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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Elas Fazem Filmes", e fazem mesmo!: Mostra de realizadoras segue pelo país fora através da MUTIM

Hugo Gomes, 18.09.24

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Frágil como o Mundo (Rita Azevedo Gomes, 2001)

Arranca hoje (18/09) a mostra itinerante “Elas Fazem Filmes” - uma colaboração entre a associação MUTIM (Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento) e a Cinemateca Portuguesa, com o apoio do ICA. A mostra parte da “casa-mãe”, o Museu do Cinema, com uma sessão dupla: Cães que Ladram aos Pássaros, curta-metragem de Leonor Teles, e a segunda longa-metragem de Monique Rutler, “Jogo de Mão”, cineasta a ser redescoberta, e prossegue com a ambição de chegar a 14 cidades de todo o país até julho de 2025, trazendo uma coleção de obras, célebres e algumas esquecidas que merecem uma nova apreciação, todas dirigidas por mulheres - cineastas portuguesas que desafiam o cânone ou oferecem uma um novo olhar sobre a História do Cinema Português.

A mostra inclui fragmentos de Barbara Virginia, indiscutivelmente a primeira mulher realizadora em Portugal, com “Três Dias sem Deus” (dos 102 minutos, só restam atualmente 25), a inaugural produção portuguesa a competir no Festival de Cannes. Inclui também as primeiras obras de Rita Azevedo Gomes (“Frágil Como o Mundo”, 2001), Manuela Viegas (“Glória”, 1999) e Margarida Gil (“Relação Fiel e Verdadeira”, 1987), documentos históricos de Raquel Soeiro de Brito (“Erupção Vulcânica dos Capelinhos”, 1958) e de Ana Hatherly (“Revolução”, 1975), animação (trabalhos de Laura Gonçalves, Regina Pessoa e Alexandra Ramires) e documentário (Catarina Mourão, Cláudia Varejão ou Susana de Sousa Dias), entre outros. Um verdadeiro “espectáculo de variedades”, uma montra polivalente de filmes cujo único elo comum é o facto de terem sido conduzidos, concebidos e produzidos através do trabalho árduo e dedicação de mulheres.

O MUTIM disponibilizou-se a responder a algumas questões do Cinematograficamente Falando… não só sobre o ciclo itinerante, como também sobre as projeções e ativismos que “Elas Fazem Filmes” pretende alcançar, bem como sobre a natureza e a estrutura do coletivo. Mariana Liz, professora e co-autora do livro “Realizadoras Portuguesas: Cinema no Feminino na Era Contemporânea”, e Marta Fernandes, distribuidora e programadora [Midas Filmes], aceitaram o desafio, e respeitando o espírito do movimento, falaram em nome de todas, e não apenas uma. Assim, o MUTIM assume uma entidade coletiva e própria neste informativo diálogo. 

Qual foi o impulso inicial para dar vida à mostra “Elas Fazem Filmes” e quais os obstáculos enfrentados ao longo do processo de curadoria e produção?

Desde a sua criação em Abril de 2022, que a MUTIM promove sessões de filmes realizados por mulheres, sessões que contam com debates e a presença sempre que possível de realizadoras ou membros da equipa e de outras profissionais que possam discutir os filmes. As sessões começaram em Lisboa, em parceria com o Goethe-Institut, e mais tarde passámos também a promovê-las no Porto, em conjunto com a Casa das Artes. O ano passado e depois das conclusões do estudo do meio sobre “A Condição da Mulher nos Sectores do Cinema e Audiovisual em Portugal achámos que devíamos criar uma iniciativa que nos permitisse promover o cinema feito por mulheres em Portugal, mas também discutir a nível nacional e com os espectadores as conclusões a que o estudo chegou. As mulheres ganham menos, ocupam menos cargos de chefia, tem mais entraves à progressão da carreira, são vítimas de discriminação de género, assédio, racismo. 

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Jogo de Mão (Monique Rutler, 1983)

Relativamente aos entraves, o apoio que conseguimos do ICA, sendo fundamental para levarmos a cabo a mostra, foi, infelizmente, inferior ao solicitado e por isso não nos permitirá ir a tantas cidades como ambicionávamos. E no processo de programação, existiram também filmes que gostaríamos muito de ter incluído, mas que não foi possível por uma questão de inexistência de cópias disponíveis ou por questões de direitos. 

A mostra reúne cineastas de diferentes gerações, de géneros como também de movimentos artísticos. Como se deu a seleção dos filmes e de que modo acreditam que essa diversidade de perspetivas traduz o panorama do cinema português à luz das mulheres?

A programação da mostra “Elas Fazem Filmes” foi, como aliás todo o processo desde a procura de financiamento até à produção em curso, um trabalho colectivo, feito a muitas mãos. Queríamos apresentar uma programação inédita que permitisse ser um ponto de partida para reflectir sobre o cinema feito por mulheres em Portugal. E para isso era fundamental apresentar filmes de cineastas de diferentes gerações, a trabalhar em diferentes géneros cinematográficos de forma a que pudéssemos ter uma diversidade fértil de olhares e estabelecer diálogos entre filmes e realizadoras. Quisemos ter o máximo de géneros presentes, ter animação, documentários, documentários mais experimentais, aproximações ao fantástico e ao terror, ao filme etnográfico, à ficção científica. Mostrar que o cinema feito por mulheres em Portugal é muito variado e rico. E ajudar a desmontar preconceitos que existam relativamente ao cinema português e especificamente ao cinema realizado por mulheres. 

