O filme "queer" do ano!
Numa visão mais pessimista, podemos garantir que “Fast and Furious” é já uma saga longa de mais e precisa de um certo travão. Isso viu-se no cansaço (que, por sua vez, não se refletiu nas bilheteiras) do oitavo capítulo, novamente à volta da figura de Dominic Toretto (o papel que colocou Vin Diesel no estrelato da ação). Só que nesse episódio com Charlize Theron como a vilã de serviço, uma das suas outras novidades conquistou os fãs de imediato: a química explosiva entre Dwayne Johnson e Jason Statham. Ela revelava-se nos poucos momentos em que partilhavam o ecrã e os produtores perceberam logo o potencial e colocaram mãos à obra, expandindo assim o universo com um "spin-off" isento de Diesel e da "família" mais que vista e revista.
"Fast And Furious: Hobbs & Shaw” é esse filme, nascido do oportunismo. Mas curioso será dizer que, por detrás da sua esquemática intriga ou das bafientas sequências de ação (o desequilibrado ritmo ameaça-às constantemente), a proposta funciona sobre essas linhas-guias. Johnson de um lado, Statham do outro, como indicia a entrada dos créditos iniciais, um "split screen" que os coloca distantes e, ao mesmo tempo, próximos como as enésimas comédias românticas, onde personagens contrastadas são complementadas em nome do amor. A esta altura, o leitor quererá saber o porquê da referência "queer" do título numa produção direcionada a alfas, injetada de proteínas e testosteronas. Eis a resposta: em "Hobbs & Shaw” esconde-se um desejo contido que quase torna um embuste essa capa de heterossexualidade convicta e fantasiosa que nos querem vender. Não se trata apenas da química trazida por Dwayne Johnson e Jason Statham. Existe aqui uma intenção em transformar essa rivalidade e cumplicidade num romance não intencional.
Vejam-se os diálogos que Hobbs e Shaw trocam desalmadamente sob o gesto de ofensas e desdém: não serão eles mais do que um perfeito “flirt”? A sua agressividade contrai uma certa e cuidada invocação sexual, que por vezes parece terminar com um apaixonado beijo. Já vimos isso no cinema por muito menos. A juntar a estas suspeitas, existe todo um culto a um ecossistema de masculinidade e um homoerotismo em cada esquina. Há um sentimento de “não sair do armário” em todo este jogo de "bromance" enviesado no "buddy cop movie", um medo de se assumir e com isso deixar de oferecer ao espectador a ilusão de último reduto de um cinema puramente heterossexual.
Contudo, não é por estes caminhos que vamos condenar um filme. Mas é por estes mesmos trilhos que devemos quebrar o mito do “cinema para homens a sério” que uma certa cultura proclama ao tentar resistir a estes novos tempos de tolerância que se apoderam cada vez mais do nosso quotidiano. O que está em causa em "Hobbs & Shaw" é que, através dessa alusão dos conformes masculinos, nos seja entregue um produto regido por um prolongado "stand up comedy" entre dois homens de ação, esquecendo que um filme não se faz apenas de carismas e químicas. Obviamente, esquecendo as leis da física e da coerência, ficamos restringidos a um aspirante do cinema de Michael Bay. A surpresa é que, no final, o nome é outro: David Leitch, um dos mentores de “John Wick” e realizador de “Deadpool 2”, aqui sucumbindo ao anonimato. Ficou-se por Hollywood e pelos grandes orçamentos, vendendo a alma por um espectáculo de agenda.
Seja como for, "Fast And Furious: Hobbs e Shaw” é um cartucho gasto que, por sua vez, é preservado como um prémio de consolação. Além das inevitáveis promessas de sequela, é um perfeito exemplo de "silly season" para rentabilizar o que já não necessita ser rentabilizado.