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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O multiverso para cada multiverso!

Hugo Gomes, 15.06.23

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Na sala ao lado, há um “Spider-Man: Across the Spider Verse" a conquistar multidões, e a temática do multiverso é moda em tudo o que é canto e até mesmo ganha óscares, portanto o que de mais ambicioso poderemos esperar deste “The Flash” é que se identifique como o filme terminal desta onda de multiversos atrás de multiversos, o merecido prego no “caixão”. Só que, pelo andar da "carruagem" (o dito “aranhiço” já anunciou sequela), não o veremos como carrasco nem sequer o desconstrutor, ao invés disso, um genérico filme de super-heróis (que dentro da sua linha é mais bem simpático que o costume) que promete teorizar o porquê do universo partilhado no qual se insere seja visto como um "cadáver ambulante”. 

Uma produção atribulada (foram mais aqueles que “saltaram” do que os “ficaram”) e uma estrela problemática [Ezra Miller], levaram a este capítulo numa aposta arriscada para uma Warner desesperada com o destino dos direitos da DC. Se por um lado, o descarrilamento da continuidade (e quão importante é a continuidade para o espectador contemporâneo!), por outro o malabarismo de tons à moda do freguês (é Zack Snyder para quem quiser e é marvelesco para quem puder), fizeram com que James Gunn assumisse as rédeas da saga e reiniciasse, “The Flash” assume, com alguma ingratidão, as reticências do velho modelo, atando os nós deixados pela visão Snyder e consolidando os desvarios e deslizes de dez anos de proclamada DCEU. É um filme neutral nesse conflito de fluidades. Mas deixemos de linhas de montagens e posicionamentos na alavancas episódicas e passemos à questão - o que esperar de “The Flash” enquanto filme? Tentarei ser rápido.

Um objeto com um pé assente na dita estranheza e outro no igualmente formulaico. Uma corrida contra o tempo em que o tempo vence o velocista e não o oposto, porque as ideias irreverentes ou outras (que tão repescadas seriam de um H.G. Wells e a sua "Máquina do Tempo”) são engolidas pela massificação da sua produção. Por entre o “estranho”, nem falemos das gags roçantes no limite da “decência” (segundo os padrões que a Disney normalizou como “family friendly”), desde a precipitação de monstruosos bebés até à escatologia em primetime, como também da exaustão de CGI “artificialoide até à quinta casa”. Algo que este cinema de super-heróis tem acelerado é a degradação da qualidade dos seus efeitos visuais, as verdadeiras “corridas contra o tempo” para cumprir agenda (são reportados condições de trabalhos miseráveis com prazos apertados), assim como o facilitismo com que se recorre à computarização, criando moldes uncanny valley. Assustador no mínimo. Como se pode evidenciar, é uma chuva de pirotecnia, glitter e faces digitalizadas, o envelhecimento desses efeitos será curto tendo em conta a sua falta de perfecionalismo, ao que parece!

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Agora, o que “The Flash” tem a seu favor, e verdade seja dita como grande parte do DCEU, são os seus intérpretes, desta feita, Ezra Miller, o terrível (e não neguemos o quão perturbadora a sua presença é para os que não conseguem separar a personagem do ator), a provar que é “menino” de costas largas no que requer a entertainment, um “looney toon” humano e suis generis. Já o retornado Michael Keaton, a sua presença que equivale a ouro aos corações de fãs mais amadurecidos, é mais uma prova das incompletas promessas a Iñarritu (feitas em “Birdman”), que de super-heróis não é suficiente veloz para fugir. E falando em vestir de super-herói, Sasha Calle a merecer o holofote kryptoniano. O resto são cameos, passagens e acenos, “bonecos à pancadas com outros bonecos”, como disse, e muito bem, Michael Shannon quando questionado sobre o seu retorno à saga. O habitual, a tendência, o espectáculo em moldes hollywoodianos. Nada de novo a Oeste, sem ser aquela “piadinha” final, surpresa deste lado (confesso), marcando o tom com que os envolvidos encararam o projeto - fiquemos pela brincadeira. 

