Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Nora Aunor (1953 - 2025)

Hugo Gomes, 14.05.25

MV5BYzQ4MGQ2ZjYtNjA4ZC00Yjc1LTlkNTMtYjZmMjg3MTcyMz

Thy Womb (2012), filme de Brillante Ma Mendoza, o último antes de cair por aí abaixo no miserabilismo ou nos dutertenismos, praticamente inédito em Portugal, salvo uma apresentação no IndieLisboa de 2013. Obra sobre fertilidades que respira como poucas; a vida, abundante, mesmo que apenas no vasto mar filipino, e Nora Aunor, parteira de ocasião, mulher de ventre seco, é a Gaia dessa harmonicidade.

Da sua expressividade à imponência da figura, nega o trágico da própria tragédia, altruísta, com o dever cravado em trazer vida a este mundo. Para além da naturalidade revelada nesse filme, voltaria a trabalhar com Mendoza no cataclismo porno-miséria de “Taklub” (2015).

Diz-se que era uma superestrela nas Filipinas, mas, pelo que vi em “Thy Womb”, foi uma deusa por instantes. Deixo a última minha vénia!

Dois cinéfilos, o Cunhal e Paulo Branco entram numa cervejaria ...

Hugo Gomes, 12.04.25

Thumbnail.png

Camarada Cunhal (Sérgio Graciano, 2025)

Mas porque é que continuamos com este formato? Já o fizemos em “Soares é Fixe”, e agora no ‘Cunhal’... Não consegues fazer algo mais convencional? O leitor vai-se aborrecer e o realizador ainda vai pensar que é perseguição.

Não te sei responder quanto ao último ponto. Talvez, prosseguindo o nosso diálogo anterior … o do ano passado, naquela cervejaria … sim, perseguição não diria, mas mantenho-me atento à sua carreira, como quase tudo o que se faz em matéria de cinema português.

Acho que tu arriscas... mas pronto, cá vai: 3, 2, 1... E então? Hoje foi o visionamento do “Camarada Cunhal”? Como foi?

Antes de te responder, vamos ali ao Pato Real. Tenho sede, e uma cevada vinha mesmo a calhar. Soube que arranjaste convite para a antestreia?

Foi... mas não é o filme que me interessa ver dele. Há um “Memórias do Cárcere” [adaptação do livro de Camilo Castelo Branco], novamente sob a alçada de Paulo Branco.

Sim, é um realizador diferente com Paulo Branco. Poderemos ver aqui uma improvável dupla. Os “Papéis do Inglês” é um filme claramente Paulo Branco, e de um Graciano sem malhas televisivas. Fez dessa colaboração o seu ‘comeback’, sem com isto se dignar a estar no fundo.

“Como assim? Achas que aquilo que ele tem feito é bom? O “Linhas de Sangue”?

Calma. Primeiro, e tendo em conta alguns episódios dos últimos tempos, sinto-me culpado por andar sempre a invocar o “Linhas de Sangue” para aqui e para ali. Descobri que há ‘gente’ arrependida de ter participado no filme.

Enquanto conversavam, os amigos saíam da porta da FCSH, atravessando diagonalmente a Avenida de Berna, ao encontro do tal Pato Real — nada mais que um restaurante-café, com uma máquina de imperiais a condizer com aquele calor primaveril que se fazia sentir. À chegada ao balcão, após o primeiro contacto visual com um dos empregados, um deles estica a mão, assinalando dois e apontando para a máquina. Entendido, o funcionário pega em dois copos de plástico reutilizáveis e enche-os com o elixir de cevada.

Não era possível arranjar em dois copos de vidro? Nós não vamos a lado nenhum.

Com isto, o rapaz transvasa o conteúdo dos copos para os respectivos copos compridos de imperial (ou fino, conforme a geografia), entregando-os aos amigos, que aguardam impacientemente para saciar a sede acumulada.

Isto do Pato Real, não é product placement?

“Talvez... até porque isto aconteceu.”

Sim, mas escusavas de mencionar o estabelecimento. No anterior não o fizeste.

Tens razão, mas agora já vou tarde para remediar.

