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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um palhaço enforcou-se!

Hugo Gomes, 09.09.24

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Sem Deus posso viver. Sem crédito não posso nesta vida”

Rodrigo Areias, por mais ziguezagues que faça, é na música que sempre se conforta, é dela que restaura a sua vertente cinematográfica, compondo filmes como quem compõe operetas, fazendo dos seus atores deslumbrados performistas que bailam ao som da sua sinfonia. Em “A Pedra Sonha Dar Flor”, um espectáculo visual-sonoro que recorre a textos e a um constante olhar metalinguístico sobre a obra de Raul Brandão, nomeadamente o seu “A Morte do Palhaço”, onde a comédia é vista como uma ilusão do trágico inevitavelmente reservado na vida. Assim, a música, a cargo de Dada Garbeck, reforçada pela fotografia de Jorge Quintela, funciona como anfitriã de um circense caldo de niilismo existencial. 

Trata-se de uma obra que apela insistentemente ao valor da sala de cinema, recusando o espaço doméstico e desejando, como o mineral que sonha brotar vida, transformar o cinema no seu palco. O palco do mundo, talvez! Por isso, não há como negar: “A Pedra Sonha Dar Flor” é a obra mais bela alguma vez feita pelas mãos de Areias (O Pior Homem de Londres, “Surdina”) ou, como ele próprio afirma convictamente, a produção vinda do seu coletivo Bando à Parte, casa de amigos e cooperativismo, até porque é desses conhecidos que formam a trupe encarregada de içar este filme com quem retira o corpo do palhaço enforcado, o símbolo dessa comédia de vida traída. 

É bonito, sim senhor, mas fugaz, efémero; infelizmente, prevalece apenas como a sensação do momento da projeção e nunca responde à exatidão de quem sonha vencer para lá da sua exibição. A narrativa, isso, é uma dor de cabeça para quem se apoia numa dependência lógica. O filme saltita entre filosofias, ora deprimentes, ora simplistas, de tentações ou purezas insufladas, de clandestinidades sentimentais, políticas ou outras quaisquer, ou até de pura heresia — que o diabo me leve! —, garantindo momentos ácidos e hilários sem gerar riso algum (o humor não é mais que a conscientização da nossa mortalidade). 

Talvez haja algo de pedante no seu carácter de ensaio que não agrade ao comum dos mortais ou ao espectador escapista pronto para comédias de teor televisivo ou de drones às carradas, ao invés disso subjuga-se à experiência, à deambulação, porque a vida pede esse “piloto automático”. Se assim for, temos uma sessão para o que der e vier, mas infelizmente a beleza das suas ramas não dão flor, o filme sonha em ser mais do que é; o resultado é traiçoeiro. 

Um filme belo — já o disseste? — eu sei, mas sem pretensões de ir além do momento.

A Pequena Sereia

Hugo Gomes, 10.07.23

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Olhemos para a sereia, o animal-fábula, a criatura mitológica, e o que realmente vemos - além da cultura popular fomentada pela Disney (com empréstimos de Hans Christian Andersen) ou dos trágicos relato-imaginários de marinheiros seduzidos / cedidos ao seu belo canto da morte - é uma quimera, uma silhueta quasi-humana, aliás um peixe, algo escamoso portanto, que se faz passar de mulher [leia-se: desejar, procurar ser]. Talvez seja a sereia o próximo marco folclórico a ser resgatado e servido como bandeira de uma libertação identitária [a par do unicórnio], e em “20.000 especies de abejas” da basca Estibaliz Urresola Solaguren, tal criatura se transforma num signo, numa entidade que acompanha subliminarmente o(a) nosso(a) protagonista, uma criança educada contra os binarismos sociais que esclarece, convictamente, sobre o seu género, debatendo com o conservadorismo de uma parte da sua família, e da não-resposta dos seus progenitores. 

Por isso, somos introduzidos a Aitor (Sofía Otero), ou Coco, “alcunha” neutra, preparativo para quem deseja ser “batizado” por Lúcia; vestir vestidos e urinar sentado, contrariando o órgão sexual o qual nasceu entre as pernas. Para ele (ou ela), a sereia instala-se como uma fé, algo cuja “imaginação tinge a realidade” (assim a(o) avisaram, num recreativo filosofar de curto pavio). A partir daí, a sereia será invocada como peça de ignição, numa fantasia inalcançável e invulgarmente palpável. Mais de uma vez, Coco encontra “refúgio” ou talvez harmonia em contacto com a água. A lagoa, por exemplo, torna-se no o seu palco de (re)descoberta, ou melhor, aproveitando o contexto narrativo, num “baptismo”, numa “submersão” (como também é explicada às “criancinhas”). Coco submerge e emerge sob uma nova identidade, no mínimo com uma determinação identitária. 

Mais a fundo damos de caras com outro “símbolo” interativo com a passagem dos dias para Coco: a apicultura, o hobby da sua tia, e daí a abelha-operária, polinizadora, e neutra na sua afirmação de género. O conflito entre as duas vertentes persiste no filme, como também persiste nas personagens, alegoricamente elencadas nos seus gestos e relações, como é o caso da mãe, uma artista de alma, que trabalha dia-e-noite com inteiros corpos de cera, um poder “frankensteniano”, esse, o de criar vida para além da predestinação, um ostentando e fabricado corpo que arrebata todos os parâmetros aí fabricados. 

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20.000 especies de abejas” é resultado de uma nova vaga de cinema espanhol que tem fascinado cinéfilos contemporâneos em todo o mundo, como também assume-se num espelho dos ventos politizados que percorrem o território. Infelizmente, o projeto iça por fios quanto à sua temática, ideologia dirão os opositores de tais mudanças. Solaguren menciona metáforas, inconscientização poética aos assuntos a abordar, e é desta forma que conecta tais símbolos com significados inerentes, como uma semiótica obscura se tratasse. Mas tal é atirada aos nossos olhos como poeira, sugestões aliás, para partir num cinema cru e sem linhas guias, e, contra todas as projeções, renegando a entrega à perspetiva da criança (ou daquelas crianças) enquanto testemunhas oculares, como uma abelha que circunda a sua “flor” (vejam, outro simbolismo que se poderia utilizar). 

