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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O "bom" populista?

Hugo Gomes, 31.03.23

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Após a saída do visionamento de imprensa de “La Straneza”, decidi rever aquele que é possivelmente mais interessante dos filmes de Roberto Andó, realizador italiano de altos e baixos, mas que se mantém coerentemente numa certa tradição de crónica política. O filme em questão intitula-se “Viva La Libertà”, apresentado em 2013 (e com honras de abrir a Festa do Cinema Italiano do seguinte ano), era na altura vista como uma comédia de farsas e dotado de tamanha ingenuidade, porém, esse dito lado inocente adquiriu ao longo destes anos um outro tom, até porque “populismo” entrou fortemente no nosso vocabulário e hoje é uma reflexão sem causa nem efeito.

Viva La Libertà" aposta numa dupla interpretação de Toni Servillo (o ator celebrado sob a luz de Paolo Sorrentino, e que pouco a pouco se lançava em projetos díspares a esse mesmo universo, muitas vezes trazendo resquícios destes consigo), aqui encabeça gémeos, de um lado, um líder político vencido por uma crise existencial, e por outro, um filósofo delirante recém-saído de um hospício. Quando o primeiro “desaparece”, possivelmente em “busca” da sua “Grande Beleza”, o segundo toma o seu lugar, e a sua imprevisível natureza eleva o seu partido, anteriormente em estado de decadência, num dos fortes candidatos a governo em Itália. Isto porque o "irmão louco” faz política de afetos, de “verdades” e lança de cabeça para a consensualidade do seu eleitor e não o oposto, aqui abandona a ideologia e disfarça esse vazio com o “bem da vontade do povo-freguês". Digamos que por aqui paira uma certa sombra à lá Silvio Berlusconi (curiosamente, Servillo iria ser o incontornável ministro numa falsa-biopic assinado pelo seu "compincha" Sorrentino, em 2018), nessa jogada politizada de aproximação com as populações, recorrendo à incoerência discursiva equivalendo-a gestos humanizados e identificadores.

Ao sabor da sua estreia, “Viva la Libertà” seria encarado como um exercício recorrente à velha fórmula de “troca de papéis" sob um cenário de política (o equivalente italiano e menos simplista de “Dave” de Ivan Reitman), onde facilmente caímos que "nem tordos" na valsa do impostor. Hoje, com tantos peões populistas a acenarem à liderança da contemporaneidade do discurso político, prometendo fundos e mundos em diálogos vazios, aquelas “verdades” que muitos juram ouvir e que não passam de delírios provenientes de um “povo” cansado dos mesmos truques, acabando por “cair” em outros velhos truques, "lobos em vestes de cordeiro". Contudo, talvez influenciado por estas mudanças repentinas na esfera política, Roberto Andó inconscientemente incentivou o debate: será que existem bons populistas, ou tudo se resumo no fruto das nossas próprias convicções?

A crítica em marcha de retirada

Hugo Gomes, 25.03.23

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That’s what a critic is, not necessarily an expert or an authority, but a companion.A.O. Scott

Para muitos estes são os sinais do tempo, para outros as mudanças que vêm para ficar, sendo triste que tudo culmine numa gradual extinção de um cargo, ou mais que isso, num ofício de arte. Tenho debatido, quase incansavelmente, sobre o futuro e a possível natureza resiliente da crítica de cinema, e alguns e defensáveis gestos do qual proponho são ocasionalmente (vá, maioritariamente) incompreendidos como atos radicais (por exemplo, encaro as ‘estrelas’ e as respectivas pontuações como “cancros” e condicionadores do pensamento nesta forma). 

