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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Decretada Nova Ordem Mundial na Marvel! Será que mudou o registo?

Hugo Gomes, 12.02.25

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O mundo como o conhecíamos torna-se, cada vez mais, uma memória algo proustiana e longínqua, e 2025 tem provado essa miragem, esse embate para com uma nova realidade, acelerada a olhos vistos pela reeleição de Donald Trump. No outro dia, no seu primeiro programa de comentário em horário nobre, o jornalista Nuno Rogeiro mencionava que o que estamos a testemunhar não se via desde 1945: a quebra de uma artificial garantia das fronteiras. Hoje, perante a ameaça de uma guerra comercial e anexações cada vez mais na calha, sentimo-nos na presença de um mundo em plena reconfiguração.

Captain America: Brave New World”, coincidência ou vidência, surge como um produto amenizado do seu próprio zeitgeist, com os EUA na iminência de uma Guerra Mundial induzida por acordos comerciais e disputa de território, nesta realidade fictícia, uma recém-surgida ilha (no seguimento dos eventos ocorridos em “Eternals”) e um mineral raro e valioso a ser explorado. Familiar? Talvez. Mas sigamos.

Harrison Ford interpreta o presidente dos EUA (ecos de Wolfgang Petersen, que o colocou e popularizou-o em tal posição), com “esqueletos no armário” e jogos políticos de bastidores, é um vilão não-intencional que acaba por revelar-se — sem spoilers, pois os trailers já o denunciavam — como o grande antagonista deste novo episódio do MCU/Disney. Mais uma vez, a saga brinca às geopolíticas, desta feita com maior contenção e, por isso, mais maturidade do que o incoerente e despersonalizado “Civil War, aliás, se há um antecessor direto deste filme integrado numa franquia que insiste em não morrer, é Winter Soldier, igualmente mais terra-a-terra, evocando o thriller dos anos 70 e, desta vez, recolhendo dos escombros os restos de “The Manchurian Candidate” (John Frankenheimer, 1962) para preencher o quadro da automatização narrativa, tudo nos encaixes certos sem grande mossas aos espectador confortável.

O ponto fulcral desta intriga global, porém, é Anthony Mackie, sucedendo a Chris Evans no papel de vingador de escudo, e convém afirmá-lo (leram aqui primeiro): resulta num Capitão América melhor que o “original”. Mais humano, mais nuances, mais frágil, mais próximo da nossa mortalidade e moralidade — por vezes dúbia, pois ninguém, nem nós, é perfeito - Ao contrário do anterior Capitão, uma espécie de Deus grego e “moral high ground male pin-up”, Mackie entrega um herói mais complexo. É um papel ingrato, é certo, visto ser um dos críticos insiders da indústria atual, do star system e da sua decadência e do cinema super-herois e o seu público: “Já não existem mais ‘movie stars’. Anthony Mackie não é uma estrela de cinema, mas o Falcon é.”, dito pelo próprio na Comic Con de Londres, em 2017.

Voltando à moralidade e às supostas hipocrisias — mais nossas do que deles —, é verdade que os cheques e contratos falam mais alto em culturas capitalistas, e Hollywood não é exceção; é uma indústria no seu perfeito senso. Mackie é promovido, recebe o tal escudo ‘frisbee’, salva o dia e tenta reerguer uma franquia aos ziguezagues desde que a Marvel esgotou a carga épica com Avengers: Endgame, e talvez contrariando a manobra de opressão que “Deadpool & Wolverine concretizou com êxito na rentabilidade.

Quanto ao filme? Não dói. A sua pertinência discreta coloca-o metros à frente dos seus antecessores, mas nunca fora da esquadria banalizada deste tipo de cinema. Alan Moore provavelmente deve olhar para isto e reforçar o seu discurso de infantilização das massas e a ascensão do radicalismo político como resposta desesperada para afunilar um mundo numa só visão. O tal Admirável Mundo Novo, sem Aldous Huxley para nos enriquecer.

Empatia!! Somente histórias de empatia!

Hugo Gomes, 11.02.25

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We here to become human again, to put on nice clothes and dance around and enjoy the things that is not in our reality."

Histórias de empatia! Por entre galões de um lado da mesa e imperiais do outro, no bar da Cinemateca falou-se de trivialidades, assuntos privados ou opiniões avulsas. Entre um gole e um bitaite fresco, a empatia surge inesperadamente como tema. Daí para sensibilidades, emoções ou “fraquezas” (como quiserem chamar), a conversa converge para um único ponto: um filme, para sermos concretos — “Sing Sing”, de Greg Kwedar.