Parte e reparte pela identidade em guerra ou da vida atribulada da artista falhada, a progenitora, mártir das suas escolhas e das “cantigas” de famílias definitivas, para ela a empatia é uma recompensa do seu esforço que depressa converte-se em dó. Isto porque o filme é vencido pela condescendência ao protagonista. Lucia [não desvalorizando a atuação de Otero] não é uma personagem fácil de encarar (e não se trata do seu dilema de cromossomas), é uma presença antagônica e quiçá destruidora de um senso comunidade ali criado, por palavras mais simples e diretas - uma criança mimada e em certa parte egoísta (basta o vandalismo gratuito cometido ao atelier da sua mãe). Só que o conflito de género é invocado em socorro da sua personagem, uma “vitimização” digamos, para o(a) perdoar do seu desrespeito. 

Um filme que deambula sem grandes remates dramatúrgicos para nos entregar. Até mesmo Patricia López Arnaiz, uma atriz acima do que foi proposto, é diversas vezes contida pela realização e sua montagem, em prol da “agenda”, o tema, o seu “atrativo”, sem nunca oficializar um debate (o cinema enquanto inquietude não mora aqui).

Se vamos falar de géneros, por favor, falemos com maturidade e sem “birras”. E se vamos falar de sereias, não esqueçamos do seu canto.

Caravaggio, sem sê-lo

Hugo Gomes, 20.07.22

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Uma árvore … um amigo

É no leito da sua morte que a velha monarquia solta o último sopro do seu conservadorismo, “banhado” pelo quadro de José Conrado Rosa, uma representação longínqua, mas continuamente presente do espírito colonialista [o espírito da “apropriação”], a companhia ou talvez barqueiro da sua jornada pós-vida. O fim da monarquia, a realeza propriamente dita nos levará, enquanto espectador, às memórias corruptivas de quem, por via dos seus deveres reais, desejou obter utilidade na sua existência. 

João Pedro Rodrigues, que afasta e afasta, cada vez mais, do seu realismo frustrado e sujo (a estreia ainda hoje badalada de “O Fantasma” o assombra), lançando na procura por “gambuzinos”, o sugerido em “Morrer como um Homem” que se transformou no brasão familiar de todo o seu cinema. A juntar a isso, as declarações do próprio em alturas de “O Ornitólogo” (até à data o meu predileto da sua filmografia, o qual não escondo o fascínio pelo seu encanto febril), em que notava um erotismo bárbaro nas imagens sacra, isto, num filme recheado de reconstituições dessas mesmas gravuras em estatuetas vivas e de saliências lascivas agravadas. Essa readaptação, ou talvez deveremos antes insinuar reinterpretação da arte, qualquer que seja, parece ter encontrado “caminha feita” no cinema de Rodrigues, e "Fogo-Fátuo" (uma evidente curta metragem em vestes de longa), não oculta esse feito, integrado nos propósitos e no contacto do seu protagonista, o nobre Alfredo (Mauro Costa), que após o primeiro dia no quartel de bombeiros onde deseja voluntariar, é confrontado com reconstituições homoeróticas por parte dos seus “camaradas de armas”. 

Caravaggio, Vilhena, Bacon, Velasquez ou Rubens, obras não-identificáveis, mas cujos estilos dos seus criadores são preservados nestas celebrações humanas, os corpos nus relembram essa mesma arte, obviamente negada por Alfredo, que não reconhece tais trabalhos em lado algum. Isto porque essas peças não são mais que remontagens do seu criador máximo - João Pedro Rodrigues - que metamorfoseia este conhecimento artístico como seu. Por exemplo, é fácil apontar para Caravaggio montado nos pénis hirtos e nos troncos suados destes bombeiros erotizados, mas não se trata de Caravaggio nem uma réplica do mesmo, e sim de uma “pintura” aparte que o realizador nos vende como tal. 

As pessoas estão a ver-nos”, numa mesa de jantar no indeterminado palacete, proferido aviso de Margarida Vila-Nova enquanto quebra a quarta parede, o espectador é a partir deste ponto, assumidamente, um espectador (pelo menos adquire a percepção de tal) e esta mesma sequência, mesmo petrificado num certo burguesismo, é a evidência de como a galeria que iremos testemunhar nas cenas seguintes será de um âmbito, não provocatório, mas ostentoso à mão-criadora de Rodrigues. O desejo de ser um pintor, e para tal, remodelando as pinturas cujo senso-comum tornou-as como suas, em qualquer outra coisa. Talvez um ensaio, e o filme, "Fogo-Fátuo", aproveitando a deixa dessa personagem de Vila-Nova, têm a percepção da sua observação. Abrem-se as portas e a galeria é revelada. O pintor? João Pedro Rodrigues

Para Ágata de Pinho o "Azul" não tem dimensão

Hugo Gomes, 11.05.22

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Azul, a cor empregue sem discriminações tanto ao céu como ao mar, e cuja união resulta num horizonte único, duas partes confundidas entre si, tornando a sua desassociação impossível. Naquele determinado ponto, ambos os elementos fundem num só, aquilo que mais próximo teremos da chamada invisibilidade, o que não é mais que a redução de um todo. 

Para Ágata de Pinho e a sua protagonista-espelho, o azul, também ele a servir de título da sua curta-metragem, é um estado de espírito a alcançar, um fim prescrito à sua existência - ou será antes não-existência? Com “Azul” seguimos o corpo mapeado por cicatrizes de difícil cura, e ainda mais profundo, aquelas que residem na alma de quem, conturbadamente, não ambiciona prolongar o seu sopro de vida. Entendemos que neste filme, algo intimista, de uma jovem em prazo de validade, ser ou querer ser invisível converte-se mais do que um desejo, uma missão, ou será antes inquietação?

Com estreia mundial no Festival Internacional de Roterdão, e com uma passagem na última edição do Indielisboa, “Azul” é uma curta com um mundo inteiro no seu interior, esse que trespassa o meramente terreno, sobressaindo o emocional como existencial e porque não dimensional, tendo o corpo, que nos últimos anos, o Cinema lhe apropriou como viagens pelas suas “metamorfoses”. O Cinematograficamente Falando … falou com a atriz e agora emancipada realizadora sobre este peculiar projeto sobre a crise da nossa vivência. 

Confesso que senti ao longo da sua curta um ambiente melancólico e igualmente angustiante, e visto ser protagonizado por si, este desejo de desaparecer, talvez figurativamente, talvez fisicamente, vai ao encontro de um lado autobiográfico, ou até de confissão?

Antes de mais, não é um desejo mas uma crença: a personagem realmente crê que vai desaparecer quando fizer 28 anos. Se fosse um desejo, poderiam existir outras possibilidades ou vontades que substituíssem o desejo anterior, mas sendo uma crença, entramos no campo daquilo que é inexplicável mas que não deixa de ser entendido como verdade única — o que, neste caso, se mantém até determinado ponto.