A colaboração com a Cinemateca Portuguesa, nomeadamente no que toca à digitalização de filmes, foi um ponto essencial para a concretização deste projeto. Como vêem o impacto dessa parceria na preservação e disseminação da obra cinematográfica de mulheres portuguesas?

É um trabalho imprescindível. Parte dos filmes que iremos mostrar só é possível fazê-lo graças a este trabalho da Cinemateca. Seria muito difícil exibir fora de Lisboa e da Cinemateca muitos dos filmes que programamos. É possível fazê-lo porque existem hoje cópias digitais. É preciso ter sempre presente a questão do acesso. Quando, no passado, outras cidades reivindicavam o direito a ter uma Cinemateca, estavam a pedir a descentralização. É claro que o acesso a cópias em 35mm é sempre difícil e por questões de preservação pode ser limitado. Com a digitalização, a circulação torna-se possível e os filmes passam a ser programados mais facilmente, salvando-os de uma invisibilização a que eram sujeitos por uma questão de suporte. Mas é um trabalho que tem de continuar a ser feito, e deve ser defendido e promovido, porque continuam a existir muitos filmes por digitalizar. 

A MUTIM defende uma maior equidade no sector cinematográfico e audiovisual. Na vossa opinião, que transformações mais urgentes precisam de acontecer para garantir uma verdadeira representatividade das mulheres no meio?

Há várias medidas que podem ser postas em prática e que contribuíram não só para uma maior representatividade das mulheres, mas também uma maior igualdade do setor do cinema e audiovisual em Portugal. Por exemplo, a MUTIM defende o estabelecimento de parcerias com instituições públicas, como a

Comissão para a Igualdade de Género, no sentido de explorar sinergias ao nível do aproveitamento de políticas que tenham impacto no nosso sector, e na sociedade de forma mais lata. Inspirando-nos no que já acontece em outros países europeus, propomos também que se implementem, nos concursos públicos de apoio ao sector, incluindo os do ICA, majorações nos projetos que cumpram critérios de representatividade de género e nos projetos que tenham como criadores e/ou chefes de departamento pessoas racializadas. 

Para além disto, defendemos a atribuição de um valor monetário extra a produções que cumpram 50%/50% ao nível da paridade de género na constituição das suas equipas e respetivas direções de departamento; e a atribuição de um valor monetário extra para a seguinte produção de produtora que continue a cumprir o critério dos 50% / 50% na composição de género das equipas. No que tem a ver com composições de jurados de prémios e financiamentos ao setor, é muito importante não só ter paridade, mas também formar as pessoas no sentido de combater o unconscious bias do sector e diminuir os estereótipos das candidaturas. Dar aos jurados Inclusion Checklists para acompanhar a leitura dos projetos pode também ser útil se contemplado no regulamento, e prevendo a atribuição de pontos extra na avaliação aos projetos que os cumpram. 

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Três Dias sem Deus (Barbara Virgínia, 1943)

Finalmente, recomendamos que seja posta em prática uma avaliação interna contínua sobre representatividade de género e racial, sendo que, na sequência do nosso estudo, acreditamos que ganhar consciência anual dos dados factuais que compõem ou não a diversidade das produções e das narrativas é um primeiro passo fundamental para a construção de um setor mais diverso e menos desigual. Aliada a esta visão, propomos também o estabelecimento de metas percentuais de representatividade e consequente aplicação de medidas para as concretizar.

De que forma a mostra “Elas Fazem Filmes” procura fomentar uma reflexão crítica sobre a imagem e o papel das mulheres no cinema português, tanto no conteúdo narrativo como nas oportunidades de participação?

Todas as sessões da mostra terão uma conversa / debate no final que contará com as realizadoras, profissionais mulheres que integraram a equipa técnica e artística dos filmes apresentados e associadas da MUTIM. E tentámos organizar as sessões de forma a que duas realizadoras de gerações diferentes pudessem conversar sobre as semelhanças e diferenças nos desafios de filmar nas suas gerações. Ao convidar não só realizadoras a falar sobre o filme, mas também outras profissionais, queremos sublinhar o trabalho da criação de um filme como um trabalho colectivo e valorizar todas as profissionais que para nele trabalham. Como já foi dito, queremos também que associadas da MUTIM estejam presentes para discutir as conclusões do estudo do meio, porque falar das conclusões do estudo é o primeiro passo para a mudança. 

A interseccionalidade tem sido um pilar nas discussões da MUTIM. De que modo este princípio influenciou a escolha dos filmes e como têm procurado dar palco a mulheres de diferentes contextos sociais, raciais e geográficos?

