Do Sagrado ao Primitivo
Partimos de encontro ao bíblico - a história que todos conhecem e recitam (Cristo e os seus seguidores, a crucificação e o nascimento de uma religião) - profanando-a para com o divino graças a uma reconstituição (porque não chamá-la de desconstrução?) para lá do existente relato, fundido como ferro neste “Magdala”, quarta longa-metragem de Damien Manivel (“Un Jeune Poète”, “Les enfants d'Isadora”).
Na exposição está Maria Madalena (interpretada pela fiel colaboradora Elsa Wolliaston, longe do senso-comum da figura), representada como a mais fiel dos apóstolos de Jesus, que após testemunhar o seu Senhor (romanceado seja) torturado e sentenciado, auto-exila ao remoto, escondendo-se no “coração” da impenetrável floresta, subindo ao cume mais íngreme ou, por fim, ocultando-se na mais profunda e tenebral caverna, a mesma que receberia tempos atrás a ressurreição e a ascensão aos bravos Céus. Uma cartada ao naturalismo austero a roçar um primitivismo que o Cinema nunca atingira durante a sua trajetória histórica, até porque esse minimalismo produtivo, a câmara enquanto único recurso moderno a captar elementos como bem vieram ao mundo, é uma fabricação do cinema moderno, uma obsessão entre pares para igualar a arte à pureza da sua natureza, despindo-a de megalografia industrial (poderemos afirmar que há qualquer ‘coisa’ de político nesta determinação).
Assim sendo, “Magdala” recorre ao tempo, ao gesto desdenhoso para com o mesmo, testando a paciência do espectador, colocando-o no embalo da sua cadência (esculpindo, como diria Tarkovsky). Mas não deparamos aqui ao enésimo exercício tarkovskiano contudo, o que vemos é a nudez da maquinaria, o recolher do luzimento oriundo da isolada vela na inversa Caverna de Platão (o mundo da claridade é aquele que desejamos abandonar, regressando às trevas), ou dos corpos decadentes das suas heroínas, banhadas pelas mágoas do seu amor incompreendido e apagado pela crueza da doutrina. Se Jesus pairou pelo deserto, 40 dias como está escrito, enfrentando as forças demoníacas das tentações incentivadas pelo “bastardo”, Maria Madalena reflete no selvagem oposto a fim de arrancar o seu coração, e como oferenda ao seu Deus, reduzir-se ao Nada, aguardando os anjos que a busquem para a sua redentora paz.
Esse pacto com o divino, a sacra desconstruída e refeita, é a tentativa de Manivel, ao nível dos mais celebrados conquistadores do primitivismo-moderno (contraposição, mas essa obsessão tem sido muito mais de agora) como Albert Serra nos seus “verdes anos” ou o destino de muito cinema galego a brotar na nossa contemporaneidade (Oliver Laxe ou Lois Patiño, dois a contabilizar a equação), de penetrar num cinema “carne-viva”, onde o místico é resgatado do mero mundano (seja gesto, pessoas ou quotidiano na sua original forma).
Se este é o caminho a seguir, o percurso não está tão longe daquele que vem sendo caminhado pelo realizador, o amadorismo no rigor da sua semântica como aproximação dessa invocada pureza, a iconografia apropriada e regida à rudeza (e quiçá a decadência, tão humana, diga-se de passagem). É o Cinema que procura Deus no Estado das Coisas.