Enquanto isso, a prova viva de “The Flash” (automaticamente dirigido por Andy Muschietti) será nas suas bilheteiras, até à data deste texto ainda não poderemos falar as consequências, mas estimar que ele será o indicador de; a) do grau de preocupação do público com o comportamento das suas estrelas (Ezra Miller é um caso a estudar); b) se o cinema super-heróis continua a ter fôlego nas bilheteiras (com os indicadores apontam um abrandamento e alguns fiascos pelo meio, indicando uma fadiga da relação para com o público; c) se o "cadáver ambulante” merece (algum) amor, ou desprezo, ou é a nota de suícidio e a carta branca para a dinastia James Gunn

Como vêem, pouco consigo falar do filme e do seu cinema, de demasiado voltas para o seu franchise, o seu mercado e a sua exaustiva  produção. Estamos mal quando isto acontece … estamos muito mal!

Destruir enquanto se lava a loiça

Hugo Gomes, 26.10.22

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A ação de “Black Adam” ocorre num país fictício, algures no Médio Oriente [Kahndaq]. O sítio, de História gloriosa, é hoje uma réstia decadente e ruinosa do seu espectro milenar. Uma imagem televisada da região para o Ocidente. Por breves momentos e sem profundidades sociopolíticas, é informado ao espectador de que a sua capital encontra-se tomada por forças estrangeiras, mercenários ou entidades sem jurisdição que fazem a sua vontade, a sua lei. Povo oprimido, aguarda desconsolado por uma figura sebastiana para que, por fim, possam “libertar”. A promessa acontece, esse Adão Negro é despertado após um “sono” milenar, tornando-se no defensor de Kahndaq, e igualmente numa ameaça ao seu exterior. 

O anti-herói, aqui interpretado por Dwayne Johnson igual a si mesmo, combate os seus mais diferentes inimigos (e possíveis aliados), no meio daquela cidadela antiga, superpopulada e “terceiro-mundista”, os embates são vistosos, deixando tudo ao redor em cacos, escombros e poeira. Destruição é um acréscimo a este cenário. Depois de cada luta, sequências de ação imperativamente computadorizadas e pirotecnia estrondosa (no sentido de poluição sonora e não o superlativo adjetivo entretanto associado), a população que após contemplar o espéctaculo sobrehumano regressa aos seus respectivos quotidianos como se nada tivesse extraordinariamente acontecido. 

Trata-se da banalização do armagedão (o fim do mundo já se converteu numa imagem tão recorrente, que o seu impacto bíblico foi desvanecido), da profecia, dos entes divinos ou assemelhados, é o sintoma de que muitos destes códigos, que abundam no cinema norte-americano para massas e com foco no tão formalizado subgénero "super-heróis" se tornaram. Sem consequências, sem causas, nem adesão a tratados de algum tipo - barulhos, efeitos e explosões formaram o circo do vulgar. E tal como as pessoas de Kahndaq, o espectador adquiriu esses anticorpos, já não se trata de um evento-cinematográfico, e sim, de mais um episódio a um seriado, o cepticismo rompido ao ver “um homem a voar” (essa frase-feita em tempos de “Superman” de Richard Donner), é hoje um bocejo vindo de uma audiência anestesiada. 

Black Adam”, assinado por Jaume Collet-Serra (“The Orphan”, “House of Wax”), realizador sem grandes ambições para além de se confundir com a indústria da sua contemporaneidade, é esse exemplo de desnorteada fórmula, cansada, prolixa e planeada até à exaustão dos seus clichés. Viremos a página …

 

“We're here to negotiate your peaceful surrender.”

“I'm not peaceful. Nor do I surrender.”

 

Foi assim que aconteceu ... um morcego conheceu uma gata

Hugo Gomes, 07.03.22

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Foi no calor do Batman de Nolan, que em uma tertúlia de café, um amigo proclamava o seguinte reparo acerca da personagem: Batman, não é nada mais que um psicótico que se mascara e que sai à noite para dar um “enxerto de porrada” a criminosos”. Rimos, acima de tudo, da vulgarização daquela linguagem como resposta ao debate do protofascismo da trilogia nolanizada. Contudo, tal frase ressurgiu no meu pensamento, ecoou-me perante esta nova aparição como uma espécie de flashback, agora sem Nolan ou Zack Snyder (mais interessado no seu universo cinematográfico que a exploração da personagem em si), mas sim com Matt Reeves, o “bom tarefeiro” na frente de uma Hollywood milionária e resiliente. 

