Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Melhores Filmes de 2023, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 27.12.23

Plataformas há muitas! Cada vez mais chorou-se pelas salas vazias e as telas projetadas sem companhia, mas é no encontro de 2023 que testemunhamos uma mudança neste paradigma da sala de cinema, anteriormente dominado pelo cinema “disneysco” e “super-heroesco”. As notícias de fracassos de box-office, à primeira vista, fariam qualquer adepto do cinema em sala arrancar cabelos e a gritar desalmadamente pela vida - ”se os super-heróis fracassam, o que mais poderia funcionar para conquistar espectadores?” - porém, a resposta fez-se pelo ciclo natural, Disney e os seus afilhados falham, dando a vez a outros fenómenos e a outros cinemas a dominar. 2023 foi o ano de “Barbenheimer”, a conjunção de memes de internet que rendeu milhões na estreia simultânea - “Barbie” e “Oppenheimer” - Greta Gerwig e Christopher Nolan a dupla esboçar sorrisos aos investidores, e a partir daqui, pequenos “milagres”, um cinema, talvez, mais adulto a fazer as delícias de “moviegoers”. 

Mas quanto ao Cinema? Digamos que se 2023 fosse resumida a vinicultura, seria uma boa colheita, a ser degustada e servir à temperatura ambiente como acompanhamento de um prato refinado. Sim, foi o ano em que o cinema estruturalmente e essencialmente se pensou e nele desviou-se a atenção do slogan “Cinema Morreu”, e substituiu-se pelo “Cinema está Vivo”. Victor Erice acreditou na sua “segunda vinda”, Nanni Moretti cedeu aos novos tempos (mesmo com um ar derrotado), Damien Chazelle codificou a fórmula da energia cinematográfica (o caos que gera harmonia), Bradley Cooper releu o classicismo e atribui-lhe roupagem a condizer, Wes Anderson castigou o realismo simulado e a imperatividade da continuidade (essa praga dos novos tempos) e Wim Wenders sugeriu que parássemos e contemplássemos o nosso redor. Por outras, o Cinema permanece à nossa volta, basta procurar, olhar e deliciar, os “velhinhos” da casa que teimam em vender o contrário fecharam há muito nos seus respectivos sótãos. 

Segue, sem mais demoras, os 10 filmes que o Cinematograficamente Falando … selecciona como os melhores do ano, respeitando o calendário de estreias nacionais (sala ou plataforma de streaming):

 

#10) Falcon Lake

falcon-lake-image08.jpg

“Porém, a viagem é ela mesma corrompida, “Falcon Lake” deseja a sugestão como ninguém e nisso quebra a narrativa numa encruzilhada quase shyamaliana, depois disso o filme ganha um outro significado, uma outra visão, um outro efeito, o que nos leva ao grande dilema da nossa modernidade enquanto espectador - continuidade? Fortalecer ou enfraquecer?” Ler Crítica

 

#09) Killers of the Flower Moon

Killers-of-the-Flower-Moon-042723-03-b37cde6ff7a34

“A tempestade, o Scorsese “velho” porém estilizado e fora de horas, é exorcizada nestas recentes estâncias, possivelmente na busca de um derradeiro título, em “Killers of the Flower Moon”, se tudo correr bem não deterá esse papel, mas é o ritual de afirmação para com essas memórias que se contrapõe a um Scorsese “novo”, mais próximo para com o súbito desvanecer.“ Ler Crítica

 

#08) EO

eo1.jpg

Conta-se que Noomi Rapace, integrante do júri da edição de 2022 do Festival de Cannes, julgou em “EO” encontrar um realizador jovem no hino das suas vidas promissoras. Nada disso, Jerzy Skolimowski vai nos seus 85 anos, e com esta peregrinação exemplar, cita e recita o esperado filme de Bresson [“Au Hasard Balthazar”], remexe num cinema animalesco, de uma animalidade em contraposição da suposta e vendida Humanidade. Trata-se dessa refilmagem espiritual que cede à sua perspectiva e nos evidencia um filme fora do registo antropocentrista, e para resultar nele um Cinema puro que há um par de anos o russo Viktor Kossakovsky parece ter tecido - “Gunda”. O Cinema na pureza do seu lar, a Natureza como seu berço narrativo. “EO” não se equipara nessa pretensão, faz uso dessas iguais ferramentas. 