Um gole sentido na bebida, uma breve careta ao contacto com o amargo da cerveja, e o diálogo continua…

Onde é que íamos?”

No Sérgio Graciano. Será que, com estas mudanças de tom perante outros projectos e as produções de Paulo Branco, ele se revela um realizador multifacetado ou um realizador sem convicção, que precisa de um produtor com forte visão autoral?

“Boa questão... mas para tua desilusão, não quero ainda avançar nisso. Deixa-me espreitar esse tal “Cárcere” que está agora a ser trabalhado.

E o ‘Cunhal’?

Queres a versão curta ou a mais expandida?

Começa pela curta... e grossa, se faz favor.

É uma nulidade. Agora, a longa?

Sim, se faz favor.”

Há duas formas de ver esse ‘filme’. A primeira é como conhecedor de Cunhal e do seu percurso de vida e político — e aí deparas-te com um ‘faz-de-conta’ para lá do amadorismo, com o seu lado pechisbeque visível em todas as costuras. E se não conheces Cunhal, não é aqui que vais aprender algo sobre ele. Primeiro, porque Cunhal não é uma personagem e, em reflexo com todas as outras, não tem um pingo de desenvolvimento, personalidade ou convicção. Por outro lado, e seguindo a lógica do "Soares é Fixe", é um amorfo apolitizado, que apenas repesca factos históricos e os trata não só como História morta, mas como defunto histórico — enterrado e de cerimónias fúnebres já realizadas. Depois, aquele Forte de Peniche, suposta prisão de alta segurança para presos políticos do Estado Novo... o que é aquilo? O Big Brother, com bullying de guardas ocasional?

Como assim?

É que qualquer miúdo de agora, cada vez mais distante do Estado Novo e da sua influência, olha para aquilo e vê ‘brandos costumes’ impregnados como lavagem. Depois admiram-se que haja abstração desse tempo. A culpa não é só dos saudosistas e negacionistas do 25 de Abril — os meios de comunicação... sim, porque "Camarada Cunhal’ é televisão, não é Cinema... — ajudam nesse efeito, propagando a ideia de que tudo aquilo foi uma estação que passou, trouxe alguns resfriados e depois deu lugar à Primavera.

Já não fizeram histórias do Cunhal para o Cinema? Havia um filme antigo, o...

"A Fuga" de Luís Filipe Rocha, sim, é baseado, não necessariamente regido à figura

Isso! Esse lembro que também tinha um lado de baixo orçamento, mas o ‘barato’ da altura parece caro nesta contemporaneidade.

É verdade. E ainda há um do João Botelho ainda por estrear ["O Jovem Cunhal"], e não te esqueças daquele filme ... o "Cinco Dias, Cinco Noites’". É de um livro escrito pelo próprio Cunhal

Sim, o do José Fonseca e Costa. Era um realizador muito interessante do nosso panorama, e não necessariamente daqueles com carreira internacional.”

Concordo. Fazia, entre aspas, cinema comercial, com a devida linguagem de Cinema. Era digno. "Cunhal", de Graciano, não o é. Aliás, novamente tocando na televisão: isto é produzido pela Skydreams… os de "Salgueiro Maia" e "Soares é Fixe" … e lembro-me bem, na altura, de uma entrevista de um dos produtores ao [Rui Pedro]Tendinha, no DN, a referir que a produtora é especializada em produtos para televisão, que depois é que decidem se lançam no cinema em formato ‘cinematográfico’...

Lá estás tu a fazer aspas com as mãos.” [risos]

“Claro, não quero ser mal-interpretado.”

Olha, eu verei esse "Memórias do Cárcere" e, claro, já com bilhete na mão, vou espreitar esse ‘Cunhal’, como prova dessa minha ‘tese’... repara nas minhas mãos, também consigo fazer aspas.” [risos]

Para o ‘Cunhal’ desejo-te boa sorte. O que estava a tentar dizer que é o ‘filme’ é a condensação de uma série ainda por estrear. Aliás, um dos meus colegas ficou indignado que o material promocional cedido pela distribuidora está cheio de imagens da série, ausentes da metragem que vimos no visionamento.

