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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Perdidos em Marte

Hugo Gomes, 10.06.23

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A eleição de Bolsonaro foi o que de melhor aconteceu ao cinema brasileiro nos últimos anos”, ouvido numa tertúlia cinematográfica, daqueles serões embebidos em álcool, petiscos e noites prolongadas em conversas entrelaçadas em volta de filmes, factos e disputa de opiniões (a imperatividade de uma só ‘verdade’). Neste caso, a frase polémica é momentaneamente argumentada (não vá ela ser deslocada do seu próprio contexto) do seu automático peso com que “cai” entre o grupo. 

Bolsonaro e as suas políticas de asfixia à produção audiovisual levaram a que este mesmo cinema, fora dos wannabes do mainstream (Globo produções, “gíria” brasileira), a assumir o seu caráter de denúncia. Contudo, este cinema não surgiu somente com o triunfo do bolsonarismo no decretado Poder, eles sempre haviam existido, só que é em Bolsonaro que se depararam (por fim!) com um materializado antagonista, um vilão com face e “tentáculos”, uma imagem pelo qual pudesse realmente rebelar, ou melhor, resistir (RESISTÊNCIA, como bem gritou, de punho erguido a produtora Sara Silveira em Berlim de 2019). Devido a esta luta contínua, entre cineastas e políticos desinteressados e apenas motivados pelas suas agendas, entre um Brasil humanamente desgostoso e uma plataforma determinada a atribuir voz a minorias, mudas e silenciadas por políticas intrínsecas. Agora, Bolsonaro tornou-se um fantasma, um país assombrado pelo seu vulto, o que restará do cinema brasileiro para além da sua guerrilha neste mandato Lula permanece uma incógnita. 

Mas antes de ‘brincarmos’ às vidências, recuemos no tempo e “joguemos” de cabeça a um dos últimos filmes dessa vaga anti-Bolsonaro - “Marte Um” de Gabriel Martins - candidato brasileiro ao Óscar em 2022, uma escolha improvável até porque a obra comporta-se como um exercício passivo perante essas adversidades políticas-sociais (o realizador e argumentista trabalharia neste filme desde 2014, Bolsonaro seria a atualização durante do seu processo criativo). A sua introdução nos contextualiza ao pressuposto, Bolsonaro venceu e daí surge uma “nova era”, no seu seio, uma família (típica, apesar de tudo) persiste nas suas “ruelas”. Em “Marte Um”, a política é subjacente, a crítica é lançada para segundo plano, mais como um marco temporal, priorizando assim as inquietações de cada um dos membros da família-protagonista, negros de classe média baixa e com alguns “espinhos” cravados. A sua introdução, possivelmente os seus primeiros 10 minutos, deixam em antemão um percurso pelas mais variadas “causas” associadas aos movimentos de esquerda, só que passados esse “cumprimento”, Martins dissipa qualquer dependência às mesmas lides, o filme vinga (e não é pouco), por um ingrediente apenas, a sua extrema sensibilidade. 

É em oposição ao Brasil da sua contemporaneidade que a sensibilidade sobressai neste episódio familiar, na procura de um espaço, não somente um lar, mas de um epifania que possa salvar estas mesmas personagens da “prisão” que o país descortinou ser e que reflete nas adversidades das suas respectivas vidas. Não é por menos que todas as personagens procuraram refúgio na mudança, seja numa eventual estação espacial em Marte, numa carreira futebolística, numa evasão ao “lugar mais barato” ou de uma apartamento vazio, longe do Mundo, longe de tudo, onde os "náufragos" se entregam de corpo e alma ao desejo sem recriminação. Belíssima sequência essa, carnal e não só, prazerosa brincadeira com melânia e luzes (ou a ausência dela) convertendo corpos em iluminações naturais. 

Digamos que “Marte Um” parte de uma “catástrofe” (poderemos discutir política, mas inegavelmente foram os 4 anos menos empáticos no Brasil dos últimos anos) para se instalar como um filme de comunidade, de abraços apertados e pedidos, de sonhos ainda requeridos. O Brasil pode sonhar, Marte está ao virar da esquina, metaforicamente falando. O recomeço é óbvio.

Robôs alienígenas são o que unem Michael Bay e Orson Welles!

Hugo Gomes, 06.06.23

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A caminho do visionamento de imprensa do novo “Transformers”, deparo-me com a onda de críticas “yankees” a preencher o meu feed virtual devido ao levantamento do embargo, entre elas, uma da Variety que ostentava o título - “A Less Bombastic, More Relatable Sequel” (“Menos bombástico e mais relacionável sequela”, isto em tradução literal). Dou por mim a pensar, possivelmente consolado de que não será um Michael Bay show que verei nas próximas horas. 

Já isso tinha sido firmado com o antecessor reboot Bumblebee”, a essência de ser mais Spielberg do que o realizador assinante dos cinco anteriores filmes. Porém, como havia referido nessa estreia, e novamente sentindo, o paradoxo de Bay, com ou sem. Ora se sem Bay relaxamos as vistas, despedimos da montagem freneticamente hiperativa (e ocasionalmente indecifrável), do humor brejeiro e crises hormonais de adolescente tardio que minam o seu dito universo, para além do lenço branco a tiques e toques do mesmo, por outro, somos "bombardeados" com o mais genérico e o puramente despersonalizado espéctaculo à moda de Hollywood. Com que ficamos então? Pela mera parvoíce estética, ou a homogeneização de um “produto produzido em massa para massas”? 