 

#07) Asteroid City

film_Asteroid-City.jpg

“Terminou! A música anuncia o final, de costas voltadas para o proto-vilarejo que empresta o nome à película, os créditos finais começam a rolar, um papa-léguas, curioso pássaro testemunhante das peripécias ali fabricadas, balança no ecrã, fazendo ”pirraças” a quem vai gradualmente saindo da sala. Aos que ficam, a sua dança vitoriosa vira recompensa. Não quero abandonar este filme, não consigo de todo abandoná-lo. Rastaparta ao realismo!” Ler Crítica

 

#06) Perfect Days

Sub2_Perfect_Days2023-MASTER-MIND-LTD.webp

Wim Wenders também está, como é claro e sucinto, a envelhecer, não é o realizador de antes (e quem poderá ser na verdade?), pegando nesta curta de encomenda - uma aclamação pelos banheiros públicos da capital japonesa - transformou-a numa longa em perseguição à sua própria sombra, a metáfora de reconhecer o inalcançável. A vida é de curta estadia, aproveitar o que dela contêm, os “pequenos prazeres” de dia a dia, ou simplesmente devagar e devagarinho, receber cada raio de Sol uma benção, um “perfect day” cantarolando pelo esperado single de Lou Reed. Soa-nos conversa motivacional, pois soa, mas garanto-vos que a obra nada tem de desbaratamento inspiracional, porque não passa de uma filosofia quotidiana constatada, o yang ao lufa-lufa e do sucesso enquanto objetivo vivente, pregado vezes sem conta pelos falsos-ídolos do Ocidente.” Ler Crítica

 

#05) Afire

8dd925c114d78c225b5b34b0e1f95219b1-afire.webp

O protagonista (Thomas Schubert) não é de fácil empatia, mas banha-se dela porque nos sentimos identificados com a sua negada emancipação, das troças do destino ou do bloqueio que o atingem enquanto maldição vindo de Deuses embusteiros. O novo filme de Christian Petzold é um magnetismo a fantasmas, seja Paula Beer em evocação da musa petzoldiana perdida (Nina Hoss, saudades tuas), seja a aura malapata deste scrooge escritor que parte para o litoral na tentativa de completar o seu romance. Soa-nos remédio-santo para assumir uma mediocridade, personagens que fazem isso merecem a ala mais elevada do Além celestial, contudo, mais do que a inteira consciência desse feito (que nunca se materializa), “Afire” é um jogo cruel, castigador deste narcisismo autodestrutivo, chegado por vias de apólices, essas epifanias ardentes e misteriosamente cadavéricas. Recorro a esta obra como um “livro aberto”, a proeza de conseguir ligar-nos aos desprezíveis, logo, incompreendidos protagonistas. 

 

#04) Babylon

bab23499r4.jpg

“Quanto ao nosso contacto com “Babylon”, a sua reação dispar é um sintoma de como Damien Chazelle acertou na mouche, odiar o seu lado “monstruoso” é natural e fortalecedor ao seu conceito, deslumbrar com ele é de igual forma. Um risco de produção, acentuada numa indústria que atravessa a sua crise identitária (não confundir com outras identidades). Julgo que não teremos outro filme assim durante um longo período … Obrigado Chazelle, por mostrares que és o melhor dos dois mundos!” Ler Crítica

 

#03) Il sol dell'avvenire

il-sol-dellavvenire-2023-nanni-moretti-recensione.

“Já em “Il sol dell'avvenire”, o criado filme aproxima-se do quotidiano de Nanni (Moretti sendo ele mesmo, quem mais?), envelhecido, cansado e à sua maneira reacionário, incapaz de lidar com as transformações que a sua vida experiencia uma e outra vez. Talvez é nesse intuito que aqui o filme muta, já não é mais um espelho de quem não consegue “olhar de frente” para o trajeto da sua existência; é antes uma determinação e quiçá uma superação.” Ler Crítica

 

#02) Tar

Chen-Todd_Field.jpg

“Contudo, este jogo de duas faces instala esse efeito de dupla interpretação, onde cada um vê consoante a sua sensibilidade, como nos fizeram crer, felizmente “Tar” é uma espécie de palimpsesto, duas melodias na mesma nota sem com isto ser necessariamente uma questão de leitura ou de perspetiva, ou diríamos melhor, numa inquisição de perguntas e não de resposta. O Cinema não tem obrigação de responder a nada, por isso quem procura decifrar a autenticidade do seu simbolismo perde instantaneamente o seu efeito aqui.” Ler Ato I, II, III

 

#01) Cerrar los Ojos

cerrar-los-ojos-pelicula-victor-erice-jose-coronad

“Um despertar com contrariedade, porque é no encerrar os olhos que o Cinema vive. É no fechá-los que voltamos a Acreditar. Victor Erice acredita, acreditou e acreditará, a sua persuasão leva-nos a acreditar também.” Ler Crítica

 

Menções honrosas: Knock at the Cabin, Nação Valente, Nayola, Maestro, World War III, Sur L’Adamant