Mudando de assunto e ao mesmo tempo ficando nas “Linhas”, devo dizer-te que vi o ‘Infanticidas’ do Manuel Pureza. Sei o que escreveste, e posso garantir, contra o que disseste, que vejo em Pureza uma visão de Cinema. Vá lá, não sejas tão mau assim para os filmes.

Não acho que seja mau. Eu os vejo, não vejo?

Certo... tens razão.”

Thumbnail (1).png

Camarada Cunhal (Sérgio Graciano, 2025)

Na parede, um televisor transmite o noticiário da hora de almoço: Trump, Ucrânia, eleições — a actualidade ali condensada em meia dúzia de tópicos. Os amigos apreciam a cerveja quase no seu final de vida, em silêncio e com alguns olhares aos visores dos seus smartphones, em passagens breves pelo email e Instagram. Até que um deles interrompe o ritual com uma pergunta:

Hugo, diz-me só uma coisa... sou real?

Para ser sincero, neste momento és três pessoas numa só. És uma união de conversas que tive com essas três pessoas.

Então, como é que me chamo? Tenho de ter um nome, no caso de me invocares novamente.

Hmmm... bem pensado.”

Rui? Luís? Ricardo? Jorge? Rafael? Paulo? Duarte?

Mas porquê um homem... podes muito bem ser uma mulher.”

Inês? Susana? Mafalda? Filipa? Tânia? Francisca?

Pensando bem, vou chamar-te Sérgio...

Como o Graciano?

“Há mais Sérgios do que Gracianos. Fazemos assim … és Sérgio, não necessariamente Graciano.”

Muito bem... Sérgio. Gosto. Ao menos tenho um nome.

Brindaram ao nome Sérgio e, com este gesto, encerraram mais uma conversa sobre tudo, sobre nada e sobre Cinema. Talvez, noutro dia, se reencontrem para mais finos e bitaites. Por agora, bebem — e, com os olhos postos no Mundo transmissível, ditado pelo pivô do telejornal — reflectem sobre a Modernidade como uma incógnita, imprevisivelmente distante daquilo que o Cinema lhes tem entregue ultimamente.

Val Kilmer (1959 - 2025): uma estrela demasiado estrela para Hollywood

Hugo Gomes, 02.04.25

5qMjhxJciQ2o5wUfnfBFXxCLJIWmKi.jpg

Segundo a história, após um final CUT, Frankenheimer gritou: “Now get that bastard off my set”, dirigido a Val Kilmer, então uma vedeta reluzente, contagiado pelo próprio estrelato, que numa suposta adaptação de H.G. Wells [“The Island of Dr. Moreau”], em que seria o protagonista, auto-sabotou-se, relegando-se a secundário. Kilmer era assim: galã, rebelde, selvagem, autodestrutivo, os anos 90 poderiam ter sido o seu tapete vermelho, sobretudo depois de o seu cachê ter engrossado com o látex de “Batman Forever”, o que não se cumpriu, talvez por feitio, talvez pela tragédia que o dilacerou – um cancro na garganta. Hoje, o “wingman” mais famoso, o nosso “Iceman”, partiu. Mas, para além das ‘cutucadas’ com Tom Cruise, havia vida na sua arte, e numa Hollywood cada vez mais correta e disciplinada, recordamos a sua indisciplina e despedimo-nos, à memória do seu papel mais icónico (e, para mim, o seu mais convincente holofote), Jim Morrison em “The Doors”, um astro desintegrado por excesso de combustão.

Cinema português sempre com uma corda ao pescoço

Hugo Gomes, 23.03.25

descarregar.jpg

As causas! Há sempre um apuramento de causas quando se fala do cinema português e das suas bilheteiras. Normalmente, como já vi nos enésimos Encontros promovidos pela NOS (aqueles debates após a corrente de pitchings são para mim traumas de guerra), a culpa recai sempre sobre os filmes. Os espectadores, esses, passam incólumes pelos pingos da chuva, mesmo quando carregam o preconceito ao colo disfarçado de "exigência". Enquanto isso, gastam alegremente os seus euros para assistir a algumas das maiores 'porcarias' saídas de Hollywood.

