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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Quão cronenbergiano é David Cronenberg em 2022?

Hugo Gomes, 11.11.22

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David Cronenberg prometeu - e se prometeu - regressar ao seu “original modelo”, ao “body horror” que implantou como marca sua [cronenbergiano]. Contudo, com “Crimes of the Future”, uma lição deve ser (re)aplicada, o de nunca voltar ao local onde se foi feliz. 

Dito isto, neste filme que partilha o título com outra obra da sua autoria (em 1970, o possível "protótipo" para esta materialização), e com um trio de apelar aos mais salivantes produtores (Viggo Mortensen, Léa Seydoux e Kristen Stewart, e sem deixar de mencionar o nosso Welket Bungué a demonstrar que Portugal é demasiado pequeno para ele), seguimos num futuro ora alternativo, ora distópico, onde a Humanidade perde a sua conscientização da dor e com isso, adquiriu um gosto pela sua “mutilação”. Se bem que a ausência de uma sensação nos leva à procurar de outros como compensação, aqui, como é sugerido, a cirurgia converteu-se no equivalente sexual destes dias “negros” (o filme obtém pouca apetência para a luz e prefere refugiar-se nos becos e galerias), o tal prazer não saciável, vicioso e por vezes desesperante. 

Crimes of the Future” joga a seu favor, assim como a seu desfavor, a imposição de um universo seu onde nada nos é realmente definido, nem nos é garantido, deixando portas entreabertas para as particularidades daquele mundo à nossa mercê. Porém, essa dita sensação de deambulação por esses territórios, sejam corporais ou psicológicos, a violência apaziguada no quotidiano destas personagens, ou a identificável estética visceral (é difícil não pensar em “eXistenz” ou até mesmo em “Naked Lunch” nestas “andanças”), soa-nos a um convite “traído”, após o incentivo, tais “caminhos” nos são bruscamente interditos. 

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Tudo nos é derivativo, remodelado ou até mesmo influenciado, e o espectador fica-se no meio termo, passeando por um corredor de aberrações e de órgãos descartáveis, humanos que há muito deixaram de o ser, e a evolução prometida como próximo passo. Mas se se trata de um passeio, Cronenberg obriga-nos a percorrê-lo a passo de trote, saindo de seguida pela assinalada porta de fuga. Os devaneios, os desejos freudianos, a mote numa discussão da nossa existência carnal (somos seres do sofrimento, apenas há que abraçar esse propósito), rodopiar-nos ao encontro de um Cronenberg entusiasta. 

Voltando à lição, ninguém retrocede na sua maturidade (sem querer com isto referir o “Crime of the Future” como o filme da maturação de Cronenberg, mas é um Cronenberg maturado sem riscos, nem condição de regressar). Estranho, sabendo que é o próprio que assina a obra, e mesmo assim, ficamos com a sensação de que não fosse esse pormenor acreditaríamos estar perante alguém a tentar ser “cronenbergiano”. Neste momento os “cronenbergianos” são mais “cronenbergianos” que o próprio fundador do “cronenbergiano”.

Críticas do Futuro

Hugo Gomes, 24.07.22

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Crimes of the Future (David Cronenberg, 2022)

O meu percurso cinéfilo tem vindo a ser construído graças às redes de blogues que procuram fazer da escrita uma experiência de continuidade, uma extensão do encontro com o cinema no grande ecrã. Para quem vive fora dos grandes centros urbanos, esta relação que se estabelece com os filmes é preponderante na formação de uma visão de fundo sobre a história do cinema: longe do policiamento institucional e face às incontornáveis (e incontáveis) ausências em cartaz, mas também de uma programação que se possa dizer mais rica e abrangente, é nestes espaços virtuais que o jogo do cinema muitas das vezes se joga. 

Tanto assim é, que frequentemente me interrogo se a relação entre a escrita e o cinema não será sobretudo alimentada por um fora de campo que se quer chamar para a realidade do quotidiano: a escrita enquanto domínio daquilo que não se vê. Uma continuidade entre a experiência de um corpo que vê, com aqueles para quem o cinema ainda não é mais que o desejo de imagens em movimento, uma ânsia de viver o mundo com os sentidos do cinematógrafo. 

