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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Preencher um silêncio em "Os Faroleiros": uma conversa com o compositor Daniel Moreira

Hugo Gomes, 30.03.23

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"Os Faroleiros" (Maurice Mariaud, 1922)

Realizado, escrito, produzido e protagonizado por Maurice Mariaud, “Os Faroleiros” (1922) foi durante tempos considerado um dos projetos mais ambiciosos concretizados em solo português. O “drama-documentário”, desta forma descrito, apresenta-nos um trio amoroso rompante entre “ondas de paixão e de ódio”, decorrendo numa vila costeira “guardada” por um pujante farol. Aqui, uma bela órfã, Rosa (Abegaida De Almeida), é acolhida pelo tio, o faroleiro João Vidal (o próprio Mariaud), que nutre sentimentos por ela. Contudo, o coração da moça também é disputado por António Gaspar (Castro Neves), o outro faroleiro, sedento de uma mortal obsessão. O filme culminará num confronto entre os dois homens, “barricados” na “torre luminosa” e lutando pela memória de um amor perdido, tentando com isto sobreviver numa prisão marítima algures entre o espiritual e o delirante. 

“Os Faroleiros”, raridade preservada (estando várias décadas desaparecido, até ser reencontrado em 1993 no Palácio do Bolhão, no Porto) e restaurada no âmbito do FILMar, projeto operacionalizado pela Cinemateca Portuguesa, parceira e impulsionadora desta iniciativa, com o apoio do programa EEA Grants 2020/2024, encontra nova vida nos grandes ecrãs. Primeiro no Batalha [Porto] e depois em Lisboa na Culturgest [31.03, pelas 21h00], num concerto orquestral conduzido e originalmente composto por Daniel Moreira e interpretado ao vivo pelo quarteto de cordas The Arditti Quartet.  

Em preparação com o espectáculo a decorrer na capital, conversei com o compositor e investigador musical sobre esta encomenda, e ainda abordando a relação Herrmann / Hitchcock e a escassa tradição de banda-sonora à portuguesa. 

A minha primeira questão soará um bocado “vaga”, mas gostaria de entender a sua relação com o Cinema e com a Música. Se foi através da Música que se relacionou com o Cinema, ou se pelo Cinema se relacionou com a Música?

Desde há muito que tenho uma forte relação com o Cinema. Embora seja músico, de formação e de profissão, costumo dizer que gosto tanto do Cinema como da Música. E na verdade isso possui uma dimensão pessoal, o de gostar de ver filmes e de conhecer o que se faz no mundo do cinema, como também reflete no meu trabalho - porque para além de ser compositor sou também investigador em música, em áreas mais teóricas - cujo foco principal é a música de cinema e a relação entre música e o cinema. 

Tenho projetos, sobretudo, sobre o trabalho de Bernard Herrmann, principalmente com Alfred Hitchcock, e sobre a noção de musicalidade dos filmes do David Lynch. Do ponto de vista da composição, na verdade, este projeto foi fantástico, porque desejava essa experiência de escrita musical para cinema. Tinha alguns projetos que infelizmente não chegaram ao fim, e este é o primeiro que efetivamente chega a concretizar-se.

Queria que me falasse um pouco sobre esse seu trabalho acerca do Bernard Herrmann e até que ponto não podemos desassociar o compositor do cinema de suspense do Hitchcock?

A minha investigação sobre Bernard Herrmann começou pela sua colaboração com Hitchcock, e o que se encontra publicado circula entre os seus trabalhos em torno de “Vertigo” e de “Psycho”, enfim, hoje soam como exemplos previsíveis e supra-estudados, possivelmente os filmes mais estudados dentro do Cinema, não apenas dentro da sua área musical. Mas ao fazer essas investigações e sobretudo a do “Psycho”, acabei por sentir a necessidade, também fui encorajado na altura pelo editor da revista em que o artigo foi publicado, abranger mais sobre o trabalho do Bernard Herrmann no cinema, e não restringi-lo a somente Hitchcock. Este aprofundamento permitiu-me reconhecer particularidades do estilo-modelo, e a partir do último ano, tal estudo começou a abrir outras portas. Encontro-me, atualmente, numa fase de tentar conhecer todas as bandas sonoras da autoria de Herrmann, o qual contamos com por volta de 50 partituras, e com isto desenvolver uma pesquisa mais transversal, porque embora ele seja reconhecido pelas colaborações com Hitchcock, que contabilizam 6 ou 7 obras, ele ainda trabalhou com muitos outros realizadores, e em outros géneros, como filmes de aventura, e de ficção científica.