Este “Transformers: Rise of the Beasts” é o filme, baseado na popular linha de brinquedos da Hasbro, que tende em desviar das minas e armadilhas deixadas pelo legado do anterior contramestre. Exibe um desenvolvimento (nem que seja sugestões de) nas suas personagens humanas e apresenta um vilão intimidante para acelerar o clímax (deixemos os antagónicos «sacos de pancada» fáceis), só que tais encargos são meras rotinas, oleadas operações que insuflam um sensação de dever cumprido perante ao que se pensa ser exigência dos espectadores. Vacuidades tecnológicas, desconsiderações narrativas, ação salta-pocinhas (Machu Picchu torna-se desta vez o cenário de armagedão improvisado) e o CGI que após uns primeiros passos cautelosos assume imperatividade no último ato. Por um momento ou outro, fica-se o desejo de retornar aos antepassados (ao “bayhem” propriamente dito), mas tal regressão é automaticamente deixada pela sobriedade da produção, para não delirarmos mais uma vez. 

Ponto curioso, o grande vilão deste episódio - “Unicron” - surgiu pela primeira vez em 1986 na longa-metragem animada dirigida por Nelson Shin, vocalizado pelo, nada mais nada menos que Orson Welles, na altura desesperado e endividado. Conta o criador e argumentista Ron Friedman que a colaboração com o homem por detrás de “Citizen Kane” foi caótica. Welles encontrava-se rendido aos vícios da sua “má vida”. Um momento de trivialidades para uma crónica de um filme que é mais que trivial.

As mártires de Kinuyo Tanaka: ser ou não ser mulher, eis a questão!

Hugo Gomes, 18.05.23

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Depois de “The Eternal Breasts”, declaradamente a sua “obra-prima”, Kinuyo Tanaka finalizou mais três longas-metragens, duas a cores e uma mantendo as raízes cromáticas, e todas elas, de uma maneira ou doutra, fazendo vénia a um dos seus mestres, Kenji Mizoguchi. Mesmo da sua sabida e silenciosa oposição a esta faceta de Tanaka, o cineasta assinante de “Intendente Sansho" (“Sanshô dayû”) ou Os Contos da Lua Vaga” (“Ugetsu monogatari”) permanece enquanto fantasma inalcançável para a realizadora, que em tempos fora das suas grandes atrizes. Foram experiências, riscos, desejos e ambições, e por sua vez, a confirmação de uma artesã sólida e convincente na indústria nipónica. 

Princesa Errante”, “Mulheres da Noite” e o derradeiro “Senhora Ogin”, os restantes títulos, todos pós-Mizoguchi (falecido em 1958), chegam aos nossos cinemas com a marca The Stone and the Plot.

 

Wandering Princess (1960)

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Baseado nas memórias de Hiro Saga, “Wandering Princesa” (“A Princesa Errante”) centra-se em Ryuko, mulher aristocrata prometida a Futetsu, o irmão mais novo do imperador do estado-fantoche da Manchúria, isto nos inícios da Segunda Guerra Mundial o qual iria culminar na batalha territorial, e paralelamente a derrota nipónica no conflito global.

Trata-se do primeiro filme a cores de Tanaka, e num esplendoroso Cinemascope (há que dizer), um trabalho ambicioso concentrado nas nuances geopolíticas sob uma perspetiva inteiramente feminina, um cenário não de todo confortável para a realizadora que parece retratá-a com higiênicas luvas, tentando amenizar a “pegada japonesa” nos despojos campais. Nesse sentido, Yasuzo Masumura em “A Woman 's Life” (1962, presente no segundo ciclo de Mestres Japoneses Desconhecidos) revelou-se mais ácido, pesaroso e igualmente simplista. 

Contudo, a jornada de sobrevivência de Ryuko num território em vai-e-vem de exércitos, saqueadores e resistentes, é embrulhado num selo de artifício inquebrável - os travellings que correm paisagens a dentro, por entre estepes e vales, num êxodo “vestido” em cores reluzentes ou o pôr-de-sol de estúdio refletindo em tons escarlates, entendendo-se como uma miragem de uma família “perfeita” harmonizada mas altamente artificializada. “Princesa Errante” conserva o seu lado aventureiro e bélico, só que é no seu romantismo alicerçado a uma certa inocência (ou diríamos mais ingenuidade) que o torna numa produção personalizada dentro do lote, mas não de todo conseguida como documento histórico. Por sua vez, a protagonista e estrela de vários títulos de Mizoguchi, Machiko Kyō, posiciona-se como uma das “tour de force” do projeto.

 

Girls of the Night (1961)

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Podemos encarar este filme como o desejo de prosseguir os trilhos deixados pelo seu anterior mestre [Mizoguchi] em dois pontos; primeiro pela proximidade do tema (e título) a “Women of the Night” em 1948 (protagonizado pela própria Tanaka) e o “bater à porta” da Lei de Prevenção à Prostituição na chave de ouro “Street of Shame” (1956, dois antes da morte do cineasta), para além de Mizoguchi ter decretado uma carreira visitante a estes territórios com alguma frequência. 

Em “Girls of the Night” (“Mulheres da Noite”), a tal Lei encontra-se em vigor (e que vigor!), como testemunhamos naquela abertura informativa e contextual, o que leva a ser criado centros de reabilitação social para estas ex-prostitutas. Neste ambiente de cárcere prototípico, seguimos Kuniko (Chisako Hara), jovem determinada a obter uma segunda oportunidade de vida, apenas impedida por uma sociedade rancorosa que a relembra constantemente dos seus atos, ou dos fantasmas do “Natal Passado” que a revisitam com promessas faustianas. A nossa protagonista, um rosto numa massa uniforme o qual podemos apelidar de “rejeitadas”, é uma crucificada digna da sua subida ao calvário, onde só a pureza do mar, em modo “ama-san” a poderá resgatar para um novo horizonte.