Ato III: Tár, a caçadora de monstros

Hugo Gomes, 15.02.23

MV5BYzBlMGQ3OGItOGM3My00YzZhLTgyNDMtMTA0MTBkZjExNW

Tár (Todd Field, 2022)

whiplash-especial.jpg

Whiplash (Damien Chazelle, 2014)

Tár” encosta-se à segunda longa-metragem de Damien Chazelle - "Whiplash" (2014) - previsivelmente pelo seu tema central, a música e como alberga posições de Poder perante os demais. No caso do filme que garantiu o Óscar a um sinistro J.K. Simmons (“Not quite my tempo”), a relação cercava entre um professor e um aluno, e por essa base uma protética concepção militarista, que envergonharia qualquer requisito de “conto underdog” ou de motivação profissional. Já a obra de Todd Field, o Poder, igualmente presente no estatuto, leva a Tár a balancear na sua própria moralidade, os tons cinzentos afligidos na sua auto-consciência artística, a levam a cometer uma postura antiética em prol das suas pessoais satisfações. A linha perpendicular de ambas obras é mesmo essa figura do “maestro” e a sua dominância perante as orquestras (e as vidas destas), a única perante a nota de ruptura, “Whiplash” deseja transparecer uma experiência e nela “cavalga” num “simulacro”, enquanto em “Tár” mantemo-nos num retrato abrangente sobre um estado de modernidade e de pós-modernidade. 

Porém, muito falamos de Tár [a personagem de Cate Blanchett], a sua construção e desconstrução, como se o filme resumisse a um “character study” (ao menos se afasta do território unilateral do “filme de ator”), mas Todd Field, através do seu magnetismo - convém realçar o tom de realeza com que a protagonista se apresenta, e conectando-a à sua resiliência em manter um controlo absoluto do seu redor - para se especificar nos códigos adiante do thriller, mais do que a falsa-biografia que poderia facilmente cometer. Perante isso, “Tár” é um primo do estilo polanskiano, do embate da figura em queda e da atmosfera que adensa mais e mais, até que tudo se transforma num iminente alerta, um perigo subliminar que parte do interior da personagem e não do seu exterior. 

Polanski, figura controversa e ainda mais aqui invocada como “comparação” a um objeto reflector da “cancel-culture”, operou por essa via da miragem, no qual personagens são ameaçadas por manifestações dos seus próprios medos, seja Catherine DeNeuve [“Repulsa”, 1965] cuja repudia pelo sexo e a ideia deste transforma todo o seu apartamento numa câmara de horrores, seja Mia Farrow [“The Rosemar’s Baby”, 1968] que a suspeita satânica no seu recém-nascido a guia para uma espiral de loucura conspiracional, ou as sombras com que Johnny Depp [“The Ninth Gate”, 1999] lida no seu “trabalhinho” de bibliotecário. São alguns dos exemplos, como poderia aventurar-me em mais (“Knife in the Water”, “Chinatown”, “Death and the Maiden”, “The Ghost Writer”), é um efeito quase conspiracional com que as personagens lidam com os seus medos, ora entende-se fobias ou inesperados e imediatos receios. Field, por sua vez, contenda Lydia Tár à sua decadência, primeiro incitando uma suspeita (por exemplo, no fim da cena da masterclass, somos presentados com um plano POV, resultando na sugestão de um desconhecido voyeur), crescendo para elementos paranoicos (ruídos e notas soltas ouvidas pela própria personagem no silêncio da noite) para se ajustar nos medos convertidos numa só reação (o passado que amontoa-se e descortina o seu pavor na "insignificância").  

A esquadria de “Tár” funciona nessa vertente, o de criar um clima de “suspense” em todos os factores de alerta da personagem, daí surgir a opção do tempo de arranque (uma introdução em forma de mockumentário) diluído no tempo em que dedicamos a conhecer esta figura, para depois, ou aliarmos na sua ambiguidade (leia-se perversidade), ou distanciarmos, solicitando o castigo divino a tal carácter. A banda-sonora de Hildur Guðnadóttir, um misto de minimalismo com essências primitivas, melodias inesperadas que pavimentam um trajeto dessa ansiedade invisível, é uma obra musicalmente em construção, em busca de um projeto perfeito enquanto epifania. 

Felizmente, ou infelizmente, conforme a nossa justiça, a consagração nunca cumpre o seu propósito, estabelecendo esse medo concretizado e materializado, impondo um senso de ridículo numa audiência mascarada, enquanto que orquestras de gosto requintado dão lugar a servientes da cultura popular. Lê-se “Monster Hunter”, título de um franchise de videojogo que comunga jovens e adultos de várias estirpes, é a designação do círculo infernal onde Tár residirá como punição, mas pode também servir de separador ao que acabamos de presenciar até esta descida. “Caçadora de Monstros”, vencida pelas "monstruosidades" que jurou rastrear, sem aperceber da sua verdadeira faceta. 