Este, somente intitulado “The Batman”, revela-nos um vigilante “fresquinho” sem depender de uma história de origem [a génese], fragilizado, desorientado e movido pelo slogan “Vingança”, enquanto utiliza o “combate ao crime” de forma a acalentar o seu coração destroçado, que como bem sabemos, gerado pelo trágico episódio envolvente ao assassinato dos seus pais, o qual testemunhou ainda em criança. É a história do órfão em busca da sua emancipação, e por esse trilho da sua conduta, um “herói” (as aspas são importantes para trazer a ambiguidade da figura) em construção numa Gotham corrupta, também ela em plena transição, a dar lugar a uma outra cidade, um berço de “monstros” psicóticos, onde Batman brevemente chamará de “Casa”. Matt Reeves apropria-se do formato neo-noir, encostando a trama a uma narração off de cariz existencialista, onde o passado longínquo mantém-se fresco e corrosivo, e a angústia de Bruce Wayne (o ego ou alter-ego de Batman, dicotomia que o assombra) é projetada no seu método peculiar de combate - “O medo é uma arma”. 

Aqui, Robert Pattinson a nova face e corpo para a célebre máscara é uma aberração ambulante, um “bolha” impenetrável de um luto inquebrável, que revela um maior gosto e sadismo para com a bandidagem e delinquentes das ruas de Gotham do que propriamente a defesa do indefeso “cidadão de bem”. Este é o Batman que o meu tal amigo falava, o indivíduo a merecer terapia que torna a “vigilância” num analgésico para as suas dores de alma. Matt Reeves bem pode elaborar uma “escadaria” moral para o seu encapuçado das trevas, a epifania que o converterá no Batman e transformando o seu título numa palavra, por fim, pronunciável. É um risco que o realizador e argumentista tomou, neutralizar estabelecidas honras e jornadas heróicas, aquilo que torna Batman no Batman é a sua exposição para como seu “mundinho”, o biótopo citadino e de alta taxa criminal.    

Quanto a “The Batman”, o filme que chega a nós vendido como “força única” do expansivo cinema de super-heróis, é uma obra carpinteira aos mais diferentes níveis. Primeiro, no sentido argumentativo, tentando construir um pathos nesta jornada física e espiritual no “herói” enquanto edifica um universo que o rodeia, e por outro lado, através do processo (a produção) que não fazendo refém do CGI tenta emprestar o seu “corpo às balas”, por outras palavras subjugar ao enredo e não à ação como prioritário (o cinema-espectáculo é diferente do habitual, vulgo “normalizado” pela indústria, o “cavaleiro das trevas” descodifica casos de forma detetivesca e incorpora-se em jeito de thriller).

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Este é também o filme, em que Batman, lançando-se a solo no processo de "limpeza moral” a Gotham, conta com uma “aliada”, uma Catwoman (uma felina Zoe Kravitz), não um sidekick, nem par amoroso, um anexo ou possivelmente extensão do espectro do vigilante. Ela, larápia para alguns, anti-heróina para outros, partilha as dores torturantes do “órfão” Bruce Wayne, sendo que os “pecados do pai” (julgamento incentivado pelo inimigo e psicopata The Riddler, um Paul Dano naquilo que melhor sabe fazer e que encabeça uma representação da necessidade doentia de “Nova Ordem”) revelam-se tatuagens permanentes nestes errantes confortados com os seus disfarces (que não são mais que consumadas identidades). A dinamizada relação os motiva, a “alavanca” mútua para se tornarem nos protagonistas que sempre nos foram apresentados e o no qual sempre comportaram como esperávamos. É que por detrás de um assumido “Homem-Morcego”, completamente rendido às possibilidades dos (re)descobertos contornos heróicos, existe uma torturada mulher, esquiva e descomprometida, com excepção para com a sua própria sobrevivência nesta selva de asfalto. No final, a mitologia é consolidada, os peões entram em cena para mais um dia, que traduzindo em binarismos hollywoodescos, são sequelas a caminhos.   

PS: Desde “Dawn of the Planet of the Apes” (2014) que Matt Reeves desafia a percepção público-ávido pelo blockbuster logo na sua entrada. Aqui, o voyeurismo (mais “The Mechanic” de Michael Winner, do que “Rear Window" de Alfred Hitchcock) assumem como um exercício, não só de estilo, mas de captação da atenção do espectador, enquanto confecciona uma atmosfera de suspense.  

James Gunn e os seus «kamikazes»: o exagero do cinema de super-heróis

Hugo Gomes, 29.07.21

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Há quem diga que o cinema de super-heróis atingiu o seu pico criativo, parece que nada mais pode ser inventado neste território, nem mesmo James Gunn com a sua liberdade adquirida nesta equipa suicida. Porém, não cobiçando quebrar quartas paredes, nem requisitar diálogos metalinguísticos ou de pós-modernismo, “The Suicide Squad” é um objeto reguila de primeira linha, visualmente febril e de um humor “screwball” em afronta às convenções estabelecidas. Talvez seja dos mais ricos alguma vez produzidos no género, há espaço para tudo aqui e sobretudo para exageros … e digamos, felizmente.

