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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O escritor do Cinema, o Cinema do escritor

Hugo Gomes, 01.05.24

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Um Homem é feito de ignorâncias, e admiti-las é abraçar o seu trajeto de progressão nesta breve existência. Não, nunca li Paul Auster e daquilo que começo da sua pessoa vem do cinema, que o próprio sempre demonstrou fascínio e parte da sua influência literária. E foi através do seu Martin Frost (interpretado por David Thewlis, ator diversas vezes posto à margem) a fazer aproximar do que pode chamar de seu universo. “The Inner Life of Martin Frost” (2007) escrito e realizado pelo próprio escritor, um filme de como torturante (e desesperante) é um escritor lidar com a sua própria arte.

Paul Auster (1947 - 2024)

O Cinema Canadiano precisa urgentemente de uma inspeção

Hugo Gomes, 06.07.20

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Para Jim (David Thewlis), um inspetor da ASAE, a mais importante razão da existência de um homem é a sua reputação, um empreendimento calculoso, por vezes vagaroso de construir, sendo isso o reflexo que eterniza frente a um mortal velcro que se dá pelo nome de corpo. Essa tal perceção quanto ao “sentido da vida” encontra-se, literalmente, exposto num dos momentos metaforizados por Atom Egoyan (“Exotica”, “Chloe”) neste seu “Guest of Honour”, obra que parece seguir os ensinamentos desta personagem-chave, Jim, ou seja, restando apenas a consideração que temos pelo seu autor.

Um dos importantes nomes da dita Nova Vaga de Toronto, que vingou no final da década de 80 e início dos 90, Egoyan está atualmente ao nível de muito do cinema canadiano que tem surgido nos recentes anos, objetos despidos de qualquer rasgo autoral ou farpa criativa, remexendo em fábulas morais num artifício academizado e homogéneo (exceto o muito “undergroundDenis Côté). Foi tal o que aconteceu com outro nome dos cantos do norte-americano - Denys Arcand - vencido por um derrotismo ingénuo que adocicou a sua anteriormente ácida sátira político-social em “The Fall of the American Empire”, ou da paciente regressão de Xavier Dolan ao seu universo após voos atribulados (“Mathias & Maxime”). Em "Guest of Honour”, somos jogados ao serviço da velha clara da historieta moral de um homem isolado, porque assim o quis, e confrontado com a sua própria mortalidade. Isto, relatado como mero flashback encavalitado em mais flashbacks, mesmo que alguns destes troce do espectador através de traições de veracidade, desprezando a sua elegância narrativa em prol do seu sermão.

No fim de contas, nenhuma destas consequências angariadas através dos impensáveis atos destas personagens nos satisfaz verdadeiramente, o enredo abraça um prolongado anonimato, valorizado somente pelo empenho de David Thewlis (subvalorizado ator de corpo [“Naked”] e voz [“Anomalisa”]) em constante revista a impurezas e infrações em cozinhas alheias. Digamos, que não passa no teste sanitário este Atom Egoyan perdido… e o cinema canadiano está a merecer um carimbo de reprovação.

 

O Assédio: Bertolucci filmou um filme fora do seu tempo

Hugo Gomes, 28.11.18

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Depois de Beleza Roubada (1996), Bertolucci avançou para a história original de James Lasdun que aborda as questões dúbias de uma exilada.

O cineasta altera, em consolidação com a escrita da também realizadora Clare Peploe, nacionalidades e ambientes estabelecidos pela imaginação de Lasdun. Enquanto o escritor centrava numa latina que sobrevivia em Londres, L’Assedio apostava numa queniana, interpretada por Thandie Newton, que tenta a sua sorte em Itália, dividindo os seus dias entre a escola médica (uma licenciatura que faz com esforço e dedicação) e do trabalho-a-dias na casa de um pianista (David Thewlis). Quando o artista/patrão começa a interessar-se amorosamente pela rapariga, esta fica dividida pela vida que optou e pelo marido deixado no continente africano, um prisioneiro político. E a partir daí surge uma relação de persistência, desejo e sobretudo, ambiguidade.

