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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os cowboys também choram ...

Hugo Gomes, 19.09.21

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Clint Eastwood está velho, é um facto à vista de todos. Não há como negar, ainda que rejeite a “reforma”, tanto atrás como à frente das câmaras. Contando com 91 anos e 40 filmes dirigidos, o galã (sempre o será, até ao último suspiro) mostra-nos a possibilidade de um cowboy chorar num filme em que chega a dizer “não conheço a cura para a velhice”.

Mas vamos por partes. Não entendamos este filme com o peculiar título de “Cry Macho” como uma pesada despedida de um legado, seja do ator e do seu universo, que se tornou familiar para nós, seja da tradição do western, que o próprio sepultou num digno funeral com “Unforgiven” em 1992. Em vez disso, encontramos a subtil representação desses estandartes cinematográficos e dos elementos que o caracterizaram como o último dos clássicos realizadores americanos. Tudo ambientado no México com o qual se parece ter maravilhado, que por lá também passou em "The Mule", o último filme que interpretou e realizou.

À partida, reagimos com tristeza, porque é no vulto de Eastwood, cada vez mais "decadente" mas igualmente conservando a sua majestosidade, que encontramos o último reduto dessa Hollywood que em tempos foi apelidada de “Nova” e agora é um passado gradualmente longínquo. Nesse aspeto, podemos ver “Cry Macho” como um filme de despedida, mas também foram isso em momentos distintos “Imperdoável”, “Gran Torino” e o dito “The Mule”.

O classicismo é então o mote de "Cry Macho" e a sua jornada contraria ideais "trumpistas" sobre os “bad hombres” do outro lado da fronteira. México é a segunda oportunidade para Mike Milo, um vaqueiro derrotado e arrastando morbidamente o seu fado. A tragédia não abate, nem atinge jamais este homem, que está pronto para viver como fosse o último dia. O filme dignifica esse último passo, não apenas auferindo bons ventos a um “paraíso imperfeito”, mas recriando uma narrativa simples e pragmática. Não se espere encontrar por aqui ênfases dramáticas nem martirologias: Clint Eastwood é determinado, na vida e com a câmara.

"Cry Macho" é um filme seguro ao encontro das memórias, observando através do ombro um rasto, caminhando espirituosamente em direção ao fronte. Não podemos esperar algo diferente deste mundo ao chegar ao limite. E quando a lágrima cai no seu rosto envelhecido, e do seu jeito enfraquecido, um cinema indomável é, por fim, domado pelo tempo.

A última balada do "macho man"

Hugo Gomes, 16.09.21

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"I used to be a lot of things, but I'm not now. You know, I'll tell you something, this macho thing is overrated. Just people trying to be macho to show that they've got grit. That's about all they end up with. It's like anything else in life, you think you have all the answers and then you realize you don't have any. But by then it's too late". Clint Eastwood (Cry Macho, 2021)

"Do I feel lucky?" Well, do ya, punk?"

Hugo Gomes, 07.09.21

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"Uh uh. I know what you're thinking. "Did he fire six shots or only five?" Well to tell you the truth in all this excitement I kinda lost track myself. But being this is a .44 Magnum, the most powerful handgun in the world and would blow your head clean off, you've gotta ask yourself one question: "Do I feel lucky?" Well, do ya, punk?" Clint Eastwood (Dirty Harry, Don Siegel) 1971

Eastwood faz sermão, mas não lhe chamem "velho"

Hugo Gomes, 01.01.20

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A tentação de reduzir Clint Eastwood a um “velho”, trazendo à memória o episódio da conversa com a cadeira vazia de Obama durante a campanha presidencial de 2012 ou os filmes de teor patriota que têm, sobretudo, conquistado uma facção mais conservadora e militarista, é um ato de pseudo-sobrancelharia intelectual. Mais que nunca, o veterano cineasta de 89 anos aborda a nossa atualidade, desafiando-nos a olhar com outros olhos não apenas as nossas jornadas morais, políticas e sociais. Eastwood é um homem disposto a dar o peito às balas pelos seus heróis americanos e a defendê-los contra as tiradas democratas e de um Mundo atento que se autocensura. Isto não serve para perdoar a falta de redenção que um filme como “American Sniper” ou a miopia da narrativa global de um “The 15:17 to Paris”, mas também não nos importamos de também servir de alvo perante aqueles que desejam encostá-lo a um canto pelo seu posicionamento político.