O autor em Zack Snyder ou apenas blasfémia?

Hugo Gomes, 27.03.21

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Por entre os textos, grande parte deles funcionando como reunião de tags e palavras-chaves, existiu um que captou de imediato a minha atenção. Pertencente a Matt Zoller Seitz do site Roger Ebert, a crítica menciona “Sátántangó” (“O Tango de Satanás”, 1994), do cineasta húngaro Béla Tarr, em consolidação com “Zack Snyder’s Justice League”. À primeira vista soa-nos como uma comparação ridícula, ou de um arrojo quase alucinado, mas, ao refletir, apercebemo-nos que existe uma razão para esse paralelismo. Aliás duas!

O ponto fulcral é a perpetuação e extensão de uma estética, no caso do filme de Tarr, sete horas maioritariamente divididas entre as maleabilidades temporais e os longos travellings sob esse mesmo serviço, e no cinema heróico e pipoqueiro de Snyder, uma liberdade na invocação da sua reconhecida personalidade, que vai desde o slow-motion interveniente na ação ou a câmara (por vezes falta dela para um trabalho tecnológico) que balança em pequenos e variados planos-sequências, exercidas como artifícios de exibição e não ao serviço da narrativa. Chegando ao segundo ponto, a referência do autor e a imposição desse mesmo estatuto. Sendo inegável o cariz autoral de Béla Tarr, é no caso de Zack Snyder que a situação se torna num “pau de dois bicos”.

O que significa ser autor nos dias de hoje? Há (mais) duas definições claras nesse aspecto; um cinema que se opõe às convenções da indústria ou mimetização de territórios autorais já citados, ou a plena consciência de uma assinatura reconhecível numa obra que se revê em relação ao resto da filmografia. Zack Snyder é evidentemente um autor no segundo caso, da mesma forma que Hitchcock fora reconhecido pelo Cahiers du Cinéma como tal, e como bem sabemos, o “mestre do suspense” sempre andou de mão dada com a indústria hollywoodesca.

Quanto ao realizador de “Justice League”, produção de milhões e com base numa igualmente milionária linha de banda-desenhada, esta demanda para entregar aos seus “fãs” o filme que 2017 poderíamos ter vislumbrado (se não fosse a tragédia a bater à sua porta, mais os conflitos de um estúdio de “mãos atadas” e dois realizadores contrastados) resultou num incentivo à sua própria liberdade criativa. A Snyder foi-lhe dado esse espaço, mais 70 milhões de dólares para completar e aprimorar o seu trabalho que a Warner bem interessava, quer para alimentar os ávidos adeptos dessa “bobine ocultada” ou para preencher o catálogo do seu serviço de streaming. O que o estúdio, involuntariamente, não se apercebeu é que essa mesma atitude garantiu a Snyder o seu estatuto de autor, mais do que se poderia imaginar (equiparando-o a outros “autores” por direito a operar nessa mesma major, como Clint Eastwood ou Christopher Nolan).

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A esta altura, o leitor deverá estar a abanar a cabeça com ar de reprovação em relação a este “escriba”. Zack Snyder um autor? Está doido! Mas vejamos, quem ama e quem odeia Zack Snyder o manifesta pelas iguais razões, o que muda é a conotação dessa relação. A estética, algo empestado do universo do consumo (videojogos, comics e videoclipes), que vem desde o achado plastificado de “300”, em 2007, conectando-o em quase tudo o que Snyder “toca” (até mesmo a sua animação “Legend of the Guardians: The Owls of Ga'Hoole”, em 2010, partilhava esses tiques e maneirismos). Acrescentar ainda o seu próprio fascínio pela teologia diluída nestas “cavalgadas heróicas” (há um simbolismo cristão nesta sua trilogia ao serviço da DC, principalmente no percurso do seu Super-Homem tão carregado em paralelismos com Cristo) ou a martirológia correspondente no tratamento destes assumidos heróis (Snyder aborda estas personagens como eles fizessem duma atípica bíblia).

