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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Daniel Barosa: "A extinção do Ministério é algo preocupante e triste, mas precisamos seguir, a cultura não pode morrer!"

Hugo Gomes, 28.01.19

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Boni Bonita é um canção, uma melodia que remete a sentimentos, desejos, juramentos e até mesmo desilusões. É a união e ao mesmo tempo desunião destes foragidos do destino. Beatriz, uma argentina radicada em São Paulo, que após a trágica morte da sua mãe submete-se à deriva da estrada até se cruzar com Rogério, músico que aguarda o seu momento de reafirmação na indústria. Dois fracassados, cujas falhas, de cada um, resultam numa relação tempestuosa.

Boni Bonita” é também o título da segunda longa-metragem de Daniel Barosa, realizador que se aventura nesta coprodução com a Argentina para encontrar a luz da ribalta na arte de narrar. Filmado a 16 mm sob um potencial de intimismo quase caseiro, “Boni Bonita” integra a Competição de Slamdance, festival de cinema independente e de baixo-orçamento nos EUA.

Falei com o realizador sobre este projeto e os seus próximos, assim como a cada vez mais difícil arte de fazer Cinema no Brasil.

Como surgiu a ideia para este filme e como foi avançar para uma longa-metragem de ficção?

A ideia surgiu com a personagem da Beatriz, que espelha muitas experiências vividas por mim e do produtor, Nikolas Maciel, na cena de música independente de São Paulo no começo dos anos 2000. O guião começou a ser desenvolvido em 2011 e a ideia era fazer uma longa-metragem de baixo orçamento, já que seria o meu primeiro.

Claro que tivemos dezenas de obstáculos. Filmar ao longo de 3 anos acho que acrescentou bastante à narrativa, mas foi o equivalente fazer três longas em 3 anos, pois sempre implicava renovar toda a nossa estrutura de produção. Trabalhar com película no Brasil foi um desafio à parte, já que durante a filmagem, o único laboratório que revelava no Brasil fechou! Tivemos que levar o filme para revelar no México e depois escanear na Argentina. Deu bastante trabalho, mas valeu a pena! As imagens em película no filme ficaram lindas e acrescentam muito ao seu proposto clima nostálgico.

Queria que me falasse sobre a escolha de Ailín Salas como coprotagonista? E se isso foi algum requisito da coprodução?

Desde as primeiras versões do argumento, sabia que o filme só funcionaria se achasse a atriz perfeita para o papel de Beatriz. E é muito difícil achar alguém jovem com experiência, ainda mais no Brasil onde esse perfil de atores tende a trabalhar mais na televisão. Enquanto escrevia Boni, vi a Ailín no filme “La Mirada Invisible”. Ela tinha um papel pequeno, mas na altura vi que seria perfeita para Beatriz! A Ailín tem um olhar e presença muito forte. Ela fala muito sem dizer uma palavra! Quando descobri que tinha nascido no Brasil, pensei na hora que tinha que conseguir ela para o meu filme! Conheci a Ailín no Festival de Mar del Plata, o qual estava presente com a minha curta “A Tenista”, e ela se interessou pelo projeto, apesar do desafio de atuar em português (algo que ela nunca tinha feito). A coprodução surgiu a partir daí; foi o resultado de ter a Ailín no projeto.

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Sobre o enredo, é curioso este retrocesso na atualidade e ao mesmo tempo encontrar uma época onde se inveja décadas passadas, até como Ney Matogrosso menciona “viver como os 80”. Acha que o Brasil, tendo em conta os eventos da atualidade, este regressar é uma solução (algo fantasioso) para as incertezas do futuro?

Não sei se esse regresso seria uma solução, mas o caminho que estamos a seguir é perigoso e assustador. Há uma nova mentalidade extremista a crescer no Brasil, e no mundo, que já existiu no passado e vimos que foram momentos tristes da nossa História. Acho muito importante revermos sempre o passado para não repetir os mesmos erros, mas infelizmente, não está acontecendo isso.

