes), a qualidade dos efeitos visuais (até mesmo dos efeitos práticos), ou os episódios diretamente vinculados aos originais (a reciclagem do elenco e as suas respectivas homenagens). Existe por aqui uma euforia em terminar um enredo que segue torto e dorido (“The Last Jedi” cometeu riscos que não trouxeram benefícios), tudo através de uma narrativa apressada que não dá espaço para desenvolver as personagens secundárias, com twists encaixados com pé-de-cabra e um clímax que – por si só – não mereceu a espera. Neste ponto, o culminar é da mais absoluta vulgaridade em termos criativos.

Na verdade, é a indústria a falar mais alto. Sim! Bem sabemos que isto já é uma cantiga velha e impotente, mas a dita industrialização gera uma preguiça artística, um vazio de ideias, tudo aproximado àquela noção de “fan fiction”. E não é preciso realçar que foi numa galáxia muito, mas muito distante (em 1977 para sermos exatos) que George Lucas, saído de dois filmes tão promissores que eram “THX 1138” e “American Graffiti”, criava uma obra mista de sci-fi e aventura com raízes nas jornadas feudais de Kurosawa e sem medo de cair no ridículo. O resultado disso foi a criação de uma mitologia fresca a caminho de se tornar num dos santos padroeiros da formatação das sagas e histórias milionárias até hoje.

Porém, a fábula já não é mais nova. Ao invés, esta é uma vaca leiteira pronta a ser ordenhada. Nada de novo e inspirador é sugado da sua glândula mamária. Tudo certinho, tudo formal, tudo inconsequentemente vazio.

A rainha Angelina Jolie regressa para uma sequela que ninguém pediu

Hugo Gomes, 16.10.19

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Vindo diretamente da gaveta das "sequelas que nós não pedimos" chega-nos "Maleficent: Mistress of Evil", a continuação daquela reinvenção de 2014 com enredo centralizado na vilã do famoso conto de Charles Perrault "A Bela Adormecida".

Dirigido por Robert Stromberg, "Maleficent" tentava recriar os acontecimentos e a estética da popular animação da Disney de 1959, para depois empurrar para uma espécie de "confessionário" condescendente da antagónica feiticeira. A escolha de Angelina Jolie foi provavelmente a razão da existência desta versão, mas nada nos preparava para o revisitar daquele “mundo mágico” profundamente tecnológico e povoado por personagens ingénuas e de papelão.

Contudo, vamos por partes. Nesta sequela, sob o pretexto de liberdade criativa (só pelo nome que fica a graça), vemos Maléfica a tentar reconciliar a sua natureza com o instinto maternal gerado pela sua relação com Aurora (Elle Fanning). Com a notícia de noivado da jovem que a feiticeira é impulsionada para um dilema existencial e moral: conviver harmoniosamente com os humanos que tanto odeia ou declarar guerra sobre eles. No meio de isto tudo, surge Michelle Pfeiffer como a rainha Ingrith, pronta para o “braço de ferro” com a dita Mestre do Mal.

Colocando desta maneira, o segundo "Maléfica" parece ser uma atualização do primeiro filme, provavelmente mais rico visualmente e sonoramente, bem como emancipado da estrutura emprestada de "A Bela Adormecida". Mas o que acontece é um crónico vazio artístico: perante o frenesim digital, as criaturas computadorizadas e as paisagens sintéticas de encher olho, nada aqui se resolve.

Na realidade, "Maleficent: Mistress of Evil", com assinatura Joachim Rønning ("Kon-Tiki"), é uma produção condenada à extensão de uma suposta imagem de marca. Por vezes infantilizada no que requer a personagens e as suas ditas emoções (um romance que fraqueja em atribuir ênfase ao suposto tom trágico), transformando conflitos de metaforizada diplomacia internacional em meras e inconsequentes brincadeiras de “faz-de-conta”.

Mas o pior é mesmo um argumento traduzido numa salganhada de lugares-comuns, tópicos apressados e diálogos rudimentares e sem espessura. É um brinde descartável para motivar ainda mais a industrialização da fórmula. E apenas com Angelina Jolie, sedutora e com um certo prazer na sua travessura, é que este “parque de diversões” mira para alguma (e não suficiente) dignidade.