Continuando o que havia proposto no seu primeiro filme (“Love Letter”, 1953), Tanaka revela-se mais ambígua neste troço, limitando as questões à perspetiva feminina, enquanto, e subtilmente, debate sobre a condição da mulher como dano colateral de uma guerra sangrenta e moralizante, e sublinhando a classe social enquanto motor de ignição à prostituição (ainda existe espaço, talvez em jeito decadente e patologico, de abordar o “safismo”). É um filme de mulheres (novamente colaborando com a argumentista Sumie Tanaka) sobre mulheres marginalizadas que uma sociedade, vulgo, progressista intenciona em não-perdoar. O regresso ao preto-e-branco, faz com que Tanaka não se distraia com paletas e se concentre no cinzentismo das suas personagens e dos seus respectivos cenários. Depois da “Rua da Vergonha”, cedemos a “Vidas de Vergonha”. 

 

“Love Under the Crucifix” (1962) 

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Possivelmente, foi enquanto senhora Oyu e Oharu, ambas sob as ordens de Mizoguchi, que Tanaka se inspirou para concretizar este amor proibido proveniente dos palco dos mortais que é “Senhora Ogin” (ou com o sugestivo título internacional, “Love Under the Crucifix”), o seu trabalho final enquanto realizadora. 

Esta adaptação de um livro de Tôkô Kon, decorre no século XVI, num Japão feudal dividido e “crucificado”, aí seguimos o sufoco da homónima mulher (Ineko Arima), filha de um prestigiado mestre de cerimónias de chá, que se encontra apaixonada por um samurai cristão, este, cegamente devoto da sua fé e da preservação do seu espírito para lá do terreno. Amores proibidos, gestos inconsolados, são meras formalidades perante o verdadeiro obstáculo para ambos, a banição do cristianismo e a vinda de um senhor feudal sedento em apropriar-se de Ogin como a sua enésima amante. “Senhora Ogin”, o regresso às cores de Tanaka e também o seu mais caro filme (albergado pela produtora de cariz independente Ninjin Club, fundada pelas atrizes Keiko Kishi, Yoshiko Kuga e Ineko Arima), é um jidai-geki [filme-de-época] de aparência reprimida e introvertida (características próprias da cultura Momoyama a qual a protagonista íntegra), mas sem travagens no pendor trágico que este romance materialmente transgressivo emana. 

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Um dos mais belos momentos, e possivelmente o núcleo desta história de passagem, é a sequência em uma mulher punida e sentenciada à crucificação, prossegue na sua própria “subida ao Calvário”. Ogin e a sua serviçal constatam um “estranho” brilho nos seus olhos, uma essência de vida libertada, mais proeminente de quando a sua “liberdade” encontrava-se em voga. Com isto declaramos que “Senhora Ogin”, por diversas vezes, incorpora as diretrizes triunfantes da religião cristã de que este mundo, abundante de distrações e pecados, é só um teste, possivelmente a garantia do passaporte para o que realmente interessa. Segundo essas doutrinas, a eternidade do espírito, desde a sua pureza até ao seu sacrifício (a primeira não pode desassociar-se da segunda), é o objetivo máximo da nossa existência. 

Ou seja, o que move e simultaneamente contraí esse amor não são as posições político-sociais, é a salvaguarda da essência espiritual, sofrer em vida para obter a recompensa no além, a transcendência prometida. É nesse aspecto que tal mulher apresenta eufórica vida a poucos momentos de ser crucificada, porque morrer como um mártir é visto Gold.

Entre família e carros não se mete a "colher" ... nem argumentista

Hugo Gomes, 16.05.23

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A greve dos argumentistas que recentemente “abalou” Hollywood reivindicava melhores condições de trabalho, estabilidade e segurança no ofício, acusando o streaming de ter alterado a estrutura produtiva da indústria e possivelmente as preocupações em relação aos avanços da IA. Nesse aspecto, solidarizo-me com as suas lutas, pois deixar o ChatGPT escrever guiões resulta nisto... não é verdade? Existe mão humana por detrás disto? Neste caso, realmente é necessário melhores condições de trabalho, sem dúvida.

"Fast X", desta vez com Louis Leterrier (um dos antigos "pupilos" de Luc Besson), é uma ambiciosa aberração frankensteiniana que tenta resumir toda uma saga que nos acompanha há mais de 20 anos. O que começou como um remake de "Point Break" (Kathryn Bigelow, 1991), substituindo surfistas por “street racers”, acabou por se tornar numa trama global embrionária digna dos enésimos filmes de James Bond ou "Missões Impossíveis", com carros executando o impossível enquanto Vin Diesel assume o papel de padroeiro da família, da forma mais tradicional e devota possível. Justin Lin, que entrou nessa jornada com o terceiro e depreciado filme ["Tokyo Drift", que saudades dessa simplicidade e exotismo], trouxe um certo absurdismo, fisicalidade e espetacularidade que culminaram em um “epopeico” quinto episódio no Rio de Janeiro, e é a partir desse ponto que começamos esse "X".