Como Botelho dizia num livro da autoria de João Mário Grilo ("O Cinema da Não-Ilusão"), e tal ficou-me — "patetice por patetice, mais vale os americanos, que são patetas grandes". Há uns dias, um colega meu, ao ter conhecimento que fui o único a ver e a escrever sobre "Os Infanticidas", de Manuel Pureza, alertou-me para a “bilheteira miserável” que o filme tinha angariado. Fui confirmar nos dados do ICA e até à data, sublinha-se, apenas 70 espectadores viram-no numa sala de cinema. Este desabafo não é sobre qualidade ou quantidade, mas sobre a estratégia, principalmente da NOS em "promover" o cinema nacional que distribui que desde os tempos de COVID naquele infame comboio de estreias a despachar, não resulta e torna-se altamente desrespeitoso para com a obra em si. E sobre os seus artesãos, convencidos de que grandes distribuições os irão alavancar ... apenas puro engodo.

Deixo, portanto, um conselho direto (mas em vão, sou um simples crítico contra uma máquina oleado e conformistas) a produtores, realizadores e outros profissionais para procurar outras e mais pequenas distribuidoras, muitas vezes compromentem-se com um trabalho de promoção e de boca-a-boca bem mais eficaz, e talvez direcionem os vossos projetos para públicos que fogem ao banalíssimo na sua sua fronte de vida enquanto espectador de Cinema, e manifestam maior proximidade com o projeto. Fica a dica para quem não a quer; produtores, realizadores e outros, procurem outros parceiros ... já que o público e as suas certezas são mais difíceis de mudar. 

Figuras provisórias que devemos escutar ...

Hugo Gomes, 19.03.25

onfalling-website-11zon17522e4edefaultlarge_1024.j

Há outro tipo de trabalho da psique com o qual Laura Carreira lida nesta relação trabalho-trabalhador, diferenciando-se do catálogo citado sem prudências - "Listen" e "Great Yarmouth" em português, Ken Loach em inglês - e a fabulosa cena da "entrevista de emprego" é exemplo disso, de como perdemos a nossa individualidade para cumprir um mau sonho capitalista ou, neste caso, algo que já ultrapassou essa ideia de sistema. Joana Santos, com grande garra, mostra ao que veio!

"On Falling " estreia dia 27 de Março.

Em Almería, caçando "Leones", vi o meu reflexo ...

Hugo Gomes, 13.03.25

almeria.jpeg

A cinefilia, ainda que por vezes (erradamente) associada a um certo snobismo ou hermetismo, não é, na sua definição mais pura, senão “amor ao cinema”, e há um traço comum em todas as suas vertentes: o sacrifício pessoal, quase obsessivo, pelo objeto amado. “A Almería de Leone” é, em todos os aspetos, fruto dessa devoção. Paulo César Fajardo, que por entre ensaios etnográficos e das invasões napoleónicas, é conhecido no meio por ser um dos anfitriões do podcast V.H.S. - o mais antigo do género em Portugal - partiu numa viagem familiar pelos cenários, alguns ainda intactos, outros modificados e muitos já desintegrados no tempo, da Almería, mais concretamente do Deserto de Tabernas, em busca de um claro fantasma.

Esse fantasma que o persegue desde os seus verdes anos e que se dá pelo nome Sergio Leone. O próprio Fajardo confirma que, ao longo desta digressão por saloons imaginários e pontes destroçadas, não detinha qualquer intenção de construir um filme, e sim, o de apenas alimentar o desejo intenso de pisar o solo que manufaturou os seus sonhos. E fê-lo, carregado de frames dos seus westerns spaghetti, esse subgénero exploitation e, até certo ponto, “baratucho”, que Leone alimentou e fundamentalizou. Sobrepôs as imagens naturais da paisagem às dos filmes, numa espécie de reverência (e referência) visual. As férias de família acabaram por formar uma ‘coisa’ que supostamente estenderia o universo VHS, talvez para cair no mar digital do YouTube, até que alguém - ou vários - solicitaram o grande ecrã. Assim, “A Almería de Leone” embebeu-se da graça da tela e da sala de projeção (chegando a contar com uma antestreia na Cinemateca de Lisboa). O filme evidencia um lado amador, mas aqui essa condição funciona como faca de dois gumes: “amador” lê-se “aquele que ama”, e Fajardo, indiscutivelmente, ama Leone acima de todos os signos. Isso torna-se evidente na narração, que o próprio conduz ao longo do percurso, ora polvilhada de curiosidades, ora preenchida com uma cronologia exaustiva de entrevistas, segmentos, trivia e sofisticações trazidas pelo cineasta (sempre no acompanhamento da banda-sonora de João Francisco), por outro lado, fica demasiado preso aos adjetivos absolutistas … talvez seja a paixão a falar mais alto, o bom, o mau, e o seu vilão como tal.