Sim, este primeiro filme é autobiográfico mas sob uma roupagem ficcional. Não me interessou expor a minha vida, interessou-me sim pegar em certas experiências da minha vida e tratá-las com elementos ficcionais misturados com elementos autobiográficos/documentais, mas entendendo sempre estes géneros cinematográficos num sentido lato, expansivo, ao invés de delimitador.

O Azul, não só do título, mas presente simbolicamente nos diferentes elementos, seja a cor como invisibilidade, seja o mar que sufoca a protagonista, seja até mesmo a fotografia que adquire iguais tons. Como surgiu a ideia do Azul como símbolo do conflito existencial desta personagem? 

A cor azul como símbolo é, para mim, uma leitura que surgiu muito mais tarde e que, na verdade, continua a ser assim lida mais por quem vê o filme do que por mim. 

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A relação com a cor azul enquanto paisagem (e não tanto enquanto simbologia) tinha de estar presente no filme, encontrando diversas transfigurações para a sua presença, pois é uma cor que, como sabemos, carrega já tantos sentidos e simbologias. Eu tentei não pensar nessa carga simbólica e cingir-me, genuinamente, à minha relação específica com esta cor. A cor azul aqui tem para mim um sentido muito directo: naquela altura, eu procurava o azul do mar e o do céu, pela sua abstracção e, simultaneamente, pelo seu sentido de absoluto. É mais uma relação directa de sensações/emoções, do que propriamente de simbologia, que para mim implica uma certa racionalização. 

Sobre 28, não somente a idade que a nossa protagonista deseja desaparecer, mas pelo vislumbre da sua vida, ainda confinada a uma certa austeridade e dependência familiar. É sugerido, de facto, mas existe em Azul uma intenção de rebelião contra uma cada vez procrastinada emancipação à idade adulta? Como vê essa independência tardia? Já agora, também gostaria de mencionar que “28” é também abordado na recente longa-metragem de Adriano Mendes (“28 ½”), representado como uma idade de impasse. 

A crença de que ela vai desaparecer aos 28 anos condiciona tudo o resto: porque haveria emancipação, planos, desejo de futuro, se ela sabe quando a sua existência vai terminar? Claro que há muitas outras questões subjacentes a esta crença — e é o que vamos percebendo com o filme, mas, para a protagonista, esta é a primeira verdade, absoluta e inquestionável… No entanto, sim há na mesma rebelião sob a superfície que, à medida que a data do seu aniversário se aproxima, se torna mais angustiante. 

A expressão livre dessa rebelião, ou a emancipação, ou a “independência tardia”, como colocas, só pode surgir se a personagem sobreviver à sua crença e quiser finalmente encontrar o seu lugar no mundo.

Por outro lado, há uma camada que está sempre subjacente que é a da frustração em relação ao que é ser-se adulto nesta sociedade… A rebelião contra isto é, creio, potente e necessária. 

Sobre o corpo algo abstrato da protagonista, e à sua maneira performativa, existe em “Azul” uma aptidão ou fantasia do body horror? Como é a questão dos corpos relacionada com o estado emocional da personagem? 

Há uma questão muito concreta em relação ao corpo desta protagonista, uma questão de saúde que, invariavelmente, alterou a relação dela com o próprio corpo pois teve de aprender a habitá-lo de toda uma nova maneira — e essa procura por, de facto, habitar o seu corpo (daí o lado mais performativo), não é pacífica e não cessou. 

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Depois, ao aliar a isto a crença do desaparecimento aos 28 — um desaparecimento físico, concreto e material também, em que o corpo vai desaparecer — a relação que ela tem com este só poderia ser bastante específica. 

Tenho, sem dúvida, “um fraquinho” por body horror e espero poder explorar mais esse lado no meu trabalho futuro. 

Quanto a novos projetos? Existe desafio para se aventurar no território da longa-metragem? 

De momento, encontro-me a desenvolver uma longa-metragem para a qual consegui, recentemente, financiamento para a escrita. Entretanto, como esse processo será ainda longo e moroso, espero escrever e realizar mais curtas.

Serão Danado ... e há fotos que o comprovem!

Hugo Gomes, 10.04.22

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“Sou eu e a puta da shotgun”

Lembro como se tivesse sido ontem … Foi na projeção de imprensa de “Verão Danado”, na sede do ICA, pronto para ver uma prometida “primeira longa-metragem”, "saidinha do forno” para se “enfiar” em Locarno. Benzi-me inicialmente mesmo não sendo religioso, possivelmente tratei daquele ato como um ato de superstição (ou de preconceito), e como previsto (julgava eu), as imagens começaram a rolar … ou em modo de trocadilho manhoso - “rural”. “Mais um relato de fascínio pela nossa ‘portugalidade’”, revirei os olhos após os primeiros minutos, contudo, e como havia insinuado, “lembro como se tivesse sido ontem”, esse momento, esse filme e esse realizador [ler crítica e entrevista].

Francisco (Pedro Marujo) pode muito bem ser um jovem do interior, mas é em Lisboa, essa cidade-perdição (não se via tal desde “O Sangue” de Pedro Costa), que a sua viagem começa, e como grande parte delas, o trajeto revela-se mais entusiasmante do que a sua derradeira paragem. Já nos seus vinte, o protagonista mal-amparado, de precariedade mas desinteressado na estabilidade, vive o dia como fosse noite e a noite como fosse dia. Ou seja, o que parecia mais um nos relatos abundantes, converteu-se num retrato de uma juventude alimentada pelas últimas luzes da sua “imortalidade” e, mesmo assim, à deriva do seu limbo criado e socialmente gerado. Pedro Cabeleira, o realizador do qual “tivesse sido ontem”, nos enganou bem. Felizmente nos enganou!  

Com “By Flávio" (a sua nova curta-metragem, que estreou no Festival de Berlim), o engodo também acontece, desta feita na forma da atriz Ana Vilaça, aqui Márcia, uma jovem mãe solteira cujas suas decisões parecem remeter-nos a um caminho predestinado, de extrações moralistas ou reflexivo conforme seria a previsão de uma geração refém das redes sociais e das suas ditaduras estéticas. Contudo, retém-se a segunda - ditaduras estéticas - para sermos embalados num filme estetizado sobre a estética que desejamos definir para nós próprios. Por outras palavras, e apoiando-se no primeiro momento da curta, onde aquela foto destinada ao Instagram é cuidadosamente seleccionada, mas sem nunca descartar dos seus devidos retoques (requisitadas manipulações), centra-se na imagem de como nos vemos e como desejamos que os outros nos vejam. A rede social, esse idealizado avatar, converteu-se na nossa identidade priorizada, cuja nossa existência deve-se ser manuseada e comprovada com fotografias ou “pegadas tecnológicas”. 