Aqui, a palavra de ordem é "família", soando como um clipe para os argumentistas trabalharem numa novela mexicana disfarçada, onde todos são parentes de alguém, não importa quem, e Jason Momoa, o vilão (cheesy até a quinta casa, mas não importa, fica claro que ele se diverte com tudo isso, e acaba se revelando o melhor em mais de 2 horas e meia de filme), é o "terrorista" cético em relação aos princípios de Vin Diesel e a sua pregação aos peixes. Milhões gastos no circo mais básico, onde Lin, o anterior salvador da saga, é colocado em segundo plano (como produtor e suposto roteirista), testemunhando a franquia de se tornar refém dos drones e da planificação extremamente decoupada, uma criatura carpinteira criada em nome da vibração, essa falsa-sensação que cativa espectadores com mentes irrequietas. Fica a pergunta: se o público está acostumado com temas adultos nas suas plataformas de streaming, por que alimentá-los com infantilidades na grande tela? "Desligar o cérebro" não pode ser mais uma desculpa, se as expectativas são tão baixas assim. "Fast X" resume uma saga em círculos, onde ninguém "morre", exceto Paul Walker, que por motivos trágicos (obviamente) e pela incapacidade dos argumentistas, se revela num estorvo nesta trama “salta-pocinhas”.

PS: Mas para muitos a questão das questões é se Portugal está representado aqui. Quase meia-hora de ação na A24 com direito a legendas gordas para localizar-nos e Daniela Melchior em destaque (mas sinceramente, esperemos que a atriz lusa receba ou procure papéis mais desafiantes nesses cantos hollywoodescos). Respondido?

Como ver a “Índia por um canudo” ...

Hugo Gomes, 06.05.23

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Karen (Denise Fraga) deseja estabelecer um tipo de contacto espiritual com a cidade de Lisboa, um refúgio à sua melancolia, e para isso contrata os serviços de guia turístico-histórico de Tiago (Pedro Inês), especializado, pouco ortodoxo, e ainda assim de jeitos metódicos. Na primeira digressão pela capital portuguesa, a brasileira Karen deslumbra-se com a fachada do Teatro de São Carlos, sob os anúncios da ópera de Giuseppe Verdi - “La Forza del Destino” -, dirigindo-se ao seu guia com a hesitante contestação - “É a ópera?” - no qual é recebida com tamanho desprezo pelo mesmo - “Lisboa é uma cidade feita de muitas revoluções, vou falar de alguns, mas digo-lhe já que das ‘fachas’ não falo…”. 

Com isto, “Índia”, a primeira longa-metragem de Telmo Churro, esclarece ao nosso espectador o tipo de figura que este protagonista será, um “Ramiro” de Mozos doente, “esquerdinado” e agressivo-passivamente embargado na sua própria tragédia. A tragédia de não se revoltar, ou metamorfosear para algo acima da mortal e inútil carapaça, da mesma forma que Lisboa manifestou ao longo da sua “existência”. Nisto chegamos à "Índia", através de um invisível caminho marítimo, nas caravelas velejadas e conduzidas nos sugeridos azimutes da Rosa dos Ventos, aqui, Churro, o escritor e editor tão lá da casa da produtora “O Som e a Fúria”, se tem definido como um farol estético e temático do cinema de Miguel Gomes, sobretudo, ou do já mencionado “Ramiro” de Manuel Mozos (a referência não foi ao calhas). O Adamastor de uma Lisboa “afundada” num estado de graça saudosista e em plena fase de negação, mística e detentora de uma veia cínico-fabulista. 

Digamos que é a cidade de João César Monteiro sem o seu espírito de irreverência, sem a sua perversão e ocultismo cinéfilo, são os “rebentos”, as vagas e vagens deixadas e semeadas em terra de ninguém, contudo, se Miguel Gomes criou nos embarques da África Colonial ou dos ditos e feitos à lá Sherazade um sinónimo seu, e do outro, Mozos, figura patusca, algo zeitgeist de um cinema paralelamente projetado e idealizado, Churro revela-se incapaz de emancipar dos seus colhidos frutos. Não por estas tormentas condenar “Índia” à perfeita inutilidade, é um filme de espaços, não físicos, e sim temporais, onde cada ideia se amontoa na outra, consequentemente criando num alinhar de tendências e criatividades inutilizadas pelo seu ego. 

Se ficamos encantados com Karen, essa personagem evadida do seu próprio espaço, comunicando com a ausência como Nanni Moretti fizera nos últimos tempos, por outro, sentimos esvaziados com a ridicularidade com que Tiago se assume. Em teoria, são maçãs do mesmo ramo, figuras lidando com o seu próprio desterro, mirando Índia por um canudo”, essa sua respectiva idealização de felicidade, nem que seja temporária. Karen consegue, com serenidade e tréguas com a sua tragédia, enquanto que Tiago, a sua inquieta e inconsolável dor o enquadra no perfeito caos. Em “Índia”, Churro persiste num filme visto e revisto quanto aos seus graus técnicos e processuais, sendo que no fundo uma história, ou antes, uma alegoria é encenada e relida à luz das idiossincrasias.  

 

Ele está a contar uma história?”

“Acho que sim … mas eu não estou entendendo nada.”

“Quer que lhe vá explicando.”

“Não deixa, isso já está passando.

