Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Anora, mon amour, a noite foi tua ... mas a que custo?

Hugo Gomes, 03.03.25

97th-academy-awards-press-room-34218951.webp

Começo pelo fim, como habitualmente faço ao encerrar esta conversa: “Acabaram os Óscares, voltemos ao cinema.” Com mais uma noite no Kodak Theatre, o cinema ficou-se pelo glamour que muitos ousam sonhar. O clube restrito está fechado, só entra com convite.

Pausemos o cinismo da passadeira vermelha e a feira das novidades por um momento, e encaremos a lista de premiações ao de leve: as hipóteses de Fernanda Torres vencer a estatueta – mesmo com “Ainda Estou Aqui” consagrado como Melhor Filme Internacional, batendo “Emilia Perez”, um musical de ódios e montra de certo virtuosismo ocidental (um dia gostaria de esmiuçar esse exercício de mediocridade de Audiard, mas o backlash generalizado fez-me ter pena) – e o Brasil levar o ouro para casa, foram esmagadas pelo sangue novo injetado por Mikey Madison, a jovem atriz pode contar com “Anora”, o grande vencedor da noite, como, e talvez, o ponto mais alto da sua carreira. Mas, em relação aos Óscares, prefiro vê-los como através de uma bola de cristal – e a sua vidência traz pistas sobre o pensamento corrente da Academia e a relação desta com um mundo em metamorfose. “Anora” não representa o melhor da produção global, mas talvez o melhor encantado pela indústria americana, e, pelos vistos, os votantes dão cada vez mais valor à chancela externa, com a Palma de Ouro a brilhar-lhes na face.

Sobre este vencedor, algo me inquieta: ver Sean Baker laureado como Melhor Realizador e o seu filme a erguer o troféu máximo faz-me prever um adeus ao autor de cinema independente. O que virá daqui? A maldição do Óscar fará efeito sobre Baker? O seu cinema industrializar-se-á? Quanto à jornada da stripper no “País das Maravilhas”, leio-a como uma abstração do sonho americano, e o sexo, esse elemento cada vez mais entortecido pelo puritanismo yankee e pelos moralismos aí enraizados, surge aqui sem condescendência, e sim como um contacto possível num tempo em que nos tornamos cada vez mais distantes uns dos outros. O final do filme prova essa tese – um dos mais tristemente belos que os EUA desencalharam em 2024.

Já o fantasma de “Emilia Perez" fez-se sentir nos prémios: Zoe Saldana venceu a previsível categoria de Atriz Secundária com o seu mau espanhol, “El Mal" levou Melhor Canção. “The Brutalist" pagou o preço das denúncias sobre o uso de IA, mas as consequências foram amenizadas: Adrien Brody conseguiu o seu segundo Óscar, ainda levou Melhor Fotografia e Banda Sonora (merecidíssimo). Rory Culkin, sem surpresas, venceu Ator Secundário graças ao seu papel co-protagonista em “Real Pain”.

No Other Land” levou Documentário, “Flow” brilhou em Animação, enquanto The Substance” e “The Wicked” saíram como os grandes derrotados. Os Óscares foram, por fim, uma disputa renhida, mas a ameaça de uma Hollywood MAGA-friendly pode colocar estes prémios em xeque num futuro próximo.

A ver vamos… Por enquanto, “Anora” brilhou!

A beleza é uma mera substância venérea

Hugo Gomes, 14.09.24

The Substance - HERO.jpg

The one and only thing you cannot forget, You are One.