É claro que este nosso mundo de 2022 é muito diferente do de 2007. No que toca ao cinema, a exibição em plataformas de streaming é hoje uma realidade incontornável: mais filmes, uma oferta que chega a todo o lado e a toda a hora. E o que daqui resulta é também um espaço público cada vez mais disperso e difícil de descrever – tudo mudanças com consequências relevantes para a crítica de cinema. A excitação constante do imaginário coletivo pela ubiquidade da imagem em movimento não tem produzido modelos críticos com uma relação forte com a realidade do quotidiano, e aqueles que o fazem continuam invariavelmente ancorados em dinâmicas institucionais fossilizadas na era pré-internet. 

Entretanto, o scrolling de feeds tornou-se numa experiência cinematográfica ultra-moderna-super-hardcore 24/7, uma realidade que não tem sido muito amiga para a crítica de cinema enquanto espaço autónomo de reflexão. Os filmes estão em todo o lado, e há por vezes a sensação de que a crítica não tem muito a dizer sobre esse oceano de imagens. É como se a permanência das imagens fosse afinal uma perversão desse fora de campo que parece ter inspirado diferentes gerações a filtrar a experiência do cinema pela escrita.

Se existe uma crise na crítica, isso também se deve a um novo posicionamento do campo da arte perante a realidade. O mapeamento da contemporaneidade tornou-se impossível, e há no ar uma sensação de afterparty. Ainda bem. Cinematograficamente falando: enterre-se o velho mundo, instalem-se os novos órgãos.

 

*Texto da autoria de José Raposo, crítico de cinema do C7nema e colaborador da revista LOUD! Magazine

Cinema em vias de extinção ou de mutação?

Hugo Gomes, 23.07.22

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Videodrome (David Cronenberg, 1983)

Em 2005, aceitei o convite para escrever para o c7nema, numa altura em que, olhando para trás, assumo uma limitação maior da minha cinefilia tanto no espaço (i.e. na geografia de onde nasciam os meus filmes favoritos) como no tempo. O YouTube tinha acabado de ser criado e ainda era um palavrão, e a Netflix, se era um nome mais conhecido pelos cinéfilos, era ainda um mero serviço de DVD por correio. Se quiséssemos ver um filme que tivesse acabado de sair das salas de cinema, íamos a um clube de vídeo como o Blockbuster.

Quando penso nesta década e meia passada, ao longo do qual conheci pessoas como o Hugo, ao mesmo tempo que vimos o cinema mudar também ele os meios onde era exibido, a escrita acabou por ser ela um ponto de partida para a memória que ainda estava a começar a criar. Por vezes criticamos os críticos quando pensamos que abusam das referências nos seus textos, mas a verdade é que é esse "jogo" que faz uma pessoa com falhas cultivar melhor o seu conhecimento do passado. Foi a ler um leque de críticos, nacionais e internacionais, que descobri novas obras, e foi a ler as suas críticas que aperfeiçoei a minha própria voz quando era altura de entregar um texto.

A verdade é que o cinema nunca teve tanta disponibilidade como hoje - eu ainda sou do tempo que se perdesse o final de um filme na gravação da videocassete poderia arriscar-me a passar uns tempos sem saber o que aconteceu - e no entanto, falamos na morte desta arte pela sua passagem indiscriminada por todos os ecrãs, do telemóvel ao televisor. Eu creio que o cinema não morre assim... simplesmente o espaço de eleição, o espaço de culto principal dos cinéfilos, foi transfigurado para um conceito de feira popular, com a disparidade nas receitas entre filmes com orçamentos de marketing maiores que os orçamentos totais de milhentos outros. Em 2005, tínhamos espaços como o Quarteto e o King em Lisboa. Em 2022? Mantemos apenas o Nimas e o Ideal na capital, muito graças a ligações próximas a distribuidoras, e a investirem até em negócios que são hoje vistos como "obsoletos" ou de nicho segundo lojas Fnac e afins- como o mercado de DVDs, e de posters de filmes. Hoje as peças de memorabilia dominam (canecas, bonecos... ) e ao mesmo tempo estão restritas a um número finito de obras - i.e. os êxitos de bilheteira, os que convidam os cinéfilos de domingo a uma tarde de diversão e pipocas. 