Filme de Óscar sem presença na crucial eleição dos 10 finalistas: culpa-se o calendário da temporada de prémios ou a lógica do lobby como persuasão, mas a verdade é que Colman Domingo lá está representado com a interpretação (além de mais duas nomeações, argumento adaptado e canção), até porque ele é o ator no meio de não-atores, um peixe em correntes imprevisíveis que nada numa fluidez danada. Já os restantes — os chamados "não-atores" (ou atores não-profissionais, como alguns preferem dizer, recuperando a velha máxima de que qualquer um pode atuar) — são farpas aguçadas no coração deste filme anti-cárcere, são autenticidade que desfazem qualquer fantasia imposta nessas latitudes.

Construído com base dessas experiências, empíricas até (daí o argumento adaptado], e focando no programa de reabilitação por via das artes performativas, teatro lê-se e vê-se, “Sing Sing” é todo ele uma entrega à arte como segunda oportunidade — um molde para homens clandestinos ou aprisionados na sua própria violência, que encontram libertação no escapismo curador deste voluntarismo. Domingo, por sua vez, voluntaria-se para entrar na prisão (na sua essência e não somente a sua geografia) com estes ex-reclusos (no filme encenam as suas vidas passadas entre grandes na dita prisão de alta segurança que aufere título à película) e encaixa-se nessa visão cercada sem induzir e preencher o filme nos rodriguinhos do seu subgénero de cativeiro, a agressividade, essa fica-se na sugestão dos relatos, nos olhares de perdão ou até no “faz-de-conta” da peça dentro da peça - mixórdia de temáticas com viagem temporais e mil e um géneros a dar conta (e Hamlet no meio).

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Greg Kwedar, realizador ainda discreto, homem invulgar para estabelecer esse vínculo para com a emoção bruta trazida, e por vezes ocultada destes agentes da pacificação espiritual, exerce um filme como igualmente um exercício performativo, indiciando no seu experimento a sua capacidade de cura. De um cinema independente que fala a língua dos Homens sem recorrer à fabulação insuflada (celebra-se a aproximação ao docudrama), nem ao conforto de uma narrativa massajada de um público-expandido. Funciona, por vezes, contra si mesmo, por ser uma história profundamente masculina, carregada de semiótica e gíria desse universo, podendo intuitivamente afastar os que clamam por igualdade nos gazes (olhares). Mas por não seguir essas ordens / diretrizes de mercado, o torna - e os últimos momentos são prova de uma riqueza pura de fragrâncias autenticadas -, “Sing Sing” em algo à parte das habituais promessas desse cinema adulto americano. Numa secura fingida, mexe no coração — a qual América de hoje carece disso. Empatia!

Brindamos de forma desigual os copos — lácteo de um lado da fronteira, cevada na oposição — mas o acordo estava traçado. A empatia uniu aquela mesa, àquele filme, precioso e pequeno filme sublinho por baixo …

 

One faith but you don't see

Search for peace but no one speaks

Burn a bridge to light my way

Climb the tree before I called you the victim

Heaven and evil, caught in the middle

Someone set me free, be wind beneath my wings

  • “Like a Bird”, Adrian Quesada e Abraham Alexander (música da banda-sonora “Sing Sing”, nomeado ao Óscar de Melhor Canção Original)

À espera dos trópicos ...

Hugo Gomes, 09.02.25

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O tom labiríntico com o qual Sandro Aguilar confere aos seus filmes (refiro-me, numa óptica das suas longas-metragens – as curtas pertencem a um universo distinto, possivelmente mais experimental se pensarmos nisso atentamente) leva o espectador “às escuras”. A atenção é convocada, mas, acima de tudo, revela-se a capacidade semiótica para conectar os dotes e decifrar o puzzle assumido com precisão por estas obras. 

Em “Primeira Pessoa do Plural” não se distancia nem desafia essa lógica; pelo contrário, o que se observa é uma combinação mesclada de géneros (e épocas, sendo o 'cinema mudo' um horóscopo confirmado pelo próprio maestro) que o realizador pretende implementar neste universo, trazendo consigo um hiato febril de um casal burguês (os maneiristas Albano Jerónimo e Isabel Abreu), após a toma das vacinas necessárias para uma antecipada viagem aos trópicos. Encontra-se nele uma esquisitice que evoca os primeiros trabalhos de Lanthimos – sobretudo com Jerónimo, desde o instante inicial, munido de um passa‐montanhas branco, comporta-se como um predador animalesco na sua enclausura doméstica. “Primeira Pessoa do Plural” promete extrair, da crise desse matrimónio, algo higiênico, embora tropece nas diretrizes sociais, formalidades e cordialidades, revelando um ar de surrealismo delirante, sem jamais banalizar os trilhos narrativos.