Dance with my self

Hugo Gomes, 04.02.23

A liberdade de um filme é medido pelo tempo que é dado às personagens para poderem dançar sozinhas. Ou parafraseando uma das obras menores de Ken Loach ["Jimmy's Hall"] - “We need to take control of our lives again. Work for need, not for greed. And not just to survive like a dog, but to live. And to celebrate. And to dance, to sing, as free human beings.”.

247166985167.jpg

Spider-Man 3 (Sam Raimi, 2007)

margot-robbie-1-1600x900.webp

Babylon (Damien Chazelle, 2022)

maxresdefault.jpg

La vie d'Adèle / Blue is the Warmest Color (Abdellatif Kechiche, 2013)

saturdaynightfever-1000x600.webp

Saturday Night Fever (John Badham, 1977)

still2_wide-f4478ad9af45dd687aeb8a5258f7ec0a0fd842

Frances Ha (Noah Baumbach, 2012)

tumblr_nxtf72ZQAc1r6lrdfo1_1280.png

Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994)

Ya no estoy aquí (Fernando Frias, 2019)

f6ec20cd1c21755a1d8f90a420528e7a.jpg

Bergman Island (Mia Hanse-Love, 2021)

grigris.webp

Grigris (Mahamat-Saleh Haroun, 2013)

image-w1280.webp

L'événement / The Happening (Audrey Diwan, 2021)

kickboxer-dance-51.gif

Kickboxer ( Mark DiSalle & David Worth, 1989)

jimmys-hall-2.jpg

Jimmy's Hall (Ken Loach, 2014)

hUr3EpW7AEiDg6B7HMGIGc4iOKUapA_original.jpg

Cold War (Pawel Pawlikowski, 2018)

Hollywood, o jardim suspenso da Babilónia

Hugo Gomes, 23.01.23

babylon-4.jpg

Dias de loucura. Festas intensas com um improvável “amanhã” em consideração. Uma orgia vinculada em poder, luxúria e fantasia, esta, projetada em consensuais sonhos de glória - é com tais imagens que respondemos aos tempos pré-código hayes - a balbúrdia do oeste, onde a película serve de impressão para os projetos fabulados, os filmes, o Cinema, essa dimensão do imaculado. Quero acreditar que o Cinema, não a instituição, e sim a Ideia concentrada, encontra-se acima do seu próprio processo de fabricação. Transferindo a “linguagem” para as outras artes, não demonstramos o mínimo interesse em saber, por exemplo, com quantas pinceladas “As Meninas” de Velázquez foi concebido, ou com quanto tempo levou a ópera “Il sogno di Scipione” de Mozart a ser composta, ou com quantas marteladas o “David” de Michelangelo foi moldado (acrescentar ainda “de que forma”, e de que método), por isso, porquê esperar do Cinema a apreciação da sua trajetória ao produto final, ao invés de contemplar somente o Filme? 

O resultado excede a toda essa manufatura, ao making off (voltamos à “linguagem” cinematográfica), logo “Babylon” de Damien Chazelle (“Whiplash”, “La La Land”), um caos controlado e igualmente raivoso reverte-se num processo menor em comparação a tudo aquilo que ele defende, em jeito epifânico, o Cinema como algo maior que a nossas próprias vidas. Deste filme, com mais de três horas de duração, consigo reter duas sequências importantes dentro dos seus excessos e dos quais vão ao encontro desse mesmo manifesto. Seguindo o percurso cronológico, após um festejo de proporções babilónicas (álcool, sexo à discrição, estupafacientes e até um elefante como “ostentação de luxo”), dois desconhecidos são acidentalmente repescados a integrar a produção hollywoodescas. Estamos ainda em período mudo e antes dos estabelecidos majors (arquitetonicamente falando), o cinema norte-americano é maioritariamente filmado ao “ar livre”, em cenários de cartão e num “mar de gente”, uma batalha campal, um caos em terreno baldio, no qual o Cinema era visto como um fim impossível de ser procriado aí. 

Estas duas personagens instalam-se de forma caricata e independentes nos seus respectivos “afazeres”: ela (Margot Robbie) foi escolhida como substituta para atuar numa película, e ele (Diego Calva), persuadido por uma estrela maior (Brad Pitt, possivelmente, no seu auge), torna-se um acidentado “assistente de produção” com uma tarefa hercúlea, alugar uma câmara a tempo de captar os últimos raios de sol. As peripécias aí causadas enchem olho e a  narrativa persiste numa constante oscilação consolidando um ritmo frenético que só desbrava entropia, até que no preciso momento, “alguém” (a voz incorporada nos dois momentos distintos) aciona o clássico “AÇÃO”, grito imenso e de tom divino que “congela” toda estapafúrdia envolta … tudo se dirige aos respectivos polos de criação, um filme deve e está a ser feito, o Cinema a ser o altar de adoração. Como é possível que toda aquela confusão nasça essa “magia” de criar algo duradouro? 