Nesta reconfiguração do mercado, que a cada dia assusta mais, consigo por um lado empatizar com quem ache que a arte está a morrer. Está a ficar em vias de extinção o cinema "comercial" limitado a passar filmes e quanto muito a tirar uns cafés, que nos acompanhou no visionamento de obras mais ou menos alternativas, sem dúvida. Por outro lado, consigo também racionalizar e perceber que esse cinema de cariz mais alternativo irá sobreviver-nos, quer seja num circuito festivaleiro, quer seja nas cinematecas ou clubes, ou... num ecrã de telemóvel, objeto de ver e ser visto, de filmar e visionar um filme. É preciso, apesar de tudo, não discriminar o "streaming", pois coloca-nos num papel mais interativo e menos pirata, pese muitas deficiências no catálogo que surgem na concorrência feroz entre plataformas. É preciso cobrir filmes diretos para streaming, e não tratá-los com o mesmo preconceito como em 2005 escrevíamos sobre os "direto para vídeo" (nos quais encontrávamos ainda assim verdadeiras pérolas descartadas por distribuidoras!). É preciso percebermos que o cinema está numa fase de transfiguração, de tal modo que há casos onde vemos difícil uma distinção entre TV - com uma qualidade inegavelmente superior com o virar do século - e sétima arte, e grandes filmes de festivais são comprados ora para "streaming" ora por canais de televisão. Haverá sempre quem queira limitar a arte à experiência de ver o filme em sala. Essa nunca será a minha posição, pois a minha primeira cinefilia, mais limitada, surgiu precisamente com fitas de VHS gravadas e regravadas, conforme a necessidade, e não foi isso que tirou a minha paixão.  



*Texto da autoria de André Gonçalves, crítico de cinema do Cultura XXI e podcaster do Peeping Tom, ex-colaborador do C7nema

 

Nunca gostei de domingos, porque por vezes eles "doem"

Hugo Gomes, 13.03.22

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The Accidental Tourist (Lawrence Kasdan, 1988)

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Kiss of the Spider Woman (Hector Babenco, 1985)

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The Village (M. Night Shyamalan, 2004)

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Altered States (Ken Russell, 1980)

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A History of Violence (David Cronenberg, 2005)

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A.I. Artificial Intelligence (Steven Spielberg, 2001)

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Body Heat (Lawrence Kasdan, 1981)

 

William Hurt (1950 - 2022)

Uma viagem alucinante e erótica sem amortecedores

Hugo Gomes, 05.01.21

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Antes de se aventurar por assoalhadas freudianas a partir do seu menosprezado “Spider” (2002), David Cronenberg, anteriormente visto como o mestre do "body horror", criou um ensaio prolongado sobre o desejo. Este período vai desde os finais dos anos 1980, com “Dead Ringers” à cabeça (1989), até uma fase mais fulcral na década de 90, onde se destaca a sua provável obra-prima, “Naked Lunch” (1991), que cruzaria os seus universos ambíguos com os devaneios homossexuais e estupefacientes num moderado tropicalismo do Tânger, reinterpretando escritos de William S. Burroughs. Seguiu-se a sexualidade, novamente sem género definido, no esteticamente convencional “M. Butterfly” (1993), paragem que antecedeu o “atropelamento” de “Crash”, a partir do livro de J.G. Ballard, que reuniu um nicho fetichista e de voyeurismos mórbidos, fixados no quente da carne e no frio do metal.

