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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O silêncio da crítica no templo do cinema

Hugo Gomes, 25.07.22

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Jalsaghar / The Music Room (Satyajit Ray, 1958)
 
"Escrever (inscrever) manifesta o saber-ler porque, na realidade, ler já é escrever (sem inscrição). A leitura é uma escrita que não deixa rasto: escrita plenamente interior ou apenas sussurrada. Só por essa razão – e não por qualquer reverência suspeita – se deve fazer silêncio num museu: alguém, ao nosso lado, pode estar a escrever interiormente." 
 
(Tomás Maia in Incandescência - Cézanne e a Pintura. Lisboa: Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar/ Sistema solar/ Documenta, 2015, p. 48)
 
 

 

*Da autoria de Pedro Florêncio, cineasta e professor de História de Cinema na licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa

Pontas soltas…

Hugo Gomes, 25.07.22

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Agathe Rouselle em Titane (Julia Ducournau, 2021)

Não sou pessoa de celebrações, viciado em efemérides, nem particularmente gosto de qualificar o quantificável. Em 2022, o Cinematograficamente Falando ... fez 15 anos e o C7nema chegou aos 20. Seja qual for a idade de qualquer um deles, e de muitos outros (parabéns a todos no ativo porque celebram uma idade qualquer), não é obviamente por aí que se prova mais ou menos amor pela escrita, pela crítica ou pelo Cinema, mas apenas e só que se reuniram as condições ótimas para se fazer algo que é um notório exercício de privilégio sobre uma arte que também ela foi construída por outros privilegiados.

Por isso mesmo, e durante estes anos todos que escrevo ou falo sobre cinema, a grande maioria deles sem qualquer tipo de remuneração, nunca senti que era maior ou menor que ninguém, a começar por todos aqueles que tinham plataformas que foram desaparecendo à mesma velocidade que outras chegavam. 

Tive a sorte (privilégio!) de aos 10 anos me darem um Spectrum, com o qual programava mais que jogava. Ao mesmo tempo, tive a sorte (privilégio!)  de ter uma mãe cinéfila, a qual religiosamente me levava ao cinema aos domingos, e uma tia que trabalhava nas salas da Lusomundo, e que me deixava entrar neles durante a semana. Já sem acompanhamento familiar, seguia religiosamente as Matinés da TV, a Lotação Esgotada e a Última Sessão. Seguiu-se o privilégio de ter um vídeo com 3 cabeças, gravando tudo o que via, e, claro, aceder aos videoclubes e uma excecional RTP2 que serviu de formação, não apenas pelos filmes que mostrava, mas das pessoas (críticos e não só) que falavam deles. Liceu, faculdade e outros cursos pelo meio, além de livros, revistas ( Se7e, Blitz e Expresso, fundamentalmente) e milhares e milhares de filmes. Em todas estas etapas, a minha casa transformou-se num cinema para os amigos e a minha mochila num videoclube ambulante. Paixão, amor, whatever, pois claro, mas muito privilégio.

Creio que só 10 anos depois de o C7nema estar no ativo conheci o Hugo (2012?), algures no São Jorge. Foi um  ano de viragem, no qual os visionamentos, nas salas ou em casa, e as discussões a seguir a eles, tornaram-se cada vez mais energéticas, e sempre, nem que fosse um filme que nenhum gostasse (Olá “American Sniper"), em exercícios intensos (e estafantes) de discussão artística e política - de tal maneira que quem estava de fora pensava que íamos andar à pancada. Em termos de C7nema, isto não era propriamente uma novidade, pois já no período de 2002-2005 as discussões eram bem acesas e estafantes.

Mas ao longo de todos estes anos, onde inequivocamente existiu paixão, amor e até obsessão, o tal privilégio nunca nos abandonou. E além do estudo da imagem e das palavras, além da forçosa saída para outras fontes (artes, religião, política, sociedade, etc) para escrever sobre Cinema, a noção da presença desse privilégio tem de estar constantemente nos nossos olhos, cérebro e mãos quando escrevemos. Não é fácil, até porque como dizia Georges Duhamel, “nenhum de nós consegue pensar como quer pensar. Os nossos pensamentos foram substituídos por imagens em movimento”. E são essas imagens que nos conduzem (e contra as quais tanto lutamos como namoramos) para as transportar para o papel ou computador, sem medo de desagradar ou falhar. 

Pauline Kael dizia que a primeira prerrogativa de qualquer artista, em qualquer meio, era o de fazer o papel de palerma. E nisso, o crítico, como criador de algo (um pensamento, uma ideia, etc, a partir de outra), além da noção de privilégio tem de ser implacável, mesmo que a honestidade (que se exige que tenha) seja vista como ridícula e lhe roube cliques, leitores ou likes. E nem um gracioso vai-te foder, uma chapada à entrada da sala de cinema, ou a expulsão de um visionamento, o pode condicionar, pois se ele existe apenas para agradar, servir ou servir-se do mercado, então renomeie-se o termo. É que se o cinema morreu e se hoje até já só falamos de “conteúdos” ( e não filmes), talvez o crítico de cinema tenha morrido juntamente, e afinal caminhamos todos sobre as suas ruínas como influencers.

 

*Texto da autoria de Jorge Pereira, fundador, editor, jornalista e crítico do C7nema

Críticas do Futuro

Hugo Gomes, 24.07.22

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Crimes of the Future (David Cronenberg, 2022)

O meu percurso cinéfilo tem vindo a ser construído graças às redes de blogues que procuram fazer da escrita uma experiência de continuidade, uma extensão do encontro com o cinema no grande ecrã. Para quem vive fora dos grandes centros urbanos, esta relação que se estabelece com os filmes é preponderante na formação de uma visão de fundo sobre a história do cinema: longe do policiamento institucional e face às incontornáveis (e incontáveis) ausências em cartaz, mas também de uma programação que se possa dizer mais rica e abrangente, é nestes espaços virtuais que o jogo do cinema muitas das vezes se joga. 

Tanto assim é, que frequentemente me interrogo se a relação entre a escrita e o cinema não será sobretudo alimentada por um fora de campo que se quer chamar para a realidade do quotidiano: a escrita enquanto domínio daquilo que não se vê. Uma continuidade entre a experiência de um corpo que vê, com aqueles para quem o cinema ainda não é mais que o desejo de imagens em movimento, uma ânsia de viver o mundo com os sentidos do cinematógrafo. 

É claro que este nosso mundo de 2022 é muito diferente do de 2007. No que toca ao cinema, a exibição em plataformas de streaming é hoje uma realidade incontornável: mais filmes, uma oferta que chega a todo o lado e a toda a hora. E o que daqui resulta é também um espaço público cada vez mais disperso e difícil de descrever – tudo mudanças com consequências relevantes para a crítica de cinema. A excitação constante do imaginário coletivo pela ubiquidade da imagem em movimento não tem produzido modelos críticos com uma relação forte com a realidade do quotidiano, e aqueles que o fazem continuam invariavelmente ancorados em dinâmicas institucionais fossilizadas na era pré-internet. 