Assim, parto para a segunda e referida cena: “Babylon” de Chazelle transcreve-se no período transitório do mudo para o sonoro, com “The Jazz Singer” (1927) a quebrar a tal barreira graças ao seu sucesso e aprovação popular. Com isso, a indústria sem mãos a medir, teve que alterar radicalmente a sua produtividade com objetivo de replicar a tendência. Muitos atores adaptaram-se aos esses novos tempos, outros, nem por isso, nessa última facção encontra-se a personagem de Brad Pitt - Jack Conrad - o galã crente da Arte popular do Cinema contra a sua subestimação, uma versão masculina de Norman Desmond, portanto, que em permanente estado de negação confronta a sua fiel publicista Elinor St. John (interpretado por Jean Smart) devido a um artigo que premonicia o seu término de carreira. Nessa discussão acesa, Elinor fala de um processo natural de início, apogeu e dissipação, do qual descreve como cíclico o percurso artístico e neste caso o de Conrad, à beira do seu precipício. Contudo, salienta a perduração, prevendo se que 50 anos para a frente, alguém iria-se embebedar do cinema gerado pela estrela moribunda, familiarizando com a persona preservado na película, não com Jack Conrad particularmente, mas com alguém criado, “alimentado” pela indústria e “amarrado” pela arte, o outro Jack Conrad, a estrela vivida na suas ficções. Eternizado à sua maneira, mas para isso há que existir o tão indesejado fim. 

BABYLON-24.jpg

Estas duas sequências que macaquearam a minha mente, revelam não só o espírito absorvido no meio daquele caos, excentricidade e do grotesco que Chazelle espelha neste retrato de época (não é original nesse termo, podendo ainda buscar outras lentes como o pouco referenciado “The Day of the Locust” de John Schlesinger ou o amaldiçoado “Return to Babylon” de Alex Monty Canawati, ambos fortalecendo o cenário de desordem e de libertinagem desses tempos distantes), como também sobre a capacidade de manobrar o pêndulo ao fascínio e a repugna em relação à Sétima Arte. É a purga e igualmente o embelezamento de um “filho prodigioso da destruição”, o Cinema, essa estância persistente ao longos dos anos, inconsciente das suas transformações, das suas transfusões, e Damien Chazelle ao contrário de muitos, está ciente do seu legado e sobretudo da História que muitos desejam mudar drasticamente. Absorve de Hollywood e sem impunidade crítica satiriza uma composição saturada, suada e maquiavélica. O que sai dali é um desejo de investir nas tragédias de uma arte que como todas não nasceu da utópica. Apenas basta gritar “AÇÃO” e voilá, faz-se Cinema, termo que acima de qualquer ideologia não é homogêneo, unilateral nem formalizado a um só tom. É muito, mas muito mais que isso.

Babylon” não trata Hollywood como uma coqueluche a ser bajulada, a dita desconstrução do seu oleado sistema, da, por vezes, denúncia à sua gravidade e presença, são elementos que sem apoderar-se da narrativa e conduzir o filme para vertentes tendenciosas da nossa contemporaneidade, operam como expansões do seu próprio universo. A ascensão de estrelas, queda de estrelas, domínios e quedas de impérios para que servir ao epílogo-tese, nada de complexo, apenas o óbvio, o Cinema não Morre, metamorfoseia-se, e dessa transformação os espectros vagueiam como memórias não reconhecidas. Como acontece com a premonição invocada ao fictício Conrad, conhecemos este mundo, estabelecemos contacto com os seus cantos e lugares, comuns ou incomuns. São nossos, o Cinema é nosso, sem discriminações. Porém, o que Chazelle diz é que esse resultado não é fruto de uma harmonia, e sim, de sangue, suor e sémen. Hollywood é um exemplo, mais que óbvio de indústria, porque fazer Cinema não é Amor, é combater uma Guerra.

Quanto ao nosso contacto com “Babylon”, a sua reação dispar é um sintoma de como Damien Chazelle acertou na mouche, odiar o seu lado “monstruoso” é natural e fortalecedor ao seu conceito, deslumbrar com ele é de igual forma. Um risco de produção, acentuada numa indústria que atravessa a sua crise identitária (não confundir com outras identidades). Julgo que não teremos outro filme assim durante um longo período … Obrigado Chazelle, por mostrares que és o melhor dos dois mundos!