Aguilar afasta a escuridão e abraça a plasticidade emancipada deste retrato – não só visual, mas igualmente orientado para uma performance de “faz de conta”. Há, assim, uma farsa entranhada na seriedade, por vezes derretida no tórrido humor. Nesse aspecto, aproxima-se do atual cinema “faz-por-ti-mesmo” de João Nicolau, que o próprio Aguilar tem vindo a produzir, e, pelo meio, oferece brindes à altura do cinefilismo como de Aki Kaurismaki (“The Man Without a Past”, sobretudo) ou de uma alusão quase felliniana a uma burguesia alienada, entretida na “caça aos gambuzinos”. Esta (minha) citação a “la Dolce Vita” não decorre do acaso, das últimas sequências, já no resort, filmado num artificial em Itália, onde, novamente sem perceber a causa, Jerónimo, levantando-se na praia, exibindo um ar abananado e despreocupado, tentando com isso sorrir à boleia da memória de Marcello Mastroianni nesse ato final do tal Fellini de coração.

Aguilar brincou às cinéfilas com o seu novo joguete com direito a banhos de sol, enquanto o espectador, perversamente, permanece embebido nas suas próprias trevas. O desafio surge no pós… e daí poderá realmente nascer um filme de apreço – ou não.

Travelling no buraco da agulha

Hugo Gomes, 08.02.25

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Quando um travelling decidiu enquadrar os dedos de Emmanuelle Riva no plano da sua morte, o então crítico de cinema Jacques Rivette desmontou “Kapò” (Gillo Pontecorvo, 1960) num só adjetivo: abjeto. Com isso, decretou-lhe o mais profundo desprezo. As suas palavras sentenciaram a obra entre os cinéfilos, Serge Daney recusou-se a vê-lo, alegando que "mesmo sem ter visto Kapò, já vira Kapò", e uma legião seguiu-lhe o conselho, relegando um filme, na altura prestigiado, sobre o Holocausto para um dos nove círculos infernais cinéfilos.

Hoje, a abjeção evoluiu para uma estética e, sucessivamente, para uma vaga de realizadores que se proclamam provocateurs, amorais ou agentes do caos. É fácil recordar alguns em voga: Lars von Trier, Michael Haneke, Gaspar Noé, Ruben Östlund e, noutras épocas, até Pasolini. Debate-se e questiona-se este modus operandi de incomodar como arte basilar, e, transcrevendo as lendárias palavras do dramaturgo brasileiro Dias Gomes — "Toda a gente nasce para irritar alguém, e se não estás a irritar ninguém é porque não estás a fazer nada" —, o sueco Magnus von Horn (“Sweat”) procura inscrever-se nesse estatuto de "abjetor" de consciências. Tem resultado, os elogios acumulam-se com “The Girl with the Needle”, até à data detentor de uma nomeação ao Óscar de Filme Internacional, uma co-produção sueco-dinamarquês-polaca [representando o último país] que deseja intercalar uma efeméride mórbida e tornar esse encontro (a com uma assassina de bebés … podem sempre pesquisar na Wikipedia) como a sua força motriz.

Mas desviando da grande atração circense — ainda que haja literalmente um circo de aberrações pelo meio, onde mulheres barbudas, anões e desfigurados de guerra se amontoam num espectáculo deprimente e julgador —, encontramos uma plateia saída de uma Dinamarca marcada pelas mazelas da Primeira Guerra Mundial, há pouco tempo terminada. Entre o público, Karoline (Vic Carmen Sonne, “Godland”), de olhos extasiados pelo cansaço e pela sua condição precária, costureira despedida após um relacionamento desaprovado com o patrão da fábrica, encontra-se ali, grávida e sozinha, curiosa perante os horrores, mas na verdade à procura do marido desaparecido.

As voltas da vida trarão outros caprichos e a protagonista, arrastada para tramas miserabilistas de cheiro pútrido, cruzar-se-á com a antagonista que ditará um novo tom a este neon-neorealismo de língua afiada — uma porno-miséria que rapidamente evoluirá para thriller de sugestões e sons agonizantes. Magnus von Horn estica ao máximo a tensão para captar a repulsa e o desconforto do espectador, sem nunca ceder ao explícito do género do terror, mas, ironicamente, exaltando o abjeto que sustenta a história, e, sobretudo, arriscando uma perturbadora empatia para com a vilã. Se bem que o circo obtém um simbolismo talhado à moral deste enredo, enquanto os monstros se escondem com máscara de “cara de gente”, os humanos são reduzidos aos seus trapos corporais, o início como alguns interlúdios remexendo em faces abstratas e distorcidas em sobreposições, criando ou tentando o único rosto, algo verdadeiramente e universalmente humano, o resultado é apenas um incómodo visual. 