Originalmente tido como um projeto televisivo, em L’Assedio o realizador prezou numa intriga salientava o poder da narrativa imagética do que a imperatividade dos diálogos. Como o próprio indicava, após uma série de grandes produções, era o seu desejo conceber um filme como uma “partitura musical”. A crítica dividiu-se entre esta sua decisão de narração, mas elogiaram sobretudo as panorâmicas que centravam a ação numa Roma em ruínas (nos arredores da famosa Piazza di Spagna) e no apartamento onde o poeta e dramaturgo Gabriele D'Annunzio escreveu um dos seus romances mais famosos - Il Piacere.

Atualmente, é visto como um dos filmes mais desprezados da carreira do realizador (possivelmente uma obra que não sobrevive ao teste #metoo de hoje) que na altura se esforçava para o filmar. Bertolucci o rodou sob tamanha dor, sendo que pouco depois do fim das filmagens teve que ser submetido a uma cirurgia a uma hérnia discal. Curiosamente, para o realizador brasileiro Fernando Meirelles, que assumiu L’Assedio ser um dos filmes prediletos, declarou como uma das influências técnicas para o seu Cidade de Deus.

 

Anomalisa: quem quer ser Michael Snow?

Hugo Gomes, 05.11.15

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A temática de Anomalisa tem ligação direta com uma das emblemáticas sequências de Being John Malkovich (Queres Ser John Malkovich?, 1999), a obra de Spike Jonze que contou com o argumento do próprio Kaufman. Nesta respetiva cena, o ator John Malkovich, que interpreta ele próprio, vê-se envolvido numa realidade onde toda a gente é … John Malkovich. A sua face, a sua voz e as suas expressões, tudo replicado nos mais diferentes corpos, um efeito doppelgänger (duplo) novamente requisitado, mesmo sob outras intenções, nesta animação de stop-motion preenchido por veias existenciais onde Kaufman firma o seu potencial nas parábolas criativas.

Aqui, os duplos representam a desintegração do mundo que Michael Stone conhece, um conferencista de motivação pessoal e profissional que sofre daquilo que apelidamos de síndroma Fregoli, uma perturbação psicológica que faz com que o portador acredite piamente que todo os outros são o mesmo indivíduo. Stone, sob a voz de David Thewlis, fica hospedado num hotel curiosamente denominado de Fregoli (não é coincidência!), enquanto confronta o seu passado em estado de erupção e a crise existencial que agrava constantemente, é que o seu redor é homogéneo, a mesma cara estampada em todas pessoas que conhece e que vai conhecendo, o mesmo se refere à voz que lhes é atribuída (por Tom Noonan), onde nem sequer a respetiva mulher e filho, os mais próximos de Stone, escaparam desta maldição/ilusão. Porém, algo insólito no quotidiano de Stone acontece, uma voz divergente, um som há muito não ouvido surge na vida do nosso protagonista.

Anomalisa, inspirado numa peça teatral, também ele da autoria de Kaufman, é uma animação adulta, não somente no sentido temático e no grafismo apresentado mas também pela sua narrativa, que demonstra as raízes do seu material de origem, ou seja do teatro, agraciando-nos com um digno trabalho de mise-en-scéne e da performance interpretativa (sabendo que todas estas personagens são uma mistura de tecnologia e "artesanato"). Sob envolvências kafkianas, Anomalisa emana a profundidade das suas questões filosóficas e existenciais, sempre pautado com um humor subtil e ácido e com um toque visual que todos nós reconheceremos como "kaufmanianos", por outras palavras, digno do universo desta interessante mente que se intitula de Charles Kaufman.