Entretanto, um dos veteranos críticos, A.O. Scott da The New York Times, decidiu abandonar o posto após 20 anos de ativo, e para justificar a sua determinada evasão, a plataforma lança este áudio [conversa preparada, digamos assim] em que explica os fatores que o motivaram a tal cisão. Entre eles, como é de esperar, a transformação do cinema “americano”, com a dominância de “franchises” (Marvel e Disney no centro das culpas, e não é por menos) e a "relevância" cultural ao streaming, como também o divorcio entre público e o Cinema propriamente dita, assim como zombies denominados de “fandom”, pouco democráticos por sinal. Há tanto por onde seguir e refletir, em Portugal, o que “resta” na imprensa especializada encontram-se nos seus “dias contados”, por exemplo, através da cobertura do último Festival de Berlim, no geral fraca, desinteressada em descobertas, ora por culpa dos órgãos que pouco espaço dão a este tipo de matérias, ora por responder a “interesses externos”, poderá ser servido como prova da “tese”. 

Saí do meio “especializado”, porque senti essa pressão, esse desinteresse, e de forma a não perder-me na “vulgarização” ou despersonalização decretei a minha "evacuação". Nesta minha experiência, o que percebi é que ninguém quer saber de Cinema, apenas os regentes "tentáculos" do seu marketing, e desta forma a reprodução e reprodução dos mesmos conteúdos. Encontro isso nos outros “órgãos”, cada um refém desses mesmos fatores.  São dores que parecem não interessar ao comum dos mortais (pudera, existe outros problemas mais importantes, dirão a maioria) e por vezes “falo sozinho” como alternativa em não aguentar as infelizes declarações de que a crítica de cinema serve exclusivamente “para levar as pessoas ao cinema” (não, simplesmente não, é mais que isso). 

A.O. Scott resumiu em 40 minutos de conversa esses Pecados, tão provenientes da crítica americana que se tem alastrado pelo resto do Mundo, e durante esse tempo confortei-me, por momentos, numa companhia agridoce. Não estou sozinho, apesar de constantemente sentir que estou a falar para o “boneco”.

Para ouvir aqui

Tudo em todo o lado ao mesmo tempo ... menos no cinema!

Hugo Gomes, 21.03.23

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Acredito na existência do grande ecrã, e com isso a defesa de que qualquer filme, indiferente da sua qualidade, merece o seu holofote, a projeção na tão adequada sala de cinema. Assim sendo, a “fava” calhou a Sam Mendes, que desde “American Beauty”, foram consecutivos filmes seus a conquistarem o seu habitat natural [o cinema], até mesmo os mais “pequenos” [“Away we Go”, que olhando em retrospectiva é seja talvez dos seus mais bem sucedidos]. Ironicamente, é com “Empire of Light”, uma obra sobre o Cinema enquanto sala e da “magia” emanada desta, a alcançar meramente o rastilho do desigual mercado VOD. Poderemos conformar com argumentos comerciais em avaliação de imensos factores, porém, é com tais pretextos que questionamos o lugar de quem garante a viabilidade dos títulos para sala comercial e de quem decide o seu destino, usando “videntismo” quanto à sua performance financeira? Se é bem verdade que “Empire of Light” não contém traços que o identificam como um “arrasa-quarteirões” no prisma português (nem no resto do mundo), também seria matreiro duvidar a sua potencialidade numa sala. Acredito até que faria mais ‘dinheiro’ do que alguns dos nomeados aos Óscares

Falando em Óscares, um fantasma sobretudo, aqui enquanto ponto falhado para Sam Mendes, que era visto como uma espécie de “darling” da Academia, e é fora dessa luz [uma nomeação, e somente a de Fotografia para Roger Deakins] que “Empire of Light” se apresenta a nós como um “patinho feio” na filmografia do realizador. Digamos, quase … Ambientado na Inglaterra da década de 80, este é um filme servido na segurança das suas ambições. “Oscar Bait”, como muitos acusam e com alguma razão, até porque “cartas de amor” ao Cinema soam manientos truques hoje em dia, mais, sabendo que Mendes não demonstra qualquer afeição por este “universo”, nem acena ao classicismo (até porque nunca fora desse registo) nem à memória cinéfila. 