A preto e branco, como dita certa estética de requinte (Paweł Pawlikowski à cabeça) ou no miserabilismo formal que “Romaescancarou porta adentro tal como Martim Moniz ao serviço do seu El Rei pela “reconquista” de Lisboa. Não há travellings de “Kapò”, mas há um travelling de beco a fazer comparação.

A assombração do cine-olho!

Hugo Gomes, 07.02.25

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Eu sou o cine-olho. Eu sou o olho mecânico. Eu, máquina, mostro-vos o mundo como somente eu sou capaz de ver.

Eu emancipo-me, doravante e para sempre, da imobilidade humana. Estou em constante movimento... O meu caminho conduz à criação de uma nova perceção do mundo.

Posso, assim, decifrar um mundo que vós não conheceis.

Dziga Vertov, manifesto “Kino-eye” [Cine-Olho]

 

Steven Soderbergh é um experimentalista, um versátil, um travesso que não sossega no que toca ao Cinema, às suas possibilidades e expansões. Talvez por isso — ou talvez não — seja inevitável convocar Dziga Vertov e o seu manifesto “Kino-Eye” (cine-olho) para o seu tratado paranormal “Presence”. Aqui, noutras linguagens técnicas, assume-se o registo POV, o point-of-view de não pertencer ao mundo dos vivos nem ao dos mortos, algo gasoso, mas igualmente presente. O espectador ocupa essa posição, por vezes sentindo-se privilegiado no seio desta família que se muda para uma moradia ao estilo americano.

Sabemos, pelos vislumbres, que uma tragédia pesa neste agrupado, há ambiguidades que nos fazem duvidar da solidez das relações entre os membros desta família, o que poderia à partida ser a sinopse de qualquer old dark house genérico, um filme de assombração onde entidades sobrenaturais reclamam o seu espaço. Ou melhor, um “The Others” de Alejandro Amenábar conceptual. E é aqui que o Kino-Eye entra em ação de maneira parcial, não apenas pela perspetiva adotada, mas pela forma como encaixa na ambição possivelmente ideológica de Vertov: captar o que o olho humano não alcança. A câmara finge (porque o cinema é uma mentira pegada — vénia a Fellini) ser essa força extraordinária. O que vemos, por mais banal, dentro da sua lógica narrativa (eis a chave americano-clássica), é encarado como uma lente não-térrea. Esta presunção deve-se à própria presunção de Soderbergh, não é um miúdo a jogar Fortnite nem algo que se pareça, e sim um realizador atípico, bicho-carpinteiro de um cinema norte-americano que, apoiado nessas forças dominantes, se mantém distante de experimentos e diversidades conceptuais, narrativas ou estéticas.

Nesse ponto, é fácil torcer o nariz à proposta de “Presence”, com o seu plot twist estampado como marca de água do seu ADN, mas, entre os inúmeros ensaios do cinema de género e deste género em particular, este é Cinema na sua forma e fórmula mais puras. Captar o inexplicável, transformar o nosso olhar no inexplicável.

Soderbergh, o homem da câmara de filmar!

Deixem Salazar morrer ...

Hugo Gomes, 06.02.25

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Que Portugal o coma bem cozidinho, Sr. Presidente

A teatralização da morte, a ditadura da última vontade. É fácil encontrar uma espécie de castigo ou perversão na imaculada figura política de ditadores e autocratas — ou até mesmo, se seguirmos por outros ventos, na do estadista e governante. Mas fiquemos pelo primeiro ponto: quão perverso pode ser testemunhar a queda de um tirano, ou até a sua ridicularização como último verso da sua existência?

Pai Nosso – Os Últimos Dias de Salazar”, nova obra de José Filipe Costa, é, sem grandes surpresas — até porque o título já o revela —, o espetáculo da morte de um ditador. António de Oliveira Salazar chega-nos sob o prisma da desmistificação da sua figura autoritária, num gesto de desmistificação que já foi cumprido noutras geografias e por outros realizadores. Do outro lado da fronteira, Franco é cada vez mais revisitado e punido por desconstruções da sua suposta imponência. Pablo Larraín converteu Pinochet numa criatura draculiana sem nunca despir a capa do ridículo (“El Conde”, 2023). Os americanos, por sua vez, mataram Estaline em “The Death of Stalin” (Armando Iannucci, 2017), mais como sátira ao regime em si, sem nunca partir da desconstrução do líder soviético, nesse caso Fanny Ardant o concretizou, apostando num monstruoso Gérard Depardieu para dar corpo a um Josef Estaline de cabeça perdida, refugiado no seu poder insuflado (Le Divan de Staline, 2016). E, levando a troça ao extremo e de outras eras, por vezes mais libertárias (e libertinas), Augusto Tretti transformou Mussolini num fantoche num mundo humano — não só a morte, mas também a sua própria existência, é dotada de "bonecada" (“Il potere”, 1971).