São “dedadas”, e muitas, aquelas que assentamos, nestes ditos blockbusters. E agora, seguimos para o outro “bico” deste “pau”. O facto de reconhecermos Snyder como um autor, não valida um atestado de imaculabilidade crítica, aliás, como defendia o crítico André Bazin no engessamento da sua teoria da Política dos Autores – “Claro que podemos aceitar a permanência do talento sem a confundirmos com uma espécie de infalibilidade artística ou imunidade ao erro, que só podem ser atributos divinos“. Faço destas palavras o meu pensamento, Snyder está longe do “toque de Midas”, mas é ao reconhecer essa sua marca autoral que encaramos este seu “Justice League” como uma peça aparte do dito cinema de super-heróis.

A Liga pela Justiça de Zack Snyder

Hugo Gomes, 17.03.21

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Quatro horas prezando os termos e condições de muitas séries e minisséries em abundância nessas plataformas de streaming, “Zack Snyder’s Justice League” poderá ser o mesmo filme que aquela estreia de 2017 (a nível argumentativo e narrativo), porém, é um objeto à imagem do seu criador. E se isso vale alguma coisa na industrialização frenética desta Hollywood tecnológica. Contudo, não há premonição de quem até à data rejeitou o estilo, o aceite (desta vez) de braços abertos, mas não há que negar que exista aqui espírito e carinho por estas personagens (até mesmo o embaraçoso vilão da versão cinematográfica recebeu um upgrade de personalidade), paciência no enredo (não refiro apenas à duração, e sim à sua postura ocasionalmente contemplativa) e um gesto autoral sempre presente em todo este percurso. Por vezes, sentimos o peso da ruminação da trama (nomeadamente o epilogo criado) … meros caprichos … porque este “Justice League” é sobretudo a dominância da estética … uma estética bem familiar.

Uma mulher na conquista de Hollywood

Hugo Gomes, 15.12.20

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Erradamente induzido a um símbolo de emancipação feminina, “Wonder Woman” [o filme de 2017] conquistou uns impressionantes 800 milhões de dólares em bilheteiras de todo o Mundo, sem sequer apercebemos que a grande heroína neste cenário foi a sua realizadora, Patty Jenkins.

Não se tornou, outro erro comum que muitos caíram, na primeira mulher a comandar um filme de super-heróis, esse subgénero cada vez mais vincado (antes dela, Lexi Alexander e Karyn Kusama), mas fora a primeira a ter ao seu dispor uma produção com um orçamento acima dos 100 milhões. Por outras palavras, a mulher vinda da televisão e de uma longa-metragem telefílmica que levou Charlize Theron ao Óscar [“Monster”, 2003] assumiu-se como uma guerreira numa indústria ultra-capitalista ainda maioritariamente liderada por homens. Se existe toda uma Mulher Maravilha nisto tudo, é ela mesmo.

Portanto, como já havia referido, 800 milhões angariados dá direito a sequela, se não fosse o facto de este produto inaugural com Gal Gadot estar inserido num universo partilhado, aquelas novas denominações e definições de franchise. Contudo, com adiamentos vários, uma pandemia a ser vivenciada e um estúdio de mãos dadas com uma plataforma de streaming que, ao seu jeito, encontram uma solução para estacar (ou apaziguar) o prejuízo, eis que chega-nos “Wonder Woman 84”, um blockbuster num ano escasso deles.

Com Patty Jenkins novamente no poder, requisitou-se as simples leis da “sequelite” – “mais e melhor”- e em todo o seu esplendor, esta nova produção da Warner Bros é ela mesmo, exagerada, ambiciosa, mas nunca dependente da credibilidade, nem da simulação de tal. A realizadora tinha em mente uma invocação de um espírito longínquo, totalmente perdido neste boom do subgénero que tem variado entre a seriedade e alter-realismo ou o chico-espertismo e o extenso tom paródico, o estilo “camp”, o qual levará muitos adeptos aos tempos de Lynda Carter e as suas episódicas aventuras nos anos 70.

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Confere que a Warner Bros. / DC tem sorrateiramente estabelecendo essa via, basta recordar o tecnologicamente submarino “Aquaman” (James Wan, 2018), só que é na conhecidíssima super-heroína que o estilo é assumidamente erguido nos seus momentos de ação, ou na devolução da figura pedagógica e demagoga a estes figurinos de comics. Os dias atuais levam-nos a encarar com ceticismo e desconfiança à ingenuidade gratuita, ao ativismo utópico próprio de fantasias hollywoodescas, e ao propagandismo samaritano. Sim, há uma demanda ideológica e deveras moralista no sacrifício da nossa heróica mulher, nada de sobrenatural neste registo, nem sequer no subgénero, porém, é a sua devoção explícita que enaltece esse lado escapista e “arcaicamente devedor” da BD em si.