Apresentado no Festival de Cannes de 1996, onde conquistaria o Grande Prémio do Júri, “Crash”, foi, como primeiro “choque”, um filme dúbio e movido a gás por controvérsias, começando pela pouco consensual crítica até às suas versões editadas que atenuavam o tom lascivo e algo perverso, como a infame versão que marcou presença no Reino Unido e que, de alguma forma, se diluiu com o lançamento "home video" em Portugal. Por isso, convém sublinhar que, após 25 anos, estamos a ser presenteados com uma edição restaurada em 4K e sem limitações de conteúdo para os cinemas, celebrando a mais dolorida e erótica das obras da década de 1900. Um objeto que se faz pela sua singularidade e redefinição da nirvana sexual.

Mas antes de prosseguir sobre a sua natureza aberrante, que funde carnalidade com engenharia automobilista, há que valorizar o seu regresso aos cinemas portugueses para percebermos como, desde a sua primeira estreia, o mundo mudou tanto e em tão pouco tempo. Na altura, Cronenberg enfrentou “mobs” de conservadores, mas hoje em dia, um filme como este dificilmente ganharia luz verde em solo norte-americano, até porque o puritanismo, diversas vezes disfarçado de ativismo, tem impedido a manifestação do desejo no grande ecrã. Aqui se encontra uma vontade de antagonizar a fantasia sexualizada de cada um, por mais excêntrica que seja, e “Crash” é, acima de tudo, um filme sobre essa descoberta, desafiando e questionando o espectador sobre o que é, ou não é, sensual, segundo o seu prisma e parafilias à mistura.

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Portanto, o que representa toda esta fetichização pelos acidentes rodoviários? O fascínio quase obsessivo pelo acidente e a suplicia pela fusão de homem e máquina? O casal entediado que procura novas fontes de luxúria e desejo? Simplesmente isto: uma sociedade que estrangula qualquer movimento ou exercício a favor de uma fantasia, transformando fetiches em crimes hediondos, ou vergonhas alheias, conduzindo-os para uma subcultura que se refugia nas sombras. E para se poder usufruir de rejeitados sonhos húmidos forma-se um “underground” de marginais sedentos pelo seu elixir pecaminoso, patrulhas noturnas que circulam por entre o tráfego na busca de vestígios acidentados ou de corpos violentados e cicatrizados por essa união de forças e matéria.

Não vamos mentir: em 25 anos, “Crash” adquiriu uma nova (não tão nova assim, mas saliente) dimensão, aura e posicionamento. O seu regresso é mais que bem-vindo numa altura em que as assexualidades trazidas pelo cinema "hollywoodesco" predominam no “consumo” dos espectadores. A proeza de Cronenberg ao soldar todo este recreio de masoquistas foi o de localizá-lo no centro de um filme remoto, em constante vaivém para com as lides da narrativa convencional. Não há um claro clímax, um antagonista, ou uma jornada heroica, apenas uma transformação do casal protagonista (ao som da banda sonora de um alienado de Howard Shore), desesperado e criativamente esgotado em saciar as suas taras.

Desde 1996 que “Crash” persegue a nossa subjetividade sobre as relações e voyeurismos. É um filme sujo que se despede de géneros e contrai um misto de mal-estar ou de um “embaraçoso” ecstasy. Nesse sentido, a sua bipolaridade converte-o num modelo intemporal e igualmente fora do nosso tempo...

Somos Gémeos, Somos Mutantes!

Hugo Gomes, 12.07.17

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"Dead Ringers" ("Irmãos Inseparáveis", 1988) em todo o caso deve-se incluir numa lista de falsos-bromances, enquanto se discute um triângulo amoroso que nos leva à autodestruição de dois vértices do mesmo. Porém, ao contrário de qualquer intriga que se poderia suscitar nesta descrição, um efeito comum na transcrição do cinema noir e do cinema sobretudo masculino, existe um pormenor a ser discutido neste mesmo triângulo, dois dos seus lados são iguais, por outras palavras … idêntico. Gémeos idênticos.