Entretanto, o scrolling de feeds tornou-se numa experiência cinematográfica ultra-moderna-super-hardcore 24/7, uma realidade que não tem sido muito amiga para a crítica de cinema enquanto espaço autónomo de reflexão. Os filmes estão em todo o lado, e há por vezes a sensação de que a crítica não tem muito a dizer sobre esse oceano de imagens. É como se a permanência das imagens fosse afinal uma perversão desse fora de campo que parece ter inspirado diferentes gerações a filtrar a experiência do cinema pela escrita.

Se existe uma crise na crítica, isso também se deve a um novo posicionamento do campo da arte perante a realidade. O mapeamento da contemporaneidade tornou-se impossível, e há no ar uma sensação de afterparty. Ainda bem. Cinematograficamente falando: enterre-se o velho mundo, instalem-se os novos órgãos.

 

*Texto da autoria de José Raposo, crítico de cinema do C7nema e colaborador da revista LOUD! Magazine

Cinema em vias de extinção ou de mutação?

Hugo Gomes, 23.07.22

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Videodrome (David Cronenberg, 1983)

Em 2005, aceitei o convite para escrever para o c7nema, numa altura em que, olhando para trás, assumo uma limitação maior da minha cinefilia tanto no espaço (i.e. na geografia de onde nasciam os meus filmes favoritos) como no tempo. O YouTube tinha acabado de ser criado e ainda era um palavrão, e a Netflix, se era um nome mais conhecido pelos cinéfilos, era ainda um mero serviço de DVD por correio. Se quiséssemos ver um filme que tivesse acabado de sair das salas de cinema, íamos a um clube de vídeo como o Blockbuster.

Quando penso nesta década e meia passada, ao longo do qual conheci pessoas como o Hugo, ao mesmo tempo que vimos o cinema mudar também ele os meios onde era exibido, a escrita acabou por ser ela um ponto de partida para a memória que ainda estava a começar a criar. Por vezes criticamos os críticos quando pensamos que abusam das referências nos seus textos, mas a verdade é que é esse "jogo" que faz uma pessoa com falhas cultivar melhor o seu conhecimento do passado. Foi a ler um leque de críticos, nacionais e internacionais, que descobri novas obras, e foi a ler as suas críticas que aperfeiçoei a minha própria voz quando era altura de entregar um texto.

A verdade é que o cinema nunca teve tanta disponibilidade como hoje - eu ainda sou do tempo que se perdesse o final de um filme na gravação da videocassete poderia arriscar-me a passar uns tempos sem saber o que aconteceu - e no entanto, falamos na morte desta arte pela sua passagem indiscriminada por todos os ecrãs, do telemóvel ao televisor. Eu creio que o cinema não morre assim... simplesmente o espaço de eleição, o espaço de culto principal dos cinéfilos, foi transfigurado para um conceito de feira popular, com a disparidade nas receitas entre filmes com orçamentos de marketing maiores que os orçamentos totais de milhentos outros. Em 2005, tínhamos espaços como o Quarteto e o King em Lisboa. Em 2022? Mantemos apenas o Nimas e o Ideal na capital, muito graças a ligações próximas a distribuidoras, e a investirem até em negócios que são hoje vistos como "obsoletos" ou de nicho segundo lojas Fnac e afins- como o mercado de DVDs, e de posters de filmes. Hoje as peças de memorabilia dominam (canecas, bonecos... ) e ao mesmo tempo estão restritas a um número finito de obras - i.e. os êxitos de bilheteira, os que convidam os cinéfilos de domingo a uma tarde de diversão e pipocas. 

Nesta reconfiguração do mercado, que a cada dia assusta mais, consigo por um lado empatizar com quem ache que a arte está a morrer. Está a ficar em vias de extinção o cinema "comercial" limitado a passar filmes e quanto muito a tirar uns cafés, que nos acompanhou no visionamento de obras mais ou menos alternativas, sem dúvida. Por outro lado, consigo também racionalizar e perceber que esse cinema de cariz mais alternativo irá sobreviver-nos, quer seja num circuito festivaleiro, quer seja nas cinematecas ou clubes, ou... num ecrã de telemóvel, objeto de ver e ser visto, de filmar e visionar um filme. É preciso, apesar de tudo, não discriminar o "streaming", pois coloca-nos num papel mais interativo e menos pirata, pese muitas deficiências no catálogo que surgem na concorrência feroz entre plataformas. É preciso cobrir filmes diretos para streaming, e não tratá-los com o mesmo preconceito como em 2005 escrevíamos sobre os "direto para vídeo" (nos quais encontrávamos ainda assim verdadeiras pérolas descartadas por distribuidoras!). É preciso percebermos que o cinema está numa fase de transfiguração, de tal modo que há casos onde vemos difícil uma distinção entre TV - com uma qualidade inegavelmente superior com o virar do século - e sétima arte, e grandes filmes de festivais são comprados ora para "streaming" ora por canais de televisão. Haverá sempre quem queira limitar a arte à experiência de ver o filme em sala. Essa nunca será a minha posição, pois a minha primeira cinefilia, mais limitada, surgiu precisamente com fitas de VHS gravadas e regravadas, conforme a necessidade, e não foi isso que tirou a minha paixão.  



*Texto da autoria de André Gonçalves, crítico de cinema do Cultura XXI e podcaster do Peeping Tom, ex-colaborador do C7nema

 

Não há título: são só três dias de notas

Hugo Gomes, 22.07.22

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Lynhida (Ana Nusan Dragan, 1989)

Decidi escrever este texto em pequenos momentos de pausa ao longo de três dias. Como que num “Tri Istorii” mas sem qualquer ligação a não ser pelo número (de histórias). Uma colagem que parte dos furos do quotidiano em que somos presenteados com a possibilidade (forçada) de retiro do mundo das obrigações, das frustrações,

As interrupções visíveis serão marcas.

Agora revejo os sentidos, as palavras não ditas, as vontades por concluir. Estes são momentos de enganos, rascunhos, (risquei) oportunidades. O pensamento reparte-se por diferentes interesses, vagueia por inúmeros estímulos (o que faço, o que vou fazer). Este é o modelo em que vivemos, em que vivo, em que estamos, em que estou. Formatei o texto para agradar ao olho, visto que a pressão da sua existência se acumula, se multiplica, se intensifica. Um pouco como estou, como estamos; como vivo, como vivemos.