Wonder Woman 1984” funciona, mesmo que desigual, como um tributo à aura dos comics, uma espécie de regressão que o torna limitadamente “fora da caixa” perante a tendência produtiva. O resto, meus amigos, é Patty Jenkins a operar uma produção de grande escala, simbólica, e de coração pulsátil quanto ao seu senso de dever (segundos as mais recentes notícias, a realizadora irá envergar a galáxia “Star Wars” para a Disney, espera-se uma conquista a esta Hollywood megalómana ainda, muito, masculina).

Por fim, Gal Gadot continua muito mais que uma pin-up outrora vencida, dando o corpo a este manifesto, contra duas figuras antagónicas (Pedro Pascal e uma inesperada Kristen Wiig) que carregam o tom fabulista no filme. Porque no fundo, “Wonder Woman” é, isso mesmo, uma fábula à escala de Hollywood, com uma América idealizada e convicta para o Mundo ver.

Memórias em tempos saudosistas. O "mau" (bom) filme de Joel Schumacher!

Hugo Gomes, 23.06.20

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No cinema, quando alguém morre, automaticamente queremos relembrar os bons momentos trazidos pela sua existência. É um facto, ou até mesmo uma mania de cinéfilo que deseja “competir” ou coletar pelo filme perdido, pela obra-prima ou o desempenho para a eternidade. No caso de Joel Schumacher, não vou mentir, foi através de um dos piores momentos da sua carreira que me trouxe até aqui. E devo dizer, que tão boas memórias me trouxe essa obra do “piorio”.

Não querendo com isto a sublinhar uma tragédia familiar, porque nada de trágico ou de cómico tem a minha infância, mas esta foi marcada por uma certa distância para com o meu pai, não por negligência, nem nada que pareça, mas pelo seu trabalho de turnos até à exaustão. É essa particularidade que se torna no ponto de partida para esta minha breve história.

Porque foi com essa ausência que chegou-me uma espécie de compensação: uma ida ao cinema. Lembro-me que foi numa daquelas salas obscuras de galeria comercial (tentei puxar pela cabeça pelo local exato, mas tudo soa abstrato), em pleno verão de 1997 (sim, tive que ir pesquisar), que me estreei nas ditas sessões de meia-noite.

Em “pulgas” estava eu para me aventurar na última projeção do dia com o meu pai, que tentava antes de mais puxar pela conversa fiada como meio de alcançar o capítulo da minha vida. O filme, esse, tendo sido ele próprio a escolher, assumindo o facto de eu ser um rapaz que teria predileção por super-heróis, nomeadamente o mais popular de todos – Batman. A verdade é que ele estava parcialmente correto, não por gostar inteiramente do universo de super-heróis, mesmo com meia dúzia de banda-desenhadas no meu quarto, todos referentes a um aranhiço da Marvel e… um homem-morcego, possivelmente o meu preferido nos meus verdissímos anos.

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A esta altura, o leitor percebeu de que filme que se tratava. Sim, esse maldito “Batman & Robin“. Confesso que na altura (até hoje, ainda me encontro assim) não entendi rigorosamente nada da sua intriga; lembro-me vagamente de algumas imagens soltas e escandalosamente cobertas de neons e iluminação de género; um cartão de crédito com as insígnias do herói, um fato com mamilos, um Arnold Schwarzenegger azul e Uma Thurman (recordo que na altura engracei com o seu nome). Nada mais de memorável extraí desse filme transvestido, a não ser o seu final, não o da narrativa, mas o da porta fora da sessão. Nunca mais me esqueci do meu pai, que tinha adormecido algumas vezes durante a sessão, a dirigir-se a mim com um sorriso de aprovação, acompanhado com aquela pergunta de praxe: “Então? Gostaste?” Na altura, menti, abracei-o e respondi: “sim!”.

Mas não importa a mentira nesta história, nem mesmo o abandono do realizador ao projeto, visto que o próprio Joel Schumacher havia pedido perdão aos espectadores pelo filme que fizera. Eu cá há muito o perdoei, aliás, refazendo a minha resposta, não existe nada para perdoar.Batman & Robin” foi a minha primeira ida de cinema com o meu pai, a primeira de muitas, até porque anos mais tarde lá estávamos os dois a comprar bilhetes para a sessão da noite de “Phone Booth” no cinema do Olivais Shopping (deste vez lembro-me do local) ou alugar Flatliners ou The Lost Boys” no meu videoclube no bairro de Moscavide. Sim, outros tempos!