É algo que temos sempre presente e que tentamos cumprir o máximo possível e como tal influenciou parte das escolhas que fizemos de programação. Sabemos que as dificuldades que as mulheres enfrentam no cinema e no audiovisual são ainda maiores quando falamos de mulheres fora dos centros urbanos ou de mulheres imigrantes, racializadas ou trans. O nosso trabalho tem obrigatoriamente de passar por ajudar a eliminar essas barreiras.

A mostra vai passar por várias cidades do país. Como esperam que a itinerância contribua para a receção das obras e para a criação de novos públicos, especialmente fora dos grandes centros urbanos?

Quando começámos a pensar a mostra, pareceu-nos crucial que não fosse mais uma mostra que se centrasse unicamente nos grandes centros urbanos, até porque já organizávamos sessões regularmente nas cidades de Lisboa e do Porto. Tendo em conta que é muito mais difícil aceder a cinema português fora das grandes cidades, e mais ainda a filmes realizados por mulheres, achámos desde o início que a itinerância e levar estes filmes ao máximo de cidades possível seria uma necessidade. Mas mais que mostrá-los, os filmes serão acompanhados pelas realizadoras e por associadas da MUTIM porque queremos que se estabeleça um diálogo com os públicos, queremos ajudar à formação de públicos para o cinema português, mas também ajudar ao debate sobre as questões de género. E tentaremos em todas as cidades por que passarmos e com a ajuda dos nossos parceiros locais fazer um trabalho junto do público escolar, trabalho que nos parece de extrema importância.

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Para mais informação sobre a mostra ver aqui

"A Culpa não morre solteira": o ano terrível para o Cinema Português

Hugo Gomes, 24.12.22

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"Km 224" (António-Pedro Vasconcelos, 2022)

2022, mais um ano, mais lamentações a caminho. O Cinema Português, essa formalizada instituição que muitos adoram cuspir, resiste face aos números vergonhosos nas bilheteiras nacionais, mesmo que, muitos deles beneficiam de “boa imprensa”, de críticas esplendorosas, artigos requintados e o esforço hercúleo por parte das suas distribuidoras e produtoras em os promover. 

Mas o cinema nacional demonstrou-se alheio aos planos do grande público, que o diga o veterano António-Pedro Vasconcelos e o seu drama de custódias “Km 224” que terminou com uns “míseros” 4.128 espectadores (tendo em conta a sua ambição comercial, 830 sessões contra, comparativamente, as 161 de Lobo e Cão de Cláudia Varejão que arrecadou, até ao momento, valores mais acima), ou o que dizer a estreia de Tiago R. Santos e o quarteto de luxo [Ricardo Pereira, Teresa Tavares, Margarida Vila-Nova e Cristóvão Campos] com “Revolta”, filme que em outros tempos chegaria, na pior das hipóteses, aos 5.000 espectadores, apenas arrecadou 1.719. Melhor posicionado esteve “Salgueiro Maia: O Implicado” de Sérgio Graciano [16.777], o qual convém referir a importância ainda memorial da sua figura-alvo, e a dupla rural “Restos do Vento” de Tiago Guedes e “Alma Viva” de Cristèle Alves Meira [11.685 e 7,537].

Nem mesmo João Botelho, possivelmente o realizador com mais imprensa por metro quadrado nos seus filmes, que nos trouxe uma das suas melhores obras em muito tempo (“Um Filme em Forma de Assim”), não escapou à derrota nessa estrangulada luta nas bilheteiras [2.208], e num ano em que contou com retrospetiva integral na Cinemateca, novamente promovida em todos os meios, mas igualmente captada pela indiferença do seu público-alvo. Cinema português e bilheteiras são um eterno fado e que nada descura da qualidade de muitas destas obras. 

Já os restantes autores propriamente ditos; "Fogo-Fátuo" de João Pedro Rodrigues a exibir a sua legião de adeptos [3.533 espectadores], com cerca do dobro do atendimento, Marco Martins e o seu “Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965 - 2005” demonstraram adesão ao documentário português (enquanto o mais visto nessa categoria foi “Cesária Évora" de Ana Sofia Fonseca com 7.057 espectadores). Números longínquos para com uma Rita Azevedo Gomes, por exemplo, cujo O Trio em Mi Bemol levou até ao momento 467 espectadores, mais que o tríptico de Joaquim Pinto e Nuno Leonel acolheram [“Pathos Ethos Logos / 178 espectadores]. Comparativamente, com menos promoção e imprensa, a segunda longa-metragem de Adriano Mendes - “28 ½ - concretizou 725 espectadores, em 43 sessões, menos que as projeções do filme da Azevedo Gomes, ainda em cartaz [62 até à data].

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"O Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Estes trazidos números serviram para mostrar um só propósito - o constante desfasamento entre o público e o seu cinema - um fenómeno latente à dissertação das salas pelo conforto do ambiente doméstico sob a febre das “novidades do streaming”, ou a cada vez mais “exigente” seleção do que realmente ver numa sala de cinema … a aspas são pertinências visto que o cardápio parece fundamentado em redor de super-heróis ou franchises duradouros. Contudo, quando o tema é cinema português, a discussão resume-se na própria qualidade destes do que no gosto do espectador. Anos a fio a ouvir os mesmos queixumes, enfrento-o esses argumentos com os iguais números.  