Enquanto caminho entro no delírio do planeamento dos passos a seguir. Dos objectos a apreciar, das criações com as quais me deixarei ir. O que vi antes, o que virei depois; o que sinto agora, o que quero sentir. Permanentes rascunhos de vontades ilusórias de linearidades disruptivas do frenesim da rotina disfuncional. Estas são palavras de um corpo em desgaste constante, em potencial declínio súbito. Ao chegar ao metro tenho lembranças dos filmes e vídeos que encontrei nas loucas horas que gastei numa procura por algo que faça sentido (para uma investigação, para uma intenção, para uma programação, para uma crítica, para uma divagação). Lembro-me das curiosidades inéditas [de “Tereza” (1983)], lembro-me dos arquivos (quase sempre perdidos) que guardei no disco e que decidi escavar: “I am Somebody” (1970) e “Sapekhuri” (1985) . Aproveitei a ausência de internet no avião em que estive ontem para navegar pela aleatoriedade sobre as escolhas de um passado (não tão) distante (e também ele quase esquecido). Queria, na verdade, rever “Mariupolis” mas confesso que ainda tenho alguma dificuldade em lidar com o assassinato de Mantas Kvedaravicius. O meu primeiro professor de cinema na faculdade. Mantas que nos despertou para a análise crítica cinematográfica, que nos abriu portas para universos fílmicos desconhecidos numa época em que eu ainda indagava respostas sobre o percurso a seguir. Recordo-me das nossas sessões em comunidade, das nossas trocas de ideias, da sensação de (re)descoberta de uma arte com a qual sempre contactei mas sobre a qual nunca ousei pensar trabalhar. Mantas, com o seu ser (em todo ele) activista, humano, sensível, deu-nos o mundo das possibilidades.

Assim o recebi e o guardo comigo.

Coloco a máscara e deixo-me levar para mais um destino.

Antes de me sentar nos bancos de cortiça da carruagem, antes de ouvir os sons ensurdecedores das linhas, pensei que podia falar sobre o medo da escrita. Sobre algo que vai para além de "writer 's block” e que surge mais num lugar de quem presume o fracasso antes da execução. Não escrevo, não sigo impulsos de expressão, não dou espaço a fracassos presumíveis. Submeto-me ao mergulhar nas marés das impossibilidades, dificuldades impostas por um sistema que me diz tanto (e tantas vezes) que não pertenço, que não pertencemos, que não temos  voz. Aqui considero mais uma vez a reformulação da premissa inicial. Mas já vai tarde. E a carruagem chegou.

Leio “Quem quer ser hoje? Seja você”. Volto às notas enquanto deambulo pelos percursos entediantes de obrigações pós-laborais. Slogans de vidas por concluir, que no contexto de uma publicidade nos contactam como que num gesto de venda de novas visões (sigo no jogo de desconstrução de marketing de oculistas). É difícil sermos quem somos neste espaço de vulnerabilidade e intimidade de leituras. É difícil termos reconhecimento neste espaço de formas ditadas, de registos marcados, de meios congelados num tempo que ficou para trás.

Enquanto espero para ser atendida (não passou assim tanto tempo desde há bocado), penso no quanto que se proclama o fim, a morte da crítica. Digo: estamos aqui. Estaremos a ser ouvides?

Novo dia e já à espera. De uma conversa, de um mote, de uma resolução. Já pouco nos agarra. Fica a vontade de superar. Um impulso de persistência na insistência da permanência neste lugar que se alcançou, que se mantém, que se

Depois da conclusão de mais um momento, tomo pela primeira vez a posição de pessoa sentada à frente do computador. Tudo aquilo que está para vir nas próximas horas, nos próximos dias, nas próximas semanas enrola-se num novelo do qual não me consigo desligar. Ao menos hoje consegui meter a roupa para lavar. Espero que a máquina termine, para estender peça a peça, enquanto penso, penso. Apercebo-me de que esta outra máquina não desliga. Não era isto que queria? Não. A turbulência dos dias demonstra, a cada momento, a sede de ficar, de não deixar o tempo escapar, em busca de um dia em que as linhas se cruzem e formem um estado (sempre) desejado: de estabilidade na concretização. Por instantes olho de longe - já se sabe que tenho medo das palavras - para as formas aqui delineadas, e vejo os modelos dos dias. Estou cansada. Só espero que este pedaço sincronize com as notas do telemóvel. Não quero perder este bloco (não tão) valioso e ter de (re)começar. Agora esbocei um sorriso (enquanto a máquina ecoa pela casa) por ter feito uma descoberta que servirá de mote para algo (um texto, uma programação, um conhecimento adquirido?). No meio de pesquisas que aliviam a minha mente (nesse gosto pela escavação), deparei-me com o trabalho de Ana Nuša Dragan num arquivo de vídeo online. Comecei por “H20”, uma curta-metragem de 2 minutos de 1970 em que o registo visual explora (olha o spoiler do título) diferentes movimentos de toque da água: desde o mar, às bóias, à boca de quem bebe um sumo com as ondas por trás. Um simples gesto de apreciação de um elemento que nos rodeia, que nos constitui, com uma banda sonora ritmada mas quase dissonante. Repleto de (ditas) imperfeições, (de ditos nadas,) este filme termina sem uma conclusão. Vejo no texto da descrição que foi filmado durante a escola de cinema de verão em Koper, em 1968. Sinto que foi um momento de aglomeração de pequenas contemplações, de breves curiosidades de um ambiente que rodeava Dragan. Nessa água ficou, para mim, no entanto, um certo interesse para chegar mais perto. Assim o fiz, graças às possibilidades lançadas pelo arquivo. O que me traz, desta vez, à cabeça uma conversa que tive num festival nos Açores com Pedro Morais, crítico de arte e curador que vive em França. Falava-me de uma investigação que tem feito e partilhou comigo uma curiosidade que me levou à pesquisa [mas, dessa vez, a uma frustração que (penso e espero que) me levará a alguma resolução]. Falou-me de Virgínia de Castro e Almeida: escritora, produtora e cineasta. Mais uma - entre tantas - mulheres apagadas dos livros da história do cinema. Mais uma - entre tantas - mulheres esquecidas no tempo. Mais uma - entre tantas - mulheres de quem me quero aproximar mas em que a procura de poucos resultados traz. Vou parar, para já, por aqui porque tenho de estender a roupa. Mas sinto que já estou a chegar a algum lado. Esboço um tímido sorriso desta vez. É melhor não reler e ficar assim.

Vim a correr para poder terminar pelo menos uma das várias (tantas!) ideias que tenho na mente. A inacessibilidade a vidas, a obras demonstra, por um lado, a falta de reconhecimento da importância no passado. Nem sempre é possível aceder àquilo que se pretende porque, às vezes, não está lá. A ideia de perda histórica, reconhecendo a dificuldade de existência e execução num período de domínio de só de alguns é de um corte profundo. De longe, sente-se bem perto. Os tempos mudaram mas o caminho ainda está a ser traçado. Ouvia a voz de um dos meus colegas de casa a ecoar pelos corredores das traseiras do prédio e pensava no quanto que queremos (e precisamos d)essa projecção. A força está cá (existe! persiste!) mas os espaços estão saturados. A nossa voz, o nosso olhar, as nossas ideias tal como as vossas vozes, os vossos olhares, as vossas ideias deviam (e mereciam) coexistir. Para uma salvação do nosso caminho conjunto - enquanto críticos, leitores, cinéfilos, cidadãos, indivíduos. Perpetuam-se, no entanto, apagamentos do passado. Mas tal como se escava, se (re)descobrem pérolas, aqui também se escreve, se (re)descobrem fórmulas. O futuro terá de estar nas nossas mãos, pois o presente (ainda) não nos pertence.