A Soma de todos os Medos

Hugo Gomes, 26.04.23

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Beau (Joaquin Phoenix) vive num constante amontoar de medos; o medo da sua genética (reza a sua árvore genealógica que nenhum dos “machos” viveu além da noite de núpcias), o medo de viajar, o medo do seu bairro, dos vizinhos, de água, de relações, do sótão e dos monstros que o albergam, do psiquiatra, das pessoas em geral, mas no topo disso, a sua mãe, recentemente falecida, com o corpo a esfriar, aguardando a apropriada cerimónia fúnebre, esta, apenas validada pela presença do próprio Beau, que se encontra impedido devido a forças maiores que a dele (assim crêem). Poderemos desta maneira, resumir o quanto basta a nova incursão de Ari Aster - realizador da angústia e do medo, particularmente da sombra maternal, e em consequência o desmoronamento da ideia tradicional de família - sem ferirmos a susceptibilidade da “cultura no spoiler” propagada pela extensão das produções instantâneas de streaming

Desde as sua demanda no formato curta (resalvamos “The Strange Thing About the Johnsons”), o seio familiar é um espaço demente, em pleno conflito e de ódios extremados, porém, reprimidos quanto à base divinal do seu conceito, esses ecos que elevaram “Hereditary”, a primeira longa e ainda imbatível fábrica de tenebras atmosferas. Em “Beau is Afraid”, Aster faz do uso de Phoenix, do seu corpo decadente e desbotado como maquete de dor e de penosa existência, mas é na sua mente que reside o espectro, ora fantasmagórico, ora desdobrado nas dualidades entre personagem e realizador, quase como um ajuste de contas, um heterónimo (sabendo que o realizador assume-se adepto de Fernando Pessoa e dos labirínticos reflexos entre personagens e identidades criadas de raiz enquanto satisfações pessoais, ou meras necessidades existenciais), uma carta endereçada, selada e remetida ao seu grande MEDO, a responsável da repulsa, a responsável da cadeia e da soma de tudo o resto. 

Vejamos, Phoenix “sai-se bem na fotografia”, como sempre, entrega-nos o desempenho esperado, aludido à martirologia, ao comprimido humano, imprevisível e igualmente identitário, e por sua vez, Aster revela-se um engenhoso adornista de climas lucernários, aqui, concebendo uma espécie de “Alice nos País das Maravilhas” degolado, uma malapata reforçada e fortalecida no seu “miserabilismo-privilegiado”. “Não bate a bota com a perdigota” a última e adjetiva conjugação, mas também não interessa, porque passados umas, sensíveis, duas horas de thriller teatralmente orquestrado (impressão minha mas Shyamalan é referência na logística destes pesadelos confinados), a cortina cede, voltando a içar para um terceiro e epifânico ato, como o velho jingles das “pilhas Duracell”, dura e perdura. 

A raíz do mal é decifrada pelo espectador faz tempo, só que a partir desse “renascimento” o significado deixa de ser decifrável e passa a ser umbiguista, redecorando os anteriores passos como lições dadas, e de dedo riste e apontado ao antagonista afronta-se numa psicanálise visual. “Eu”, “eu” e “eu”, são as palavras de ordem que ruminam nesta narrativa, o filme deixa de ser um filme (digo partilhável, é claro), e passa a ser uma longa terapia de choque. Se tal como a escrita, a velha máxima de que os escritores escrevem sempre sobre eles próprios, no cinema, consideremos os filmes à imagem do seu autor. 

Aster realizou e escreveu, assinante da imagética e do conceito, da ideia e da repreenda. Mas a terapia também serve para estas ‘coisas’, evitar que sejamos torturados por três horas de perturbadoras confissões e divãs freudianos (cores edipianas à baila mais uma vez).  

"Sombra Brancas": um filme-simoso

Hugo Gomes, 20.04.23

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Um filme-simoso … a palavra, essa, pura invenção do seu autor - José Cardoso Pires - após sofrer um derrame cerebral que o “atirou” para um “branco limbo”. Em jeito poético, resume-se a um escritor que esquece de ser escritor e por sua vez o seu mundo, dessa forma, tenta (re)identificar objetos quotidianos, entre giletes ou óculos e o que sai é “simoso”, sem uso algum devido à sua inexistência gramatical. 

Esta adaptação de “De Profundis, Valsa Lenta”, obra literária algures entre o existencialismo biográfico e o experimentalismo ensaísta, objeto de “profunda” construção a partir da sua vivência em 1995 (o tal AVC), é fruto ficcional para Fernando Vendrell, produtor e ocasionalmente realizador, que havia tentado outro escritor e em outro espectro, 5 anos antes, com “Aparição”, sobre Vergílio Ferreira. Portanto, simoso é um estado, uma ideia, uma pluralidade, um gambuzino, e por outras andanças uma via para a criatividade, infelizmente “Sombras Brancas” debate-se para com a sua própria existência ao invés de persuadir na construção de uma, deseja ser uma biografia disfarçada, algo retrospectiva ou introspectiva, e por outro um forro surrealista e experimental, saindo o tiro pela culatra nesse mesmo alvo, no meio um retrato algo dissipado de um Lisboa intelectual e igualmente boémia, amantes do néctar da juventude interna, ou da (a)provação do “minete” (bem haja, em memória de Rogério Samora), ambiências que o próprio Cardoso Pires decidiu enveredar [com "Alexandra Alpha”] como contradição à tradição do ruralismo literário.

Sendo assim, tudo nos é desfragmentado, curiosamente seria essa a mais valia de “Sombras Brancas” (filmado durante a pandemia), uma entropia cerebral e narrativa, mas a confusão aí endereçada nada de refrescante nos traz, existe um sintoma de episódio-piloto em todas as sequências, como fossem esboços ou aperitivos para aprofundar em uma possível conversão de seriado televisivo. Ainda contamos com outro sintoma, não tão propício a enfartes mas de algum incómodo para com a sua natureza, uma sensação de coletivo, o que contraria aqui esse eventual e convidativo intimismo ou vertigem de morte, um índice vivente povoado de personagens em passagem e faces “desenhadas” num ensurdecedor eco. Um “simoso” nunca cumprido … daremos desta maneira uso à não-identificável palavra. 