Mas antes disso, há que procurar as causas para esse divórcio? Possivelmente, um dos graduais problemas, como havia sido sugerido, seja a reputação que a nossa produção adquiriu e acumulou ao longo destes anos. As avenças de “Amor de Perdição” de Manoel de Oliveira ou os enterros antecipados a António Macedo (o sketch satírico de Herman José fantasmagoricamente ainda povoa na nossa imaginação coletiva), conspiradas raízes para este boicote orquestrado ou até politizado que hoje fomenta furiosos pedidos de uma renovação de histórias, de estilos, de ritmo, de atores e sobretudo uma “americanização” do nosso cinema, em jeito de encabeçar sem grandes histrionismos um catálogo de um globalizado streaming

Porém, o desejo é diferente dos sucessos, “Dois Duros de Roer” ou Curral de Moinas: Os Banqueiros do Povo, inquestionavelmente amadora televisão descaradamente embutida na tela conquistou espectadores (48.830 e 314.115 respetivamente), muitos deles assinantes dessa “carta de exigências". Com este cenário em conta, para quê continuar a debater sobre o que o cinema português precisa de fazer para “apelar” ao seu público? Claro que não, como todos os divórcios, a culpa não morre solteira. 

Escusado será totalmente imputar a nossa produção tendo em conta que o dito “espectador português” tem demonstrado ao longo destes anos zero paladar no ramo.

Entre selvagens e domesticados, um conto de "crianças perdidas"

Hugo Gomes, 09.12.22

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Numa das imagens mais celebradas do filme, um grupo de misfits posicionam, um a um, num palco de purpurinas, fitando o seu olhar numa câmara invisível / visível a fim de quebrar a quarta barreira, resultando numa troca de impressões para com o espectador, existente do outro lado da tela, que os atenta observa. Como um aquário, após o retrato completado, somos expostos à diversidade, representatividade, e mais que isso de apreço, empatia, ou apenas solicitação da mesma, que todo aquele palanque nos transmite. 

“Lobo e Cão”, a nova longa-metragem de Cláudia Varejão, poderia resumir a esta mesma sequência movida a música e a faixas multicolores, um "inventário" da ilha de São Miguel, que nele oculta um punho contra o binarismo, a “prisão” que os nossos personagens / indivíduos vivem entre o estatuto de atores e não-atores. No seu centro, há um contorcionismo em romper a imposição documental e inserir estes “marginalizados” (assim se sentem numa comunidade ultra-regida pela religiosidade e o conservadorismo), numa intriga ramificada em subenredos para que possam apelidar de ficção. Ora, aí reside a grande fraqueza do filme, pelo facto de ser tratado ou tratar da sua “ficcionalidade”, nunca desenvolve apropriadamente qualquer um desses seus “ramos”, com isto perde-se em incentivos que culminarão a becos sem fins, prestando contas à colaboração (à comunidade acima de tudo) do que maioritariamente visando a saúde da sua narrativa. 

Por outras palavras, somos como um açor, pairando ali e acolá, tendo a figura da Ana (Ana Cabral, um achado) como peça central nesta teia de relações - entre as quais, possivelmente a mais relevante, a de Luís (Ruben Pimenta), o seu melhor amigo que lida com a sua descoberta identitária e sexual de forma naturalíssima, isto, servindo de afronta à reacionária comunidade que vive. Para além deste contacto, Ana também se aventura no seu próprio e causado turbilhão de sentimentos, acontecendo no preciso momento em que a “visita” de Cloé (Cristiana Branquinho), uma amiga residida no Canadá, a desperta para um determinismo nunca antes cedido através de um subtil choque cultural. 

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Lobo e Cão”, é desta forma, um coming-to-age, interagindo na comunidade queer da ilha, tentando com isso homenageá-la, dignificá-la e a acima disso, sublinhá-la num contexto ainda envelhecido, confrontando com uma população ainda preconceituosa e obscurantista. Varejão filma o biótopo destas personagens, não julgando-as criminosamente, mas revelando-as como servos de um milenar peso da Igreja e das suas impostas tradição (procissões e peregrinações são estampados em “Lobo e Cão” como um gesto quase pagão, retirando-lhe a aura divina que outros poderiam cometer com as suas câmaras). 

Uma obra de relevância sociológica e até mesmo antropológica, e possivelmente cultural (só o futuro dirá), porém, fora do tema e temáticas, demonstra vitalidade, força nutrida nas suas figuras e no realismo capsulado (e devemos também salientar que é um retrato sem condescendências). Porém, fraqueja, ocasionalmente, em emanar credibilidade nas suas tramas. Infelizmente, uma das sequências que viria a ser desperdiçada pela decisão dos “não-atores” (ou falta de direção), é o do bullying na procissão, perdendo a sua ferocidade perante a incapacidade dos seus “protagonistas”.