1-Paulo-Fajardo-o.jpg

Paulo César Fajardo no Cine Clube de Arouca, após a apresentação do filme / Fonte.: Roda Viva - Jornal fo Concelho de Arouca

Com a “Trilogia dos Dólares” (1964 - 1966) no coração e espaço, especial sublinha-se, reservado para “C'era una volta il West” (1968), há um mini-ensaio particularmente belo aqui cativado: quando Jill, personificada por Claudia Cardinale, sai da estação de comboios, uma grua eleva a câmara, revelando a cidade pré-fabricada no deserto num travelling vertical. Fajardo mimetiza esse movimento com um drone, enquanto a música de Morricone nunca descose da transição - momento único de belo coito cinéfilo. Segue-se a vibração quase pueril perante a grandiosidade de “Giù la testa” (“Duck, You Sucker”, 1971) e, por fim, o lamento por “Once Upon a Time in America” (1984), o filme no qual Leone trabalhou durante 12 anos, apenas para ser retalhado pelo estúdio numa versão reduzida, pronta a servir a um público apressado. Pouco tempo depois, o seu maestro morre. Fajardo visita o seu túmulo numa espécie de epílogo meta, a conclusão natural desta sua peregrinação “religiosa”. 

O que deixa para trás é um objeto de amor, com alguma pretensão de ser um ensaio sobre o autor, mas sem nunca se desprender da sua declaração romântica. O Cinema, neste caso Leone, é vingado, segundo a sua perspetiva, clarificado como padroeiro. Quando há amor, há Cinema, e, por sua vez, Cinefilia. Esse desígnio, ou maldição, como alguns preferem chamar-lhe.

Anora, mon amour, a noite foi tua ... mas a que custo?

Hugo Gomes, 03.03.25

97th-academy-awards-press-room-34218951.webp

Começo pelo fim, como habitualmente faço ao encerrar esta conversa: “Acabaram os Óscares, voltemos ao cinema.” Com mais uma noite no Kodak Theatre, o cinema ficou-se pelo glamour que muitos ousam sonhar. O clube restrito está fechado, só entra com convite.

Pausemos o cinismo da passadeira vermelha e a feira das novidades por um momento, e encaremos a lista de premiações ao de leve: as hipóteses de Fernanda Torres vencer a estatueta – mesmo com “Ainda Estou Aqui” consagrado como Melhor Filme Internacional, batendo “Emilia Perez”, um musical de ódios e montra de certo virtuosismo ocidental (um dia gostaria de esmiuçar esse exercício de mediocridade de Audiard, mas o backlash generalizado fez-me ter pena) – e o Brasil levar o ouro para casa, foram esmagadas pelo sangue novo injetado por Mikey Madison, a jovem atriz pode contar com “Anora”, o grande vencedor da noite, como, e talvez, o ponto mais alto da sua carreira. Mas, em relação aos Óscares, prefiro vê-los como através de uma bola de cristal – e a sua vidência traz pistas sobre o pensamento corrente da Academia e a relação desta com um mundo em metamorfose. “Anora” não representa o melhor da produção global, mas talvez o melhor encantado pela indústria americana, e, pelos vistos, os votantes dão cada vez mais valor à chancela externa, com a Palma de Ouro a brilhar-lhes na face.