By Flávio" é em pouco de meia-hora de peripécias um caderno de rascunhos passageiros sem nunca instalar-se, e por um lado, funcionando na “mouche” em nunca persistir nem perseguir os temas (Cabeleira é tudo menos realizador de “filmes-de-tema” e mais autor de "filmes com vida", talvez sangue na guelra seja a palavra adequada). Foi o que aconteceu com “Verão Danado”, os tópicos estão lá para consumo rápido, mas não de jeito efémero, ao invés disso, nómada. O engano, feliz golpe, é já a sua marca. Danado do rapaz!  

Miguel Gomes: "faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer"

Hugo Gomes, 24.08.21

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Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro

Em todo o nosso encontro, Miguel Gomes fez questão de sublinhar que “Diários de Otsoga” não é um filme totalmente seu, de forma a invocar a presença da companheira e correalizadora, Maureen Fazendeiro, na nossa conversa. “Peço desculpa, a Maureen não pôde estar presente, teve que tomar conta da bebé.

Possivelmente, ao lado do legado deixado por Manoel de Oliveira e do entusiasmo mundial por Pedro Costa, Gomes é dos nossos realizadores mais internacionais, conquistando lugares nunca antes “navegados” por portugueses com filmes bem distintos como “Tabu” ou o projeto epopeico de “As Mil e uma Noites”. Porém, comigo é mais que isso tudo: é um pai babado.

Apresentado na Quinzena de Realizadores do último Festival de Cannes, “Diários de Otsoga” é marcado por um gesto, o de desafiar um confinamento e a interrupção de projetos e o de dar asas à criatividade, contando com uma equipa entre o profissional e o familiar. Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro tinham um filme em mãos, não sabiam ao certo que futuro poderia reservar esta aventura, mas o futuro também estava entre eles. Para além da rodagem, uma criança vinha a caminho, uma preocupação, uma dádiva ou uma outra dedicação.

O filme foi somente secundário, e mesmo assim prioritário. Ainda que para nós, espectadores, “Diários de Otsoga” tenha sido um filme, para Miguel Gomes foi mais que isso.

Queria começar esta conversa por questionar o significado do título.

Otsoga é Agosto ao contrário. Eu e a Maureen estávamos para sugerir um outro título - “Pura Vida” - porque a estrutura do movimento do filme, digamos, começa num território mais convencional (um beijo ou um início de um triângulo amoroso) e vai abrindo até chegarmos à possibilidade de que se está a fazer um filme. Vemos os técnicos, os atores e o filme, a cada dia que passa, podemos ver mais a vida a tornar-se cinema e não tudo fruto de um universo puramente cinematográfico como indicavam os primeiros momentos do filme. Resumidamente, tudo isto seria para chamar-se de “Pura Vida”, mas a certa altura a Maureen referiu que o título a fazia lembrar uma marca de água mineral, por isso abandonamos algo que à partida era ‘foleiro’.

Otsoga nasceu numa praia. Estava concentrado nas palavras cruzadas, até que de repente, talvez por sugestão das mesmas, uma charada de letras e palavras, perguntei o seguinte: “Se nós filmarmos em agosto em modo diário, e numa narrativa invertida (a essa altura já estava decidida essa estrutura), então que tal se invertêssemos o título?” E naquele momento escrevi Otsoga e isso fez sentido. Foi assim que obtivemos o título.

Ou seja, sabiam que o filme ia ser rodado e até mesmo estreado no mês de agosto?

Isso também já estava combinado. Havia a questão da Maureen estar grávida, com o nascimento previsto para fim de outubro ou início de novembro, portanto não podíamos filmar nos últimos dias da gravidez. Então tivemos que arranjar uma altura muito antes do parto, numa rodagem que fosse rápida, então a solução foi agosto.

Em conversa com a atriz Crista Alfaiate, ela revelou-nos que o filme nasceu de um gesto de “temos que filmar de qualquer forma”, por oposição ao confinamento e à paragem de projetos que a pandemia provocou.

A primeira visita que fizemos após o fim do primeiro confinamento foi à Crista. E falámos sobre a situação. Recordo-me dela confessar que estava a receber, naquela altura, os apoios da Segurança Social, e também de nos ter elucidado sobre a situação de vários colegas, alguns dos quais não recebiam rigorosamente nada e outros apenas 50 euros mensais. Foi exatamente na mesma altura em que o Ministério da Cultura responsabilizava a Segurança Social, ou seja, ninguém resolvia o problema nem sequer se assumiam culpas, e nós [artistas] estávamos indignados com todo este rol. Sendo que este filme nasceu de uma iniciativa de “dar trabalho”.

Talvez tenha sido esse gesto, possivelmente não de uma forma racional, que levou a que o filme apresentasse uma comunidade de cinema, porque é quase um manifesto ao facto de um sector estar a ser negligenciado pelo Estado, que sacudiu as suas responsabilidades. Nós não podíamos remediar. Nessa altura estávamos empenhados e envolvidos com outras pessoas do cinema em pedir um fundo de emergência para o sector, que era algo que já existia noutros países, onde vários projetos ficaram igualmente paralisados mas onde mesmo assim se conseguiram implementar fundos de emergência para auxiliar os técnicos e os atores, muitos deles sem trabalho. Estávamos a lutar por isso, mas infelizmente tal nunca aconteceu. A única possibilidade que nós tínhamos era este projeto, numa escala muito reduzida visto que o filme obteve um orçamento muito limitado e não concorreu ao ICA nem seguimos os canais de financiamento normais para produzir filmes na Europa.

E se concorressem ao ICA...

Não havia tempo sequer…

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"Diários de Otsoga" (2021)

Sim, mas se concorressem como apresentariam o projeto? Para o ICA é preciso apresentar um rascunho do projeto e visto que “Diários de Otsoga” é um filme livre e sem guião definido, como o fariam?