Disney canibal de memórias fartas

Hugo Gomes, 12.07.19

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Estão a ver aquele filme de animação de 1994 com o selo Disney que conquistou uma geração, para além do grande êxito de bilheteira que se tornou? Estão? Pois, fiquem com ele bem juntinho ao coração, porque esta "modernice", aliás objeto oportunista, é somente fogo-de-vista. A Disney e o seu constante ato de canibalismo.

"Dumbo": à conquista dos céus, longe do coração

Hugo Gomes, 27.03.19

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Talvez seja difícil falar sobre este “Dumbo” em imagem real sem mencionar o original de 1941, a animação que conquistou o Mundo e arrecadou um importante prémio em Cannes e o Óscar de Melhor Banda Sonora.

Hoje possivelmente um pouco esquecido devido à obsoleta narrativa e do sistema politicamente correto que condena a fase negra "disnesca", foi uma animação importante historicamente que nos remete para a problematização da discriminação em tempos de Guerra. A raça orgulhosa dos elefantes (ou, será melhor, elefantas) que desprezavam o pequenote de orelhas colossais que, certo dia, descobre o dom de voar, poderia servir de uma alusão amenizada aos ideias da supremacia branca doutrinadas pelo sistema nazi. 

Olhando para trás e com uma perspectiva de século XXI, é evidente que em “Dumbo” (a animação), essa contextualização à sua contemporaneidade e ao mesmo tempo, ao contrário do senso comum, é um filme longe do chamado “happy ending” tradicional, visto que a ênfase do elefante voador, surgido de "paraquedas" num último ato (logo após a uma sequência alucinante de bebedeira por parte do nosso protagonista paquiderme), é sobretudo um escapismo ao ambiente vivente da altura. O impossível desta criatura alada é a impossibilidade de uma paz encontrada numa Humanidade em extremo conflito, daí justificar aquele final feliz rompante, caricato e, de certa forma, absurdo para com a coerência narrativa.

Fugindo do longínquo filme original, este novo “Dumbo” é marcado por outras demagogias, nomeadamente mais capitalistas do que criativas. Em plena febre dos "remakes live actions" do seu espólio, a Disney decide contratar o já perdoado Tim Burton (após a curta de 1984 "Frankenweenie", chegou a estar numa espécie de lista negra do estúdio) e atribuir-lhe a batuta desta reimaginação.

Convém sublinhar que “Dumbo” afasta-se do antecessor tentando, através da sua limitação produtiva, encontrar uma liberdade artística. Obviamente que, sendo diferente das cópias exatas que o estúdio lançou nos últimos tempos, o filme de Burton destaca-se dos demais, mas sem isso afirmar a sua superioridade. Descartando-se ratos e outros animais falantes e com foco no elenco humano, esta versão está acorrentada à sua forma de "filme de família" pavoneada com um político correto que se tenta demarcar dos tempos obscuros de 1941.

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Primeiro, o pouco ou desconstruído fascínio pelo ambiente circense, expresso num circo em decadência e um vilanesco Michael Keaton (há traços de Walt Disney aqui) e um contrato faustiano pela apropriação da atração principal (sim, o elefante voador). Não existe mística aqui, tudo decorre como negritude aos mundos dos espectáculos e da hipocrisia de uma suposta crítica ao capitalismo pelo qual vincula na sua jornada narrativa. Por outro lado, próximo do final surge a mensagem de proteção de animais nestes universos e o "castigo divino" aos humanos que cometem essa infração (ao contrário do filme de 1941, onde os atos ficavam impunes). Jogando com esse manual de regras, Tim Burton, despido dos seus gestos "burtonescos", é um mero realizador anónimo perante os "ditames" do estúdio da Disney.

O resultado é um objeto visualmente espampanante (curioso que, tirando os cavalos, não existe nem um animal que não seja fruto de CGI), corrido pelos lugares-comuns do filme domingueiro e com personagens vazias que servem apenas de utensílios para a emancipação da nossa estrela de quatro patas (mesmo que Danny DeVito e o atrapalhado sarcasmo correspondam exatamente às expectativas). Uma exceção: quando o antagónico Michael Keaton assiste pela primeira vez à planagem pelos céus e com isso agradece o regresso à infância e à novamente crença no impossível.

No fim, quer narrativamente, quer visualmente, quer criativamente, é com filmes como este "Dumbo" que nos fazem acreditar que nada nos surpreende nestas versões em imagem real da Disney.