Em “Richard Jewell”, o cineasta presta-se ao mesmo dispositivo utilizado num  “Flags of our Fathers” ou “Sully” para desconstruir a imagem heroica e lavá-la perante a turbulenta relação entre esse arquétipo e uma sociedade desconfiada, inquisidora e acusadora. A história e resistência moral de Richard Jewell dialoga diretamente com a nossa atualidade, mas sem a imperiosa urgência que é hoje requisitada. Basta ver aquilo que compõe a figura, o mesmo que levou o FBI a catalogá-lo como o suspeito número 1 de um atentado terrorista: aquele perfil correspondente a um “loner”. Interpretado por Paul Walter Hauser (poderá ser uma das surpresas nas nomeações aos Óscares, aposta nossa), o “herói” é tudo aquilo que se afasta da imagem tradicionalmente heroica e, ao mesmo tempo, das solicitações desta “Nova Hollywood”, e perversamente, consolida os elementos estereótipos de um "trumpista": branco, amante de armas, militarista, patriota e mais preocupado em provar a sua heterossexualidade do que a sua inocência.

Contra os princípios hoje estabelecidos (e porque não generalizados), ele é o mártir e, sem escapatória, a testemunha de um facto real que Eastwood invoca para abordar os tempos em que a exigência de sangue se sobrepõe aos tempos da Justiça. É aqui que entramos num território mais cinzento e minado do filme, com a personagem de Olivia Wilde, uma jornalista que consegue o "furo" que automaticamente se converte na crucificação de Jewell: Eastwood transforma-a num exemplo, revestindo-a de uma má índole questionável nos tempos do #MeToo e pouca vista no cinema de hoje.

A certo ponto, existe um diálogo de confrontação entre o advogado de Jewell (Sam Rockwell, a caminho da terceira nomeação consecutiva para as estatuetas?) e a repórter “metediça” sobre o seu papel neste processo de "inquisição". Tendo em conta o contexto atual, Eastwood não é o "velho" que discursa para fantasmas, mas alguém a fazer um sermão camuflado para os "media" e a sua constante manipulação, não fosse ele um republicano assumido que vê cada vez mais os meios de comunicação a tomar lados politizados e ideológicos. Mesmo assim, a crítica é de pavio curto: fica a sensação de que Eastwood extrai a moralidade deste caso para castrar a dimensão que o jornalismo tem, o do “Quarto Poder”, que acusa de ser corrompido pelas amoralidades capitalistas.

Para além de tudo isto, nesta sua demanda pelo resgate de um incompreendido e difamado herói norte-americano, “Richard Jewell” mostra a intenção de manter vivo no cinema um classicismo técnico e narrativo, apoiado intencionalmente nas emoções destas personagens e os efeitos gravitacionais do enredo. Pelo meio, há deliciosos momentos de execução que provam que o realizador está longe do selo de “velhote”, desde o entusiasmo com que filma a dança da macarena (de forma a localizar a ação nos anos 90) ou a montagem paralela e retalhada com que coloca, lado-a-lado, a investigação e o passo de um maratonista.

Concorde-se ou não se concorde com o que se vê, um novo filme de Eastwood é, e sempre será, uma celebração cinematográfica.

Clint Eastwood, a nossa "mula" ...

Hugo Gomes, 31.01.19

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Antes de avançar para este regresso de Clint Eastwood à sua díptica tarefa (direção e representação), queria-me deslocar a uma das teses de Slavoj Zizek, que também integrou o documentário “The Pervert’s Guide to Ideology” (Sophie Fiennes, 2012). Aí, o filósofo exemplifica a ideologia por detrás da franquia Starbucks. O que ele indica é que ao comprar café nestes balcões, estamos também a comprar a sua ideologia, isto porque estes produtos mais caros que os dos concorrentes vêm com a promessa de solidariedade. Por exemplo, uma percentagem desse valor reverte a uma causa (seja ela qual for, desde a alimentação de crianças africanas a salvar uma floresta tropical). Essa engenhosidade torna a que um ato de puro consumismo (da nossa parte) não ostenta qualquer indício de culpa, porque o consumidor é abrangido na ideologia de que na aquisição destes cafés está a contribuir para a ajuda de algo – abstraindo-se com isto do pensamento consumista no ato que pratica.

Voltando a “The Mule” (“Correio da Droga”), a história de um florista nonagenário, Earl Stone, que aceita trabalhar para um cartel de droga como transportador (aquilo que nos EUA é designado  de “mule”), é possivelmente uma derivação dessa tal teoria do branqueamento consumista, porque em certo caso, a obra de Clint Eastwood joga com a ambiguidade moral. Ou seja, o bem gerado por ilícito. Aqui o protagonista contribui para a comunidade em que se insere (seja por exemplo, a associação de veteranos), ou na rendição dos seus pecados passados (redimir o tempo perdido com a sua família), tudo isto com o dinheiro conquistado através destas transações ilegais. Earl tem o conhecimento dos seus atos e é nisso que o pensamento de Zizek encaixa na perfeição, só que longe das demandas de expansão capitalista, o que está em causa é a ética, a sua natureza e compostura.