Pois, ia ser complicado. Porque a ideia era precisamente reunirmo-nos, que era algo que nos faltava (a pandemia afastou-nos, quer física quer espiritualmente), e realizar um filme que nascia da nossa partilha de um tempo, que era o tempo daquela rodagem. Se apresentássemos o projeto, ele teria que ser diferente e isso trairia o pretendido, até porque chegámos aquela casa com “folhas em branco”, possivelmente com três ou quatros apontamentos. Havia a convicção e o desejo de poder surgir um filme a partir da nossa experiência naquela casa em tentar criar um filme, e isso torna-se um assunto dentro do próprio filme - a história de uma rodagem de um filme. E pensando desta maneira não o conseguiríamos fazer através dessa aplicação aos fundos do Instituto de Cinema.

O seu filme traz-me à memória aquela frase batida de Jacques Rivette, de que “os melhores filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem”?

Exato, íamos fazendo o filme e integrando nele aquilo que ia sucedendo. Algumas coisas com relevância nas nossas vidas, outras fruto do quotidiano. No fundo, é um filme que nasce de uma dor de dentes ou do “vou dar banho aos cães, por isso esta cena deveria estar no filme”, coisas assim. E o “Diários de Otsoga” fez-se dessa maneira, sendo que é preciso desconfiar um bocado daquilo que aparece nos filmes. Ou seja, por um lado o filme tem um lado de espelho da nossa experiência de intimidade naquela casa, na medida em que íamos escrevendo o filme quase sem o saber, mas por outro lado é um objeto de ficção, o espelho é sempre deformado e não é um reflexo absoluto da realidade. A meu ver, é uma ideia um pouco ingénua de que tudo o que está neste filme é a fabricação do próprio filme.

O Miguel e a Maureen apresentam vários desafios ao longo do filme, ao espectador e a vós próprios. A começar pelo beijo que em tempos pandémicos era quase assunto tabu, e a questão do tempo jogado pelo filme - falo obviamente da escolha da borboleta e do marmelo que vai apodrecendo ao longo do ecrã, elementos que brincam com a inversão temporal da obra. 

Bem, estamos a falar de coisas diferentes. O beijo foi das poucas ideias iniciais que trouxemos para casa como um desafios às regras COVID, e como inventámos este método, este modelo de produção que era o de estarmos isolados naquela casa, e como tínhamos um diário invertido que começava pelo último dia de rodagem e terminava no primeiro, poderíamos contornar os perigos de uma cena de beijo, filmando-a no último dia mas montando-a ao contrário.

Quanto à questão da borboleta e do fruto: é que o fruto é, basicamente, um marcador de tempo. Se me perguntares do que se trata do filme, posso ter várias respostas, mas uma delas é que é um filme sobre o tempo, no sentido, em que o facto de o tempo estar invertido o torna numa propriedade própria do cinema, o de manipular a natureza do tempo e desfazer a linearidade da vida. Igualmente é um filme sobre o tempo, porque dos 22 dias que passámos, o espectador nunca conta com verdadeiras surpresas, uma vez que “Diários de Otsoga” não trabalha em termos narrativos para constantes mudanças ou revelações de argumento mas vai mudando de uma forma mais próxima do decurso normal do tempo, ou seja o filme é praticamente estável.

Talvez seja só um momento em que percebemos, por fim, que se trata da rodagem de um filme, mas de resto nada ou pouco altera o nosso percurso. E é aí que entra o fruto, porque é à luz do tempo que aquele fruto altera, ele não é intacto ao tempo. A olho nu nada altera, mas voltando àquele mesmo fruto de três em três dias poderíamos constatar e registar as suas alterações. No fundo, o fruto é o medidor do tempo do filme, e precisávamos disso aqui, em contraste com o que pouco alterna na ação do filme. Mas entre o princípio e o fim de “Diários de Otsoga”, tudo muda. Entre uma festa e outra, há uma grande alteração, percebemos o filme de uma maneira diferente e percebemos isso com a estrutura do tempo.

Já as borboletas, elas são efémeras. Mas a ideia surgiu com a própria natureza da herdade que albergava imensas gaiolas e animais como pavões, galinhas, papagaios, e até havia um canil, e nós queríamos uma construção, que com a montagem iria gradualmente desaparecer. Foi a Maureen que surgiu com a ideia do borboletário.

Existe um momento do filme, em que o Miguel e a Maureen se ausentam da rodagem, deixando o trio de atores (Carloto Cotta, Crista Alfaiate e João Nunes Monteiro) a assumirem o cargo de realizadores. Segundo a Crista Alfaiate, foram três bobines. Confirma?

Já não me recordo quantas bobinas eram, mas havia ali um limite… é capaz de ter sido três, julgo que era isso que tínhamos diariamente programado para gastar. Era a média. Como somos democráticos, achámos que eles tinham por direito as mesmas oportunidades que nós próprios tínhamos enquanto realizadores. E se nesse dia não íamos realizar, porque não dar a vez a eles? Por isso demos-lhes a mesma quantidade de película que usávamos por dia.

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"Diários de Otsoga" (2021)

Sem mencionar a equipa de técnicos, com grande parte dos quais já tinha trabalhado, no campo dos atores, Crista Alfaiate e Carloto Cotta são faces familiares na sua filmografia mas João Nunes Monteiro ("Mosquito") é quase como um extraterrestre neste seio “familiar”.

Pois, a personagem dele é um bocado extraterrestre… Enfim, o Carloto e a Crista já tinham trabalhado comigo e juntos no “As Mil e uma Noites”, por isso já se conheciam bem. Quanto ao João Monteiro, nunca tínhamos trabalhado com ele, foi-nos recomendado por várias pessoas e vimos algum do seu trabalho, e ele acaba por ter um lado desprotegido, é aquele tipo que não consegue pregar um prego [risos]. Ele tem aquele lado mais frágil, o que funciona como um bom contraponto com o lado, um bocado mais bruto do Carloto, e portanto estávamos convencidos que ele poderia dar mais qualquer coisa para aquele triângulo, um lado que poderia ser interessante.

Repescando as questões iniciais da nossa conversa, é um facto que a pandemia lhe “parou” dois projetos. O que é feito deles? Acredita que vai regressar a eles?

Claro. Temos sempre essa esperança. Penso que um deles é mais possível que o outro. “A Selvajaria" será rodado no Brasil e é importante que seja filmado no exacto local onde decorreu a Guerra de Canudos, mas é um filme muito pesado em termos de produção, com muita figuração, técnicos e portanto vai acontecer um ajuntamento de gente, que é impossível neste exato momento. Imperativamente tem que ser rodado no Brasil, porque o livro [de Euclides da Cunha] é sobre aquele lugar e sobre aquelas pessoas, seria batota filmá-lo num outro lugar. Quero ser fiel aquela comunidade, muitos deles descendentes dos sobreviventes da guerra. Não posso trair o meu filme. O que tem acontecido é uma renegociação com os financiadores, porque o projeto está altamente financiado, para que possamos adiar as rodagens para uma altura mais adequada.