Gozar com Salazar não é novidade. “Capitão Falcão” (João Leitão, 2015) trouxe o pitoresco à sua presença, mimetizada pelo ator José Pinto. Já José Filipe Costa, habituado ao simbolismo da Revolução, fixa-se no leito alucinado de Salazar após a célebre queda da cadeira. Isolado no seu palácio-fortaleza, convencido que ainda governava, enquanto Portugal transita para a chamada "Primavera Marcelista". Tal como no filme de Ardant, "Pai Nosso" não se rege pelas ditaduras da biopic convencional, onde os atores replicam a personalidade que encarnam, Jorge Mota não é um Salazar familiar nem reconhecível, tampouco imita os seus maneirismos vocais – “a oratória de professor de primária”, segundo Ricardo Araújo Pereira. Com essa distância, quer visual quer sonora, somos apanhados no abstrato deste salazarismo expirado.

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Um salazarismo, no seu conceito originário e dependente do culto à figura, sobrevive apenas naquele cenário, entre os olhares voyeurs de funcionários do Estado, médicos que o visitam regularmente, criadas reprimidas - mas no privado festivas e extrovertidas -, e uma governanta, Maria de Jesus (Catarina Avelar), que encarna a réstia e a taxidermia de todo um cocktail de costumes ditatoriais, nunca distanciando da sua essência vampiria, enquanto Salazar, que domesticou um país com uma mão de ferro e sermões; é agora, naquele aposento, reduzido a um homem gradualmente cadavérico, ele próprio uma sombra vampírica do seu regime. Entre perus, animais antropomórficos (alusões aos alcunhados termos e o provincianismo com que os portugueses eram retratados na lente do seu governador), alucinações e canibalismos políticos, este Salazar torna-se vítima de uma corrente de tortura hipnótica. Daí que o filme oscile entre a comédia negra e satírica, por vezes revanchista, e a tragédia que expõe a decadência, sobretudo mental, do ex-ditador. Todos, diante da proximidade da morte, tornam-se covardes como galináceos. O temido Salazar é, afinal, apenas um mortal, despojado da aura divina que o regime ultraconservador lhe atribuíra e, com ela, do poder opressor que exercera.

O filme faz desses rasgos delirantes a marca fundamental de José Filipe Costa (como já fizera em Prazer, Camaradas!”) e, desses interlúdios, a sua piada mortal.

Pérola para os checos ...

Hugo Gomes, 05.02.25

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Perla (Rebeka Poláková) escapou da opressiva Cortina de Ferro que pairava sobre a sua nativa Checoslováquia para Viena, onde se tornou numa artista em ascensão. A sua filha, Julia (Carmen Diego), uma talentosa pianista, tem ainda muito território a pisar. Do outro lado da fronteira, Perla constrói uma vida estável e boémia, e até um marido que cuida dela com afecto e paixão, mas tudo ameaça desmoronar-se quando ouve uma voz vinda do passado. O pai de Julia, outrora prisioneiro político e agora finalmente libertado, deseja conhecer a filha e suplica uma visita das duas sob o pretexto de sofrer de uma doença terminal. À chegada ao outro lado da fronteira, a visita, o reencontro – ou talvez a reconciliação – entram em conflito com a nova identidade de Perla, desenterrando traumas ocultos e dilemas que dificultam a sua progressão. 

Segunda longa-metragem de Alexandra Makarova (“Crush My Heart”), “Perla” volta a ser um ensaio sobre identidades, deslocações e espíritos ambulantes, agora sob o contexto sociopolítico da desintegração dos estados soviéticos e da sua resiliência face a uma iminente derrota. O filme vive sobretudo da sua protagonista, Poláková, que transmite (e, crucialmente, esconde) uma angústia traumática perante o modus operandi do regime que a marcou durante anos. No regresso à Checoslováquia, o contraste com Viena é evidente – não apenas na rigidez e frigidez dos figurantes, moldados à imagem de um sistema opressivo e repressivo, como também no brutalismo quase ruralista e na névoa fantasmagórica que parece assombrar um local onde o tempo estagnou em prol de um “Bem Comum”, slogan decretado sem qualquer margem para dúvida.