Em relação à coprodução, tendo em conta a extinção do Ministério da Cultura Brasileira e as crescentes dificuldades de fazer cinema no Brasil, qual é a solução para sustentar a produção audiovisual e cinematográfica do país?

Acredito que sim. A extinção do Ministério é algo preocupante e triste, mas precisamos seguir, a cultura não pode morrer! Sempre achei o modelo de coprodução no cinema, especialmente entre países latinos, uma ótima oportunidade, pois estamos unindo forças para sobreviver num meio dominado por Hollywood. A coprodução, além de ajudar os projetos financeiramente, possibilita uma troca cultural importante. Todos os projetos ganham com isso.

Fale-nos da composição e significado da canção homónima criada para “Boni Bonita”.

A música foi composta por Jair Naves, um músico o qual admiro muito. Conversamos bastante sobre o que seria essa canção e ele teve a ideia de criar algo que remetesse a uma espécie de cruzamento entre samba e bolero, com uma atmosfera das gravações dos anos 50. Ele contou com a ajuda do Renato Ribeiro, que criou a linda base de violão. A letra foi feita traçando um paralelo com o argumento do filme e praticamente reconta a história da Beatriz num tom poético, inspirado na MPB

Novos projetos? Ambições para o futuro?

Temos três projetos, os quais estamos a desenvolver em paralelo. Desta vez nada de filmar ao longo de três anos! Acho que o meu coração não sobrevive ao stress e à ansiedade! Tenho um argumento de uma comédia romântica que estou a escrever com Sílvia Antunes, um drama estilo coming-of-age, sobre a comunidade de brasileiros em Miami e “Oferendas”, um filme de terror que estou a desenvolver na produtora com o Nikolas Maciel [“Nimbo’s Film”]. Oferendas entram bastante no mundo da Umbanda e Candomblé e acredito que tem um potencial comercial maior. E vai ser uma coprodução também!

Nos trópicos da memória ...

Hugo Gomes, 27.01.19

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"Boni Bonita", a segunda longa-metragem de Daniel Barosa [a primeira ficção em tal formato], é um episódio de (des)união que remete a um hedonismo fabulista, uma fantasia que desvanece perante a necessidade de compromisso e que encontra lugar num Brasil que sonha com oásis remotos. Beatriz e Rogério são dois seres sem nada em comum para além das suas vidas fracassadas, o veio no qual se submetem a uma relação supostamente livre, refém dos acordes de “Boni Bonita”, dos calores da luxúria e do tropicalismo das suas pretensões. Mas até mesmo essa simbiose não sobrevive perante a ambição de ambos; ele, músico de 30 anos que espera pela sua oportunidade de fama, e ela, argentina radicada que tenta afastar-se do mundo que sempre conhecera e que desmorona perante a tragédia.

Filmado em 16mm de forma a condensar uma atmosfera igualmente misteriosa e íntima, “Boni Bonita” é acima do seu drama algo existencialista, um desejo de reconciliação com um país de outrora, imaculado perante os seus imperativos desejos, uns anos 80 refletidos num novo milénio assim como indica o artista Ney Matogrosso (aqui sob um especial cameo). Hoje, perante as atuais manchetes, deparamos com um pedido de retrocesso, um voltar atrás com um claro receio pelo futuro. Porém, este simbolismo encartado é somente fruto de um timing subversivo (o mesmo se aplica à coprodução de forma a devolver uma arte moribunda o seu grau subsistência).

Sentimos o grão anacrónico da imagem, o invocar de espectros de um cinema underground, intuitivo e sobretudo carnal, uma atitude que realça a derivação existencial pelo qual Daniel Barosa se perde. E nessa perdição, os seus atores principais, Ailín Salas e Caco Ciocler, tentam rasgar os seus peões do destino e emanar um química diversas vezes castrada por este olhar demasiado horizontal, força inversa à proposta de um filme, voluntariamente, limitado ao seu cerco.