"The Mule" entra nesse mundo em que a personagem principal cai no “goto” do espectador sem nunca ceder aos caminhos da martirologia pura, o final é um exemplo perfeito desse engodo, onde a culpa de todo este jogo de enfoques morais encontra a sua pátria (cedendo depois a um belíssimo travelling enquanto os créditos tomam posição no ecrã). Contudo, antes disso, não é só a droga que faz jus a essa teia de valores, alguns que até desafiam a intenção algo “Trumpista” que a América vive e das últimas glorificações aos “heróis” americanos de Eastwood. Earl convive com os seus traficantes, come, bebe e interage com estes de um jeito quase castiço, o que drena toda uma composição a um território de terceira-idade amistosa. E por momentos, até os antagonistas demonstram essa sensibilidade humanista, cedendo também às complexidades dos tons cinzentos.

Pois, é que Eastwood como “espião duplo” (atrás e à frente das câmaras) comporta-se como um cineasta diferente, pregando os bons valores da família ao mesmo tempo que procura uma redenção ao seu conservacionismo, quer ideológico, quer até cinematográfico (o realizador é um grandes herdeiros e sobreviventes do classicismo hollywoodiano). “The Mule” enviusa diretamente com os anteriores “Gran Torino” (a redenção), “Absolute Power” (a família), “The Bridges of Madison County” (a validade do romance) e até com o infame “Space Cowboys” (pós-envelhecimento), no sentido em que quebra o formalismo desse academismo genético tão próprio de Eastwood e procura uma sensibilidade doutrinal nos, e fora, dos seus planos.

Sim, é um cinema de velhos (no cinema protagonizado por Eastwood existe também uma autorreflexão que acompanha o estado do Mundo, neste caso a tecnologia e a sua dependência como perpétua menção), diversas vezes direcionado aos cinéfilos de outrora, mas na realidade encontramos aqui a jovialidade que muitos não possuem. Para isso, aproprio-me de uma das frases, saídas da terna Dianne Wiest, para representar a relação deste veterano com a cinefilia, e vice-versa:  “You are the love of my life, and the pain of my life.”

(Mais um) Herói americano by Clint Eastwood

Hugo Gomes, 09.09.16

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Um dos episódios mais impressionantes da História da Aviação aconteceu em 2009, quando o piloto norte-americano - Chesley "Sully" Sullenberger - concretizou com êxito uma arriscada aterragem no Rio Hudson. Estamos a falar do  US Airways 1549, um avião comercial que trazia a bordo 155 almas, porém, devido ao heróico feito de "Sully" que atuou no momento certo, nenhuma delas se perdeu. Uma "boa notícia em Nova Iorque, principalmente com aviões", como é referido a certo momento nestas adaptação de Clint Eastwood, tem recebido um extremo frenesim mediático. "Sully" foi automaticamente elevado a estatuto de herói, tendo até sido nomeado pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes.

Mas passando para o filme propriamente dito, Clint Eastwood remexe novamente na História norte-americana para analisar um dos seus heróis recentes. Contudo, este “Sully” está mais próximo de “Flags of our Fathers” (“A Bandeira dos Nossos Pais”) do que o equívoco de “American Sniper” (continuo a acreditar que o filme não foi fruto de Eastwood), o qual procura uma definição concreta de heroísmo, posicionando a câmara para os homens comuns que os "imortalizam". Enquanto que no filme de 2006, o retrato dos soldados que içaram a bandeira dos EUA na ilha de Iwo Jima, os ditos "heróis" questionavam-se perante uma sociedade sedenta pelo estatuto, em "Sully" é a própria sociedade que questiona a natureza do nosso herói, sendo este o conflito que prossegue toda a narrativa, desaguando no limiar existencialista do protagonista.

Tal como sucedera com o fracassado “Flight”, de Robert Zemeckis, é a busca dos factos e responsabilidade acima de qualquer fator humano, mas “Sully” apresenta-nos um "punhado" dessa última dose com Tom Hanks a funcionar como um ator "capriano", a erguer toda a trama em cima dos seus ombros mesmo que para isso torne descartável todo o conjunto de personagens secundárias. No fim percebe-se, que os veios analistas não chegam a ser profundos, as marcas não nos levam ao seu extremo e o classicismo moralista é a solução para uma dedicada homenagem.

Talvez tenha sido “American Sniper”, que fora o embate com um realizador anónimo, que fez com que “Sully” converter-se numa experiência acima da média, mesmo assim interiorizada no cinema norte-americano academista. Mas é Clint Eastwood que se encontra na batuta, quer que se ama, ou odeia, é esse fator humano que conta.