Perla”, após a entrada do segundo ato, e transpassada o posto fronteiriço (um imagético separador capitular), tece habilmente subgéneros ou tendências formais que se desdobram ao longo da narrativa: da provocação à la Östlund, evidente no interior do hotel, uma mera fachada, aos embustes de folk horror que emergem no vilarejo; do flashback desconfortável filmado num único plano - que nos recorda do trágico e condutor episódio do georgiano “Beginning” (Déa Kulumbegashvili, 2020) ou desta corrente vaga de cinema russo anti-sistema (Kantemir Balagov, Kira Kovalenko) -, a exposição grotesca que coloca o espectador numa posição de impotência. É um filme de cerco sem ser verdadeiramente de cerco, evocando memórias da própria realizadora, que hoje, num mundo mais propenso a saudosismos e repetições históricas, parece adquirir uma nova dimensão. Porém, como exercício fílmico, herda a mesma austeridade e rígido formalismo manifestado por tantos que o precederam.

Filme em Competição no Festival de Roterdão 2025

A Educação da Morte

Hugo Gomes, 01.02.25

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Lidar com a morte não é uma essência exclusivamente humana, acredita-se que os elefantes, por exemplo, choram pelos seus mortos e os recordam através de alguns rituais testemunhados, mas é na consciência da nossa própria mortalidade que nos diferenciam do restante Reino Animal. Contudo, esses motivos propícios à melancolia não nos são inatos – aprendemo-los, ou melhor, vivenciamo-los. A forma como encaramos a morte, refletindo sobre ela, reagindo ou ritualizando a sua passagem integra um processo de crescimento e amadurecimento, representando em muitas culturas o rito definitivo de entrada no mundo adulto. Mas como ensinar a morte? Como transmitir esse conhecimento desde tenra idade?

Na nossa sociedade ... ocidental para sermos exatos ..., a morte tornou-se banalizada, permeando os meios de comunicação e as suas diversas plataformas: o audiovisual transborda dela, os videojogos não se sustentam sem o seu toque – por vezes quase lúdico – e as histórias que nos são narradas exaltam-na; daí nascem heróis e mártires, enquanto a religião converte esse estado no seu lar de fé. No cinema, a morte também se faz presente – ora dissimulada, noutras suavizada da sua iminente violência –, e o ceifeiro autocensura-se, semeando, assim, a semente de uma consciência. Quem não sentiu o trauma da perda da mãe em “Bambi” durante a infância? Evidentemente, um marco geracional. Da mesma forma, a Pixar recorre a esse artifício para intensificar a carga emocional, em contraposição à esquadria do cinema de super-herois com multiversos à mistura para arrancar a consequência da morte, fazendo dele uma espécie de conforto na banalização.

E é nesse contexto de banalização – imerso no boom tecnológico e sociológico proporcionado pelas redes sociais – que surge “Death Education”, curta-metragem do ainda jovem Yuxuan Ethan Wu, concebido num mundo pós-Covid, cuja morte se espectacularizou no mediatismo dos dias conturbados. Inspirado pela iniciativa de um professor de secundário que anualmente conduz os seus alunos a entrarem em contacto com a morte de vários desconhecidos [“sem nome”], durante o Dia da Limpeza dos Túmulos (Festival Qingming), festividade chinesa que homenageia os falecidos, e voluntariarem-se em cargos fúnebres. Wu encontrou neste ritual a curiosidade que o levou a criar um documentário imbuído de sentimento semelhante. Por meio de um manifesto observacionalista (quase wisemaniano, daí evidenciar a sua "escola", americana convém salientar, enquanto documentarista), interroga como os jovens, na sua plena flor, podem confrontar a morte, possivelmente acostumados à sua vulgarização.

O que impulsiona um professor a incitar os seus alunos a demonstrar um sentimento tão genuíno como o luto, o respeito e a despedida fúnebre? Seria um simples trabalho de casa ou, quiçá, uma semente semeada para futuras gerações, nutrindo uma empatia não só pelos vivos, mas também por aqueles que deixam este mundo e mergulham no desconhecido? Ou, ainda, pretende transformá-los numa plateia memorialista, recordando “quem” ninguém mais relembra – um isolamento que persiste mesmo após a morte? Há toda uma educação a ser observada neste ato, e “Death Education” emerge dessa inquietação … nunca fornecendo respostas definitivas, ao invés disso alimentando a curiosidade – tal como o realizador, cujo apetite o conduziu à criação de um filme. Por vezes, são esses pequenos detalhes que levam os documentaristas a serem documentaristas por inteiro.

Filme visualizado no contexto de Sundance Film Festival

Uma ex-máquina!