Fernando Vendrell fica-se pela competência em trazer um livro infilmável (assim classificado, ao contrário de “Delfim”, a considerada obra-prima de Cardoso Pires, que contou com conversão fílmica de Fernando Lopes em 2002), sem romper as apropriadas vestes nem os seus estilos definidos, distanciando-nos do escritor regredido, interpretado aqui pelo muy generis Rui Morrison, porém, em matéria de desempenhos, a aliada contra a branquitude voraz, Natália Luiza (em dicotomia temporal com Ana Lopes), merecem os destaques e uma retirada das sombras (mesmo quão brancas sejam). A mulher, a mártir do ego desmesurável e dos pecados originais de quem é escritor, seja de raíz ou de causa, e de quem escritor nunca deixará de ser, mesmo que a vida prega as suas maliciosas partidas.  

 

“Como é que tu te chamas?”

“Eu? Edite. (...) E tu?”

“Parece que é Cardoso Pires”

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Hugo Gomes, 19.04.23

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Descolonização: palavra de muita celeuma, proporcional a revanchismo, ou a descortinamento a um mito constantemente perdurado, consistindo na ambiguidade histórica. Descobrimentos? Nada disso, substituiremos por expansão marítima, isto para não prosseguirmos no acréscimo vilipendiado do “colonial”. 

Assim, chegamos à devolução de artefactos museológicos aos seus países de origem (por vezes, negligenciando as fracas condições de preservação dos mesmos, ou até o desinteressante de muitos recém-formadas nações), à queda e destruição de estátuas homenageadas a vultos precisos desse referido processo ou na negação de qualquer embarque memorialista que não seja a sua antagonização. Falar de colonialismo, hoje em dia, é uma tarefa árdua e demarcadamente unilateral de forma a vincar e pregar a justiça um tanto negada. Contudo, descolonizar é também dialogar, retirando das sombras velhos traumas, basculho ocultado nos sótãos daquelas heranças não declaradas. É aquele ex-combatente, por exemplo, recusando confessar crimes ou experiências, apropriando como suas e apenas suas, crenças e cicatrizes, fantasmas aliás, dançantes na sua perturbada imaginação. A descolonização serviu como desculpa para esta abertura, a apuração de factos ao invés de consequências, mas os saudosismos mantidos em cativeiro, por vezes, falam por alto nas imediações das suas fragilidades. 

Carlos Conceição, angolano de raiz, comenta através desses mesmos fantasmas, e o faz por via do território do thriller, isso, se quisermos enjaular em géneros definidos e fechados, como manda a mais nefasta indústria, sem as honras da diluição. Eventualmente, é nessa feitoria narrativa, elaborando não apenas metáforas, e sim fábulas sobre as feridas esquecidas. A esteticidade supra de “Um Fio de Baba Escarlate, uma conversão do terror e do desejo erotizado, é superado pela noite tourneana, dos mortos-vivos pálidos e amaldiçoados por “causas perdidas”, meras manifestações de loucos delirantes da Fantasia Lusitana, pela guerra perduradora que une Atlântico e Índico, infamemente catalogado como “Ultramar” (palavra atualmente “proibida” devido, a isso mesmo, descolonização).

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Nesta demanda, segredos são incorporados em corpos jovens, meninos convertidos a soldados com ordem para matar em nome de um país longínquo. Eles mantêm a “paz”, diversas vezes ameaçadas por um "inimigo invisível" oriundo do outro lado da muralha, uma secreta muralha para lá do permitido, decretando o fim das suas divagações. São as crianças perdidas da Terra do Nunca, sendo que essa Terra’, é igualmente uma construção, uma fabricada alegoria que preserva a raiva, a dor e as ilusões. É o sinal do derrotismo, o projeto de um sonho não concretizado, caído no calor do 25 de Abril. Esta colaboração entre Conceição e o seu muso (João Arrais), “Nação Valente” revela-se numa cápsula temporal abanada e abalroada pela sede de desconstrução que estes novos tempos requerem. 

Com isso, nesta insuflação de masculinidade embrionária, é no desejo, palavra de ordem no cinema do realizador, que derruba cercos quase zoológicos e assume uma estância freudiana (a mãe ... sempre a figura maternal). Por outras palavras, este é cinema para irritar conservadores devidos ao impacto para com as memórias estabelecidas, porém, desvia-se do suposto panfletarismo, porque, enquadrando nos muitos propósitos cinematográficos, o insere numa narrativa e … convenha-se afirmar … com os seus ares shyamalanos, nem que seja na aposta do twist, na revelação em modos do “Como um Sonho Acordado” de Fausto, a contemplação da mentira (e que mentira!), que essa Nação, pátria amada, os egoistamente enclausurou . Soldados, vítimas dos devaneios de outros. 

A esta altura do campeonato, solicitar provas de valentia de Carlos Conceição não é mais um pedido aceitável, não há mais a provar, temos realizador (não só de agora). E se “Nação Valente” indignar alguém, então eis a vitória bélica para o nosso autor do desejo, porque o Cinema é também inquietar. Cinema confortável, este mundo anda cheio, e mais que isso, cansado.

