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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O filme "queer" do ano!

Hugo Gomes, 31.07.19

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Numa visão mais pessimista, podemos garantir que “Fast and Furious” é já uma saga longa de mais e precisa de um certo travão. Isso viu-se no cansaço (que, por sua vez, não se refletiu nas bilheteiras) do oitavo capítulo, novamente à volta da figura de Dominic Toretto (o papel que colocou Vin Diesel no estrelato da ação). Só que nesse episódio com Charlize Theron como a vilã de serviço, uma das suas outras novidades conquistou os fãs de imediato: a química explosiva entre Dwayne Johnson e Jason Statham. Ela revelava-se nos poucos momentos em que partilhavam o ecrã e os produtores perceberam logo o potencial e colocaram mãos à obra, expandindo assim o universo com um "spin-off" isento de Diesel e da "família" mais que vista e revista.

"Fast And Furious: Hobbs & Shaw” é esse filme, nascido do oportunismo. Mas curioso será dizer que, por detrás da sua esquemática intriga ou das bafientas sequências de ação (o desequilibrado ritmo ameaça-às constantemente), a proposta funciona sobre essas linhas-guias. Johnson de um lado, Statham do outro, como indicia a entrada dos créditos iniciais, um "split screen" que os coloca distantes e, ao mesmo tempo, próximos como as enésimas comédias românticas, onde personagens contrastadas são complementadas em nome do amor. A esta altura, o leitor quererá saber o porquê da referência "queer" do título numa produção direcionada a alfas, injetada de proteínas e testosteronas. Eis a resposta: em "Hobbs & Shaw” esconde-se um desejo contido que quase torna um embuste essa capa de heterossexualidade convicta e fantasiosa que nos querem vender. Não se trata apenas da química trazida por Dwayne Johnson e Jason Statham. Existe aqui uma intenção em transformar essa rivalidade e cumplicidade num romance não intencional.

Vejam-se os diálogos que Hobbs e Shaw trocam desalmadamente sob o gesto de ofensas e desdém: não serão eles mais do que um perfeito “flirt”? A sua agressividade contrai uma certa e cuidada invocação sexual, que por vezes parece terminar com um apaixonado beijo. Já vimos isso no cinema por muito menos. A juntar a estas suspeitas, existe todo um culto a um ecossistema de masculinidade e um homoerotismo em cada esquina. Há um sentimento de “não sair do armário” em todo este jogo de "bromance" enviesado no "buddy cop movie", um medo de se assumir e com isso deixar de oferecer ao espectador a ilusão de último reduto de um cinema puramente heterossexual.

Contudo, não é por estes caminhos que vamos condenar um filme. Mas é por estes mesmos trilhos que devemos quebrar o mito do “cinema para homens a sério” que uma certa cultura proclama ao tentar resistir a estes novos tempos de tolerância que se apoderam cada vez mais do nosso quotidiano. O que está em causa em "Hobbs & Shaw" é que, através dessa alusão dos conformes masculinos, nos seja entregue um produto regido por um prolongado "stand up comedy" entre dois homens de ação, esquecendo que um filme não se faz apenas de carismas e químicas. Obviamente, esquecendo as leis da física e da coerência, ficamos restringidos a um aspirante do cinema de Michael Bay. A surpresa é que, no final, o nome é outro: David Leitch, um dos mentores de “John Wick” e realizador de “Deadpool 2”, aqui sucumbindo ao anonimato. Ficou-se por Hollywood e pelos grandes orçamentos, vendendo a alma por um espectáculo de agenda.

Seja como for, "Fast And Furious: Hobbs e Shaw” é um cartucho gasto que, por sua vez, é preservado como um prémio de consolação. Além das inevitáveis promessas de sequela, é um perfeito exemplo de "silly season" para rentabilizar o que já não necessita ser rentabilizado.

Charlize Theron ao quadrado.

Hugo Gomes, 27.07.17

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Vamos fingir por momentos que Charlize Theron não é a protagonista de Agente Especial… sim, vamos supor que ela está ausente do projeto. O que nos resta afinal? Um thriller de ação pingarelho completamente estilizado, cujo estilo, quer estético, quer técnico, engole por completo o que de bom este filme poderia culminar? Sim, exatamente isso!

Atomic Blonde” desloca-nos para os temores da Guerra Fria, mais precisamente nos dias premonitórios da Queda do Muro de Berlim, tudo embrulhado num típico filme de espionagem mais devedor aos tempos musicalizados de hoje do que ao apogeu deste mesmo subgénero na década de 70. Como é de esperar, a premissa envolve-nos um macguffin, um dispositivo que levará a nossa protagonista e as restantes personagens numa extensa corrida contra o tempo, esse que se faz não da maneira cronometrada, mas na reconstituição de época, com a História a ser escrita em paralelo (das promessas da queda do muro até à realização do histórico ato).

Contudo, o objetivo desta intriga, o motivo de desespero destas personagens, não fazem efetivamente o sangue correr no espectador, a responsabilidade encontra-se de facto na saturação do subgénero, na vulgaridade com que o macguffin se converte nos constantes plot twists, ocorridos pontualmente e sem surpresa alguma. Mas todas estas desculpas têm um propósito (calma, ainda não é aqui que entra Charlize). A desculpa é um show off técnico e estético por parte de David Leitch (um dos realizadores de “John Wick” e futura sequela Deadpool), uma bandeja requintada de sequências de ação desafiadas por uma montagem poupada em cortes e planificações desnecessárias, aliás são os constantes travellings, esses planos sequências quase espaciais que ditam a natureza desta “loira atómica”.

Que em união com a violência gráfica, os stunts sem falhas e devidamente treinados, a decadência de uma Berlim em ebulição e por fim … entramos então naquele ponto inicial … a nossa atriz com esforço e dedicação neste papel fisicamente árduo. Theron dispensa os duplos, é autodidata e essas qualidades refletem uma cumplicidade com o olhar clínico de Leitch, esse dinamismo vibrante entre a técnica pensada em prol da ação e não o oposto.

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Curiosamente, existem vestígios de um subenredo existencialista que parece ocasionalmente demarcar-se da proposta de ação. Quem é esta “Atomic Blonde''? O que procura ela numa cidade dividida sob a agenda política? “Em Berlim, todos procuram algo”, afirma uma das personagens que atravessa no seu caminho, uma estrada que a guia para uma outra sequência. Enquanto combate capangas no Cinema Kino, é projetado “Stalker”, de Andrei Tarkovsky, a ficção científica filosófica onde um grupo de personagens tentam alcançar a “Zona”, um local misterioso, perigoso e proibido que realiza os respetivos desejos íntimos de quem o atravessa. Nessa jornada cinematográfica, estas personagens defrontam as suas dúvidas e medos antes de se instalarem na “Zona”, que resulta igualmente no espaço de uma Humanidade cada vez mais guiada pelo seu “umbiguismo”. Cena seguinte temos: “Everything you want is on the other side of fear”, lê-se num dos letreiros visíveis de um clube noturno de Berlim, essa cidade conflituosa em prol dos seus mais íntimos desejos, um desejo coletivo que não reflete a dúvida individual da personagem de Theron.

Infelizmente, ficou a sugestão, “Atomic Blonde” perde esse rasto no trilho, e o que sobra é só mesmo uma dedicada atriz de corpo-e-alma. E sim, é ao adicionarmos Charlize Theron a esta equação que o resultado se torna satisfatório. A atriz torna-se a rainha da ação, a estrela deste palco em ruínas e o resto… bem, o resto, a intriga, os secundários e a direção, são somente elementos subjugados a uma realeza apenas.