Hugo Gomes, 30.01.25

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Para Iris (Sophie Thatcher, “Heretic”), Josh (Jack Quaid) é o seu e único mundo. Apaixonou-se por ele, segundo recorda, numa ida ao supermercado, quando o desajeitado rapaz fez estremecer a bancada de laranjas, o riso veio de seguida, o amor à primeira vista deu-se no inaugural cruzar de olhares. Memória vivida, ao que parece! Só que não. Tal nunca aconteceu, até porque, tecnicamente, Iris não existe. Quer dizer, tem fisicalidade, uma presença, digamos assim, mas não uma existência. Não é humana, é uma robô na linha dos "autómatos amorosos". O amor incondicional é um artifício.

Companion”, de Drew Hancock, insere-se no thriller da expansão da IA e do seu constante debate, piscando o olho a conceitos há muito aprovados por Isaac Asimov e Philip K. Dick, inevitavelmente, até certo ponto, reagindo a essa modernidade com algum arrojo, trazendo um efeito de Turing invertido, em que Josh precisa de convencer Iris de que é uma máquina, enquanto ela nega, agarrada ao que acredita ser a sua vida e consequentemente às suas (fabricadas) memórias. Nada de desconhecido ou ambíguo para o espectador, que desde o início o sabe: Iris é uma máquina, sapiente e talvez, consciente. Não há segredo, nem twist que valha que ofusque essa informação previamente estabelecida.

Nesse jogo, há um lampejo de “Ex Machina”, mas o desejo é passageiro, muito passageiro. Os traços de terror começam a sobrepor-se e “Companion" perde a astúcia para se render ao entretenimento casual, mimetizando a fórmula de Wes Craven sem nunca reproduzir as suas, por vezes brilhantes, encriptadas sociopolíticas. Mas, enfim, a indústria manda-nos modelos destes, rápidos de consumir, sem grande maçada para a nossa massa cinzenta. Mesmo assim, Thatcher convence-nos de que é um produto à distância de uma encomenda.

"Mestres Japoneses Desconhecidos IV": rebeldias para com o passado em mais uma trilogia nipónica

Hugo Gomes, 30.01.25

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À quarta vira tradição! A The Stone and Plot avança na quadrilogia dos Mestres Japoneses Desconhecidos, hoje uma janela aberta para tesouros escondidos na História do cinema nipónico. No lugar do X, uma pequena "batotinha": um repetente. Hiroshi Shimizu, que encantou as audiências portuguesas com encontros e desencontros nas montanhas em “O Som do Nevoeiro” (“The Sound in the Mist”), retoma a batuta e contradiz o aforismo tão em voga: "Mãe há só uma!". Esplendoroso exercício dramatúrgico, tudo no sítio, exposição do classicismo japonês, brindado pela sensibilidade a que este realizador, que aos poucos descobrimos, nos habitua como gesto evidente.

“A Imagem da Mãe” (“Haha no omokage”) poderá ser esse diamante bruto nesta nova "caixinha de bombons" cinéfila – quem sabe, a porta de entrada para um futuro ciclo da sua fase tardia, essa que tanto deslumbra. As outras duas obras, experiências de sentidos e de sociedade, marcam um tempo em mudança. Juventudes inconstantes, ora rebeldes, ora oprimidas, ora inconsequentes, ora desprevenidas, a ver e a serem vistas.

Festejemos 2025 com mais um gole de saké, pois Mestres Japoneses Desconhecidos IV é prenúncio de uma nova temporada cinematográfica. Que venham esses três obras a (re)descobrir!

 

Image of a Mother / Haha no omokage  (Hiroshi Shimizu, 1956)

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O último filme de Hiroshi Shimizu é uma despedida emotiva, extraída da unificação de um novo seio familiar. Sadao (Jun Negami) e Sonoko (Chikage Awashima), ambos viúvos, são subjugados a arranjos matrimoniais. Conhecem-se finalmente e decidem, em bom português, "juntar os trapinhos", mas cada um traz consigo os seus "penduras": filhos menores, cuja respetiva aprovação se torna um passo crucial para a saúde da relação. A filha de Sonoko chama Sadao de "pai" com naturalidade, já o oposto revela resistência. Michio (Michihiro Môri), rapaz ainda comprometido com a memória da falecida mãe, dialoga diariamente com o seu retrato, posicionado carinhosamente na estante e cuida do seu pombo-correio, vindo da sua antiga progenitora como apreço pela sua presença fantasmagórica. Apesar da pressão familiar, a designação "mãe" transforma-se aqui numa verdadeira batalha, e o poder dessa palavra adquire a força de uma aceitação, uma cedência a um futuro por vir.

Shimizu, conhecido pelos seus filmes de crianças, revela mais uma vez a sua sensibilidade, aqui, sem nunca desviar-se da trama e dos dramas dos adultos, mas envolvido numa comovente compaixão pela causa deste menino que teima em não largar o passado. Há algo de subtextual nessa saudade em conflito – como se Michio espelhasse um Japão vencido, dividido entre novas jornadas e o peso da sua história, um saudosismo compreendido no olhar.