A mãe de todos os males

Hugo Gomes, 16.04.23

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"Mommy's with the maggots now."

Podemos dividir por dois grupos as pessoas desta vida: as que preferem “Evil Dead”, o original de 1981, terror prático e estapafúrdio (classicamente falando), e as que optam pela sequela / refilmagem “Dead by Dawn”, em 1987, que implantou (ou será melhor induzir a palavra “assumiu”), a paródia no seu estilo grotesco e revanchista do cinema de terror 80’s. Portanto, ambas as facções poderão guerrilhar qual destas duas nuances é mais apropriada a esta mitologia, enquanto que Hollywood, ordenhando a sua “vaca milionária” (como costume), explora o filão, ora com remakes como a localizada em 2013 sob a assinatura de Fede Álvarez (sujeito acidental que conquista uma certa admiração numa igualmente certa fatia cine-intelectual), que funcionou numa padronização da sua fórmula, ou nesta releitura intitulada de ”Evil Dead Rise”, a espécie de sequela / reboot / reformulação que ninguém pediu mas que nos chega com um certo fulgor nostálgico. 

Abrindo com a mais vulgar das vulgaridades em registo “cabanas da floresta”, finalizando com um gorduroso título do qual o filme se apropria, partimos em seguida para um prédio em semi-abandono, segundo consta a demolição do mesmo está próxima e os seus habitantes possuem apenas um mês para se retirarem definitivamente. Dos que resistem, deparamos com uma família disfuncional, Ellie (Alyssa Sutherland), mãe de três’, cujo companheiro “desapareceu” por conta própria, recebe numa determinada noite a sua irmã, Beth (Lily Sullivan), com assuntos pendentes e “um” no ventre. É nessa mesma noite, tempestuosa, que um misterioso terramoto abala aquele mesmo edifício, convertendo-o numa improvisada masmorra. Um livro sinistro revestido em pele humana surge como “obra de espírito santo” (ou será o contrário?), e uma maldição propaga nos seus corredores, Ellie, outrora mãe zelosa, converte-se numa criatura demoníaca encarregue de levar todos os “sobreviventes” para o quinto dos Infernos. 

Lee Cronin (“The Hole in the Ground”) faz deste pré-fabricado universo uma variação diluída nos elementos idiossincráticos do seu cinema oitentista: os efeitos práticos ao gore criativo e os splatters em modo lúdico, apoderando-se de uma atmosfera artificialmente sintética naquela pequena comunidade. Acrescenta-se ainda uma antagonista maliciosamente sedenta de protagonismo para o sucedido, relembrando da invocação ainda presente nos prólogos da maldição em curso, cujos dois jovens convidam a vizinha para assistir uma maratona dos “filmes do Freddy Krueger”, “incluindo os maus” interpela o mais novo, automaticamente respondido pelo mais velho com “não existem filmes maus”. 

Ou seja, Cronin aplica as lições de um terror nostálgico, sobrevoando o legado “Evil Dead” e piscando os olhos a “Night of the Demons” (de Kevin Tenney [1988], um dos filhos da saga de Raimi, e dos quais implicou-se em afastar do burlesco que a sequelas / revisões se tornaram), como aventurando-se através de salpicos de “The Thing” (o body horror maleavelmente diabólico) ou, como já fora mencionado, “A Nightmare on Elm Street”, mais concretamente Freddy Krueger, o fala-barato assassino de slasher santificado por Robert Englund, que intimidava as suas vítimas através de espectáculos / encenações de automutilação, sendo demonstrações das duas capacidades corporais, além da mera carne, para lá do seu estado terreno. A monstruosa Ellie não é mais que um embrião desse vulto, usufruindo tamanho bullying para atormentar as suas presas, antes destas conhecerem os seus abruptos fins, apercebendo que a dor, eterna promessa dos infernos dantescos, conforme sejam, é uma “porca” realidade. 

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“Evil Dead Rise” é essa salganhada arquitetada num tributo a esse mesmo cinema de sustos e arqui-sustos, com os seus esperados calcanhares de Aquiles (as personagens que teimam em tomar as piores decisões em situações limites) e com essa ambição do zero, o de acompanhar o que fora feito e não transgredir iguais territórios. Desta feita, aquele edifício-prisão, imagem persistente no cinema de terror (e não só) enquanto caixas-de-pandora de perdidos e achados, a sua evasão reside na esperança a um horror algo voyeurista, contemplado num angular point-of-view que mimetizar o peeping tom que assume como estética de perspetiva.

Que a verdade não nos coma a língua: ninguém pediu outro episódio de “Evil Dead” (sem ser um regressado Sam Raimi e a continuação do seu anti-herói brutamontes Ash via Bruce Campbell), mas o tendo à nossa algibeira, não deparamos ofensa alguma em saudá-lo. Trata-se de um semi-frio com contas a ajustar a um legado, a um terror que se parece com tudo e igualmente se parece com nada. Com isto, mesmo com formulações e reformulações, existem ideias e execuções mais bem empregues aqui do que na enésima revisão de 2013, nisso, sim, é um feito. 

Contudo, devemos salientar que, perante o horizonte em queda de um determinado cinema norte-americano industrial, é no terror que descansamos "as vistas" com alguma vitalidade. “Evil Dead Rise” poderá não ser a quintessência do seu género, mas é fruto desse pequeno esforço.

Egrégios Avós ...

