Decretada Nova Ordem Mundial na Marvel! Será que mudou o registo?
O mundo como o conhecíamos torna-se, cada vez mais, uma memória algo proustiana e longínqua, e 2025 tem provado essa miragem, esse embate para com uma nova realidade, acelerada a olhos vistos pela reeleição de Donald Trump. No outro dia, no seu primeiro programa de comentário em horário nobre, o jornalista Nuno Rogeiro mencionava que o que estamos a testemunhar não se via desde 1945: a quebra de uma artificial garantia das fronteiras. Hoje, perante a ameaça de uma guerra comercial e anexações cada vez mais na calha, sentimo-nos na presença de um mundo em plena reconfiguração.
“Captain America: Brave New World”, coincidência ou vidência, surge como um produto amenizado do seu próprio zeitgeist, com os EUA na iminência de uma Guerra Mundial induzida por acordos comerciais e disputa de território, nesta realidade fictícia, uma recém-surgida ilha (no seguimento dos eventos ocorridos em “Eternals”) e um mineral raro e valioso a ser explorado. Familiar? Talvez. Mas sigamos.
Harrison Ford interpreta o presidente dos EUA (ecos de Wolfgang Petersen, que o colocou e popularizou-o em tal posição), com “esqueletos no armário” e jogos políticos de bastidores, é um vilão não-intencional que acaba por revelar-se — sem spoilers, pois os trailers já o denunciavam — como o grande antagonista deste novo episódio do MCU/Disney. Mais uma vez, a saga brinca às geopolíticas, desta feita com maior contenção e, por isso, mais maturidade do que o incoerente e despersonalizado “Civil War”, aliás, se há um antecessor direto deste filme integrado numa franquia que insiste em não morrer, é “Winter Soldier”, igualmente mais terra-a-terra, evocando o thriller dos anos 70 e, desta vez, recolhendo dos escombros os restos de “The Manchurian Candidate” (John Frankenheimer, 1962) para preencher o quadro da automatização narrativa, tudo nos encaixes certos sem grande mossas aos espectador confortável.
O ponto fulcral desta intriga global, porém, é Anthony Mackie, sucedendo a Chris Evans no papel de vingador de escudo, e convém afirmá-lo (leram aqui primeiro): resulta num Capitão América melhor que o “original”. Mais humano, mais nuances, mais frágil, mais próximo da nossa mortalidade e moralidade — por vezes dúbia, pois ninguém, nem nós, é perfeito - Ao contrário do anterior Capitão, uma espécie de Deus grego e “moral high ground male pin-up”, Mackie entrega um herói mais complexo. É um papel ingrato, é certo, visto ser um dos críticos insiders da indústria atual, do star system e da sua decadência e do cinema super-herois e o seu público: “Já não existem mais ‘movie stars’. Anthony Mackie não é uma estrela de cinema, mas o Falcon é.”, dito pelo próprio na Comic Con de Londres, em 2017.
Voltando à moralidade e às supostas hipocrisias — mais nossas do que deles —, é verdade que os cheques e contratos falam mais alto em culturas capitalistas, e Hollywood não é exceção; é uma indústria no seu perfeito senso. Mackie é promovido, recebe o tal escudo ‘frisbee’, salva o dia e tenta reerguer uma franquia aos ziguezagues desde que a Marvel esgotou a carga épica com “Avengers: Endgame”, e talvez contrariando a manobra de opressão que “Deadpool & Wolverine” concretizou com êxito na rentabilidade.
Quanto ao filme? Não dói. A sua pertinência discreta coloca-o metros à frente dos seus antecessores, mas nunca fora da esquadria banalizada deste tipo de cinema. Alan Moore provavelmente deve olhar para isto e reforçar o seu discurso de infantilização das massas e a ascensão do radicalismo político como resposta desesperada para afunilar um mundo numa só visão. O tal Admirável Mundo Novo, sem Aldous Huxley para nos enriquecer.