Quando a crítica olha para a crítica

Hugo Gomes, 19.07.22

la-la-land-damien-chazelle-emma-stone.jpg

Damien Chazelle dirige Emma Stone em "La La Land" (2016)

Bergman dizia que o cinema lhe permitia comunicar com o mundo, literalmente de alma com alma. Quem está do lado da crítica sabe que é esse desejo que alimenta a pena. Mas pena é como quem diz… A crítica hoje tornou-se polivalente, pode ter relevância no Youtube como num direto de televisão ou de rede social. E democratizou-se, ficou de todos.

Já há muito que venho dizendo que esta ideia de partilhar o amor cinéfilo pode ser confundida como “críticos de bancada”, mas também é de bom senso não fazer disso um papão. O cinema de autor precisa de maior divulgação e é proibido proibir essa ideia de pluralidade. Sou dos que pensam que é saudável esgrimir opiniões na caixa de comentários de um post no Instagram ou no Twitter – os gostos discutem-se e a maneira do outro olhar para um filme pode ser uma porta para compreendermos melhor o nosso gosto. Tudo isto não invalida as escolas dos olhares, embora não faça do academismo militante uma bandeira. É óbvio que a crítica hoje continua a ter de saber olhar para um passado e história do cinema mas também é de novas ordens e correntes que se faz a dissecação dos olhares cinematográficos inovadores.

Quando vemos um filme há algo a decidir: como equilibrar o valor do sonho com a ordem do real. O cinema fantasiado, o cinema do real. É por aqui que os atuais códigos do cinema contemporâneo passam e torna-se natural que se cerrem fileiras. Nessa escolha de posições sou dos que voto pela incoerência, acredito piamente que cada caso é um caso. Um tipo de cinema não anula outro. O novíssimo cinema do real não tem que ferir mortalmente o cinema lúdico. Vem aí o novo Damien Chazelle, que, ao que parece, terá vénia de overdose a Fellini. Babylon não tem que ser inimigo do próximo Wang Bing ou deste assombroso “Tourment sur les Iles”, de Albert Serra… É nessa polivalência que o crítico, encartado ou não, tem de saber navegar, eventualmente ter o direito ao sentido de desorientação.

98425fec-9796-4d48-9917-c24c4bb12f04_alta-libre-as

Jonás Trueba na rodagem de "La Virgen de Agosto" (2019)

Mas, afinal, o que acontece quando a crítica olha para a crítica? Talvez apenas sirva para reavaliarmos os nosso conceitos de vigilância perante as imagens e as suas políticas. Mas igualmente códigos e éticas. Porque se o cinema pode ser um atiçar artístico do imaginário da imitação da vida real, é bom perceber se ainda é legítimo perceber como em Portugal alguma da crítica perca o tesão pelo cinema de Hong Sang Soo ou como, de repente, David Pinheiro Vicente é levado ao colo. Independentemente de tudo isso, a crítica, sobretudo em festivais, consegue “fazer” cineastas. Aliás, talvez mais do que nunca, festivais e cineastas precisam da crítica, sobretudo de uma crítica que não faça clube de fãs mas que saiba encontrar pontos de ajuda para se refletir sobre um processo autoral de uma obra. Se em Portugal há elitismo em quem tem espaço para escrever ou ser voz de recomendação, creio que não é importante. O importante é reconhecer que há um auto-da-fé de muitos que estão presos (que encantatória prisão...) no labirinto do cinema. Um auto-da-fé que eu julgo ser puro e sem rodeios.

Acusam-me de não dar muitas cinco estrelas – nada contra a quem as dá, mas estou cada vez mais órfão do cinema de que me formou. Assayas não é o novo Truffaut, Cronenberg já não é o Cronenberg dos 80 ou dos 90 e Licorice Pizza está longe da genialidade de “Magnolia”, embora continue a ter esperança que Tarantino, Steven Spielberg e Nanni Moretti vão voltar a superar-se. É uma fé minha, só minha, se calhar. E tenho Julie Ducournau, Ari Aster ou Jonás Trueba para me contradizer...

 

*Texto da autoria de Rui Pedro Tendinha, jornalista e crítico do jornal Diário de Notícias e autor do site / blog / rúbrica Cinetendinha.