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Daniel Moreira / Foto.: Culturgest

… e trabalhou com Orson Welles em “Citizen Kane”.

Com o Orson Welles também. Essa colaboração também é muito importante. E depois tem filmes assim, soltos, que na minha opinião possuem uma música igualmente fantástica, por exemplo, “Sisters”, do Brian de Palma, uma banda sonora extraordinária, ou até mesmo "The Day The Earth Stood Still" de Robert Wise. E, portanto, agora estou numa fase de perceber um ‘bocadinho’ melhor o seu trajeto artístico, e muito fora de Hitchcock. Embora, a partir de certa altura, essa ligação tenha sido tão marcante que alguns realizadores desejaram trabalhar com ele devido essa referência de colaboração com Hitchcock

Portanto, é incontornável essa colaboração, até porque transformou o cinema do Hitchcock. O seu cinema não seria mesmo sem essa colaboração.

Em relação a Brian De Palma, há todo um sentido nessa repescagem, visto que Hitchcock era em grande parte o seu modelo de Cinema.

Sim, obviamente.

Tinha uma lógica de seguir essas pisadas. Agora, passando aos “Os Faroleiros”, gostaria que me falasse um pouco deste trabalho. Estamos a falar de um filme mudo, hoje considerado uma raridade, e que durante vários anos esteve perdido, tendo sido posteriormente recuperado, e remasterizado.

Certo.

E sobre “Os Faroleiros”? Teve alguma referência sobre a sua composição musical ou criou algo em termos de raiz?

Sim, foi uma questão que me levou a ter muita reflexão no início, mas em relação a este filme não se conhecia nenhuma banda-sonora autêntica e original da época. Penso que nunca há tido. Soube até, por falar com outras pessoas que têm investigado isso, que na altura dos anos 20, em Portugal, alguns filmes tiveram composições originais. “Os Lobos” de Rino Lupo, por exemplo, teve uma partitura original. 

Consultei algumas dessas partituras para tentar perceber o tipo de música que se fazia na altura no nosso país. Não sei se isto teve uma influência muito direta na música que escrevi, mas constatei que era habitual na década de 20’, quando havia música previamente composta para filmes, eram sobretudo formações de música de câmara e não tanto para orquestra. Por exemplo, quinteto com piano, o quarteto de cordas convencional com piano, ou por vezes formações parecidas com essas, mais um ou dois instrumentos. E desse ponto de vista, achei curioso que a encomenda vinda do Batalha, no Porto, tenha sido uma proposta de escrita para quarteto de cordas. Uma ligação, digamos, à tradição, pelo menos ao tipo de formação existente em Portugal na época.

E, portanto, essa referência foi para mim importante. Na verdade, fiquei satisfeito, em medida que fui avançando no processo, que tivesse seguido para uma formação de câmara e não para uma formação mais larga de grande ensemble [pequeno agrupamento de intérpretes que pode englobar instrumentistas e/ou cantores] ou de orquestra, porque acho que um filme como este … que em certa maneira, é um drama de câmara no mesmo sentido que os filmes do Bergman. Não é que seja muito bergmaniano, é, contudo, bastante focado, pelo menos da maneira na relação entre três ou quatro personagens. Aliás, há uma parte substancial do filme em que até só temos duas personagens. E portanto, pareceu que ter um ensemble relativamente pequeno casava melhor com essa atmosfera do que ter um ensemble muito maior.

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"Os Faroleiros" (Maurice Mariaud, 1922)

Esse último ato que você falou, quando as duas personagens estão “aprisionadas” no farol, num perverso jogo de “mata-mata”, julgo ser o ponto auge do filme.

Tem uma dimensão quase expressionista, não é? Muito forte, claustrofóbica e violenta, na verdade. Que, musicalmente, foi muito desafiador e para alguém como eu que gosto de Bernard Herrmann e das emoções mais sombrias que era tão exímio ao retratar musicalmente, tais nuances foram inspiradoras. O filme é interessante, porque reúne atmosferas bastantes diferentes, se no final alberga esse tom quase expressionista, o início é-nos muito diferente. Essa diversidade atmosférica converte-se num ambiente sugestivo para a música. Ao mesmo tempo que se tem esta noção de que atmosfera vai para além da música que se cria, do mesmo modo que esta vai-se definindo consoante a composição musical criada. Se impusesse outra partitura, ou até mesmo outro compositor, a atmosfera nunca seria a mesma. Uma das vantagens em ver cinema mudo musicado do que sem música alguma, as experiências são díspares. 