Hugo Gomes, 12.04.23

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Velha tendência, ou será antes a cerne do Cinema, o seu genuíno existencialismo? Serge Daney, na publicada entrevista-conversa de Serge Toubiana ["Perseverança"], confessava ‘procurar’ nos filmes o rasto do seu incógnito pai, diversas vezes iludido, graças à sua mãe e avó, de que a dublagem de muitas das produções, e a de um específico ator, preservavam as vocalidades da sua figura paterna. Acreditando nessa mentira, e persistentemente crendo-a como uma busca sem eira nem beira, o crítico de cinema confiava no Cinema enquanto território familiar, nela localizam os seus traços familiares, como um poeirento e esquecido álbum de fotografias. 

No cinema português, diversas vezes deparei-me em tertúlias cinéfilas com reclamações a várias das produções, principalmente em foros documentais ou nos primeiros passos neste universo, o qual tendiam (e pretendiam) servir de encontro e reencontro aos seus entes familiares. Os avós ou avôs seriam o “alvo” predileto nessas buscas para lá da ficção e para lá da veia documental. Talvez esse apelo emocional conquiste, e com muito sucesso, esse público que aceita o Cinema enquanto ponto de encontro, enquanto motivador de convívio familiar, ora em jeito detetivesco (“A Toca do Lobo” de Catarina Mourão), em modo de (bem-sucedida) instalação artística (“A Metamorfose dos Pássaros" de Catarina Vasconcelos) ou na demanda “cinema verité” (“Bostofrio” de Paulo Carneiro). A estes exemplos, acrescentamos “Soldado Nobre”, a primeira longa-metragem de Jorge Vaz Gomes, conduzida por mais de 6 anos (as primeiras filmagens iniciaram em 2013, as últimas em 2019), um (ree)ncontro com fantasmas de paradeiro desconhecido. 

O trajeto define-se envolto do vulto do seu bisavô. O realizador, que pouco ou nada conhece sobre este seu familiar - com excepção de que combateu na batalha de La Lys, Primeira Guerra Mundial, onde nela fez a sua derradeira morada - procura-o numa velha foto. Ali, dezenas de soldados posam firmemente em frente a uma parede de tijolos, o estado da fotografia desvirtua os detalhes da mesma, e sobretudo as características destes outrora jovens. Acreditando ser este o único retrato do seu parente, Jorge Vaz Gomes embarca numa investigação para, primeiramente, reconhecer o seu bisavô naquela mesma foto. Começa-se por três candidatos, reunidos pelas poucas e salientes semelhanças com os seus congêneres, contudo, quanto mais aprofundada a investigação se revela, mais afinidade o realizador tem com um determinado soldado desconhecido e semi-apagado do decadente registo.

“Soldado Nobre” salta de trincheira a trincheira a fim de concluir o seu objetivo. Se por um lado deseja conhecer o familiar “desaparecido” do registo, completando assim a árvore genealógica, por outro repensa a fotografia como conduta memorialista, e a desafia perante a ausência do seu objeto-estudo. Nesses termos, e evidentemente, o faz efetivamente através de uma visita ao Museu Louvre-Lens [nas imediações de La Lys], comparando o seu hipotético bisavô com a natureza dos retratos, esculpidos ou pintados dos seus artefactos históricos, mas é em específicas esculturas, silhuetas sem cabeça o qual depara uma relação direta com aquela pessoa-objeto. Jorge Vaz Gomes não inventa a “roda” nesta referida tendência, parte de uma foto, como tantos fizeram, e limita-se ao universo daquela mesma. Os “subúrbios” daquele pelotão, contextos históricos e geopolíticos, ou até mesmo o descortinar do papel de Portugal na Primeira Grande Guerra, ficam para outra altura. Não nos vemos em pedagogias, apenas em autognoses.

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Mais criativo e acima de tudo mais abrangente no seu “abraço” histórico, “Interdito a Cães Italianos” (“Interdit aux chiens et aux italiens”), uma animação stop-motion coproduzida entre Itália - Portugal - França- Suíça. Aqui, Alain Ughetto persiste em conhecer o seu avô e a restante linhagem familiar num registo autodocumental [um documentário sobre o seu próprio processo fílmico]. É um filme, felizmente, em constante desenvolvimento, e sem vergonha em esconder esses “andaimes", aos nossos olhos as figuras de "plasticina" formam personagens e essas personagens possuem memórias alicerçadas de “outrens” (uma possessão). É todo um processo, ora lúdico, ora repescatório de uma História recente, com Luigi, o avô e protagonista animado, homem de mil façanhas e de mil peles, atravessando fronteiras e esquadrias bélicas para que uma família possa, por fim, ser formada (e formalizada), tudo isso narrado pela avó de Ughetto, Cesira, também ela convertida em “boneco”, num pleno e imaginário diálogo com um realizador-criador onipresente. 

Homenagem, dirão muitos, malabarismo técnico, dirão outros, mas fora esse lado memorialista, “Interdito a Cães Italianos” (título alusivo a uma mensagem discriminatória à porta de um café francês) é a condensação de um século, o XX para sermos exatos, e as atribulações ocidentais, numa Europa dividida e “engolida” por movimentos fascistas e declarações de guerra concretizadas. Elemento narrativo latente na construção e resumo de uma árvore genealógica, Ughetto utiliza o seu talento de forma a descobrir a sua família, seja no conto e reconto das suas aventuras e desventuras, e dessa maneira redescobrir a si próprio.

Soldado Nobre” e “Interdito a Cães Italianos”, dois exemplos recentemente estreados de como o cinema continua a falar dos avós, e tratá-los como a sua força criativa e artística.