“Que Mulheres serão estas?”: a questão que vira sessão de curtas sobre mulheres ... e que mulheres!
“Que mulheres serão estas?”, a pergunta que se faz de título, e o título que se faz de pergunta, talvez na persistência do dilema do que é uma mulher, e o que se faz para ser mulher. Decretos feministas, portanto, mas mais que isso, é a vontade de esmiuçar um género, ou além disso uma identidade, a partida dela nasce a iniciativa cinematográfica, três curtas portuguesas para fazer jus à tendência que desejamos tornar tradição. Essas sessões triplas, três produções cada uma delas oriundas de uma diferente produtora, cada uma correspondendo a uma visão e a uma definição própria de mulher. “Que Mulheres Serão Estas?” a questão que vira sessão.
As Sacrificadas
Seguimos à tradicional e à sacrificada se não fosse esse também o título deste projecto - “As Sacrificadas” - sobre martires e forças, segundo se crê sobrenaturais, que o sexo feminino parece apresentar, neste caso a Otília (Tânia Alves), dividida entre o trabalho, em ser cuidadora da sua mãe e ainda, sob a ameaça dos fogos estivais. Uma curta que chega-nos ao circuito comercial com sabor de zeitgeist, um drama que borboleteia por esses temas e que revela “mão firme” de Aurélie Oliveira Pernet. Contudo, é um filme ausente, pertinentemente e perversamente, do seu lado incendiário. Entende-se a sensação de drama semi-rural enclausurado (mas sem fascínio algum para com esse meio), continuamente fechado a esta mulher de força avassaladora, e em consequência, cada vez mais apagada enquanto identidade, a tradicional e igualmente oprimida, nem que seja pelos códigos estabelecidos sociais, a da mulher, e aí está, sacrificada em prol de outros.
By Flávio
Depois segue a emancipação de uma outra mulher “aprisionada”, e não por menos desprezada, Márcia (Ana Vilaça), uma experiente em questões de redes sociais, sendo esse o seu escape, contrariamente condenatório à sua persona. Jovem, solteira e mãe, e com um pouco de inconsequência pelo meio, ela é, à partida, olhada de vesga pelos restantes, a irresponsável vista à lupa da tal sociedade que ordena e julga. “By Flávio”, curta de Pedro Cabeleira, uma das grandes ‘promessas’ do cinema português o qual não canso de insistir (basta conferir “Verão Danado”), trabalha aqui um filme sobre duplas vidas e de duplos desejos, com humor ácido e estéticas embebidas numa artificialização da fantasia pop. É um gag prolongado sobre as ditaduras visuais e aquilo que se prende nos “padrões socialmente seduzidos” do que é uma “mulher de descarte”. Vista as ‘coisas’ é uma emancipação feminina, da improvável, a suposta que “não vale um chavo”, corpo acima do resto, contra as convenções que a aprisiona. No final - “Sou eu e a puta da shotgun” - o grito de guerra da luta de quem por direito anseia uma nova feminilidade.
Um Caroço de Abacate
Já a terceira e última curta - “Um Caroço de Abacate” - de Ary Zara (cuja história da sua transpassagem encontra-se presente no documentário “Ary” de Daniela Guerra), lida com uma sombra preconceituosa, a do fetiche inicialmente, aqui representado por Ivo Canelas, homem cis que sente o fascinio pelo mundo de Gaya de Medeiros, aqui como mulher trans e prostituta, que numa certa noite decide mostrar-lhe um caminho alternativo ao lascivo da fantasia oculta. Das três é a historieta mais arriscada, até porque “puxa o tapete e sacode o pó” dela em temas e dilemas que numa sociedade ainda presentemente conservadora tende em negar, e curiosamente, o filme de Zara poderia funcionar nesse panfleto do que é mulher ou não é mulher, as fronteiras da identidade com o seu género, e agressão ao conceito de cisgenero e heteronormatividade. Poderia … mas para quem viu “Ary” apercebe que da sua experiência o ativismo é humano, é sentido, daí “Um Caroço de Abacate” jogar com o seu maior trunfo, a sua delicadeza e carinho para com as suas personagens, deixa de lado o discurso demolidor e transgressivo e se concentra num episódio “After Hours” com “Before the Sunset”, sem malapatas e nem romances acima da carne, apenas dois indivíduos de traços quase almodovarianos partilhando um mundo, uma dança, e uma expectativa. Empatia sobretudo, é a arma de guerra de Ary Zara, e nesse sentido faz mais pelas supostas “causas” que muitos irão realçar do que os verdadeiros “filmes de causa”. Somos humanos, e é o que importa, o resto é “conversa de tesão”.