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Mariupolis (Mantas Kvedaravicius, 2016)

Olho para o fundo de ecrã do meu computador e vejo uma referência de Parajanov (des)construída por Ana Nusan Dragan. Lembro-me das conversas, dos colóquios, das conferências em que tudo acaba por passar por menções dos conhecimentos cinéfilos à base de estruturas designadas como as fundações do cinema. Confesso que, pessoalmente e fora raras excepções, evito colocar em comparação obras ou cineastas. Comparações essas que terminam sempre na visão daquilo que foi dit(ad)o como sendo a história do cinema. Existem referências inevitáveis, não retiro isso. Mas se estamos aqui para reinventar, para desconstruir, poderemos começar a olhar para aquilo que sempre foi considerado à margem? Poderemos procurar a criação de uma história mais digna, mais justa, mais fiel do mundo? Penso no caso de Nutsa Gogoberidze, que é um entre vários (tantos!) exemplos de uma cineasta pioneira no cinema. Mulher, do Leste, que fez somente um filme (por questões relacionadas com o seu género na época e contexto sócio-político em que se encontrava). Não é viável (nem possível) colocar tudo na escrita da história. Mas também não é só através de uma compilação de seis horas com excertos de filmes realizados por mulheres que o problema fica resolvido. Não é só por termos ciclos dedicados a mulheres no cinema que o problema fica resolvido. São passos necessários, mas não é possível descansar: é preciso mais. Urge uma desconstrução diária dos impulsos normativizados. Urge uma atitude (ainda mais) activa de financiamento para a produção de obras, de desenho de programações conscientes, de mudança do paradigma dos indivíduos que assumem posições de chefia. Neste campo de mudança, a crítica também entra em jogo: e é necessário - ou até fulcral - uma alteração que ultrapasse as dinâmicas dos meios (ditos) alternativos e que entre nos meios (ditos) tradicionais.

Tive de sair.

Estou a correr contra o tempo. Meto a máscara. Perdi o comboio. Deixo as notas em aberto - em suspenso, na parte de trás de outras aplicações, interações que pedem a minha atenção - para o caso de ter algo mais para dizer. Mas penso que é esse um dos problemas: achar que há sempre algo mais a dizer, que nunca chega a conclusão. Será talvez uma potencialidade, no entanto? Aquilo que urge o acto de expressão (mais ou menos imediata)? Chegou o comboio. 

Apareceu uma citação de “inspiração” de uma aplicação a dizer “Run Your Own Race”. Acho que todes temos uma relação de “ah, pois é/ew” com este tipo de frases baratas. Acho também engraçado como o algoritmo apanha a quantidade de vezes em que falo e escrevo sobre correria, sobre esgotamento. Agora que estabeleci esta relação com as notas

Parei. Avancei. Este lado de pausas com (outro) significado tem ajudado num certo desbloquear das sensações que reportei no início. Esse medo, essa incapacidade de escrever para algo sem rumo, sem sentido. A divagação a que me propus tem preenchido certos vazios e despertou algo curioso: uma corrente de desinibição de filtros, de edições, de revisões. Não acredito no extraordinário do imediato, mas reforço a minha fé na deambulação.

Aproveito a brecha no cimento para olhar para o Tejo. Uma linha cheia de azul que o Sol faz reluzir de uma forma em que não consigo evitar o deslumbramento. Elementos da simplicidade (sempre) presente. Com deficiência auditiva, com olfacto em declínio, agarro-me às visões propostas pelo mundo. Prendo-me àquilo que me impulsiona na leitura de um universo que não compreendo, mas que me move. Aplico esta filosofia na arte. Dedico este estado à experiência fílmica.

Deixo-me estar nas correntes. Só queria mais espaço, só queria mais tempo. Mas terminou.

Cuidado com os degraus.

Apoiar sobre a barra para abrir.

Bebi um café para me refrescar. No elevador oiço um solo de violino que me transporta nesta elevação de poucos segundos. Tudo isto volta para o plano de fundo.

Por vezes ligo-me ao mundo e observo um aparato que me confunde. A minha bolha, no entanto, dá-me um refúgio ilusório, uma segurança transitória. Todas as questões que coloco são repetidas, ecoadas por mentes sintonizadas. As minhas questões são as nossas: mas quem nos vê? Eu não leio muito desde a faculdade. Talvez se note pela fragilidade da escrita, talvez se denote pela escassez de argumentos, talvez se desmonte no futuro. A minha bolha não é a vossa: venho aqui num gesto de tentativa de aproximação, de contacto. Um toque superficial, desleixado, sem pudor mas repleto de boa vontade.

Imagino que só chega aqui quem revê o texto. Quem diria que havia tanto nada (ou tudo) para sair? O texto nem está a actualizar no computador para poder olhar para a mancha.

Chegada a casa, depois de um longo dia que está longe de terminar, sei o porquê de deixar até ao último momento a lavagem da roupa: a ritualidade do banal soa a perda. Talvez também porque implique um tempo em que, após a finalização da tarefa, seja necessário revertê-la. O roçar dos limites de concretização é o comum. Existe aquele sentido de adrenalina misturado com desculpabilização de possíveis falhas quando se evita a entrega ao máximo. Aplico isso à vida, ao trabalho, à escrita. Este texto é o resultado - ou a materialização - disso mesmo. Pouco ou muito diz, mas tenta acima de tudo apontar para pequenos relances de possíveis notas relevantes. Cada uma estendida, aprofundada, estilizada daria, talvez, mote para uma dissertação. Mas aqui pretendo demonstrar os efeitos de um sistema que nos exige uma constante (in)actividade. Parar é perder; perder é deixar de existir. Mas o que falha mais do que o humano é o que está nas manchas não preenchidas. A incapacidade de dedicação. Talvez esta generalização seja mais uma vez uma forma de desculpar uma situação individual. Mas os radares, mesmo que em permanente captação, conseguem registar uma fadiga natural deste mundo (quase insano). É nestes moldes que a arte da crítica (pode) acontece(r). A poesia está nestas prosas do concreto, a magia está na arte da ilusão.

 

*Texto da autoria de Teresa Vieira, crítica de cinema, programadora e jornalista cultural. Podemos encontrar o seu trabalho na Antena 3À Pala de Walsh e no Cineuropa.