Em "The Substance", há uma obsessão ostensiva pela sua mensagem, refletida numa estética exagerada, barulhenta, constantemente em choque e satiricamente glamourosa. Estreado no último Festival de Cannes, em Competição, o filme parece ter sido abençoado pelo sucesso de “Titane” de Julia Ducournau, galardoado com a Palma de Ouro em 2021, que abriu caminho para o subgénero do “body horror” no tradicional certame. Assim, "The Substance" brinca com corpos, próteses e metamorfoses, tudo à mercê de um elixir da juventude num cenário hollywoodiano onde a lei não é do mais forte, e sim a do mais "belo". Coralie Fargeat (sete anos após “Revenge”, uma espécie de "I Spit On Your Grave" feminista) encena o trágico canto do cisne de muitas estrelas de Hollywood, que não só têm de lidar com o envelhecimento, mas também com o biotopo de uma indústria que rejeita a ordem natural.  É uma sucessão de fenómenos e através de fenómenos, ingrato, cruéis e trocistas, onde Hollywood, a fábrica de sonhos que num estalar de dedos vira comboio-fantasma, reservando-se apenas para os mais experientes, sem equações infalíveis.

Demi Moore, "regressada" dos mortos — ela nunca esteve nesse reino, apenas orientada em produções mais  … digamos, discretas — é o exemplo perfeito de uma “abandonada” pela indústria que a agraciou em tempos e aqui, na pele de Elizabeth Sparks, uma antiga estrela, tanto do cinema como das passarelas, o esquecimento gradual está alinhado com o seu inglório envelhecimento, o que a leva a ser descartada por produtores, “cães babados” em encontrar uma nova ninfeta. Sparks encontra numa empresa misteriosa, "The Substance", a solução para os seus problemas: uma injeção que reativa as suas células e cria um novo "eu", literalmente, um corpo jovem e fresco que se alterna com o antigo a cada sete dias. Claro, há um contrato com procedimentos rigorosos a seguir, mas, como bem sabemos em tradição fílmica, a violação de tais acordos traz sempre consequências. Uma Dorian Gray de maiôs

TheSubstance_Still_07.jpg

"The Substance" é, no papel, inventivo o suficiente para justificar a sua exploração ”body horror”, deveras gritante, mas na prática concentra-se numa sobre-literalidade ao denunciar os "agressores", ou seja, os homens, todos sem exceção ridicularizados, sejam na sua caracterização de paródias-em-forma-de-gente, seja na decisão de filmá-los, na repugnância sonora gerada pelos seus maneirismos, quer pelos planos angulares com que centra Dennis Quaid, produtor ambicioso e vampiresco de nome Harvey (sim, percebemos a “referência” só pelo carácter, não precisávamos de especificar o “alvo”).  Este exagero na construção dos antagonistas jura ser tendência contemporânea, especialmente no que toca à crítica ao Poder patriarcal e aos super-ricos em tantos estratagemas cinematográficos aí cometidos (“Triangle of Sadness”, “The Palace), por outras palavras, há um certo medo em lidar com estas críticas e o caminho da satirização obtusa é uma amenização, mesmo que violenta só que nunca aguçada, a esse revanchismo. Contudo, a deformação humana destes rastejantes abre caminho para a deformação física que as protagonistas (Demi Moore e o seu alter-ego rejuvenescido Margaret Qualley) irão sofrer como parte da traição do trato.

Fargeat brinca com géneros, recarrega a fundo num terceiro ato grotesco, hiperbólico, desfaz todas as rarefeitas subtilezas do seu subtexto, deixa-se ir, em queda livre, ao lúdico e ao gratuito do seu lado mais trash, entre Tromas a Peter Jacksons de “verdes anos”, de Lovecraft a um piscar de olhos ao muito ignorado “The Society” de Brian Yuzna, com pós de prilimpimpim à simetria cénica de Stanley Kubrick [“Shining” grita em todos os corredores] até mesmo “Carrie” de De Palma. As referências estão lá como uma loja de guloseimas aos salivados do género. É uma orgia. Mas antes de ela acontecer, é a estética do imediato, do impressionável, como Nicolas Winding Refn recitou no seu “The Neon Demon” (desnutrido em dietas de neons, convém diferenciar). 

É um objeto frankensteiniano, com Demi Moore no brilho e na sujidade, mas estampada num filme com mais vontade de ser algo, que não sabe ao certo do que é, vergando pelo fácil, enquanto cinema, enquanto discurso.