Mas hein … temos Ana Cabral, e que a garra de lobo se mantenha com ela por muito tempo.  

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, "Our Madness", de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas. 

Cláudia Varejão e como aprendemos a amar a montagem

Hugo Gomes, 26.05.20

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Amor Fati (2020)

Cláudia Varejão havia prometido sereias, e à sua maneira entregou-nos através de um retrato antropológico das Ama-sans, uma comunidade milenar de mulheres pescadoras no Japão, hoje em vias de desaparecer pelo desuso da sua atividade.

Passados 4 anos, a realizadora regressa num projeto mais ambicioso que a mera documentação; uma busca pela cerne do afeto derradeiro conduzido sob o signo de Amor Fati (significa ‘amor ao destino‘). Numa pesquisa de dois anos, na sua terceira longa-metragem, a cineasta procurou histórias, casos, gestos e olhares que possam ser induzidos num retrato sobre a existência, amamos aquilo que iremos certo dia perder, assim como os que estão para ‘nascer’.

Em conversa, Varejão referiu e apontou a natureza do seu projeto e colocou em destaque ‘Amor Fati’ como o início dos tempos que aí seguem. Uma realidade pós-COVID19 e o futuro incerto do cinema português independente.

Segunda as suas notas de intenção, procurou por mais de dois anos, “histórias de amores inabaláveis que expressassem amor à primeira vista”. A minha questão prende-se a um filme concebido e idealizado por via da montagem. Como chegou até lá? E já agora, o que procurava ao certo nesta panóplia de histórias? Quais os requisitos?

O início das ideias são lugares incertos. Não posso definir, com rigor, quando terá começado a pesquisa para este filme, pois na verdade penso nele desde criança. Ou melhor, observo os encontros entre as pessoas com muita curiosidade desde que me conheço. E nessa atenção lembro-me de pensar, ainda pequena, que as pessoas que viviam em casal pareciam ter rostos e gestos semelhantes.

Foi deste pensamento que, em nada, é original, pois muitos de nós reparamos nesta particularidade, que nasceu a proposta para o filme. Mas esse foi só um pretexto. Porque o filme anda à volta de um tema mais vasto e misterioso, que é o Amor. Diria que, nesse sentido, o filme gera-se a partir de uma curiosidade. Não de uma questão. Porque eu não fui à procura de respostas. Procurei, sim, percorrer um caminho durante um espaço de tempo que seria povoado por encontros, curiosos, sim, mas sobretudo humanos e amorosos.

E queria também tecer um retrato do nosso país a partir destes encontros. Quem somos nós no momento presente? Quais as inúmeras expressões de amor que podemos encontrar à nossa volta? É um filme sobre a absoluta diversidade humana, que é na sua génese tão livre e afetiva. Depois o caminho fez-se caminhando, tanto na rodagem como na montagem. Um passo levou a outro e por aí fora. Viveu muito da imprevisibilidade do real. E creio que no filme se sente isso.

Novamente na montagem, é mais curioso encontrar uma dicotomia saliente entre vida e morte. No caso da última, senti que com o amor/afeto não termina com a morte da “outra metade”, apenas a transforma em dor.

É bonito referir que essa dicotomia, ou esse encontro das metades, não desaparece com a morte. É certo também para mim. Mas eu não creio que se dê apenas lugar à dor quando uma das partes desaparece. A ausência reforça, aos meus olhos, a presença. Ou seja, quando no filme assistimos a uma morte de um dos elementos desse laço uno, sentimos, mais do que nunca, de que era ali que ele pertencia, àquela outra metade. E sentimos dor, sim, pela saudade e pelo lugar vazio. Como se no vazio momentâneo, a metade sobrevivente perdesse o sentido ou a própria motivação de estar vivo. Mas por outro lado, numa ideia mais abrangente do filme, podemos entender esta perda como uma peça fulcral para entender a própria narrativa que o filme tece – ou se quisermos, o sentido (ou falta dele) das nossas vidas.

A morte desta personagem aconteceu quando eu já estava na reta final da rodagem. Foi um momento muito triste porque eu crio, na intimidade dos meus filmes, fortes laços afetivos com as pessoas que filmo. E no momento em que recebi a notícia da morte, não tendo muito tempo para racionalizar, num impulso optei por incorporar este acontecimento no filme. Podia não o ter feito. Mas em diálogo com a família senti que havia espaço para esse passo e que, juntos, seríamos capazes de o fazer, com respeito e enaltecendo o amor entre aquelas duas pessoas. Foi um momento muito importante na rodagem do filme, onde me questionei, inevitavelmente, sobre a natureza do meu cinema e os meus próprios desejos e limites enquanto realizadora. Este é o filme que mais me ensinou, sobre o ofício e sobre a vida.

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Cláudia Varejão

Acerca da estreia exclusivamente online da obra, tendo em conta estes tempos de pandemia, que benefícios/prejuízos trará, não só a performance do filme, como ao futuro dos festivais de cinema num mundo pós-COVID 19?