Cinefilia e homicídios perfeitos

Hugo Gomes, 21.07.22

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Manhattan Murder Mystery (Woody Allen, 1993)

 

Carol: What about this: what if they had a big insurance policy, or something like that?

Larry: Too much Double Indemnity.

 

Há poucos dias, revendo Manhattan Murder Mystery, reavivou-se-me no espírito o aspecto central nesse filme de Woody Allen, a que não dediquei um pensamento estruturado da primeira vez que o vi. Falo das relações entre as personagens, claro, mas sobretudo da coreografia amorosa que se impõe, independentemente de haver aqui um casal bem estabelecido, Larry e Carol (Woody Allen e Diane Keaton). Quando uso a palavra "amorosa" não estou a referir-me ao taxativo lado romântico das relações, mas sim a uma determinada paixão em comum que desenha afinidades entre as personagens. Assim: Carol está excitadíssima com a possibilidade de viver ao lado de um assassino, e dedica-se a uma investigação descuidada com todo o apoio e participação do amigo Ted (Alan Alda), ao passo que Larry, atemorizado com a ideia de a mulher, possuída por uma ânsia detectivesca, estar a “infringir a Constituição americana”, prefere aprender póquer com a escritora Marcia Fox (Anjelica Huston). Para completar a dessincronia, Carol gosta de ópera, Larry gosta de hóquei – paladares individuais, mutuamente tolerados mas não partilhados –, e a certa altura ela reclama com o facto de o marido, editor, presumir que ela não gostava de literatura light (um prazer que o próprio partilha com Marcia Fox).

Há um esquema perfeito em Manhattan Murder Mystery para unir pessoas em torno daquilo que lhes desperta curiosidade e motiva diálogos animados. E é por aí que, inevitavelmente, entra na equação uma aragem romântica.

Ao refletir um pouco sobre isto, não consegui evitar aquele cliché de que só se ama alguém que gosta do mesmo filme (ou da mesma canção, como diz o outro). Não acho que seja assim, mas já lá vou. O que este filme tem de mais tocante, a meu ver, é o universo das paixões, específicas e quase solitárias, que conectam duas ou mais pessoas. E vejo ali muito da minha própria cinefilia desengonçada, que tende para o gesto de esbracejar, quando quero falar de uma cena ou de um detalhe que me intrigou, como quem aponta para uma prova de crime. Por exemplo, mesmo na noite anterior a ter revisto Manhattan Murder Mystery, estava num jantar ao lado da esplanada da Cinemateca, onde passava o Invasion of the Body Snatchers de Philip Kaufman, e dei comigo com bichos-carpinteiros a recordar momentos do filme só pelo som que vinha do exterior. Já quase no fim, falei com os convivas do cameo de Don Siegel e daquele grito final de Donald Sutherland. “Como é que te lembras disso?”, perguntou-me o Ricardo, com um espanto engraçado. Não o soube explicar na altura, mas acho que tenho um impulso para “decorar” imagens. Talvez seja uma mera habilidade forense.

By the way, nessa mesa de jantar estavam amigos que não estão sempre de acordo no gosto dos filmes, mas que gostam muito de cinema. Não é essa a magia que nos liga?

Voltando à base, escolhi o plano final de Manhattan Murder Mystery para ilustrar este texto porque corresponde ao momento em que Carol reconhece que o marido foi "surpreendentemente corajoso" na situação de risco que ambos experienciaram. Como se, de repente, a chama amorosa dos dois, qual Grace Kelly e James Stewart em Rear Window, se tivesse reacendido pelo efeito da aventura, ou melhor, pelo efeito da revelação de que Larry está no mesmo plano (concreta e simbolicamente) que ela, e sente na veia a adrenalina que ela sente, mesmo que com uma dose extra de neurose. Estão, enfim, em sintonia nesse bichinho nova-iorquino dos casos misteriosos. A sintonia que também define os amigos cinéfilos, pessoas que podem falar de um filme como quem fala de um homicídio perfeito – para mim, a cinefilia passa por esse reconhecimento no outro de um amor pelo cinema que não se rege por uma Constituição do Gosto.

Obrigada, Hugo, amigo cinéfilo, pelo convite que levou a este singelo exercício filosófico.

 

*Texto da autoria de Inês Lourenço, crítica de cinema do Diário de Notícias, revista Metropolis, À pala de Walsh e da Antena 2 - A Grande Ilusão -com um mestrado em Cinema e Televisão pela Universidade Nova de Lisboa.

 

Não batam mais no ceguinho

Hugo Gomes, 20.07.22

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History of the World: Part I (Mel Brooks, 1981)
 

No dealbar do século XX, o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw escreveu em Man and Superman uma falácia muitas vezes repetida desde então (para grande irritação da generalidade das classes docentes). Em tradução livre: “Quem sabe faz, quem não sabe ensina.” Terá sido Rita Lee, a “rainha” do rock brasileiro, a pegar nas palavras de Shaw para as extremar, apontando a mira a outra classe profissional: “Quem sabe faz, quem não sabe ensina. Quem não sabe ensinar, ensina a ensinar. Quem não sabe ensinar a ensinar, vira crítico.” Não faço ideia em quem Lee pensava ao certo quando proferiu tal pensamento, mas, dada a falta de especificidade, acredito que todos os críticos — literários, de música, de cinema e outros — tenham levado por tabela. 

Porque a minha relação com a cultura popular — e muito do meu (parco) conhecimento em qualquer outra área, em nome da verdade — foi sempre, e primariamente, alimentada através da sétima arte, tenho a convicção de que existe expressão artística desde a pré-história. E que, a acompanhá-la, existe desde então a crítica. A culpa é, obviamente, de Mel Brooks. No incontornável clássico (da minha infância cinéfila) Uma Louca História do Mundo (History of the World: Part I, 1981), a suposta primeira parte de uma série épica sobre a História do Mundo — que nunca o foi na realidade; a referência à primeira parte não passava de uma piada —, assistimos ao nascimento da arte através da pintura de imagens nas paredes de uma gruta por um “homem das cavernas”, dando imediatamente origem ao aparecimento da crítica, com um “crítico das cavernas” demonstrando sem sombra de dúvida a sua opinião sobre a obra ao urinar na mesma. Mesmo em tenra idade, achava piada a este momento do filme dada a minha percepção de que a generalidade da crítica seria condescendente, altiva e desdenhosa — percepção totalmente errada, mas instituída como verdade absoluta, um sofisma indizível e aceite por todos que persiste aos dias de hoje e que é muito difícil de contrariar.