É, como a personagem de Olivia Colman [a protagonista], que solicita ao projecionista do seu “Império” - “Eu quero ver um filme” - como se fosse a primeira vez. Mas não encontramos fascínio nos olhos de Colman, refletindo o pouco carinho de Mendes pelo legado, o que fizera (ao contrário de Spielberg e o seu The Fabelmans ou de maneira mais cínica, sem descartar o seu preito, Damien Chazelle) foi uma bandeja para agradar quem no Cinema não vê a sua espiritualidade, a sua transformação, terreno para lá do exibido na “parede”. 

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O “Império” desaba antes sequer de ser um. A artificialidade impera como seu Imperador, sintético e pintado na agressividade das suas luminosidades, as cores confundem-se no brilho do esplendor e da suposta magnificência, um “Edward Hopper” a deparar-se na luz a sua positividade (ou tragédia quotidiana filtrada). “Empire of Light” é tão reluzente que chega a ferir os olhos, literalmente e igualmente figurado, ostentando uma narrativa atabalhoada, de agendas encavalitadas em outras agendas de forma a conquistar o público desta contemporaneidade. Fala de saúde mental, xenofobia, racismo, meritocracia, privilégio, classes sociais, assédio sexual como laboral, misoginia, temáticas servidas como breves “snacks”, e o Cinema permanecendo em segundo plano ao longo deste cenário comunitário (Spielberg, por exemplo, usou o Cinema como via de relacionar-se com a família e Chazelle para incutir nela uma memória histórica). Nem sequer acompanha as tais tarefas hercúleas, repostas em tão pouco tempo. Desta forma, a vertente cinematográfica, a sala, a projeção e o espectador, o embalo que esse território que desejamos identificar, é somente relembrado enquanto epifania, como cura de algo, como na referida sequência.

E é aí que acontece o seu grande Pecado: no preciso momento em que o Cinema é tratado como medicinal, automaticamente deixa ser um “espelho" para as nossas vidas e assume como um produto com prescrição, para um determinado uso e um dito propósito. E a cinefilia é toda uma paixão, não-correspondida por sinal, não um abuso de Poder. Sam Mendes abusou do Cinema para um objetivo apenas, e não o de criar novos laços. 

Todavia, nada disso impede que “Empire of Light” não mereça a sua devoção no devido lugar, ao invés disso é olhar para uma suposta fábula sobre Cinema no conforto do Lar. Só eu é que vejo alarmante este gesto?

Curtas, curtinhas, a origem: 1ª edição dos Prémios Curtas

Hugo Gomes, 13.03.23

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Os premiados e os jurados / Fotografia.: Ricardo Fangueiro

Foi através de uma curta que Portugal desbravou caminho em direção à Kodak Theater, a nomeação à tão cobiçada estatueta norte-americana automaticamente entrou para a História audiovisual do nosso país, e então porquê de estarmos constantemente a reduzi-los a "protótipos" de futuras longas-metragens?

André Marques teve um sonho, criar uma cerimónia de festividades, premiações e de comunhão a esse universo bem português, a resistência do Cinema na sua mais natural essência, a simples e de rápida dicção, a curta. Para isso juntou oito magníficos* e fundou um júri, aliciou e arrecadou apoios, e “convidou” a todos os participantes a inscrever o seu trabalho. A sua vontade fez com que o seu desejo se materializasse. No passado dia 10 de março, sexta-feira nervosa devido à nomeação de “Ice Merchants”, cujos Óscares seriam revelados no domingo seguinte (“será desta?” pensavam todos os que presentes), o Auditório Fernando Pessa em Lisboa encheu-se (deve-se sublinhar), para receber a primeira edição, modesta, ainda com o seu quê de improviso, muitas vezes ocultado graças ao malabarismo e carisma de Rui Alves de Sousa, radialista da Antena 1, que assumia o papel de anfitrião. Intercalado pela dita premiação e pela projeção de três curtas referentes aos três géneros-base (ficção, documentário e animação), a cerimónia ficou marcada pelas promessas do seu fundador, ambicionando seguintes edições em maior escala e a ambição de um “microfestival” em celebração daquilo que a curta-metragem tão bem representa - o Cinema, aqui e agora.   