Baseado num livro de Jack Geasland e Bari Wood sobre o suicídio dos irmãos Marcus, David Cronenberg encontra nesta história real a possibilidade de uma dissecação psicológica sobre a natureza dos gémeos. O tom encontrado foi de uma repulsa prolongada por diversos factores. Mais do que detalhes de enredo, esses elementos são ferramentas para esta cuidadosa cirurgia. Começamos com uma dupla de ginecologistas, gémeos fraternos (fisicamente idênticos), que repartem o mesmo gosto, assim como as mesmas experiências. Em derivação disso, partilham mulheres, sentimentos, a luxúria vibrante que pode despoletar nesses relacionamentos, fazendo-o através de um jogo. Um perfeito jogo de ilusões.

Eles são os “fabulosos” gémeos Mantle (ambos desempenhados por Jeremy Irons no meticuloso processo de individualidade), brilhantes mentes da sua área, verdadeiros manipuladores que cedem à sua própria armadilha. O “isco” para esta entrada encontra-se no fascínio pela “anormalidade”, pelo bizarro deparado no útero de uma mulher. Ela é Claire Niveau (Geneviève Bujold), uma atriz de cinema, uma beleza exterior assim como interior, afirma Elliot Mantle enquanto declara no meio da consulta que deveriam existir parâmetros de beleza completos. O seu útero é disforme, é como fazer sexo com um mutante, afirma alterado o outro gémeo, uma particularidade que coloca Claire no seio desta partilha entre dois homens, que auto-mascaram um no outro, formando uma só identidade. Provavelmente todo este “recreio” não se resume a um disfarce completo, a um “faz-de-conta”. Eles são dois, mas como seres individuais eles são apenas um único. Um feto completo que origina um completo adulto de experiências próprias e exclusivas.

Cronenberg explicita esta psicologia quase telepática entre gémeos através de uma invocação mutante. Serão os gémeos verdadeiros mutantes, um ser repartido pronto para tomar mais que um espaço? A alegoria utilizada para essa discussão está na utilidade das passagens dos irmãos siameses, unidos num só corpo e com a necessidade de separação para motivos para sobrevivência de, pelo menos, um deles. No caso dos Mantle, a “separação” leva-lhes à destruição dessa identidade, à morte do indivíduo. Nesse sentido, o desempenho de Irons é também ele um desafio, as posturas de duas personagens distintas que se vão confundido constantemente na narrativa, diluindo-se numa só, a catarse da sua personalidade. O espectador é desafiado a reconhecer estas figuras, para no fim, ser abalado com o paradigma lançado por Cronenberg: o que é um gémeo? Existe naturalidade num gémeo? Como funciona a sua saúde psicológica? Existe assim, no seio deste paradigma, uma certa tragédia grega. Nasceram juntos, terão, portanto, direito a morrerem juntos?

"Dead Ringers" não explora da maneira que requeremos, não atribui a esta intriga de obsessão as derradeiras respostas às provocações lançadas. Simplesmente empresta-as a uma cauda de tormento, uma alucinação que vai desde o body horror tão próprio de Cronenberg (que controla essa loucura para um estado das personagens; sonhos, devaneios, fantasias e perdição) até à psicologia febril e fragilizada que atenta o espectador com a constante dúvida. Este é sobretudo um filme, que tal como a profissão dos seus protagonistas, encontra a “beleza” no seu interior, uma deveras distorcida que só os “loucos” poderão verdadeiramente amar. É como fazer sexo com um mutante…

Cinematograficamente Falando ... apresenta: Top Eróticos

Hugo Gomes, 21.02.15

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Não caiam no erro, cinema erótico não é o equivalente a pornografia, e sim uma arte que acima de tudo se deixa deslumbrar pela luxúria, pela sensualidade dos corpos e a aura tentadora que emerge nelas. Uma antiga relação amorosa que remonta-nos aos primórdios do cinema, mais concretamente com os testes de footage de Eadweard Muybridge (1884 - 1887), a partir daí o cinema ficou fascinado com a versatilidade e a beleza dos corpos humanos, da sua delicadeza até à sua robustez, tentando combater as eventuais censuras em prol desse adultério para com os bons valores. Mesmo nos dias de hoje o cinema erótico é visto de certa forma como uma minimização da pornografia, mas enquanto esta evolui para territórios mais jubilantes e menos cinematográficos, o erotismo se comporta como um género rebelde, pronto a causar controvérsia, e sobretudo a minimizar a distância do seu público para com as suas mais intímas fantasias e à temática sexual que a sociedade tanto quer esconder.