É arriscado assumir um discurso firme neste momento em que todos recebemos novos dados a cada instante sobre as medidas que afetam o sector do cinema. O que posso dizer, no instante presente, e que vale o que vale, é que senti que era meu dever enquanto realizadora e profissional do cinema não cancelar a estreia anunciada no Visions du Réel, por respeito e por solidariedade com o festival, mas também com todo um sector que se vê parado e sem perspetiva de retorno. Desejo que esta estreia desperte alguma esperança de que nós podemos encaixar noutros moldes de trabalho (em nada ideais, mas necessários no momento) e que nos estimule a pensar (e repensar) sobre o nosso frágil trabalho e dependência direta com as dinâmicas sociais. O streaming há muito que foi entrando no mercado de distribuição e, no meu ponto de vista, temos de o regularizar de forma a não tornar-se um inimigo mas antes um aliado. Parece-me, por isso, que esta seja uma boa oportunidade para estudarmos o assunto.

Agora, para mim, é insubstituível a experiência de ver um filme em sala assim como partilhá-lo com outras pessoas num espaço físico criado para essa sagração. É para essa meta que trabalho, passo a passo, em todas as decisões que tomo ao longo do longo processo de realização de um filme. E vou lutar sempre pela primazia do cinema em sala. Até porque as salas de cinema, mais do que nunca, precisam de nós todos, sem exceção. Temos o dever de as proteger das consequências devastadoras que já estão a sofrer, criando, desde logo, políticas que as ajudem a voltar ao seu quotidiano (que já era pautado por um tão grande esforço de sobrevivência).

O Ministério da Cultura (não só o da tutela atual como de todos os governos passados) é de uma negligência assustadora nesse sentido. Permitiram o fecho gradual das salas de cinema, tantas delas com um valor patrimonial e cultural inegável, e foram cúmplices da desvalorização do cinema em sala. E a sociedade civil é igualmente responsável. Quando, passo a passo, voltarmos a caminhar lá fora, temos obrigação de dar prioridade às salas de cinema, pois o seu funcionamento alimenta todo o ciclo do sector do cinema. O cinema é uma arte relacional em todas as frentes. Não podemos pensar em voltar a filmar, sem pensar em como os filmes vão depois ser vistos. O momento presente tem de despertar em cada um de nós, seja no cinema ou em qualquer outro assunto da nossa vida, um pensamento macro. Parece-me que ficou bastante claro como dependemos uns dos outros.

Novamente frisando os próximos tempos, a produção portuguesa e a sua “indústria” conseguirão adaptar-se a essas novas “normalidades”?

A normalidade não existe. É um conceito frágil que se sustenta numa série de ideias pré-definidas. E quando se tira o tapete, diz-se, fica-se sem chão. É preciso construir novas referências. E nisso o ser humano é brilhante, sabe adaptar-se às mais adversas situações. Nós não temos indústria, ou seja, não temos uma máquina cinematográfica que gera dinheiro. Mas, à nossa escala, temos, sim, um pequeno sistema de funcionamento, com as suas lógicas internas e que dá trabalho a milhares de pessoas.

Vamos precisar de muito esforço e de muita paciência de todos os envolvidos, desde o sector da realização até à distribuição dos filmes, para voltar a olear a máquina. Mas é sobretudo onde e como são mostrados os filmes que queremos fazer, seja nas salas de cinema como nos próprios festivais, que devemos centrar a nossa atenção e reforçar o trabalho. E devemos exigir envolvimento e investimento da parte da tutela.

Podemos contar com estreia em sala de "Amor Fati" no nosso país?

Estamos a trabalhar para isso, com grande entusiasmo, e seguramente acontecerá assim que se reúnam as condições necessárias para o público regressar às salas de cinema. Mas estamos a fazê-lo numa dependência inevitável com as medidas que vão sendo tomadas no país. A seu tempo chegaremos às salas, sim, é essa a nossa meta.

A Década '10 traduzido a Cinema Português

Hugo Gomes, 19.12.19

O que reter numa década de cinema português? Um desafio difícil e um pouco ingrato, esse de deixar de fora uma produção que tem lutado contra anos zeros, faltas de apoios, público e por vezes falta de ideias. Mas este é o cinema que amo com todos os seus defeitos e virtudes (alguns dos filmes mais belos são sem dúvidas portugueses). Como tal, eis os 10 selecionados para marcar 10 anos de arte à portuguesa.