Resumindo: foi Joel Schumacher – um realizador fora do brilhante, por vezes tarefeiro, outras vezes engenhoso com um quiçá de trapalhão – a colocar algumas das mais importantes recordações da minha existência. A ele … sim … um muito obrigado!

A emancipação da arlequina

Hugo Gomes, 05.02.20

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Após o sucesso de “Joker”, no seu não-convencional filme a solo, chegou a vez da sua “noiva”, Harley Quinn, proclamar a tão querida emancipação e resgatar das sombras da subserviência dos arlequins um novo protótipo de anti-heroína. Este “Birds of Prey: And the Fantabulous Emancipation of One Harley Quinn” é só mais uma prova de como a Warner Bros e DC Comics desejam distanciar-se das estratégias produtivas da Marvel e gerar produções com personalidades distintas. Aqui, sob o comando de Cathy Yan (curiosamente, uma realizadora ainda sem expressão na indústria), transportam-nos para um filme esteticamente mesclado onde os detalhes piscam aos mais atentos.

Em certa parte, esta é a conseguida resposta do estúdio e da editora à influência de “Deadpool”. Sabemos que, na atualidade, todos procuram a sua variação “deadpoolesca”: ensaios meta e pós-modernistas em relação ao seu género, personagens ambíguas e com irreverência a dialogar diretamente com o espectador (fala-se sobretudo das quebras da chamada "quarta parede") e, como não poderia deixar de ser, o cordel esticado com a liberdade adquirida de uma classificação “R” [para adultos].

Harley Quinn é uma personagem propícia a esses territórios e de forma muito mais ampla, pois encontramos neste colorido e verborreico filme de “super-heróis” a possível concretização do signo feminino que tanta falta tem feito ao género no cinema. Sim, sabemos que houve uma “Wonder Woman” ou a resposta da Disney com “Captain Marvel”, com legiões de apoiantes. Contudo, ambos surgiram numa altura em que o empoderamento das personagens femininas em territórios predominantemente masculinos era uma necessidade prioritária dos novos tempos. Já "Birds of Prey" posiciona-se como o lúdico de braço dado com o universo do sexo oposto, sem necessariamente se inserir num movimento feminismo ou aliado.

Sim, este é um filme efeminado, centrado nos contornos "girlies" das personagens, mas nunca cedidos à misoginia ou ao mero estereótipo tão vulgar na indústria cinematográfica. Até porque dentro desta paródia "salta-pocinhas" quanto à sua narrativa, encontramos uma delicadeza e respeito por essas mesmas virtudes.

É com esse espírito que “Birds of Prey” se destaca dos demais. O resto, como diriam os americanos, é “peanuts”. Sequências de ação aprimoradas revelam um olhar atento às tendências "à la John Wick"; um enredo simples, apesar de integrar na história a psique da protagonista; e, por fim, personagens tão caricatas que roçam uma bizarria adaptável ao ritmo descontraído e diversas vezes traiçoeiro (existem aqui "pitadinhas" do cinema Guy Ritchie ou de Luc Besson em modo “Leon, O Profissional”). Ou não fosse Harley Quinn (a sempre deslumbrante Margot Robbie) um poço de problemas "cartoonescos" que nos encanta com a sua violência e arrojada exposição em "gags" complementares.

Dito isto, de forma a se inserir no panorama industrial do género, “Birds of Prey” não inova nem reinventa o cinema de super-heróis (neste caso, “super-vilões”), mas ostenta a pretensão de diversificar esta "mecanização" que se associa aos produtos da Marvel. Pode ser pastilha elástica frutada, mas pelo menos pode ser mascada com alguma convicção...

Joker, o herdeiro do trono de Scorsese?

Hugo Gomes, 01.10.19

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Todd Phillips pode ter saído da comédia tresloucada de “Starsky & Hutch” ou “Old School”, passando pelo seu maior êxito - a trilogia "The Hangover" -, mas é o constante aconchego ao universo do “chico-espertismo”, a replicar tiques de Martin Scorsese, que percebemos da aproximação a um legado prestes a ser deixado. Assim obtivemos “War Dogs” como experiência de laboratório dessa invocação “scorseseana” e, verdade seja dita, o resultado não superou mais do que uma espécie de prato alternativo. É com “Joker” e a envolvência num cinema-tendência que é o subgénero dos super-heróis, que Phillips, por fim, espelha essa fixação com a sabedoria necessária, frente à mera piscadela de maneirismos.