E o outro, “The Grand Tour”, é um filme de estúdio mas que não é leve em termos de produção e em figuração. Mas como é em estúdio, possivelmente conseguiremos arranjar uma maneira / solução.

É um facto que o Miguel recorre facilmente a coproduções. Sente de alguma forma que isso é uma solução para o escasso financiamento ao cinema português por parte do seu instituto?

As coproduções são necessárias para reunir uma certa quantidade de dinheiro para concretizar determinados projetos. Este é o meu quinto filme, e é a meias, não é totalmente meu, portanto digo que não tenho um número suficiente de filmes para ter uma estatística ou um plano geral.

Mas no caso do “Diário de Otsoga”, como referiu, não usufruiu de nenhum apoio estatal ou do Instituto. É possível contornar essa fonte orçamental?

Eu faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer. E por vezes, para os fazer, é preciso coproduções. Surgiram vários debates, muitos deles históricos ocorridos nos anos 90, de como seria a estratégia de produção em Portugal. Discutia-se menos filmes mas com orçamentos superiores ou menos dinheiro mas um número maior de filmes. Acrescentando nisto tudo que há um subfinanciamento crónico no cinema português. Fui defensor, e julgo que deverei sê-lo, de um maior número possível de filmes. Sou contra a ideia, que acho que está estabelecida, de 600 mil euros de teto máximo de financiamento do ICA para uma longa-metragem, e mesmo assim produz-se muito pouco. Julgo que são 10 a 11 longas produzidas em Portugal por ano.

Tendo em conta esse teto máximo, eu para conseguir concretizar os meus projetos recorro a outras formas de financiamento sem ser o ICA. Essa é a solução, não só para Portugal mas para a Europa e até mesmo fora dela, para financiar filmes de produção mais pesada. Mas gostaria de salientar que este filme, apesar do seu orçamento, não é menos ambicioso que um “As Mil e uma Noites”. Os filmes não se medem pelos seus orçamentos.

Fitas, borboletas e dias de desespero

Hugo Gomes, 25.07.21

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Ame-se ou odeie (é bem verdade que na última opção continua dependente a uma vincada ideologia de como o cinema português deve ser produzido e “consumido”), Miguel Gomes já estabeleceu o seu lugar na nossa cinematografia como dos mais ambiciosos realizadores da nossa praça, como também dos mais internacionais (apenas equiparado a Pedro Costa ou o legado deixado por Manoel de Oliveira).

Com a sensação que foi “Aquele Querido Mês de Agosto”, a aclamação unânime de “Tabu”, uma canção que ressoa nos cantos e recantos do passado colonialista, o pretensiosismo discutido das “crónicas de um país triste” numa recitação de um clássico intemporal literário – “As Mil e uma Noites” – e as promessas de um projeto ainda maior intitulado de “Selvajaria”, Gomes, em plena pandemia, retorna numa trajetória contra-maré, não somente narrativamente, e sim produtiva. 

Co-realizado com a sua companheira Maureen Fazendeiro (“Sol Negro”), “Diários de Otsoga” é a cerne dos filmes de confinamento, um verité de um método de construção e igualmente de desconstrução, o qual dois realizadores e a sua respetiva equipa barricam-se numa herdade com o intuito de concretizarem o seu filme. O “filme”, esse mal-amparado MacGuffin, é a tese em elaboração de como o cinema poderá se comportar perante as drásticas mudanças sociais que condicionam o seu processo criativo, sem nunca envergar pela limitação desse quadrante, pelo contrário, a ausência e a indisponibilidade de recursos. 

Carloto Cotta (presença repetente na filmografia de Gomes), Crista Alfaiate (descoberta do realizador em “As Mil e uma Noites”) e a revelação de “Mosquito”, João Nunes Monteiro (com o desafio de distorcer a sua própria imagem) são os atores desta inversa metamorfose (em paralelização com o borboletário e do marmelo em decomposição que serve de núcleo e de termostato a esta “história”) criada em constância pelos realizadores. Aprimorado por momentos humorísticos, satíricos para com o processo fílmico (basta verificar o ponto alto em que os atores comandam o filme, “que desperdício de fita” exclama Cotta) e de puro burlesco, a veia que Gomes parece ter herdado de João César Monteiro, “Diários de Otsoga” funcionam como um exercício labiríntico de devaneios e de busca inspiracional no seu formato de aparentado caos. 

Só que, e falando na língua de Miguel Gomes, o filme é marcado com uma regressão à génese [“A Cara que Mereces”], onde verificamos novamente o fascínio pelos inventários e do cinema regulamentado pelas suas estabelecidas e rígidas regras. Ou seja, há mais controlo nesta exibida “desarrumação” do que supostamente exibe. 

Um fio tênue que unifica as nossas mais mórbidas fantasias ...

Hugo Gomes, 05.10.20

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Entre “kiss me” e “kill me” existe uma ligeira divergência fonética que não impede que ambos os “pedidos” se enquadram na igual esfera do Desejo. Aliás, esse signo é identificável numa colheita de curtas que jogam com a carne e a perversão da mesma como objetivos-irmãos, seja pela heresia interior nas imagens sacras (“Carne”), quer nos limites do aceitável imaginário (“Coelho Mau”) ou simplesmente o desejo repreendido (“Boa Noite Cinderela”), um universo que Carlos Conceição nestes últimos tempos deixou-nos “babar” por uma inadiável estreia no formato das longas.

Infelizmente, “Serpentário” (ainda sem estreia comercial) não correspondeu a essa constelação do desejo ardente, enfraquecido por um caminho serpentino à sua determinante chegada, esta algo memorialista e longe da sensorialidade. Contudo, é com “Um Fio de Baba Escarlate”, uma média-metragem (50 e poucos minutos contamos nós de duração) no limiar da estância seguinte, que funciona como estreia “longuíssima” que tanto ansiávamos e que nos negaram, por culpa do próprio Carlos Conceição.