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A Batalha de Tabatô (João Viana, 2013)

Verão Danado (Pedro Cabeleira, 2017)

A Fábrica do Nada (Pedro Pinho, 2018)

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Cartas da Guerra (Ivo M. Ferreira, 2016)

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Tabu (Miguel Gomes, 2012)

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Vitalina Varela (Pedro Costa, 2019)

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Mudar de Vida - José Mário Branco, a vida e a obra (Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro, 2014)

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Ama-San (Cláudia Varejão, 2016)

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O Gebo e a Sombra (Manoel de Oliveira, 2012)

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As Mil e uma Noites (Miguel Gomes, 2015)

Por entre sereias nipónicas, Cláudia Varejão procura "diversidade" e a "liberdade da Arte"

Hugo Gomes, 28.01.17

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Cláudia Varejão

Diz-se que do mar veio a Vida. Apesar disso, a vida tende a não desconectar do Mar. Estas são as Amas, uma comunidade de mulheres que vivem, sobrevivem e morrem em prol do “grande horizonte azul”. Uma tradição nipónica de séculos que encontra-se a passos de conhecer a sua extinção, mas antes disso, Cláudia Varejão partiu numa aventura a um Oriente desconhecido para captar o quotidiano destas “sereias” vivas e registá-las na “imortalidade” do Cinema. Assim nasce “Ama-san”, o documentário vencedor da Competição Nacional do Doclisboa 2016, um retrato etnográfico de uma cultura em risco de sucumbir na nossa contemporaneidade, mas não do nosso imaginário. Falei com Cláudia Varejão sobre as mulheres que a fizeram apaixonar e da preservação das tradições, pelo qual é urgente salvar.

Onde encontrou estas mulheres? Como surgiu o seu interesse por esta comunidade?

Tudo começou com uma referência num livro de poesia. Na altura, julguei que fosse uma figura de estilo, esta ligação das mulheres com o mar, encarei mesmo como personagens ficcionadas. Fiquei muito curiosa, o poema, o qual não recordo, referia às mulheres como Amas. A palavra Ama, o significado em português, o que ela representava, levantou-me tamanha curiosidade.

Como tal pesquisei, e deparei-me com uma tradição à beira da extinção. Durante a minha investigação, fui ao encontro de uma vasta gama de fotos dos anos 50, todas elas sob uma imagem muito sexualizada. Nuas, propriamente ditas. Ao longo dos anos, apercebi-me que elas foram ficando mais “tapadas”. Mas o que mais me fascinou foi que a faixa etária era acima dos 50.

Foi assim que nasceu este súbito interesse. Esta “descoberta” foi gerada através de um acto muito espontâneo. A leitura de um poema.

De certa forma, a Cláudia prometeu sereias …

Mas não deixam de ser sereias. Elas são encantadoras. O trabalho delas é perigoso, todos os anos morrem mulheres no fundo do mar, ficam presas nas rochas, porém, as imagens dos seus mergulhos parecem pacíficas. Na verdade, são manobras perigosas. Por isso, diria antes que elas são uma espécie de “sereias ninjas”.

Estas mulheres são apresentadas no seu filme como mulheres devotas ao seu tradicionalismo. Contudo, deparamos o uso de fatos de mergulho, somente cobertos por um fino véu. Tréguas entre a herança e a modernidade. De certa forma, estas mulheres tendem em tecer um certo paralelismo com o Japão, um país moderno, mas igualmente tradicional.  

É inevitável. Quando alguém visita o Oriente, o Japão particularmente, depara-se com uma simbiose entre um lado mais tradicional, manual, preservado, hereditário e a contemporaneidade, a tecnologia que substitui o Homem em muitas das suas tarefas. As Amas também representam isso, porque imenso da sua arte foi alterada ao longo dos anos. A tecnologia do mergulho mudou constantemente.

Uma coisa muito simples, elas não mergulham todos os dias, só quando o mar permite. A Natureza tem vida própria e dita quando é que está disponível. Normalmente as Amas mais velhas, sabiam através do estado do mar, das estrelas, da lua, se iriam ou não mergulhar no dia seguinte.

Curiosamente no filme, existe uma Ama mais nova, com os seus 40 anos, que tem um Iphone, e que verifica nas suas aplicações, o estado do mar.

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Ama-san (Cláudia Varejão, 2016)

Em comparação com o Japão, não acha que os portugueses não têm a tendência de preservar o seu lado tradicionalista?

Não o vejo como um mal português, mas antes um mal geral. O problema é a época histórica que vivemos. O desejo de avançar e descobrir cada vez mais, e a tecnologia tem um peso forte nas nossas vidas, trazendo um certo esquecimento de onde nós viemos e como as coisas atingem sem o auxílio da mesma. Por isso, não é um mal português, até porque temos uma tendência de seguir um fluxo bastante avançado.

O Japão vive o mesmo problema. A grande diferença é que o país é muito tradicional, por isso é inevitável encontrar ainda um vasto leque de tradições. Culturalmente, e até espiritualmente, para um japonês é muito importante preservar uma série de tradições. Para eles, quem não tem uma tradição é como se fosse um ser humano inapto, pouco preparado para a vida. 

A Cláudia também mergulhou com elas, de forma a captar aquelas imagens?

Debaixo de água? Não. Foram feitas por um diretor de fotografia japonês, Masakazu Akagi.

Tem medo do mar?

Não. Pelo contrário, tenho uma ligação muito forte com o mar, só que não faço mergulho. Ele teve que operar a câmara com uma garrafa de oxigénio, e eu sou incapaz de fazer isso.

Numa entrevista ao jornal Público, referiu o caso das mulheres de Caxinas como o mais próximo que temos das Amas.