Quanto à premiação, a noite consagrou “Azul” de Ágata de Pinho com cinco prémios, no qual incluem as categorias de Curta de Ficção, Realização, Argumento, Atriz (também Pinho) e Fotografia (assinado por Leonor Teles). “O Homem do Lixo” de Laura Gonçalves arrecada três distinções (Curta de Animação, Curta Documental, Banda-Sonora), igualando com “Punkada” de Gonçalo Barata Ferreira (Montagem, Caracterização, Guarda-Roupa). Os outros prémios; Vítor Norte recebe o de Melhor Ator (“O Caso Coutinho” de Luís Alves), Nuno Nolasco como Ator Secundário (“Tornar-se um Homem na Idade Média” de Pedro Neves Marques), Rita Tristão na categoria de Atriz Secundária (“As Feras” de Paulo André Ferreira), Rodrigo Manaia em Interpretação Infantil (“By Flavio” de Pedro Cabeleira), e ainda a animação “Garrano” de David Doutel e Vasco Sá no campo dos Som / Efeitos Sonoros juntamente com a ‘dobradinha’ de “2020: Odisseia no 3.º Esquerdo” de Ricardo Leite (Direção Artística, Efeitos Visuais).

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Rui Alves Sousa e eu / Foto.: Ricardo Fangueiro

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Vítor Norte brama ao Cinema após vencer o Prémio de Ator / Foto.: Ricardo Fangueiro

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André Marques, fundador do evento, discursa / Foto.: Ricardo Fangueiro

*Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger do Hoje Vi(Vi) um Filme), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico e fundador do Fio Condutor) e André Pereira (videografo e editor de vídeo da Renascença).

Óscares para tudo e para todos, em todos os lugares, menos para Portugal

Hugo Gomes, 13.03.23

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Everything Everywhere All at Once” saiu-se, de alguma forma previsível, como o grande triunfante na noite de entrega dos Óscares. O estranho e filme de culto da A24 assinado pela dupla Daniels levou para casa 7 prémios incluindo os de Melhor Filme, Realizador, Atriz Principal, Atriz Secundária e Ator Secundário. É a possível abertura da Academia a estes filmes tresloucados que apenas viriam os prémios por “canudo”, contudo, mudanças feitas e tendo em conta o vencedor do ano passado (que já ninguém se lembra, e que na pior das hipóteses escancarou ‘portas’ para o streaming) é uma melhoria, venceu o Cinema, mesmo que não seja o “nosso” ou o “vosso” Cinema, porque de resto, bem, Óscares são Óscares, valem o que valem. Nessas narrativas são ‘sonhos’ a serem concretizados, bastou ouvir Ke Huy Quan no seu discurso oscarizado [um dos mais emocionados na história dos prémios] para perceber que aquele momento era o momento em que se atinge o conceito “sonho americano”, até Jamie Lee Curtis o chegou, de estatueta na mão. Uma imagem improvável para quem sempre fora entendida como a atriz do “Halloween” e outros slashers

Só que não foi desta que o “sonho americano” chegou a Portugal. “Ice Merchants” ficou pelo caminho, vencido pela produção de J.J. Abrams - “The Boy, the Mole, the Fox and the Horse”, de Peter Baynton e Charlie Mackesy - adaptação de um popular livro de Charlie Mackesy, com o selo BBC e Apple, cujos seus fragmentos tornaram-se virais no Tik Tok, um conjunto de elementos que reforçam esse néctar premiável, o lobby. Todavia, a animação de João Gonzalez é já um vencedor por direito, abriu uma “porta” que Portugal nunca estendeu a mão à sua maçaneta, e levou portugueses a falar e a interessarem-se por este sector (prestigiado em todo o Mundo com excepção … como é “óbvio" … no nosso país), e da imprensa, que durante anos se “borrifaram” para ela, puseram-se a dedicar dossiês especiais sobre a nossa produção de animação e dos seus ‘protagonistas’. A Animação tornou-se na ala maior do Cinema em Portugal, não só pela indicação, mas como esta serviu de tocha para que muitos se aventurassem na escura gruta da sua ignorância. Voltando aos prémios de “last night”, Brendan Fraser com o “boneco de ouro” empunhando deixou-me satisfeito, mais uma vez, constatando o “sonho americano” e as suas narrativas de superação e “comeback” a vingarem numa entrega que tanto poderia ser contada em forma de filme oscarizado, e que o diga Michelle Yeoh!