A câmara, suave, desliza em travellings deliciosos, fundamentais para mapear o quarteirão que envolve a narrativa central, e o rosto daquela mãe a converter-se no que nunca foi – a tão familiar ao universo de Ozu, Awashima - de olhos tristes, rosto ferido mesmo quando soa-nos glacial. As emoções estão acima da flor-da-pele, transpassam-se com bravura de uma universalidade mesmo que tudo aquilo nos pareça exotico perante o nosso ocidentalismo.

Um filme belo? Não. Belíssimo!

 

Nothing But Bone / Hone-made shaburu (Tai Katô, 1966)

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Kinu (Hiroko Sakuramachi), como tantas raparigas presas à pobreza, é vendida para um bordel aos 18 anos, no início do século XX. Lá, depara-se com uma fortaleza labiríntica e contrai uma dívida impossível de saldar. A liberdade torna-se ilusão, sussurrada pelos corredores ou nos recantos secretos dos quartos das colegas prostitutas. Um desejo que adquire forma – talvez, quem sabe, na promessa redentora do Exército de Salvação, com os seus valores cristãos e a sua puritanidade pregada como única fuga possível.

Mais um exemplar a juntar ao grande ciclo de filmes de bordel, aqui sob a sombra de Mizoguchi e o seu pleno “Rua da Vergonha” (“Street of Shame”, 1956), estandarte incontornável (recorde-se que a primeira edição dos Mestres Japoneses Desconhecidos já contava com um, bem arquitetado, “Ginza no onna”, de Kozaburo Yoshimura). “Roída até ao Osso” (“Nothing But Bone”) não ousa em amargurar aquele cenário como Mizoguchi o fizera, nem se rende ao fascínio do ambiente. A crítica move-se entre um verniz elegante e o feroz embate contra o tradicionalismo opressivo que essa sociedade ultra-masculina expõe.

Talvez pelos calos acumulados nos subgéneros de espadas e yakuzas, o realizador Tai Katô integra um caos latente, por vezes silenciado, que remata numa desconstrução irrequieta do seu espaço. Uma barafunda respondida, ou melhor, apaziguada num final assertivo – na fé cristã. Uma conversão que, talvez, moralize essa vicissitude amoral.

 

 Pretty Devil Yoko / Hikô shôjo Yôko (Yasuo Furuhata, 1966)

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Acredita-se que o argumento deste filme tenha sido inspirado num artigo da revista Life, embora os autores Fumio Kōnami (“Female Prisoner Scorpion: #701”) e Ryūnosuke Ono (“The Bullet Train”) surjam creditados como responsáveis de um guião original. O professor David Pinho Barros o havia salientado numa das ante-projeções comerciais, portanto, não percamos essa ligação.

Primeiro trabalho de Yasuo Furuhata, realizador que viria a construir uma carreira extensa no refúgio do meramente comercial, aventura-se aqui na febre e exaltação hippie, apontando uma lente crítica ao fenómeno da futen zoku (a tribo dos vagabundos), contracultura onde se insere a nossa Yoko (Mako Midori, “Blind Beast”), jovem que abandona o campo em busca de oportunidades na cidade, acabando por se perder no vício dos produtos ilícitos, do jazz, da errância e das festas tardias. Juventude sem causas, sem beiras sequer.

Apesar de irregular, a obra não deixa de ser esteticamente intrigante. Furuhata infunde, ocasionalmente, um impressionismo vincado nestas personagens, sobretudo sob o efeito daquelas drogas, da qual babam-se por mais. A estrutura narrativa é também uma delinquência, desfeita num sonho ferido e transcrito como fuga a uma realidade insuportável. Veja-se o desejo febril da protagonista de visitar as praias de Saint-Tropez, França, após vislumbrar as suas imagens num filme à francesa durante uma das suas fugas ao cinema. Assim, há aqui um sopro de nouvelle vague, uma vontade de a requisitar para desapegar-se de modelos classicistas, como também deparamos com um retrato de um Japão cada vez mais ocidentalizado, globalizado, desenraizado das suas tradições milenares. 

Recheado com algumas aparições reconhecidas do universo nipónico, como o ator Shūji Sano (visto em trabalhos de Ozu e de Tanaka), Eiji Okada (que o cinéfilo o reconhecerá de Hiroshima Mon Amour) e o poeta e realizador Shūji Terayama (“Throw Away Your Books, Rally in the Streets”, “Pastoral: To Die in the Country”).

Rebeldia com Yoko – e não sabem o bem que fazia.