Também eu tive a minha quota-parte de “bater no ceguinho” e de ter como passatempo a procura nas páginas dos jornais dos críticos de cinema já bem conhecidos da nossa praça por contrariarem a opinião popular — opinião popular, que conceito indefinível, no entanto tão unanimemente aceite! Uma vez chegado à tabela de classificações e encontrados os suspeitos do costume, cada bolinha preta ou estrelinha solitária era uma confirmação cabal da qualidade da obra visada. Tal como o Cinema Português, também a Crítica Portuguesa me parecia elitista, erudita e desligada dos gostos corriqueiros do povo. O que pode muito bem ser verdade, porém, com o tempo, acabei por ter uma série de revelações que poderão parecer óbvias a uns e inconcebíveis a tantos outros. O gosto do povo não é unânime, pois será constituído por muitas e heterogéneas cabeças pensantes com diferentes experiências de vida; a crítica não existe para confirmar os nossos gostos nem as nossas opiniões; ademais, a crítica, que pode e deve confrontar e questionar a nossa visão, não nos deverá ofender pelo simples acaso de apresentar uma perspectiva diferente da nossa. Através da análise crítica bem escrita, ficamos a saber tanto sobre as obras dissecadas como, com alguma sorte e leituras acumuladas, sobre o crítico que as escreveu, ao passo que textos pobres, mesmo que alinhados com a nossa opinião, não têm nada para nos ensinar.

Na era da informação que nos veio a calhar em sorte, em que a facilidade tecnológica de encetar diálogo(s) nos tem levado a uma progressiva dificuldade em comunicar, numa vertigem de pensamentos rápidos e reacções irreflectidas, gritadas como se o volume das mesmas fosse o garante da razão, o fosso entre opinião pública e crítica especializada não teve qualquer hipótese de ser preenchido. Tampouco tem sido possível construir uma ponte que ligue as duas margens. Ao invés, surgiu outro fenómeno para baralhar as contas. Aos poucos, as vozes entusiasmadas de amantes de cinema — munidas de uma enorme paixão, algum conhecimento enciclopédico e, genericamente, um conhecimento marginal da língua materna, bem como poucos ou nenhuns estudos cinéfilos — foram ganhando expressão — para que fique bem claro, por princípio, subscrevo e apoio esta tendência, até porque eu próprio sou um esforçado exemplo do mesmo. No entanto, esta democracia da opinião apenas é válida enquanto o ímpeto for a genuína partilha e reflexão sobre a arte que nos une numa sala escura através de um feixe de luz projectado numa enorme tela. Quando as intermináveis vozes não se calam numa gigantesca câmara de eco em uníssono, com estatísticas de visitas e links carregados em mente, gerando ruído em reacção às vozes impopulares (isto é, contrárias à opinião maioritária), o resultado é a diluição da multitude de vozes que valem a pena ser ouvidas, pequenos faróis tímidos num mar agreste abafados pelo nevoeiro e pela borrasca.

Muito haveria a dizer sobre o estado — e o futuro — do cinema. No entanto, não só pensar nisso me deprime como é irrelevante para a discussão do tema da crítica cinéfila. Seja qual for a forma que o cinema venha a tomar, enquanto se produzirem filmes, haverá a necessidade da análise e discussão crítica, incluindo os amadores e sem menosprezar o conhecimento e a erudição dos profissionais e dos estudiosos da história da sétima arte — ao fim e ao cabo, o cinema não nasceu no século XXI nem se limita a filmes de super-heróis. Por isso, não batam mais no ceguinho e abracem a diversidade de opiniões. Deitem o ego e a ditadura dos gostos para trás das costas e abracem vozes de diferentes cores, credos e convicções que permitam o expandir dos vossos horizontes. Bem formadas, apaixonadas, eruditas, populares, profissionais ou amadoras, o que importa é que contribuam para um diálogo civilizado e salutar. Lembram-se da última vez que testemunharam um assim?

 

*Texto da autoria de António Araujoautor do podcast 'Segundo Take' e co-autor do podcast 'Universos Paralelos' e do programa de YouTube 'Três Já É Companhia'."

Quando a crítica olha para a crítica

Hugo Gomes, 19.07.22

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Damien Chazelle dirige Emma Stone em "La La Land" (2016)

Bergman dizia que o cinema lhe permitia comunicar com o mundo, literalmente de alma com alma. Quem está do lado da crítica sabe que é esse desejo que alimenta a pena. Mas pena é como quem diz… A crítica hoje tornou-se polivalente, pode ter relevância no Youtube como num direto de televisão ou de rede social. E democratizou-se, ficou de todos.

Já há muito que venho dizendo que esta ideia de partilhar o amor cinéfilo pode ser confundida como “críticos de bancada”, mas também é de bom senso não fazer disso um papão. O cinema de autor precisa de maior divulgação e é proibido proibir essa ideia de pluralidade. Sou dos que pensam que é saudável esgrimir opiniões na caixa de comentários de um post no Instagram ou no Twitter – os gostos discutem-se e a maneira do outro olhar para um filme pode ser uma porta para compreendermos melhor o nosso gosto. Tudo isto não invalida as escolas dos olhares, embora não faça do academismo militante uma bandeira. É óbvio que a crítica hoje continua a ter de saber olhar para um passado e história do cinema mas também é de novas ordens e correntes que se faz a dissecação dos olhares cinematográficos inovadores.

Quando vemos um filme há algo a decidir: como equilibrar o valor do sonho com a ordem do real. O cinema fantasiado, o cinema do real. É por aqui que os atuais códigos do cinema contemporâneo passam e torna-se natural que se cerrem fileiras. Nessa escolha de posições sou dos que voto pela incoerência, acredito piamente que cada caso é um caso. Um tipo de cinema não anula outro. O novíssimo cinema do real não tem que ferir mortalmente o cinema lúdico. Vem aí o novo Damien Chazelle, que, ao que parece, terá vénia de overdose a Fellini. Babylon não tem que ser inimigo do próximo Wang Bing ou deste assombroso “Tourment sur les Iles”, de Albert Serra… É nessa polivalência que o crítico, encartado ou não, tem de saber navegar, eventualmente ter o direito ao sentido de desorientação.

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Jonás Trueba na rodagem de "La Virgen de Agosto" (2019)

Mas, afinal, o que acontece quando a crítica olha para a crítica? Talvez apenas sirva para reavaliarmos os nosso conceitos de vigilância perante as imagens e as suas políticas. Mas igualmente códigos e éticas. Porque se o cinema pode ser um atiçar artístico do imaginário da imitação da vida real, é bom perceber se ainda é legítimo perceber como em Portugal alguma da crítica perca o tesão pelo cinema de Hong Sang Soo ou como, de repente, David Pinheiro Vicente é levado ao colo. Independentemente de tudo isso, a crítica, sobretudo em festivais, consegue “fazer” cineastas. Aliás, talvez mais do que nunca, festivais e cineastas precisam da crítica, sobretudo de uma crítica que não faça clube de fãs mas que saiba encontrar pontos de ajuda para se refletir sobre um processo autoral de uma obra. Se em Portugal há elitismo em quem tem espaço para escrever ou ser voz de recomendação, creio que não é importante. O importante é reconhecer que há um auto-da-fé de muitos que estão presos (que encantatória prisão...) no labirinto do cinema. Um auto-da-fé que eu julgo ser puro e sem rodeios.