Mas do outro lado da premiação, a derrota figurada na decepção, Angela Bassett não se controlou, demonstrando esse ar infeliz (foi a melhor de “Wakanda Forever”, mas um prémio num filme dessa instância seria ingrato para a carreira de uma atriz que, certo dia, se “vestiu” a Tina Turner), ou “Tar” de Todd Field, obra sobre a nossa modernidade e contra o seu simplismo, de mãos vazias e sobretudo com Cate Blanchett, injustamente, fora da glória da noite. Não há Óscares para todos, muitos menos ‘sonhos’.

Os "não-filmes" de Godard

Hugo Gomes, 09.03.23

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Vamos antes ver o ‘Terminator 4''', sugere o par de jovens que abandona o cinema de bairro após a resposta negativa quanto à presença de peitos em “Bolero Fatal”, esse tumultuoso filme-fictício que serve de coração para a narrativa de “For Ever Mozart” (Jean-Luc Godard, 1996). Esta atitude em forma de sketch segue no eixo de uma caricatural première, o qual, após uma debandada generalizada dos possíveis espectadores, o filme, esse “Bolero”, é erradicado automaticamente da mesma sala. Isto para salientar um dos aspetos importantes deste filme que por sua vez reflete na demanda de Godard, a busca pelo “não-filme”, o seu interesse pela “possibilidade de” e não o concreto. 

Antes da notícia que abalou o mundo cinéfilo - o Cinema órfão de Jean-Luc Godard, - a SR Teste Edições editava a tradução dos diálogos entre o cineasta e a escritora e realizadora Marguerite Duras, uma compilação deliciosa em três saltos temporais, que subtilmente revelava um embate de ideias quanto à palavra e a sua importância para com quem trabalha com imagens. Por diversas vezes, Godard mencionava os “não-filmes” por entre os diálogos, desde aquele trocado por Duras e Gerard Depardieu em "Le Camion" (1977), ou a adaptação inconvencional de “L'Amant” [livro da autoria de Duras] através dessa troca de ideias, até ao desprezo ostentado por Bertolucci pelo preciso momento em que avança com “The Last Emperor”. Godard escolheu o caminho eremítico, questionando e debatendo a própria cerne do Cinema enquanto estrutura estabelecida, e como tal possibilitou-nos a assistir nessas suas últimas pegadas na Terra, tremendas tentativas em concretizar um “não-filme”. Gestos algo falhados, portanto, inconcebível porque desde o momento que se avançava num projeto, esse idealizado “não-filme” deixaria automaticamente de existir. 

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É um paradoxo, aquele em que Godard se “enfiou”, mas antes disso, é a mentira que tentou vender a si mesmo para "disfarçar" a sua perda de crença no Cinema. Sim, Godard deixou de acreditar no Cinema, deixou de vê-lo como uma arte humana, criada por Homens e pensada por Homens. Deixou de crer no Cinema enquanto algo atingível. Para Godard, o Cinema havia esgotado, não restava nada, apenas os filmes ditos e nunca elaborados, nunca encenados, nunca escritos, os tais “não-filmes”. 

Em “For Ever Mozart”, existe uma inicial crença na vitalidade do Cinema, tentando repescar esse espírito dos anos 60, onde a desconstrução, o burlesco, a aceleração e as ideias invocadas e rachadas em película seriam o mote do seu diálogo audiovisual. Mas tudo se tratou de uma miragem, de uma ilusão, no fim de contas, o verdadeiro filme, o Cinema digamos nós, em Godard, está no “Bolero Fatal”, o “não-filme” do seu “filme-real”. O “não-filme” como macguffin. O “não-filme” todo ele renegado da sua estreia. 