E como o cinema erótico tem tanto para mostrar, obras cinematográficos ímpares de gerações, estilos e narrativas, o Cinematograficamente Falando … em colaboração com Nuno Pereira do site Cinespoon (ver aqui) e Roni Nunes, João Miranda e André Gonçalves do C7nema (ver aqui) decidiram elaborar um Top das Melhores Filmes Eróticos até à data, com influência da estreia de Fifty Shades of Grey. Uma lista que reúne os mais diferentes mestres da cinematografia, desde Cronenberg a Verhoeven, Ozon a Bertolucci, todos eles contribuíram para a imensidão da onírica luxúria e a fantasia pessoal de cada um. O imaginário do espectador poderá ser assim levado para fora dos limites da perversão ou até mesmo da divindade sexual.    

 

#10) Les Anges Exterminateurs (Jean-Claude Brisseau, 2006)

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Um híbrido entre fantasia masculina com autobiografia, metaforizando as memórias do seu autor, Jean-Claude Brisseau, sob pseudónimos e muito erotismo onírico. Les Anges Exterminateurs é o apogeu de uma busca interminável de um homem pelo que mais de divino possui a mulher, o derradeiro orgasmo. No segundo capítulo da trilogia Tabu, nunca os corpos femininos obtiveram tamanha sensualidade e intimidade. Um retrato intimista, a segunda chance de um realizador "humilhado" em praça pública, mas mesmo assim, apaixonado pelo seu símbolo de tentação. Hugo Gomes

 

#09) Shame (Steve McQueen, 2011)

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Steve McQueen navega em território erótico, porém aquilo que conseguiu cometer foi um ensaio frigido da ninfomania. Em Shame não temos fantasias, devaneios, nem sequer "mundos encantados", tudo é retratado num quotidiano obsessivo e desesperado. Michael Fassbender é essa loucura do degredo em pessoa, o "peão" em queda livre para as profundezas da luxúria. Para além do seu marcante desempenho, temos ainda uma frágil Carey Mulligan como boneca de desejo. Vergonha é dos poucos filmes que aborda a ninfomania como a doença que é. Hugo Gomes

 

#08) Crash (David Cronenberg, 1996)

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O desejo é fluído. Desliza sobre as geometrias urbanas e concentra-se nos pontos de contacto entre as pessoas. Quando as linhas que os automóveis desenham sobre estas superfícies se cruzam, este explode em estilhaços como os vidros e os ossos. Crash é um filme sobre estas explosões e sobre a sua procura. Numa sociedade que pretende formatar as interacções pessoais e o desejo ele próprio, este manifesta-se por vezes de formas surpreendentes. João Miranda

 

#07) La Bête (Walerian Borowczyk, 1975)

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Esse clássico absoluto e escandaloso do aliciante cinema erótico dos anos 70 trazia uma fantasia, uma sensualidade e um humor que praticamente não se encontra no cinema actual. A acção se precipita quando uma inocente beldade da nobreza inglesa vai à França conhecer o noivo ao qual estava prometida. Ocorre que este é estranhíssimo e o castelo do seu sogro esconde mais do que os retratos de uma geração nobre na parede. Para além de um erotismo cheio de classe, tem uma inteligência invulgar, um enorme sentido de humor e uma escandalosa associação da sexualidade humana como uma bestialidade atávica, o suficiente para deixar os conservadores da altura de cabelos em pé... O autor da façanha foi o polaco exilado em França, Walerian Borowczyk, responsável também pelos magníficos Contes Immoraux, que lançaria dois anos depois. Roni Nunes