Um filme que se concentra nessa incestuosa relação entre o desejo a ser consumado e a depravação nunca ocultada, enriquecida numa trip estetizada e sanguinariamente glamorosa de um serial killer (Matthieu Charneau) atingido pelo constante efeito “fregoli” (todas as suas vítimas são representadas pela mesma face – Joana Ribeiro – assim, como o seu redor, homogéneo) e pela língua inexata e imperceptível aos nossos ouvidos (somos “atirados” a um enésimo “não-lugar”). Aqui, o seu “fetiche” (menorizando a sua vontade de matar é claro!) é interpolada por um incidente / acidente que o converte numa equivocada estrela viral. Para a insaciável fome existe uma veneração messiânica que o transporta num (nunca justo) dilema moral. Mas a racionalidade não é inabalável perante a cedência pecaminosa e carnal dos seus desígnios (Conceição joga ainda com os seus “lugares-comuns” para tracejar uma linha direta entre as efémeras ambições [fama] pela negritude da sua caixa-negra [a fantasia]).

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Confessamos, e novamente repescando o ponto inicial, que este é o trabalho que pretendíamos como primeira longa-metragem, um ensaio incorporado nos ditos gestos de Conceição, fortalecido com o estilismo superlativo e artificializado que nos convoca para uma falsa sensação de devaneios oníricos. E na entrada para esse campo de sonhos e pesadelos diluídos numa só cor, o travelling serpentário (melhor juz ao tão desperdiçado título) que se “cola” a Joana Ribeiro, materializando-a num desiludido amor de perdição. Resumindo movimentos contraditórios (temos testemunhado muitos destes nos últimos anos) que corroem a tradição da artificialmente estática que muito do cinema português tem vivido.

E é na clareza da sequência que persegue a sua personagem-mártir (coincidência um filmes destes presentear-nos Leonor Silveira, a protagonista de um dos mais belos travellings que o nosso cinema nos ofereceu – “O Vale Abrão”, de Manoel de Oliveira) que novamente bradamos pelo regresso em platina de um dos nomes mais promissores deste chamado “novo cinema português”.

O que poderemos esperar do Curtas Vila do Conde de 2020? Nuno Rodrigues, diretor do festival, responde

Hugo Gomes, 02.10.20

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Casa das Antiguidades (João Paulo Miranda Maria, 2020)

Arranca este sábado (03/10), a 28ª edição do Curtas Vila do Conde, que terá um sabor “especial” devido à nova “normalidade” e às ameaças de uma segunda vaga da pandemia.

Mas o cinema deve continuar contra todas as adversidades e o festival assume ainda mais a sua função de mostra e preservação do espírito cinéfilo. O diretor Nuno Rodrigues conversou e sugeriu uma trajetória para conhecer ou recordar a experiência de cinema, mesmo em formato curto.

Primeiro de tudo, gostaria que nos falasse das dificuldades no arranque de um festival de cinema em tempos de pandemia, ainda mais com as ameaças de uma segunda vaga. Estas condições condicionaram a programação que estava anteriormente pensada?

O contexto de pandemia criou dificuldades evidentes. Numa primeira fase levou à necessidade de alterar a data do festival, posteriormente preparámos algumas iniciativas de aproximação ao nosso público, como foram o Curtas Drive in e o filme-concerto “Surdina”+ Tó Trips no Teatro Municipal. No que diz respeito à programação, tivemos tempo de repensar alguns detalhes no que estávamos a desenvolver e assim tomar decisões que dessem uma melhor resposta aos tempos de incerteza que estávamos a viver. Decidimos apostar forte na nova secção Cinema Revisitado, onde se destaca um programa especial dedicado a obras peculiares de Jean-Luc Godard, tais como trailers, publicidades e filmes institucionais. O adiamento acabou por permitir a chegada de novas estreias e assim proporcionar uma das melhores seleções de Curtas para a competição Nacional e internacional. O programa In Focus que vínhamos desenvolvendo com o cineasta Isaki Lacuesta também acabou por beneficiar com a inclusão de novas obras desenvolvidas em contexto de pandemia e que integrarão a exposição dedicada ao artista na Solar Galeria de Arte Cinemática.

Dentro do panorama dos festivais em tempos de COVID, a possibilidade de uma edição 100% online de forma a cumprir as datas de verão pelo qual o Curtas’ habitualmente decorre foi posta em cima da mesa?

Desde o momento que alteramos a data com o aparecimento da pandemia, a nossa principal motivação foi defender a ideia que o festival teria que acontecer presencialmente. O online apenas poderia vir a existir como alternativa. Aquilo que torna especial um festival de cinema é precisamente o seu caráter presencial, a partilha de ideias e obras num determinado momento, local e contexto.

E quanto ao tal serviço de streaming que será lançado paralelamente com o festival?

Sim, atendendo à incerteza e a existência de diferentes tipos de sensibilidades e públicos, iremos criar essa alternativa, uma versão online com cerca de 150 filmes que irá ser disponibilizada em plataforma VOD a partir do dia 3 de outubro [ver aqui - https://online.curtas.pt/] . Criamos aqui a possibilidade de tornar possível o encontro com pessoas que vivem longe de Vila do Conde e em locais onde o cinema não chega em versão presencial.

Sobre a programação, gostaria que me falasse sobre a nova secção não competitiva chamada New Voices.

New Voices pretende ser um espaço para a mostra de realizadores emergentes, cuja obra de curtas e primeiras longas-metragens constitua já um corpo de trabalho consistente e diferenciador. Numa altura em o cinema se debate com novos desafios à sua distribuição, este espaço programático solidifica o compromisso do festival com a descoberta de novas tendências que marcarão o futuro do setor. Para a primeira edição, a escolha recaiu sobre três realizadoras, com diferentes conexões ao próprio festival, cujo trabalho, em filme, performance e instalação, tem espelhado, de forma particularmente idiossincrática, questões de identidade, sentimento de pertença e conexão a territórios: Elena López Riera, Ana Elena Tejera e Ana Maria Gomes.

O que destacaria na programação do festival?

Tal como nas suas últimas edições, o festival tem uma programação muito vasta e diversificada que vai ao encontro de diferentes tipos de público. Competição experimental; Stereo com cine-concerto por Paulo Furtado, Iris Cayatte e Pedro Maio; Competição Curtinhas; foco dedicado a Isaki Lacuesta; são alguns exemplos de territórios de criação artística e cinematográfica que damos a conhecer ao nosso público. A competição nacional e internacional são este ano um espaço de descoberta de novos autores, mas também secções competitivas onde poderão encontrar novos filmes em curta-metragem de cineastas consagrados como Jafar Panahi, Sergei Loznitsa, Guy Maiden, Cláudia Varejão, Sandro Aguilar ou Filipa César. A não perder é a estreia nacional de “First Cow”, um dos filmes mais aclamados de 2020 da realizadora Kelly Reichardt, cineasta que esteve em 2014 em Vila do Conde para apresentar uma retrospectiva da sua obra.