Desta maneira, é possível constatar a descrença, não só no Cinema, como também no seu público, desinteressados quanto à subversão e à perversão. Convertendo-se em escravos da indústria e do cinema “empapado”, ansiosos pelo que estão familiarizados (o gag do ‘Terminator 4’) do que a descoberta que um filme “fatal” poderia proporcionar.  

 

Ato III: Tár, a caçadora de monstros

Hugo Gomes, 15.02.23

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Tár (Todd Field, 2022)

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Whiplash (Damien Chazelle, 2014)

Tár” encosta-se à segunda longa-metragem de Damien Chazelle - "Whiplash" (2014) - previsivelmente pelo seu tema central, a música e como alberga posições de Poder perante os demais. No caso do filme que garantiu o Óscar a um sinistro J.K. Simmons (“Not quite my tempo”), a relação cercava entre um professor e um aluno, e por essa base uma protética concepção militarista, que envergonharia qualquer requisito de “conto underdog” ou de motivação profissional. Já a obra de Todd Field, o Poder, igualmente presente no estatuto, leva a Tár a balancear na sua própria moralidade, os tons cinzentos afligidos na sua auto-consciência artística, a levam a cometer uma postura antiética em prol das suas pessoais satisfações. A linha perpendicular de ambas obras é mesmo essa figura do “maestro” e a sua dominância perante as orquestras (e as vidas destas), a única perante a nota de ruptura, “Whiplash” deseja transparecer uma experiência e nela “cavalga” num “simulacro”, enquanto em “Tár” mantemo-nos num retrato abrangente sobre um estado de modernidade e de pós-modernidade. 

Porém, muito falamos de Tár [a personagem de Cate Blanchett], a sua construção e desconstrução, como se o filme resumisse a um “character study” (ao menos se afasta do território unilateral do “filme de ator”), mas Todd Field, através do seu magnetismo - convém realçar o tom de realeza com que a protagonista se apresenta, e conectando-a à sua resiliência em manter um controlo absoluto do seu redor - para se especificar nos códigos adiante do thriller, mais do que a falsa-biografia que poderia facilmente cometer. Perante isso, “Tár” é um primo do estilo polanskiano, do embate da figura em queda e da atmosfera que adensa mais e mais, até que tudo se transforma num iminente alerta, um perigo subliminar que parte do interior da personagem e não do seu exterior. 

Polanski, figura controversa e ainda mais aqui invocada como “comparação” a um objeto reflector da “cancel-culture”, operou por essa via da miragem, no qual personagens são ameaçadas por manifestações dos seus próprios medos, seja Catherine DeNeuve [“Repulsa”, 1965] cuja repudia pelo sexo e a ideia deste transforma todo o seu apartamento numa câmara de horrores, seja Mia Farrow [“The Rosemar’s Baby”, 1968] que a suspeita satânica no seu recém-nascido a guia para uma espiral de loucura conspiracional, ou as sombras com que Johnny Depp [“The Ninth Gate”, 1999] lida no seu “trabalhinho” de bibliotecário. São alguns dos exemplos, como poderia aventurar-me em mais (“Knife in the Water”, “Chinatown”, “Death and the Maiden”, “The Ghost Writer”), é um efeito quase conspiracional com que as personagens lidam com os seus medos, ora entende-se fobias ou inesperados e imediatos receios. Field, por sua vez, contenda Lydia Tár à sua decadência, primeiro incitando uma suspeita (por exemplo, no fim da cena da masterclass, somos presentados com um plano POV, resultando na sugestão de um desconhecido voyeur), crescendo para elementos paranoicos (ruídos e notas soltas ouvidas pela própria personagem no silêncio da noite) para se ajustar nos medos convertidos numa só reação (o passado que amontoa-se e descortina o seu pavor na "insignificância").  