É certo que é difícil contornar a prestação esmagadora de Joaquin Phoenix como o eterno nemesis do Cavaleiro das Trevas (Batman), mas esse fascínio pelo cinema do realizador de “Raging Bull” e de “New York, New York” (filme a precisar urgentemente de carinho) leva-nos em modo “corta-mato” à lente da Nova Hollywood (termo utilizado para as abordagens trazidas no cinema setentista norte-americano). Aí, em plena década de 70, após a viragem crucial impulsionada pela televisão e Charles Manson, a indústria que havia perdido a sua inocência emoldurada, acolhe a chegada de uma nova geração (os apelidados “movie brats”, cinéfilos e estudantes de cinema que colocariam em prática as suas visões cinematográficas). A violência, que se transcende do “fruto proibido” a “pão de cada dia”, tem por fim uma presença visceral e explícita no grande ecrã, enquanto que os olhos dos espectadores são colocados numa perspetiva sarcástica para com o prisma político-social diversas vezes debatido nos referidos filmes. Esta é a cerne de muito do cinema que Scorsese iria desenvolver, por exemplo em “Boxcar Bertha”, “Mean Streets” e, obviamente ,“Taxi Driver”, que, juntamente com “The King of Comedy", são os dois principais nutrientes que empestaram este “Joker” no "vintage" do seu tributo.

Esse tratamento é evidente na personagem-título, o futuro alter-ego de Arthur Fleck, homem vítima da sociedade que o cerca e que, perante a sua inadaptabilidade, torna-se num símbolo anárquico e violento numa luta entre classes na cidade de Gotham. Fleck partilha com Travis Bickle (a icónica personagem de Robert DeNiro em “Taxi Driver”), o auto-menosprezo e, com isso, uma revolta interna que o irá distorcer em prol de uma figura ideológica. De Niro, claro, que é também um dos atores de "Joker". Todd Phillips não esconde essa ligação umbilical de “Taxi Driver” com “Joker”, desde o “You talkin' to me?” que se transcreve neste filme como “You like my dance?”, atravessando o revólver como meio libertário, o espelho como epifania existencialista (realçado com o violino de Hildur Guðnadóttir) ou o falhado interesse amoroso que acentua o seu afastamento pela normalização social.

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Perante isso, a representação da violência como um estado inerente da personagem é um contra-espelho do ecossistema que integra. Há algo de perversamente credível no mundo de Arthur Fleck e, em consequência disso, algo perturbador no seu Joker. Joaquin Phoenix acompanha Todd Phillips na sua digressão algo tese. Já nomeado aos Óscares com “Gladiator”, “Walk the Line” e “The Master”, o ator aventura-se naquilo que tão bem sabe fazer: trágicas personagens sem qualquer tipo de empatia.

É nessa ausência que, por bem, afastamos Arthur Fleck da mera condescendência que os seus antecedentes poderiam suscitar. É um equivocado “herói”, um vigilante acidental que cede pela sede de uma sociedade igualmente desequilibrada, que busca por respostas fáceis aos seus complexos problemas. Só que em vez de se esgueirar pelo populismo dos políticos manipuladores, esta população solicita o seu ícone de resistência, uma ideia nascida numa pessoa. O mais curioso é que Todd Phillips desenvolve esse “falso-remake” de “Taxi Driver” sob um infiltrado formato do cinema "mainstream", onde o super-herói é diversas vezes infantilizado para corresponder às “necessidades” dos seus espectadores e às boas morais politicamente aceites. É uma espécie de submarino nesses mesmos propósitos.

Por isso, é que, com “Joker”, encontramos a esperada intimidade de Todd Phillips ao dito legado que anseia. Até porque alguém tem que assumir a nossa dose "scorseseana" após a retirada do seu genuíno mestre - “Scorsese itself”. Com isto não afirmamos que o realizador de “The Hangover” (ainda que, sob esses moldes, possamos encarar a comédia como uma variação fácil de “After Hours”) é o herdeiro legítimo ao trono, porém "Joker" é uma das intervenções mais maduras do cinema de super-heróis desde "Logan" (e ficamos feliz por ver que, finalmente, dão uso a estes filmes). Um pouco como a novela gráfica de Alan Moore, “The Killing Joke”, abraçada por um intenso senso de estudo de personagem, e, nunca é demais repetir, antes de finalizar, como dilacerante está este Joaquin Phoenix.