Além disso, este é um filme que acentua a banalidade como um raio de pureza, a singularidade como sinónimo de beleza douradora, e é nisso que Anomalisa parte do principio, não como um romance instantâneo mas como uma reflexão às nossas particularidades, e o apelo de reincidirmos à comunidade que nos força a integrá-la. Tal como acontecera com aquela obra de Paolo Sorrentino, onde a personagem de Toni Servillo deambulava em busca da sua "A Grande Beleza", aqui, Michael Stone procura a sua anomalia, o impulsor que o retirará do mundo que se fez coletivo. Tudo ao som de Cindi Lauper e o seu Girls Wanna Have Fun que ecoa como um canto gregoriano (quase … divinal). Sem palavras para descrever a sua tamanha sensibilidade e conceção. Resumindo: mais um episódio feliz da História do cinema em stop-motion.

"The Island of Dr. Moreau": uma guerra oculta

Hugo Gomes, 06.02.14

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Quando falamos em produções desastrosas não podemos deixar de lado a versão de 1996 de The Island of Dr. Moreau, uma modernização do homónimo clássico literário de H.G. Wells onde reencontramos o cientista “louco”, exilado na sua remota ilha e que exerce experiências malditas, transformando bestas animalescas em humanos.

Brincando ao papel de Deus, a decifração da essência humana, a criação de uma sociedade oprimida e controlada, são vários os elementos que no livro funcionam como uma reflexão ética dos avanços científicos, e da cada vez mais consolidação entre a genialidade e a loucura, derivação da transgressão dos formatados limites da ciência. Nesta mais recente adaptação do dito conto, a hipnose e cirurgias, processos levado a cabo pelo Dr. Moreau para converter os ditos animais em aspirações humanas são substituídos pela engenharia molecular e genética, tentado envergar por caminhos ousados e aludidos às amoralidades dessas mesmas experiências. Porém, o filme que John Frankenheimer tentou resgatar da penúria nem chega a roçar tais questões éticas que tão bem poderiam ser propostas, privando-se e desleixando-se para um espectáculo de feira, encabeçado pelos efeitos visuais e pela caracterização gerida por Stan Winston.

Todavia, voltando à temática da produção “condenada”, reza a lenda que os problemas começaram com Val Kilmer. O suposto protagonista, que devido à sua própria "birrice" de vedeta (tinha acabado de protagonizar o blockbuster da altura, Batman Forever, assinado por Joel Schumacher), foi automaticamente "encaminhado" para um papel secundário e de participação “desmembrada”, sem com isto falar das suas divergências com Frankenheimer. Segundo os rumores a desavença foi de tal forma intensa que depois da última cena gravada com Kilmer o realizador gritou "Cut! Now get that bastard off my set" (Corta! Agora tirem aquele bastardo do meu set).

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Acrescentar; o realizador original, Richard Stanley (também autor do argumento), despedido após quatro dias de rodagem, tentou sabotar as filmagens, infiltrando-se como figurino, e ainda a repudia dos atores ao filme (David Thewlis que apesar de protagonista recusou estar presente na premiere). Em relação a Brando (sabendo que os anos 90 não foram favoráveis à sua carreira), este lidava com o recente suicídio da sua filha, Cheyenne, que condicionou o seu desempenho e em consequência disso um papel mais reduzido, para além de uma interpretação indecifrável onde era mais que evidente a sua falta de inspiração. Ou seja, tudo em The Island of Dr. Moreau apontava ao desastre ...

Com uma equipa desmotivada como esta, The Island of Dr. Moreau evidencia automaticamente desleixo, a começar pelo argumento, vítima de reestruturação de última hora que deixa de lado a essência do conto, até chegarmos a um elenco que, praticamente, atira o filme para as "urtigas", e claro, Val Kilmer a acusar-se de ser o caso mais agreste desse comportamento. Por outras palavras, concretizou-se a profecia, a catástrofe artística que se adivinhava, e o resultado é uma obra esquizofrénico e de um climax dissipado que antecede o próprio espectador, tendo mais pressa em chegar ao desfecho que este.

No centro de tanta "loucura" e fracassos, uma pergunta fica no ar - como é possível arruinar tal malevolamente o distorcido conto de H.G. Wells? E como não bastasse ainda temos a oportunidade de questionar - o que faz Marlon Brando no meio disto tudo? É de chorar por menos apesar do adornos.

"There is no pain, there is no law!"