Sobre este vencedor, algo me inquieta: ver Sean Baker laureado como Melhor Realizador e o seu filme a erguer o troféu máximo faz-me prever um adeus ao autor de cinema independente. O que virá daqui? A maldição do Óscar fará efeito sobre Baker? O seu cinema industrializar-se-á? Quanto à jornada da stripper no “País das Maravilhas”, leio-a como uma abstração do sonho americano, e o sexo, esse elemento cada vez mais entortecido pelo puritanismo yankee e pelos moralismos aí enraizados, surge aqui sem condescendência, e sim como um contacto possível num tempo em que nos tornamos cada vez mais distantes uns dos outros. O final do filme prova essa tese – um dos mais tristemente belos que os EUA desencalharam em 2024.

Já o fantasma de “Emilia Perez" fez-se sentir nos prémios: Zoe Saldana venceu a previsível categoria de Atriz Secundária com o seu mau espanhol, “El Mal" levou Melhor Canção. “The Brutalist" pagou o preço das denúncias sobre o uso de IA, mas as consequências foram amenizadas: Adrien Brody conseguiu o seu segundo Óscar, ainda levou Melhor Fotografia e Banda Sonora (merecidíssimo). Rory Culkin, sem surpresas, venceu Ator Secundário graças ao seu papel co-protagonista em “Real Pain”.

No Other Land” levou Documentário, “Flow” brilhou em Animação, enquanto The Substance” e “The Wicked” saíram como os grandes derrotados. Os Óscares foram, por fim, uma disputa renhida, mas a ameaça de uma Hollywood MAGA-friendly pode colocar estes prémios em xeque num futuro próximo.

A ver vamos… Por enquanto, “Anora” brilhou!

Uma força maior à escala de Gene Hackman (1930 - 2025)

Hugo Gomes, 27.02.25

john-herod-2.jpg

The Quick and the Dead (Sam Raimi, 1995)

The-Conversation.jpg

The Conversation (Francis Ford Coppola, 1974)

MV5BNDc3NmM4ZTEtNjExNy00NGZhLWIxYjctYTljNTAwMGFjOD

The Firm (Sydney Pollack, 1993)

thumb_65F135D9-C7A5-4FB5-8757-792AF20481E8.jpg

The French Connection (William Friedkin, 1971)

d7da1b30-6f65-11ef-9274-898a88078355.jpg

Com Christopher Reeve em "Superman" (Richard Donner, 1978)

e7wDDJZfJiH4jGCLpOUQMs-4BB7uTZ1vM33xOvFXQaE.webp

Unforgiven (Clint Eastwood, 1992)

À semelhança de Sean Connery, Gene Hackman retirou-se das nossas vistas após um derradeiro filme que envergonharia os céus, um final indigno de uma carreira longa e duradoura. Anos e anos na discrição, pairando como um lembrete de que Hollywood albergara uma força estelar, hoje em longo processo de renovação — ou quiçá de extinção, e tal como o mencionado actor, o retorno de Hackman era uma incógnita quase sebastiana; cruzavam-se os dedos por um eventual “comeback”, por um último trabalhador merecedor do seu legado, o qual nunca chegou a acontecer. "Welcome to Mooseport" ficou com esse título, mas dele esquecemos, porque a “pegada” de Hackman foi muito maior do que qualquer nódoa no seu final de carreira. O incorruptível, o infiltrado, o mais ameaçador dos vilões e o mais fanfarrão também, o tigre da Malásia de colarinho branco, o último veterano, o eterno cowboy. Hoje, perante a sua despedida — esperada, não apenas do cinema, mas do mundo — recordar Hackman é recordar um prestígio em tela, uma galeria de filmes que, à sua maneira, marcaram Hollywood, a indústria e os espectadores. Fica a minha vénia a um gigante.

al-pacino-and-gene-hackman-in-scarecrow.jpg

Com Al Pacino em "Scarecrow" (Jerry Schatzberg, 1973)

royal-tenenbaums-gene-hackman.jpg

The Royal Tenenbaums (Wes Anderson, 2001)

mississippi_burning_gene_hackman.jpg

Mississippi Burning (Alan Parker, 1988)

MV5BMjg3ZWEwNGMtZmU4NS00ODIzLTg5ZWQtOTE4MzFhYzhjZj

Ao lado de Rhys Ifans em "The Replacements" (Howard Deutch, 2000)

unnamed.jpg

Uncommon Valor (Ted Kotcheff, 1983)

MV5BY2Q4YjhkYWItMmY5MC00ZTA3LWIzODktYjkwYThkYTZmMj

Twilight (Robert Benton, 1998)

Empatia!! Somente histórias de empatia!