Nós temos pouca tradição das mulheres serem pescadoras. No Norte, zona de Vila do Conde, Caxinas, algumas mulheres pescam, e o próprio comportamento das “caxineiras” é muito efusivo, expansivas. As Amas também o são, apesar da sua delicadeza, vivem em comunidade fechadas, muito ligadas entre si e muito expansivas em comunicar.

E o facto de ambas serem matriarcais?

Sim, também. Tendo que no Japão, inicialmente neste trabalho, só poderia ser Ama quem tivesse na família, uma mãe ou uma avó fosse mergulhadora. Era um ofício que herdava. Hoje em dia, como há poucas mulheres a mergulhar, basta que tenha o mínimo de interesse para começar esta vida. Antigamente, as Amas eram realmente matriarcais. Porque tratava-se de uma tradição passada por geração a geração.

O que realmente procura nos seus filmes?

Algo não muito concreto de responder, mas essencialmente procuro um grupo de pessoas, e nesse mesmo, busco a diversidade. O ser humano interessa-me muito, esta panóplia de termos vidas tão diferentes e geneticamente sermos tão idênticos. Interessa-me isso. Para além, dos relacionamentos entre si, sobretudo em grupos ou seios familiares.

A Cláudia Varejão irá fazer parte do júri do próximo Córtex, nesse caso o que irá procurar por entre a selecção oficial?

Há partida em que não vou procurar nada, é diferente que a jornada pessoal. Quando vejo cinema, procuro essencialmente que o filme, tal como o realizador, seja livre. Porque se o trabalho é livre, esta aproxima-se da identidade do autor. Mas isso é difícil de encontrar, visto que na vida geral temos vários “layers”, camadas, e tal não somos totalmente livres.

Existe uma série de elementos que nos são incutidos, tal como a nossa educação que nos impede de realmente usufruir a nossa liberdade. A Arte existe nesse contexto, a de ser livre, e quanto mais livre, mais libertadora é para quem o vê.

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Ama-san (Cláudia Varejão, 2016)

Em relação às suas buscas, qual destes dois elementos valoriza mais, o conteúdo ou a forma?

Sempre os dois juntos. É inevitável para quem vê uma forma cria um conteúdo, uma leitura. Mesmo que quando não existe uma intenção. Quem vê, cria uma narrativa. Nunca estão dissociados, a forma do conteúdo.

Mantém contato com as Amas?

Continuo [risos]. Como não falamos a mesma língua, trocamos imagens em mms semanalmente.

As imagens continuam a ser uma linguagem universal.

Completamente. Repara, a forma que traz conteúdo em si, mas o que eu comunico é através de uma imagem, e dentro dessa mesma imagem existe uma mensagem, uma leitura possível.

Sabendo que “Ama-san” foi um projeto de vários anos, tem mais algum em mente?

Estou dentro de um, que parece seguir o mesmo caminho do anterior em termos de longevidade. Neste caso, os motivos são outros.

Não porque seja filmado longe – vai ser rodado em Portugal – mas pelo facto de ser um filme sobre pessoas, um determinado grupo destas e sobre o encontro que desencadeará. Sei exatamente aquilo que procuro, só vai demorar tempo a encontrá-las.

Ama-San: sereias prometidas, sereias cumpridas

Hugo Gomes, 26.10.16

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Cláudia Varejão prometeu-nos sereias, e à sua maneira, ofereceu-nos um grupo delas neste “Ama-san”. Uma comunidade tradicional de mulheres que aventuram-se no mar para sustentar famílias, uma visão que tem seguido séculos e séculos de História nipónica.

O fio tecido que protege os avanços tecnológicos dos seus mergulhos, são as réstias dessa tradição abraçada com a sempre avante modernidade, mas nem por isso que o estatuto destas deixa-se desvanecer pela mudança dos tempos. Varejão compara-as com as “mulheres de Caxinas“, o exemplo português mais próximo desta sociedade falada no feminino, para depois aventurar num ensaio antropológico que interliga os dois estados destas figuras; o Mar, esse berço de vida que as envolve em tamanha doutrina, e o mundo civil, a família que têm à sua espera para afeiçoar.

Tal como o Japão, um país moderno que caminha lado a lado com a sua herança tradicional, “Ama-san” cria um paralelismo com a nação para depois seguir em “puro mergulho” num retrato de gestos e de costuras familiares. Mas a realizadora consegue, invejavelmente, com toda esta jornada a um Oriente pouco conhecido (a última vez que vimos esta comunidade no ecrã foi em 2009 numa curta-metragem de Amie Williams), uma estrutura narrativa quase ficcional no seio desta vertente de registo documental. Com a complementação das sequências submarinas que captam no espectador a sua faceta mais “zen“.

No geral, Varejão cumpre um belíssimo filme, contemplativo e nada apressado em “inundar” as audiências, faze-las sentir parte desta longa família, tão japonesa, com certeza. Sim, prometeram-nos sereias e aquilo que acabaram por nos dar foi o que de mais próximo temos destas mitológicas sirenias. Todavia, isto não se resume a alternativas, “Ama-san” é realmente um filme pelo vale a pena cedermos à sua delicada sedução.