Acusam-me de não dar muitas cinco estrelas – nada contra a quem as dá, mas estou cada vez mais órfão do cinema de que me formou. Assayas não é o novo Truffaut, Cronenberg já não é o Cronenberg dos 80 ou dos 90 e Licorice Pizza está longe da genialidade de “Magnolia”, embora continue a ter esperança que Tarantino, Steven Spielberg e Nanni Moretti vão voltar a superar-se. É uma fé minha, só minha, se calhar. E tenho Julie Ducournau, Ari Aster ou Jonás Trueba para me contradizer...

 

*Texto da autoria de Rui Pedro Tendinha, jornalista e crítico do jornal Diário de Notícias e autor do site / blog / rúbrica Cinetendinha.

Na brasilidade da ternura

Hugo Gomes, 18.07.22

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Amigo Secreto (Maria Augusta Ramos, 2022)

Truffaut avisou: “Criticar um filme é criticar pessoas e isso eu não quero mais fazer”. Mas havia ainda algo de necessário na arte de analisar longas-metragens, na arte de ressaltar a dimensão que os filmes têm como tecido vivo, depois da Nouvelle Vague. E também, depois das ressacas de 1968. E, também, após suspiros pós-modernistas. E depois da videoarte, frente ao avanço da streaminguesfera. No Festival de Cannes de 2018, quando a tese semiótica “Le Livre d'image” garantiu ao suíço Jean-Luc Godard uma Palma de Ouro especial, ouviu-se a Croisette lamentar: “O cinema morreu depois que o realizador de ‘Alphaville’ parou de acreditar nele”. Era um lamento pertinente sobretudo ali, onde a Netflix perdia de vez, à força das decisões de Thierry Frémaux de não se render a um gigante do rentabilíssimo negócio de transmitir imagens em movimento por meio da www, em plataformas digitais.

Diante desse torvelinho histórico, do engasgo de Godard, uma vez mais, a crítica se fez e se faz necessária e urgente, mesmo com suas idiossincrasias. Uns gostam de “Top Gun: Maverick” (eu, por exemplo) e consideram esse blockbuster de US$ 1 bilhão uma exegese da técnica; outros lhe atiram torpedos stalinistas, reduzindo-o uma propaganda armamentista, refutando suas virtudes homéricas. Em Portugal, há quem cante loas ao “Bem Bom” das Doces e há quem amargue o seu lado pop. São veredas que se bifurcam pela natureza humana de um ofício (talvez, um saber) - criticar filmes - que ocupa a árdua tarefa de escrever para o Futuro a partir do Presente, contextualizando para o Amanhã aquilo que se pensa e aquilo que se sente no Agora, no Hoje. Críticas são tabuleiros onde enxadristas movem Torres e Bispos da Estética na representação de um “Game of Thrones” onde a memória disputa terreno com a ignorância do imediatismo, da intolerância e da fake news. No caso brasileiro, existe uma nuvem medieval no ar. Lá, o povo compreendido entre o Oiapoque e o Arroio Chuí fala em “Fator Minion”, numa jocosa referência à franquia “Despicable Me”, comparando os caças bolsonaristas aos asseclas de Gru.

Fazer crítica no Brasil de 2022 é correr sobre o arame farpado da bipolarização, escapando das armadilhas abertas por pruídos lacradores de patrulhas ideológicas, evitando absolutismos. Há sempre alarmes políticos à esquerda e à direita prestes a zumbir frente à escrita de textos sobre qualquer fenômeno fílmico daquele país (no caso, o meu berço). Isso vale para artigos sobre o sucesso popular de “Medida Provisória” (com seus 460 mil pagantes); ou sobre a produção de filmes baseados em BDs controversas (mas corajosas), como “O Doutrinador”; passando pelo atual barulho gerado por Maria Augusta Ramos com seu “Amigo Secreto”. Um barulho ligado à sua precisa triagem dos desacertos da Operação Lava Jato. Há muita tensão no ar no Brasil, em tempos em que aguardamos novas eleições presidenciais. E é natural que fiquemos tensos, depois de um golpe, do impeachment de uma líder eleita democraticamente e do recrudescimento do conservadorismo. E é natural que essa tensão reflita na crítica,de alguma forma. Mas esta não deixa de exercer seu papel de celebrar artesanias e autoralidades, como se vê agora na estreia do necessário “Carro Rei”, de Renata Pinheiro. Os faróis que iluminam o diálogo crítico se acenderam para o potente filme da diretora de “Amor, Plástico e Barulho” (2013) passar, consolidando seu estado natal, Pernambuco, como pátria de invenção. Da mesma forma, a crítica esteve atenta para lembrar os dez anos de ausência do mestre Carlos Reichenbach (1945-2012), garantindo-lhe espaços em múltiplas URLs para celebrar suas jóias, como “Alma Corsária” (1993).

Desde os anos 1950, vozes trovejantes catapultaram a crítica brasileira ao Valhalla da relevância, como foi o caso de José Carlos Avellar (1936-2016). Como resenhista do Jornal do Brasil, curador de festivais e agitador cultural, Avellar dedicou sua vida e sua escrita a propor conexões entre os países da Pangeia Latina, escrevendo sobre Jorge Sanjinés, Miguel Littín, Lucia Murat e Jefferson De com ardor, para estabelecer pontes entre suas filmografias. A Mostra de Tiradentes alcançou a potência que tem ao ser redesenhada por um crítico, Cléber Eduardo. E segue hoje com grandes intelectuais - como Lila Foster, Francis Vogner dos Reis, Tatiana Carvalho Costa, Camila Vieira e Felipe André Silva - em seu timão. Mas há sempre que se estar atento e forte para ranços ideológicos, como as sequelas da ditadura que nos podou o interesse em entender “cinema de gênero” para além das catacumbas do terror, limitando sobretudo nossa relação com a fantasia nas telas, por haver nela um traço de códigos hollywoodianos (é o que alguns dizem). No Brasil, o fantástico vira sociologia num sopro e igrejas burguesas enaltecem registros de pobreza que estão mais próximos de uma catalogação etnográfica do que da poesia. Mas, ainda assim resistimos. Pensamos. E, sem perder a ternura, provocamos.

 

Texto da autoria de Rodrigo Fonseca, crítico de cinema, dramaturgo e pesquisador, integrante da equipa do C7nema e titular do blog P de Pop do jornal O Estado de S. Paulo

Alfinetes e Agulhas

Hugo Gomes, 17.07.22

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Certain Women (Kelly Reichardt, 2016)

 

“In any thought you put down, what you’re seeking is truth: what is the most believable fact and where is the end?”