A esquadria de “Tár” funciona nessa vertente, o de criar um clima de “suspense” em todos os factores de alerta da personagem, daí surgir a opção do tempo de arranque (uma introdução em forma de mockumentário) diluído no tempo em que dedicamos a conhecer esta figura, para depois, ou aliarmos na sua ambiguidade (leia-se perversidade), ou distanciarmos, solicitando o castigo divino a tal carácter. A banda-sonora de Hildur Guðnadóttir, um misto de minimalismo com essências primitivas, melodias inesperadas que pavimentam um trajeto dessa ansiedade invisível, é uma obra musicalmente em construção, em busca de um projeto perfeito enquanto epifania. 

Felizmente, ou infelizmente, conforme a nossa justiça, a consagração nunca cumpre o seu propósito, estabelecendo esse medo concretizado e materializado, impondo um senso de ridículo numa audiência mascarada, enquanto que orquestras de gosto requintado dão lugar a servientes da cultura popular. Lê-se “Monster Hunter”, título de um franchise de videojogo que comunga jovens e adultos de várias estirpes, é a designação do círculo infernal onde Tár residirá como punição, mas pode também servir de separador ao que acabamos de presenciar até esta descida. “Caçadora de Monstros”, vencida pelas "monstruosidades" que jurou rastrear, sem aperceber da sua verdadeira faceta. 

Ato II: Quem tem medo de Lydia Tár?

Hugo Gomes, 13.02.23

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"Don't be so eager to be offended. The narcissism of small differences leads to the most boring kind of conformity."

Todd Field, curioso e discreto cineasta americano [prova disso é o hiato entre a sua segunda longa-metragem, “Little Children”, e esta recente e terceira, “Tár”, de 16 anos] trespassa para além do conceito de “vida privada”, tentando com isso elaborar teses comportamentais acerca das suas personagens e do respectivo encaixe social. Nesse aspecto, com o thriller de Poder protagonizado por Cate Blanchett (sempre formidável quando o palco é dela e apenas dela) resulta num olhar atento à cadeia estabelecida no mundo das Artes e da nossa respectiva relação. A maestrina, ou “conductor”, como a própria aclama no calor da sua soberba, Lydia Tár é uma espécie de erva-rato (erva, essa, que consolida o veneno e o antídoto na mesma planta), provando uma artista genial, única no seu meio, acrescida pelo mérito, porém, corrompida pelos vícios do Poder suscitados por essa mesma escadaria.

É um teste de resistência, quer aos que acreditam na separação entre arte e o seu artista, ou na diluição entre ambas as partes e por essa via, o julgamento conjunto da personalidade e do seu ofício. Sequência central, como tem sido debatido e referido por aí, é aquela em que Tár orienta uma masterclass em Juilliard School, confrontando um aluno de ideias, digamos progressistas ou, “wokistas”, choque encontrado na sua percepção ao trabalho de Bach, negando a sua canonização devido a “problemas matrimoniais” (palavras de Tár, não nossas). Há toda uma reação em favor a Tár, até porque a sua articulação e argumento sombreia as frases feitas e de reação primária do jovem, que a maestrina e formadora por um dia, resume alcunhando-o de “robô”. A disputa intelectualizada, e convém sublinhar desigual, termina num empate técnico, de um lado, o ‘rapaz’ humilhado e desconsiderado, por outro, Lydia Tár gratuitamente ofendida por um “progressista” que sob o fervor emocional regride, convertendo-se naquilo que teoricamente mais odeia.

Daqui, passamos para o percurso da protagonista, antevendo a hipótese de comandar a cultuada Orquestra Filarmónica de Berlim. Durante esses preparos, os fantasmas circundam ao redor da sua figura, seja de um jeito literal, levando-a a “ouvir estranhos sons” durante o breu da noite, ou figurativamente, através de casos de assédio ressurgidos do seu passado com vias de abalroar o presente (e futuro). Porém, nada nos é servido na infusão da ambiguidade, não há provas contrárias dos seus antecedentes, e como tal, Field termina todas as dúvidas quando vislumbramos o instinto manipulatório revelado em Tár, até mesmo nas ‘pequenas coisas’ como no episódio em que lida com a bullie da sua enteada. Portanto, a maestrina é uma culpada a merecer julgamento? Diria antes que o julgamento está presente a quem o procura em “Tár”, a questão aqui é mais abrangente que uma cerimónia de apedrejamento, é uma clarificação ao chamado “cancel-culture”, às suas imbricações, como a sua natureza.