Hugo Gomes, 11.02.25

sing-sing-filme-1.jpg

We here to become human again, to put on nice clothes and dance around and enjoy the things that is not in our reality."

Histórias de empatia! Por entre galões de um lado da mesa e imperiais do outro, no bar da Cinemateca falou-se de trivialidades, assuntos privados ou opiniões avulsas. Entre um gole e um bitaite fresco, a empatia surge inesperadamente como tema. Daí para sensibilidades, emoções ou “fraquezas” (como quiserem chamar), a conversa converge para um único ponto: um filme, para sermos concretos — “Sing Sing”, de Greg Kwedar.

Filme de Óscar sem presença na crucial eleição dos 10 finalistas: culpa-se o calendário da temporada de prémios ou a lógica do lobby como persuasão, mas a verdade é que Colman Domingo lá está representado com a interpretação (além de mais duas nomeações, argumento adaptado e canção), até porque ele é o ator no meio de não-atores, um peixe em correntes imprevisíveis que nada numa fluidez danada. Já os restantes — os chamados "não-atores" (ou atores não-profissionais, como alguns preferem dizer, recuperando a velha máxima de que qualquer um pode atuar) — são farpas aguçadas no coração deste filme anti-cárcere, são autenticidade que desfazem qualquer fantasia imposta nessas latitudes.

Construído com base dessas experiências, empíricas até (daí o argumento adaptado], e focando no programa de reabilitação por via das artes performativas, teatro lê-se e vê-se, “Sing Sing” é todo ele uma entrega à arte como segunda oportunidade — um molde para homens clandestinos ou aprisionados na sua própria violência, que encontram libertação no escapismo curador deste voluntarismo. Domingo, por sua vez, voluntaria-se para entrar na prisão (na sua essência e não somente a sua geografia) com estes ex-reclusos (no filme encenam as suas vidas passadas entre grandes na dita prisão de alta segurança que aufere título à película) e encaixa-se nessa visão cercada sem induzir e preencher o filme nos rodriguinhos do seu subgénero de cativeiro, a agressividade, essa fica-se na sugestão dos relatos, nos olhares de perdão ou até no “faz-de-conta” da peça dentro da peça - mixórdia de temáticas com viagem temporais e mil e um géneros a dar conta (e Hamlet no meio).

open-uri20250109-56-kict8r.webp

Greg Kwedar, realizador ainda discreto, homem invulgar para estabelecer esse vínculo para com a emoção bruta trazida, e por vezes ocultada destes agentes da pacificação espiritual, exerce um filme como igualmente um exercício performativo, indiciando no seu experimento a sua capacidade de cura. De um cinema independente que fala a língua dos Homens sem recorrer à fabulação insuflada (celebra-se a aproximação ao docudrama), nem ao conforto de uma narrativa massajada de um público-expandido. Funciona, por vezes, contra si mesmo, por ser uma história profundamente masculina, carregada de semiótica e gíria desse universo, podendo intuitivamente afastar os que clamam por igualdade nos gazes (olhares). Mas por não seguir essas ordens / diretrizes de mercado, o torna - e os últimos momentos são prova de uma riqueza pura de fragrâncias autenticadas -, “Sing Sing” em algo à parte das habituais promessas desse cinema adulto americano. Numa secura fingida, mexe no coração — a qual América de hoje carece disso. Empatia!

Brindamos de forma desigual os copos — lácteo de um lado da fronteira, cevada na oposição — mas o acordo estava traçado. A empatia uniu aquela mesa, àquele filme, precioso e pequeno filme sublinho por baixo …

 

One faith but you don't see

Search for peace but no one speaks

Burn a bridge to light my way

Climb the tree before I called you the victim

Heaven and evil, caught in the middle

Someone set me free, be wind beneath my wings

  • “Like a Bird”, Adrian Quesada e Abraham Alexander (música da banda-sonora “Sing Sing”, nomeado ao Óscar de Melhor Canção Original)