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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Do Sagrado ao Primitivo

Hugo Gomes, 13.06.23

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Partimos de encontro ao bíblico - a história que todos conhecem e recitam (Cristo e os seus seguidores, a crucificação e o nascimento de uma religião) - profanando-a para com o divino graças a uma reconstituição (porque não chamá-la de desconstrução?) para lá do existente relato, fundido como ferro neste “Magdala”, quarta longa-metragem de Damien Manivel (“Un Jeune Poète”, “Les enfants d'Isadora”)

Na exposição está Maria Madalena (interpretada pela fiel colaboradora Elsa Wolliaston, longe do senso-comum da figura), representada como a mais fiel dos apóstolos de Jesus, que após testemunhar o seu Senhor (romanceado seja) torturado e sentenciado, auto-exila ao remoto, escondendo-se no “coração” da impenetrável floresta, subindo ao cume mais íngreme ou, por fim, ocultando-se na mais profunda e tenebral caverna, a mesma que receberia tempos atrás a ressurreição e a ascensão aos bravos Céus. Uma cartada ao naturalismo austero a roçar um primitivismo que o Cinema nunca atingira durante a sua trajetória histórica, até porque esse minimalismo produtivo, a câmara enquanto único recurso moderno a captar elementos como bem vieram ao mundo, é uma fabricação do cinema moderno, uma obsessão entre pares para igualar a arte à pureza da sua natureza, despindo-a de megalografia industrial (poderemos afirmar que há qualquer ‘coisa’ de político nesta determinação). 

Assim sendo, “Magdala” recorre ao tempo, ao gesto desdenhoso para com o mesmo, testando a paciência do espectador, colocando-o no embalo da sua cadência (esculpindo, como diria Tarkovsky). Mas não deparamos aqui ao enésimo exercício tarkovskiano contudo, o que vemos é a nudez da maquinaria, o recolher do luzimento oriundo da isolada vela na inversa Caverna de Platão (o mundo da claridade é aquele que desejamos abandonar, regressando às trevas), ou dos corpos decadentes das suas heroínas, banhadas pelas mágoas do seu amor incompreendido e apagado pela crueza da doutrina. Se Jesus pairou pelo deserto, 40 dias como está escrito, enfrentando as forças demoníacas das tentações incentivadas pelo “bastardo”, Maria Madalena reflete no selvagem oposto a fim de arrancar o seu coração, e como oferenda ao seu Deus, reduzir-se ao Nada, aguardando os anjos que a busquem para a sua redentora paz. 

Esse pacto com o divino, a sacra desconstruída e refeita, é a tentativa de Manivel, ao nível dos mais celebrados conquistadores do primitivismo-moderno (contraposição, mas essa obsessão tem sido muito mais de agora) como Albert Serra nos seus “verdes anos” ou o destino de muito cinema galego a brotar na nossa contemporaneidade (Oliver Laxe ou Lois Patiño, dois a contabilizar a equação), de penetrar num cinema “carne-viva”, onde o místico é resgatado do mero mundano (seja gesto, pessoas ou quotidiano na sua original forma). 

Se este é o caminho a seguir, o percurso não está tão longe daquele que vem sendo caminhado pelo realizador, o amadorismo no rigor da sua semântica como aproximação dessa invocada pureza, a iconografia apropriada e regida à rudeza (e quiçá a decadência, tão humana, diga-se de passagem). É o Cinema que procura Deus no Estado das Coisas. 

Os Filhos de Isadora: dançando com a dor do mundo

Hugo Gomes, 15.08.19

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A sincronização do passado com um presente em movimento define este “Les enfants d'Isadora” (“Os Filhos da Isadora”) como uma espécie de “anti-biopic”, uma expressão contra o tradicionalismo da narrativa ponto sobre ponto. Para percebermos a veia central, o espírito estruturado deste objeto híbrido entre a ficção desencantada e destilada com os contornos performativos, devemos encarar um dos importantes capítulos na vida da dançarina e coreógrafa Isadora Duncan (1877 – 1927), considerada a percursora da dança moderna, que após a tragédia que a atingiu (um acidente de viação que vitimou os seus dois únicos filhos) tentou reunir os “cacos” e, não superando, mas incorporando a sua dor, criou assim a peça A Mãe (1923).

Esse canalizar da perda, o luto onipresente absorvido por um espírito morto é constantemente relembrado nesta nova obra de Damien Manivel, que segue o destino de quatro mulheres tocadas, cada uma à sua maneira, pelos gestos coreograficamente idealizados por Isadora 96 anos antes. Diríamos nós que em “Os Filhos da Isadora'' há um requer da emoção que quebra a estética fria de tendências documentais. Esse sentimento é aliado na performance, no processo de criação e no ecletismo com que o filme se desenvolve para emanar o seu mais triunfante ato.

Deste lado chega-nos à memória um dos grandes filmes da década passada, “Before We Go”, de Jorge Leon: o poder do “bailado” que aufere um certo tipo de exorcismo reparador, físico e espiritual, para com os corpos decadentes. Porém, se um falava de velhice e decadência, o fim dos dias que se avizinha, em “Os Filhos da Isadora” é o cerne que determina a maternidade e que as conecta perante um ato apenas.

Em quatro mulheres, só uma capta realmente o fardo com que Isadora catalisou a construção do seu monumento. Para a experienciarmos, há que esperar. A belíssima compensação (convém realçar) chega-nos no breu da noite, sob as luzes sem pujança e na silhueta disforme para quem o tempo não foi amigável. Sim, o tempo não é cordial nem simpatizante com a nossa dor e, por isso mesmo, este desfecho transmite uma mágoa avassaladora.

Uma estrofe de um singelo poema embarcado na dança interior, sobre os sentimentos alicerçados e de como a arte não é propriedade de nenhuma vivalma; apenas é vivida e degustada pelo tempo.