O final, digno de nota, demonstra que existe outras vias ao tal cancelamento, remoendo no fenómeno como uma implicação capitalista, e como a sociedade mais que tudo, demonstra-se sequestrada por esse impiedoso sistema, é natural que a ficcionada Lydia Tár não viva para testemunhar a sua derradeira consagração. Num futuro, alguém, numa masterclass classicista discutirá a ou não canonização da mesma, de igual forma que a personagem e o jovem “robotizado” embatiam no legado de Bach.

Só que tal lugar não está reservado à nossa existência, só à nossa espectralidade, portanto, banda-sonoras de videojogos por entre um “desrespeitado” público em cosplays é o “calabouço” possível.

Ato I: reagindo a Lydia Tár ...

Hugo Gomes, 13.02.23

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A reação a “Tár” é um fenómeno normal e expectável (até mesmo lisonjeador à vitalidade da obra), há uma ideia - a derradeira - em conquistar um moderado para uma das extremidades, como se a ambiguidade fosse apenas um utensílio de proveito para uma das longitudes do que propriamente uma virtude observacional ao panorama aí gerido.

Tar”, é isso mesmo, um “filme-moderado” … e atenção, não é por essa designação que cairemos na redutora designação de "passivo-inofensivo". O filme de Todd Field (com uma década em gestação), comporta-se como um agressivo ponta-de-lança nas conturbações dos chamados tempos modernos, a nossa contemporaneidade algo digna de um palanque cronista e jogado à mercê das anotações, tendo como cenário (ou temática), a Arte como um todo absolutista ou um total de nada maleável às vontades da sua cultura corrente.

Sendo assim, a minha reacção a “Tár” prende-se em dois pontos; o primeiro, interior, a surpresa em constatar que numa indústria gradualmente distante do conteúdo adulto manifeste maturidade na concepção de uma obra desta Natureza (quer seja pelos diálogos ricos e pouco explícitos, a cadência em “lume brando”, ou o desrespeito pelo espectador enquanto ser onipresente na narrativa), e segundo, exterior, pelo facto [conforme seja o lado da barricada], de se solicitar o derrame do sangue de Lydia Tár, ficcional e genial maestrina interpretada por Cate Blanchett (composta por camadas sob camadas), como peça-modelo do Poder instaurado no campo das Artes. Uma corajosa personagem para o contexto nos dias de hoje, mulher e ainda por cima lésbica, cuja sua perversão fala na mesma língua da sua força-criadora, consolidando uma figura centrada nos seus caprichos vilipendiosos e na tortura artística que a remete num lugar de solidão interiorizada.

Portanto, é fácil deparar com vozes masculinas repudiando o “mau carácter” de Lydia, do qual não se encontra muito longe das composições de anti-heróis do sexo masculino que habitam e abundam a nossa cultura popular, porém, é através dessas características hoje feitas reféns de um “wokismo” capitalista e endurecidas com impunidade crítica (a abusadora não é o habitual “homem branco heteronormativo de meia idade”, portanto, o julgamento de um dos lados da “trincheira” é abrangido à força artística do filme como compensação) que Todd Field amplia o espectro da sua iminente crítica - não se trata de género, nem identidades, trata-se de Poder, e como tal ninguém está imune da sua corrupção.

Contudo, este jogo de duas faces instala esse efeito de dupla interpretação, onde cada um vê consoante a sua sensibilidade, como nos fizeram crer, felizmente “Tár” é uma espécie de palimpsesto, duas melodias na mesma nota sem com isto ser necessariamente uma questão de leitura ou de perspetiva, ou diríamos melhor, numa inquisição de perguntas e não de resposta. O Cinema não tem obrigação de responder a nada, por isso quem procura decifrar a autenticidade do seu simbolismo perde instantaneamente o seu efeito aqui.