Manny Farber, Farber on Film

 

Escrever sobre escrever sobre cinema deveria começar, primeiro que tudo, por olhar para o que chamamos de ‘crítica’ e como essa acção é apenas e só um acto em si mesmo, ou se pode e deve dizer respeito a toda a prática. São múltiplas as tradições da crítica de cinema, e com o avançar dos tempos novas e iluminadas maneiras de pensar o cinema têm surgido. Com o fim de a obter, há o que sempre entendi enquanto instrumentos, as tais ‘reviews’ que têm como principal objectivo a avaliação, e nestes últimos anos indefiníveis, esta tem-se vindo a tornar ainda mais extrema (no sentido de descabida; uma explosão responsiva ao binge-watching), de uma quantidade inacreditável de filmes, que por vezes surgem acompanhadas pelos célebres quadros de estrelas que neste momento só ajudam o leitor a não ler o texto. Com base no tipo de extremismo estanque dos críticos autores da Cahiers du Cinéma e seus sucessores (uma certa masculinidade vaidosa e desenfreada) que mereceu a atenção de Pauline Kael no ensaio Circles and Squares em 1963, o ofício da crítica continua a denunciar-se domínio de uma competitividade de tal forma erosiva que se prova diminuidora de potencial. 

Se o trabalho do crítico foi alguma vez só o de sancionar (daí o terem afastado do sexo oposto?), então não era de crítica que se tratava. A crítica enquanto definição sempre teve os mesmos pontos de contacto: conseguir, em poucas palavras, limar uma obra; conseguir encontrar uma fenda de frescura, até nos filmes que se revelam mais falhados; estar aberto à política das relações criadas entre frases escritas; e talvez o elemento mais importante de todos, fazer um trabalho veloz e incisivo de curadoria de cinema. É bizarro esse mundo da crítica que se veste de eixo de autoridade, onde a presunção que dele escorre não consegue sequer redirecionar as suas intenções para algo positivo, acabando por olear o millieu cinéfilo. 

Com a mudança dos tempos, nomeadamente com a entrada de rompante das plataformas de streaming nas nossas vidas, o excesso de oferta diminuiu o valor tanto dos filmes como da crítica destes. Com esse excesso e as multi-vozes que a internet muito rapidamente veio colocar no radar, ao ponto de este se ter vindo a partir, é sintomático agora um desinteresse em saber sequer no que se tornou a crítica de cinema. “(…) estes são tempos confusos. Sentimo-nos arrasados. Podemos passar meia hora a percorrer uma plataforma de streaming, deslumbrados pelo número e pela escolha.”, explicou-me o curador e realizador Mark Cousins o ano passado. Para lá da exigência económica de fazer o registo do que estreia e “aparece”, o papel da crítica tem-se vindo a moldar num guia. “Curadores e cartazes sinalizadores são vitais. Eles dizem ‘experimenta isto, podes gostar’. Providenciam um menu de degustação, ou para misturar metáforas, eles contam uma história do cinema.”, continuou Cousins. A crítica pode e deve continuar a ser um fim em si mesma. Aliás, nunca antes pôde a crítica redefinir-se como agora. E é de notar os momentos em que, no meio de tantas palavras balbuciadas, esta ainda consegue respirar autenticamente quando existe enquanto escrita e tenta figurar a localização da memória do cinema que começa a vaguear assim que dele se sai. 

Dito isto, ainda existe um tipo de texto que se interliga com a feitura da escrita, ou noutras palavras, com a intensificação que a poesia cinemática exerce quando marinada. Nunca são nomes de pessoas, e nem têm que ser opiniões específicas, mas em vez disso maneiras de o fazer; as impressões digitais que certas passagens nos deixam, onde existe uma inegável conquista de gestos nas ondulações entre palavras e pontuação. A crítica que mais aprecio é a dos não-críticos de cinema (sempre com a excepção de Manny Farber, claro) que a escrevem sem se aperceberem. 

“(…) What compels her work is process, getting-there, the in-between, the-how-it’s-done, the sheer effort it takes to be human, to slide open a barn door, to get warm when it’s cold, to drive through the night, to express what one doesn’t have words for (…)”, diz-nos Durga Chew-Bose, num ensaio sobre Certain Women, de Kelly Reichardt

Juan, his mouth fixed in a pout—sometimes he sucks on his tongue, as if it were a pacifier—doesn’t take his eyes off the street. He can’t afford to; this situation, any situation, could be changed in an instant by a gun or a knife.”, diz-nos Hilton Als, após ter visto Moonlight, de Barry Jenkins

Ao contrário da ‘review’ tida enquanto produto final, estes testemunhos são sanguíneos, têm uma fluidez incontestável; é o cinema enquanto eco dos tempos, enquanto transferência empática sobre a vida e como todos nós nos relacionamos ao a exercitarmos. Já para não dizer que marcam, como muito poucos outros textos, o que deveria ser o objectivo da prática: confirma-nos que o filme não foi ignorado. Independentemente das palavras usadas, foi escolhido para ser pensado. Ao contemplar o objecto com a distância permanente da avaliação, ou melhor, com o desejo constante de contemplar gestos e fragmentos só para os pesar, perde-se o tilintar daquilo que cai dentro de nós, a forma como a literacia visual é aprofundada ou não. 

Se pensarmos bem, ser um crítico nem sempre é ser um escritor. Mas ser um escritor é sempre ser um crítico. Os escritores são obrigados a criar a gramática das ligações que florescem no papel. Só interiores, a mascararem-se de superfícies. A crítica que repensa a história do cinema e a vai engordando deve ser escrita por um escritor para que, como quem peneira farinha, seja retido que uma ida à sala de cinema em nada tem a ver com a sala. É o movimento ascendente, os pés no asfalto, o curvar com as ruas específicas da cidade, a forma como o sol bate nas casas enquanto caminhamos em direcção ao edifício. Ou seja, para que consiga reunir e decifrar tudo o que fica por explicar. 

Nestes termos, ensaiando os seus argumentos de forma precisa, em direcção a uma verdade, a sua verdade, um importar da dinâmica do filme para o papel é, em teoria, realizado. Aí, dentro desse importar, decorre uma espécie de contaminação, e o crítico não é nada mais do que o agente dela, no transporte dos alfinetes e das agulhas da possibilidade - oscilações ora de euforia ora de neurose em tempos de capitalismo tardio. Pensem num electrocardiograma, metade desejo metade soro da verdade, à vista de todos, e sem fim. Do pontilhismo à imagem, nunca só uma realidade é alcançada. Há múltiplas, e podem ou não trabalhar em uníssono. O que as une? Escrever sobre cinema também é  fazê-lo.



* Texto da autoria de Susana Bessa, jornalista e crítica de cinema da À Pala de Walsh e do Público, tem um mestrado em estudos fílmicos da Goldsmiths College, e foi um dos Berlinale Talents 2022, no Talent Press.