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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Por Entre Belíssimas Ruínas

Hugo Gomes, 14.07.22

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Serge Daney

O estado da cinefilia? Ui. Talvez pudesse começar este texto narrando uma situação que me acontece cada vez mais frequentemente em reuniões sociais e noites de imperiais. Invariavelmente, há uma altura em que alguém me interpela - “olha, li o teu texto sobre o filme X e fiquei muito curioso/a”. Às vezes tenho que fazer um esforço de memória, porque o filme X já estreou e saiu de exibição há meses. Mas comento sempre - “ah, óptimo” - e pergunto sempre - “e foste vê-lo?”. Também invariavelmente, a resposta é “não” - “não, mas vou ficar com atenção para quando passar na televisão”. É um pouco frustrante, mas em compensação saio sempre destes encontros com um molho de sugestões de séries que “eu tenho que ver”. Noto, na “sociedade”, esta obsessão: quer, com toda a força, por-me a ver “séries”. Como se a “sociedade” tivesse desistido do cinema e vislumbrasse uma espécie de triunfo, ou apenas de conforto para uma consciência apesar de tudo culpada, na ideia de converter um cinéfilo às “séries”. Já há muito que deixei de contrapor, balbuciando, que não percebo a lógica associativa, porque é que gostar de cinema faria de mim um espectador de séries se são coisas totalmente diferentes, é como sugerir a um leitor de romances que saiu agora um manual de economia que ele “tem que ler”. Mas já não digo nada, sorrio, faço um esforço sincero para reter os títulos das séries que tão benevolamente me recomendam, e suporto a coisa com o estoicismo de quem se submete a uma terapia de conversão que sabe à partida condenada ao fracasso.

Os mais novos – já posso dizer assim, mesmo se sem gosto nenhum nisso – costumam ficar irritados quando digo que o cinema – que é uma coisa que não se deve confundir com “os filmes” - já morreu e andamos a caminhar entre ruínas, ruínas belíssimas, mas ruínas. Eu percebo-os, porque já tive vinte anos e também me irritava quando ouvia os mais velhos dizer estas coisas ou coisas semelhantes. Tinha a sensação de que estavam a ilegitimar os meus vinte anos, a censurar-me por ter chegado tarde demais, a considerar que a minha obsessão, o meu prazer, o meu interesse, não contavam para nada. Depois, percebi que não estavam a falar de mim. Assim como eu não estou a falar de vocês. Não estou, certamente, a falar dos que vão ao cinema, vêem cinema, estudam cinema, escrevem sobre cinema, fazem do cinema uma forma de relacionamento com o mundo. Não estou a falar dos que estão presentes, estou a falar dos que se ausentaram. Estou a falar do espectador de cinema, espécie em extinção, digna de um documentário da National Geographic – e como num desses documentários sobre espécies ameaçadas de extinção, não se responsabilizam os poucos exemplares sobreviventes pelo destino da espécie. Eles são (não, mudo o pronome), nós somos o que resta, nós somos as ruínas, as lembranças vivas de algo – os linces ou os espectadores de cinema – que já foi maior, possivelmente melhor, certamente mais vivo, quase de certeza mais banal, mais comum, mais corriqueiro.

O que era o espectador de cinema? Podia ser muitas coisas, mas era um indivíduo activo. Saia de casa. Procurava os filmes e escolhia os filmes, em vez de ficar em casa, e ser procurado e escolhido pelos filmes que as televisões e as “plataformas” escolheram para ele. Note-se: não estou a diabolizar a televisão contra o angélico cinema. Sem a televisão, sem os videoclubes, o vírus do cinema não me teria mordido na adolescência, e em grande parte não teria tido como o alimentar. A cultura de cinema na televisão, ou no VHS, ou depois no DVD, ou agora no “streaming” ou nas “torrents”, não é o problema, ou não é o problema todo, porque nunca foi incompatível com a cultura do cinema na sala, e tudo isto gerou, e continua a gerar, espectadores de cinema, na televisão e na sala. O problema, que me parece inegável, é o crescente desaparecimento de uma cultura de cinema, tout court. A televisão, de facto, não ajuda, os anos 80 estão longe, dificilmente algum “zapper” correrá o risco de fortuitamente se cruzar nalgum canal com o Moisés e Arão ("Moses und Aron") apresentado pelo João Bénard da Costa. E sim, antes que mo digam com modos zangados, eu sei que a televisão (uns canais mais do que outros) passa bons filmes, e que agora até há vários canais que passam filmes 24 horas sobre 24 horas. Mas... onde é que está um clássico qualquer (o Citizen Kane, por exemplo cliché) às 9 da noite num canal generalista? Isto acontecia, pasmem, pelo menos uma vez por semana na televisão do tempo em que cresci – a “Noite de Cinema”, na RTP, se não me engano às quartas-feiras, passava clássicos em prime time. Isto tinha um efeito básico: familiarizava os telespectadores com o cinema, ao mesmo tempo que alimentava a familiaridade deles com o cinema, e reflectia outra coisa básica, o facto de o cinema fazer parte do dia a dia. Ver um filme na tv, ou ir ao cinema, eram gestos normais, banais, corriqueiros. Foi isto que desapareceu, foi a cultura do cinema, foi a horizontalidade da relação com a cultura do cinema. E atenção que, embora pareça, não estou a culpar a televisão por isto. Ela – aquilo em que ela se tornou, das infindáveis horas de conversa fiada sobre futebol aos reality shows – tem a sua parte de culpa (sem pedagogia elementar não nasce nada), mas sobretudo é especialmente eloquente como reflexo deste(s) desaparecimento(s).

