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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Porque estacionar em Lisboa é uma *bitch*

Hugo Gomes, 20.09.23

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Indiscutivelmente, (tentar) estacionar no bairro de Campo de Ourique é um pesadelo que por si só adquire contornos burlescos. Em “Vórtice”, curta-metragem de Guilherme Branquinho, é quase uma instalação dessa situação quase dantesca, uma escadaria de Penrose, em que numa noite qualquer, o descanso 'merecido' é adiado por um constante rodopio quarteirão acima, quarteirão abaixo. Trata-se de um exercício que condiz com a sua duração (15 minutos e chega bem), onde o espanto conduz de forma fluída, nunca 'escondendo' o jogo, nem nunca revelando o baralho na sua totalidade, mas entendendo do que está em cima da mesa, e com isso mantendo refém a atenção do espectador num artifício de fácil codificação e difícil explicação. Metafísica, quântica, ou somente a 'piada' recorrente transformada em episódio “Twilight Zone”, expondo um know-how convincente, se não fossem também as peças devidamente encaixadas.

Narrativamente estamos conversados, quanto à atmosfera nem há para muito discutir, é um desespero paranoico, ensurdecedor perante o silêncio habitual da madrugada naquela 'witching hour' (julgo que por cá chamamos “hora da bruxa”, não tenho a certeza), e no seu centro, ou melhor, vórtice, Cristóvão Campos, ator que nos últimos tempos tem tão bem exposto uma angústia vertiginosa sem perder um pio ao identificável (fora do Pôr-do-Sol”, devidamente satírico, há que espreitá-lo em “Revolta” de Tiago R. Santos para perceber do que falo).

Quanto à curta, poderão vê-la na Filmin aqui.

O Descaramento Indiscreto da Burguesia

Hugo Gomes, 01.06.22

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Anunciado e noticiado, uma revolução acontece no exterior - um aparente caos - apenas ofuscado pela “tempestade perfeita” gerada no centro de quatros paredes, onde o qual o espectador, assim como o quarteto de personagens, testemunharão. Da janela, a revolta do título, é somente um espectáculo para os seus olhos, um fogo-de-artifício que atribui cores nunca vistas na cidade de Lisboa. Noite fatídica para o país, mas tal não interessa, o casal prepara o seu combinado jantar (nada neste mundo os demove a desmarcar tal 'coisa'), um convívio que junta mais dois amigos, cuja sua entrada naquele refúgio de privilégio funcionará como ignição para o cataclismo.   

Esta primeira longa-metragem de Tiago R. Santos (argumentista de alguns filmes de António-Pedro Vasconcelos [“Call Girl”], Leonel Vieira [“O Leão da Estrela”] e Sérgio Graciano [“Perdidos”]), resume-se como uma representação da sua contemporaneidade, um projeto à imagem do seu tempo - os inícios da pandemia onde tudo era “pintado” de branco ou preto - o qual a distopia idealizada cumplicita com o cenário de perturbação social e com isso trazendo para o aquário uma burguesia conformista figurada no casal-protagonista (o qual somos introduzidos entre o calor de corpos que “se esfregam” num sofá de sala).  

Contudo, foi na limitação dos seus recursos que a “Revolta” encontra o seu mote de “know-how”, o de abraçar a sua escassez para extrair a criatividade, e não só. Convenhamos afirmar que os dois factores que sobressaem no filme são, respectivamente, as duas causas perpetuadas pelo realizador (agora emancipado como tal) neste seu percurso pelo panorama português; a priorização do guião e por sua vez o trabalho de atores, duas “qualidades” (as aspas servem no ‘goto’ do leitor, conforme seja a sua ideologia na abordagem a estas propriedades) que dão as “mãos” nesta entropia de relações.   

Por entre o “filme de cerco”, ou a “colisão entre egos”, este primo afastado de “Quem tem Medo de Virginia Woolf?” (equação de desastre em que “forças exteriores” perturbam a "harmonia" do casal) se apronta como uma obra de referências vistosas, incumbidas de trazer uma hipotética “revolução” para apresentar tópicos há muito desvanecidos no cinema português (a sátira em prol da divergência entre classes). Tiago R. Santos apela nesta sua história de catarses e epifanias altamente freudianas, um olhar pelo nosso umbiguismo existencial, pela relação sedentária para com o restante mundo e a distância com que olhamos para as mudanças em redor. Ricardo Pereira e Teresa Tavares interpretam esses seres “parasitários” à sua rotina, uma relação que “sugará” os outros dois peões, todos contribuindo com os seus fados, seja a deriva tempestuosa, seja a solidão disfarçada.   

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Se é óbvio que os calcanhares de Aquiles de primeira obra estão à vista (como fraturas expostas digamos) - desde as menções e as influências não devidamente embrulhadas (um erro em atribuir uma causa à “revolução exterior” o qual  se poderia ficar pela sugestão, notavelmente mais carpenteriano), até pelas quebras rítmicas que os diálogos ocasionalmente demonstram no seu arranque conflituoso - Tiago R. Santos não se camufla no anonimato, há uma vontade própria na sua câmara em dirigir-se naquele espaço, nem que seja a (re)criar uma ligação quase carnal para com Teresa Tavares (a atriz é facilmente destacada até porque inconscientemente o filme a torna no vector físico e emocional do turbilhão). 

No fim de contas, o exercício aliado à necessidade produtiva (sendo um filme rodado no auge da pandemia, contrariando o congelamento de produções e restrições sociais) funcionou, quer na prática e na teórica, como uma ideia executávelmente simples e, simultaneamente, propício a inúmeras interpretações. Através dessa simplicidade deparamos com uma fórmula vencedora que muitos (sobretudo os trovadores do “cinema para grande público”), até então, evitaram, sem razão alguma.