Contemplando o Espaço Desconhecido

Hugo Gomes, 20.04.20

a12242f0-bf74-41fc-a390-08e1dfc22f1d.jpg

First Man (Damien Chazelle, 2018)

unnamed.jpg

Ad Astra (James Gray, 2019)

19834384_h4mdY.jpeg

Interstellar (Christopher Nolan, 2015)

19834396_vEFf2.jpeg

Gravity (Alfonso Cuarón, 2014)

19834380_QbAbm.jpeg

Solaris (Steven Soderbergh, 2002)

19834377_ZmHdc.jpeg

 Star Trek: The Motion Picture (Robert Wise, 1979)

19834371_buFyi.jpeg

2001: A Space Odyssey (Stanley Kubrick, 1969)

Espaço ... o último sentimento

Hugo Gomes, 19.10.18

2493_FPF_00407R.webp

Será que precisávamos de um filme sobre os “inigualáveis” feitos de Neil Armstrong, a sua odisseia até à Lua que culminou no tão imortalizado “um pequeno passo para um homem, um grande passo para a Humanidade”? De biopics formatados e filmes glorificadores até nós andamos saturados perante uma seleção homogénea e de caráter propagandista (diversas vezes), que nos levam a questionar o porquê da existência deste tipo de produções. Para tal, atirávamos de cara à descrição simplista e incisiva de Quentin Tarantino, na qual dizia que as cinebiografias são “desculpa para atores ‘paparem’ Óscares”. Neste caso, salienta-se que Ryan Gosling está longe da cobiçada estatueta de interpretação e, em certo ponto, aleluia por isso pois em “First Man” prevalece um filme sobre um estudo de uma persona e não a mera esquematização do “aventurado” astronauta.

A trajetória do quarto filme de Damien Chazelle segue em sentido inverso àquilo que poderemos prescrever num projeto como este, referindo sobretudo o luto, o conflito em que a obra persiste, deixando o memorável feito para eixos secundários. Sem querendo com isto assumir uma variação de “The Right Stuff – Os Eleitos” (os bastidores da NASA a prolongam-se como enquadrantes da personalidade), mas “First Man” (“O Primeiro Homem na Lua”) inicia com um homem determinado a deixar a sua marca para automaticamente se converter na narrativa de um ser solitário que se refugia ao abrigo das estrelas, cercado pelos sentimentos que nem o próprio compreende.

Nisto, eis um filme que deixa transparecer uma camada de frieza, porém, existem sentimentos nesta gélida carapaça e é aí que a inexpressividade de Gosling embate como uma reação física a essas questões semióticas. Possivelmente o filme tenta encontrar um meio termo nessa demanda intimista, de forma a tornar-se perceptível aos demais mortais e através dessa conciliação. “First Man” prolonga-se para além da sua duração necessária, recorre a “maliquices” (o nosso “carinhoso” adjetivo para aspirações a Malick) no seu registo de felicidades familiares (o persistir nos movimentos curvais da câmara e das interações captadas pelos diferentes membros) ou nas recordações-flashbacks de modo a situar o espectador mais distraído. Sim, há aqui todo um nervosismo em narrar a biografia de um “herói” sob um diferente prisma e nisso enfraquecemos uma obra tecida com o tamanho detalhe, quer pré, sob e pós. Há uma investigação que dá frutos, Damien Chazelle e a sua equipa aventuram-se e desventuram-se na biografia pessoal de Neil Armstrong, escrita pelo jornalista James R. Hansen, bem como uma pesquisa autodidata em compreender para depois construir um arquétipo do “verdadeiro” Neil.

O resultado está à vista e não é preciso qualquer telescópio para o ver; a história de um homem que evita o contato, sobretudo afetivo, de forma a tentar decifrar o desconhecido inerente, o pesar que sente e que dificilmente reage. A fórmula contida que encontra na Lua, a isolação como um Robinson Crusoé das estrelas, como a maior das metáforas (e aqui não estamos a julgar quem acredita ou não em tamanha expedição, o que interessa é a força da ficção no seu território simbólico). O último plano é a força disso, desse afeto negado pela falta de apreensão interior.

first-man-11.webp

Todavia, se em “First Man” deparamos com essa instrumentalização da personalidade de Armstrong, é-nos impossível não falar da composição estrutural desta odisseia pelo espaço, ou, a sua tentativa de sê-lo. Ao contrário de recentes incursões espaciais como “Interstellar” ou “Gravity”, é no filme de Damien Chazelle que deparamos com a fenomenologia da viagem, alicerçada sobretudo na edição, assim como o jovem realizador havia executado num dos trabalhos mais elogiados (“Whiplash”). Ao contrário das batidas sentidas com a frustração e ambição do protagonista do filme de 2014, somos agressivamente “acariciados” com uma câmara refém da sua cápsula, sensível para qualquer movimento induzido pelo dispositivo cénico e com isso, a capacidade de transmissão sensorial.