O Recado (José Fonseca e Costa, 1971)

Queria que nos falasse do porquê do “resgate” do “O Recado”.

Na secção Cinema Revisitado procuramos criar condições de redescoberta de importantes filmes da história do cinema. Temos vindo a desenvolver uma parceria com a Cinemateca Portuguesa no sentido de ir integrando anualmente filmes importantes da história do cinema português. O facto de ter surgido um trabalho de restauro do filme “O Recado” pareceu-nos importante, visto tratar-se dum realizador importante e também por ter participado em algumas das nossas primeiras edições nos anos 90.

Quanto ao foco de João Paulo Miranda e a estreia da sua “Casa de Antiguidades”, selecionado para o festival de Cannes deste ano (que não chegou a acontecer)?

O Curtas tem vindo a acompanhar o percurso de João Paulo Miranda e o realizador já esteve antes no festival com filmes na competição internacional. Aproveitamos o facto de ter acabado a sua primeira longa-metragem na competição virtual de Cannes para convidá-lo para fazer a estreia em Portugal deste filme.

Expectativas sobre esta edição?

O ano que estamos a viver é diferente e nesse contexto estamos a trabalhar numa edição que consideramos especial. Apresentamos uma programação diversificada e de grande qualidade e em simultâneo criamos alternativas de encontro com o público. Acreditamos que a nova solução encontrada para a competição Nacional, a decorrer em simultâneo em Vila do Conde, Porto, Faro e Lisboa, irá permitir novas possibilidades de encontro entre cineastas e público, uma aproximação entre cinema, os realizadores portugueses e o público a acontecer em várias regiões de Portugal.

O que poderá ser desenvolvido ou crescer em futuras edições?

O Curtas é um projeto consolidado, pretende por um lado manter o seu nível e por outro mostrar-se atento às mutações. O que está a acontecer agora no mundo vai deixar uma marca em muitos setores, nos hábitos das pessoas, e o festival estará atento no sentido de pensar o seu crescimento numa perspetiva de evolução e adaptação, sem contudo deixar de manter e defender os aspetos que o têm vindo a fazer crescer.

Qual a importância dos festivais para o cinema em sala, que se encontra, cada vez mais, em risco devido a esta “nova normalidade”?

Temos que saber resistir à tentação voraz do online, que é uma possibilidade para certos públicos, mas a sua existência deve sempre ser uma alternativa. Um festival de cinema deve lutar pela manutenção da sua essência, a sua relação com o público, as suas vivências, a sua relação com esse espaço de magia que é a sala de cinema.

O cinema português tem contas a ajustar com o seu “novo sangue”

Hugo Gomes, 11.02.19

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Jovem, mas de um espírito terreno para com a tradição estética deste mesmo universo, comentando a fantasia em prol dos prazeres da carne (a revisitar a sua trilogia de curtas, “Carne”, “Boa Noite Cinderela” e “Coelho Mau”) e do visual eclético, mas enriquecido por uma câmara que acompanha o olhar das personagens e não do espectador, Conceição preparava a sua “cama” para uma estreia em “grande” no formato das longas metragens. "Serpentário'' assume como a sua estreia no elucidado “universo para crescidinhos“, porém, os prometidos atos sebastianos desvanecem perante um desnorteio. A bússola aponta para Norte, mas o realizador e também argumentista está determinado a seguir para Sul, erradamente conquistando o Oeste.

Ora, seguindo a lógica, aquela “cantigazinha” da experiência, Conceição demonstra neste novo palanque alguns dos grandes problemas da transição de curta para a longa – a logística, ou diria antes, a economia do seu tempo, ritmo, teor e sobretudo forma. O seu ecletismo é mais presente, vincado nesta sua (re)requisição de um anterior protagonista, João Arrais de “Coelho Mau”, aqui como o serpentiano que parte em busca do que resta da sua mãe num futuro pós-apocalíptico. Essa dizimação do mundo que conhecemos é parte de um segredos de deuses o qual não cabe ao espectador conhecer. Aliás, como a sua intenção de sublinhar a perspetiva da personagem e nunca a do público, algo deixado pela sua experiência nas curtas é indiciando nesta hipotética viagem pelo desejo.

Contudo, o desejo aqui é outro, não a luxúria que miramos nas blasfémias sacras (“Carne”), na literalidade da guerra entre classes (“Boa Noite Cinderela”) ou a perversidade de um incesto fantasiado (“Coelho Mau”), e sim o não condicionado reencontro, a esperança que funciona como fuel de uma jornada pelas ruínas do Velho Mundo. Pelo caminho, percebemos que este armagedão concretizado fracassou no seu expoente, a existência do outrora (a nossa atualidade) desapareceu, mas as imagens do que este Mundo era estão preservadas numa espécie de cápsula do tempo, os vídeos amontoam-se e formam uma constelação da nossa era (o cinema português parece estar consciente da extinção da sociedade e acumula as imagens como os seus tesouros memorativo, assim como fizera “Dia 32” de André Valentim Almeida).

Serpentário” é nesses preparos um filme sobre a memória, a coletiva que se torna na ressonância da individual. Conceição presta-se a esse “amarcord”, regressa ao continente africano, onde nasceu, que abraça a sua camada autobiográfica para se estender acima dessa chamada coletânea do Mundo. É aí, que de certa maneira, o filme se perde – a bússola já não aponta mais e João Arrais caminha por entre escombros improvisados, civilizações arrasadas, contemplando a destruição para procurar a criação. Atmosférico? Sim, o que ganha força com um inesperado encontro, contrariando uma alusão a Mil e uma Noites, as fábulas das Arábias que infiltram nos vento de areia e na voz doce e trocista de Isabel Abreu (sobressaindo uma das grandes qualidades de Conceição, o seu trabalho de som).

Ou seja, ideias existem, investimento sim, mas o nosso realizador comete um salto maior que a perna, até porque não sabe o que fazer com o tempo que dispõe, como o preenche e, acima de tudo, como o tornar útil. Todavia, ainda não perdemos a esperança na sua figura. Carlos Conceição tem virtudes suficientes para “abanar” o nosso mundo cinematográfico.