 

#06) Nine 1/2 Weeks (Adrian Lyne, 1986)

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Só por ter sido o principal difusor da gastronomia corporal como preliminar, já merecia um lugar neste top 10. Que Nine 1/2 Weeks tenha de facto uma história realista e hipnótica de uma relação que se vai tornando obsessiva por detrás dos seus grandes momentos mais badalados – realço, para além da icónica sequência gastronómica, o "strip" igualmente icónico de Kim Basinger ao som de "You Can Leave Your Hat On" de Joe Cocker - é um pequeno milagre. André Gonçalves

 

#05) Secretary (Steven Shainberg, 2002)

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O Amor é polivalente. Perante as imagens culturais e mediáticas que nos limitam, por vezes é difícil compreendê-lo sem o julgar ou o considerar bizarro. "Secretary" é uma história de amor diferente, que surpreende tanto os espectadores, como os seus participantes. Um filme que recusa o amor romântico que enche os ecrãs, os livros, as músicas e os postais, mas que recusa também qualquer etiqueta. João Miranda

 

#04) Lucia e El Sexo (Julio Medem, 2001)

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O cinema latino é mais facilmente associado a tópicos mais "calientes" é certo, mas Lucia e El Sexo destaca-se dos demais, ao usar máximo efeito a sensualidade dos atores (Paz Vega emergiria deste filme como uma das grandes revelações latinas da década), o ambiente envolvente - neste caso, a paisagem mediterrânica - e a sua meta-narrativa fantasiosa, como estímulos altamente irresistíveis, e tão eróticos como intelectuais. André Gonçalves

 

#03) The Dreamers (Bernardo Bertolucci, 2003)

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Em pleno verão quente de 68, durante as manifestações estudantis em paris, uma tríade (estudante americano, casal de irmãos franceses) nasce. Em The Dreamers temos verdadeiramente o que a cine-arte devia ser. Sob uma temática altamente relevante, é pintado um quadro, com Eva Green como musa inspiradora, uma verdadeira Venus de Milo. Nuno Pereira

 

#02) Swimming Pool (François Ozon, 2003)

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Toda a inteligência de François Ozon é expressa nesta obra. O centro é a relação peculiar entre uma escritora inglesa que procurava inspiração na sua casa no sul de França, mas em vez disso encontra inquietação nos braços da sua estranha filha. Aqui o destaque maior recai sobre os diálogos arrojados e o clima profundamente sexual e misterioso, mérito para a dupla protagonista, Charlotte Rampling e Ludivine Sagnier. Nuno Pereira

 

#01) Basic Instinct (Paul Verhoeven, 1992)

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O filme que encerra a fenomenal epopeia de Paul Verhoeven com capitais americanos - antes de se afundar com "Showgirls" e o "Hollow Man". Os seus temas favoritos (a culpa, o pecado, a consciência, a perversão) ganham uma abordagem de luxo numa intrincada trama policial que contava com uma Sharon Stone num estado de graça e a bater em sensualidade e inteligência qualquer femme fatale da história do cinema. Além dela, a sua curvilínea amante Roxy (Leilani Sarelli) acrescentava um charme lesbian chic à história, que incluía requintadas cenas de sexo e a fabulosa sequência do interrogatório, onde um espectáculo de montagem e movimentos de câmara culminava com uma das cenas mais famosas do cinema recente - a do cruzar de pernas. Nunca mais se veria Sharon Stone assim - ainda que a sua fulgurante participação em "Broken Flowers", de Jim Jarmusch, servisse parcialmente de consolo. Roni Nunes

 

Menções Honrosas

Ai no Korîda (Nagisa Ôshima, 1976)

Contes Immoraux (Walerian Borowczyk, 1974)

La Vie d'Adèle (Abdellatif Kechiche, 2013)

Nymphomaniac: Director’s Cut (Lars Von Trier, 2014)

Uomo che Guarda, Le (Tinto Brass, 1994)