Diríamos que “The First Man” é um jogo de sensações, orquestrado, não só com o auxílio da edição visual, mas da própria sonoplastia. O aço que tirita, aqueles parafusos que parecem ganhar vida através de emudecidos rugidos, o som ambiente que se reduz à inexistência, a respiração ofegante de Gosling, sentido em embate com o limite do seu capacete. O “Ground Control to Major Tom”, da canção “Space Oddity” de David Bowie ( não está aqui, mas é como estivesse, é a nossa memória a pregar partidas, porque neste momento lado-a-lado com este Neil na sua preparação à viagem e não fora do ecrã a observá-lo como um objeto de exposição. É a maravilha do som, a sua mistura que ecoa na sala de projeção, apenas interrompida, em alguns casos, pelas doces melodias de Justin Hurwitz (partitura suave e de acordes hollywoodianos). Enfim, é a obra que se confunde como uma viagem, aliás, duas, o íntimo e o físico, mas só uma torna-se crucial para este homem, personagem e sobretudo espectador.

Por isso, deixem-me defender o Damien Chazelle (que tão crucificado fora pela incompreensão à volta de “La La Land”). Deixem-me sublinhar o seu nome como um dos jovens mais talentosos de Hollywood na atualidade. Simplesmente deixem-me, porque o ‘moço’ tem também uma grande viagem a fazer.

Justiça para Damien Chazelle

Hugo Gomes, 09.10.18

FB_IMG_1582589136712.jpg

Deixe-me defender o Damien Chazelle. Deixe-me sublinhar o seu nome como um dos mais jovens mais talentosos de Hollywood na atualidade. Simplesmente deixe-me, porque neste The First Man há todo um rigor no detalhe (atenção à sonoplastia), uma ambição de ir mais além do formato biopic à americana (um estudo de caracter acima do retrato dos feitos), uma aproximação dos seus dois primeiros filmes (uma fenomenologia instalada na edição) e um intimismo que o separa da gritaria bacoca. É um espetáculo sensorial. Agora deixe-me ‘amá-lo’, porque até o perdoo das “maliquices” que insere a meio.

Óscars: "La La Land" perdeu-se no luar?

Hugo Gomes, 27.02.17

SN33DSZP4JRK6HJHPV2HA2UYIE.jpg

City of Stars ecoa como um hino de derrota, uma triste melodia que protagonizou um dos (se não o) momento mais caricato da cerimónia e da História dos Óscares. Segundo consta, o erro esteve num envelope equivocado, um erro descoberto tarde demais, no preciso momento em que a equipa do musical discursava os seus agradecimentos. O prémio máximo acabaria por ser entregue a “Moonlight”, a resposta mais marginal às luzes e sons de “La La Land”. Durante alguns segundos, o musical mais amado/odiado da atualidade converteu-se num filme de compaixão, até porque se livrou da maldição do Óscar, e essa mesmo abateu-se na obra de Barry Jenkins. Só o tempo dirá o que esta “valorização” vai significar.

Como sabem, as estatuetas douradas não são  mais que meras representações de consenso oriundo de votantes, que, sabe-se lá de onde, adoram sentir-se humilhados com as declarações anónimas para a The Hollywood Reporter. Ao ver essas publicações, percebemos que de consciência crítica, esse grupo raramente o possui. É tudo uma questão de gosto, e até que ponto os separa do mais mundano espectador? Aliás, filmes como “Hacksaw Ridge” nunca teriam lugar numa lista composta pelos supostos “melhores do ano” … Reformulando, nenhum daqueles nomeados merecia tais títulos, mas isso é outra conversa.

Se o final foi inesperado, até mesmo para quem contava com a vitória de "Moonlight" nesta noite de “cartadas políticas” e de pouco cinema, o resto da cerimónia foi de puro tédio. Para além da previsibilidade, ainda tivemos que contar com a perpetuação de um certo conformismo, e destaco, obviamente,  dois Óscares em particular. O primeiro, o de Melhor Animação, onde numa lista composta por três formidáveis exemplares, longe dos grandes estúdios, a Academia se vergou perante a trivialidade de “Zootopia”. Parece que a Disney continua a possuir o seu peso nas decisões dos votantes. Já o segundo, foi o desperdiçar de uma oportunidade de fazer certo, o de entregar o prémio a Isabelle Huppert pelo seu desempenho em “Elle”, aquele “murro no estômago” de Paul Verhoeven. Nesta decisão foi o “sangue novo” que persistiu, como sempre, e Emma Stone conseguiu erguer o troféu com graça. Porém, a tristeza sentiu-se do outro lado.

Resumindo a noite, “Moonlight” ganhou … ganhou, mas a sua vitória saiu ridicularizada, e triste. Será que alguém se lembrará do filme sem o associar a este “estranho” episódio? E até que ponto a sua vitória, não foi a vitória do politicamente correto? De momento, iremos deixar o ódio, muitas vezes, irracional que “La La Land” parece ter tecido antes dos Óscares, e esperar qual destes filmes terá o “privilégio” de ser relembrado como “aquele que definitivamente merecia a estatueta“.