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Moses und Aron (Danièle Huillet & Jean-Marie Straub, 1975)

O que é uma maneira de dizer que o mundo deixou de ter o equipamento para gerar espectadores de cinema (e não me refiro, mas até esse vive uma espécie de crise, ao equipamento para mobilizar consumidores de cinema em torno de um acontecimento especial e “vertical”, seja ele um “blockbuster” ou um festival). Os espectadores que existem ou ainda são um produto desse mundo (são os velhos, os velhos que não se esqueceram ou não se renderam) ou são de geração espontânea, fortuita (que haja gente de vinte anos interessada não só em ver, mas em saber ver, um filme do Ford ou do Hawks, comove-me sempre, porque existe muito pouco na superfície do mundo para lhes criar esse interesse). Mas todos são, todos somos, acidentes. Como mutantes saídos dum premir dos botões errados numa experiência laboratorial. E, como mutantes, vivemos underground, mesmo que nesse imenso underground que é a internet. Mas é um underground. Que o digam os gestores e exploradores de salas de cinema, os editores de DVD ou Blu-Ray, os editores das mais conceituadas publicações especializadas. Nos jornais ou nos blogs, falamos uns para os outros, esta língua dos mutantes é cada vez menos compreendida. “De quoi parle-t-il?”, perguntava alguém no Nouvelle Vague do Godard, até que alguém respondia: “du cinéma”. Uma língua, um assunto, cada vez mais incompreensíveis.

Lembro-me de uma coisa dita por Louis Skorecki quando veio à Cinemateca, no princípio de 2010. Que, na geração dele, em que todos se sentavam na primeira fila, o enquadramento era uma coisa totalmente desconhecida. “Nós nem o víamos” (cito de memória), “o écran era demasiado grande e nós estávamos demasiado perto para nos podermos aperceber do enquadramento”. Era outra coisa, “era tomar banho no filme, era estar lá dentro”. Na minha cabeça fiz um “raccord” com um artigo de Serge Daney, escrito algumas décadas depois deste tempo em que esta gente “tomava banho” nos filmes, na altura em que para o “Libération” ele escrevia sobretudo sobre filmes vistos ou revistos na televisão. Nesse artigo (não o encontrei, não me lembro do título, sei que está algures numa compilação de textos dele), Daney falava com entusiasmo da relação de alguns cineastas com o enquadramento, e parecia especialmente fascinado com os cineastas que punham uma atenção especial no trabalho sobre as margens do enquadramento. Quando ouvi o que disse Skorecki lembrei-me desse texto, porque imaginei que, se calhar, Daney precisou da televisão para finalmente descobrir o enquadramento, e sobretudo esse território misterioso que eram as margens do enquadramento. De uma maneira intuitiva e sem mais rigor nenhum do que o que o leitor lhe quiser atribuir, a articulação entre o que disse Skorecki e esse texto de Daney estabeleceu-me uma marcação, uma baliza, para duas idades da cinefilia: o tempo em que se vive o cinema, porque se “está lá dentro”; e o tempo em que se  o cinema, porque se encontrou a maneira de “estar fora” dele. A cinefilia aventurosa, romântica; e a cinefilia analítica, cerebral.

Penso que, irremediavelmente, já não estamos no tempo da primeira, e que ainda estamos no tempo, até capaz de algum viço, da segunda. Virá, ou já veio, outra idade da cinefilia? E que fazer com esta ideia? Não sei, e não sei.

 

*Texto da autoria de Luís Miguel Oliveira, crítico do jornal Público e programador da Cinemateca Portuguesa.