Até à data desta conversa, o Daniel conduziu a sessão do Batalha, e encontra-se pronto para o da Culturgest. Ficaremos por aqui nesta experiência de composição para cinema ou existe um “bichinho” para continuar?

Vou dizer que SIM [risos]. Só que não depende de mim, e sim das instituições que a promovem. Mas sim, foi uma experiência e tanto, e muito gratificante, a de compor uma música para um filme raro e histórico cuja sua partitura original desconhece-se, foi um processo enriquecedor. 

E quanto a banda-sonoras de filmes contemporâneos?

Sinceramente, gostava de avançar numa proposta dessas se alguma oportunidade surgisse. Tenho a consciência que fazer música para um filme sonoro seria muito diferente para um mudo, por várias razões, uma delas é que não tive que negociar a música com o realizador [risos] … por razões óbvias, não é? Enquanto num filme sonoro teria, o que significaria menos liberdade mas que me daria um grau de colaboração o qual gostaria de experimentar. Por outro lado num filme mudo, à partida, o único “som” que se ouvirá será o da música que compus, e num ‘sonoro’ teria que aliar-me a diálogos, sound design e sonoplastia. 

De certa forma, o meu trabalho com “Os Faroleiros” também serviu para compensar essa falta de sonoplastia, dar essa sensação através da música, essencial num filme tão forte nesse ponto de vista, com todo aquele ambiente marinho invocado e os muitos planos expressivos do mar. Não de maneira direta, mas o que tentei fazer foi, através dos instrumentos, sugerir os sons que poderíamos ouvir naquela atmosfera. Obviamente que num ‘sonoro’, a música iria ter essa função, só que estaria em permanente diálogo com os outros elementos sonoplásticos. 

Outra diferença, é que num ‘mudo’ a música necessita ser quase onipresente, se o filme tem duração de 80 minutos são 80 minutos de música ininterrumpida. Já o ‘sonoro’, os outros elementos seriam destacados, por vezes ganhando prioridade sobre a música, ou, por vezes dispensá-la. Outro factor é a gestão dos silêncios, o ‘sonoro’ trabalha o silêncio, coisa que o ‘mudo’ não faz de maneira a não quebrar o seu vínculo musical / visual. 

Pegando novamente na banda-sonora de filmes “falantes”, e num prisma português, não pude deixar de reparar, salvo algumas excepções, que o nosso cinema é pobre em partituras originais. Novamente friso, salvo algumas excepções como alguns trabalhos do Rodrigo Leão, mas tenho notado as enésimas colectâneas de clássicos presentes em muitas das nossas obras, nomeadamente a quantidade de vezes que ouço o “Moonlight Sonata” de Beethoven a tocar. De um modo geral, não possuímos uma tradição de banda-sonora cinematográfica?

Não conheço tão profundamente o universo, mas existem várias excepções, recordo, por exemplo, da colaboração de Manoel de Oliveira com João Paes nos anos 80 e que foram responsáveis pelo original e fantástico “Os Canibais” (1988), um filme de ópera absolutamente único no Mundo. Mas fora mesmo desse registo operático, tens também o “Francisca” (1981), com uma partitura bastante original … e pelo que sei o Daniel Bernardes tem colaborado com o Botelho. Ou seja, as excepções são muitas, mas é verdade que existe essa prática em abundância, o João César Monteiro recorria maioritariamente à música clássica pré-existente … quer dizer, não só clássica, e sim pré-existente. O que também é toda uma arte fantástica, crítica uma obra dessas é como crítica uma obra-prima do Kubrick

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"Os Canibais" (Manoel de Oliveira, 1988)

Claro, claro, não estou a criticar o gesto em si, nem a música selecionada, estou com isto a constatar essa baixa tendência em criar bandas-sonoras próprias. Visto que falou do João Paes e do Oliveira, também gostaria de colocar na conversa o rock progressivo de António de Sousa Dias no badalado “Os Abismos da Meia-Noite” de António de Macedo, que julgo ter sido posteriormente editado em álbum. 

E quanto a novos projetos? 

Sobre investigação posso falar à vontade, já os de composição deixo em abstracto porque ainda não foram anunciados publicamente. Os de investigação são mais aos menos as duas alíneas referidas. O primeiro, que é o de compreender o estilo e influência de Bernard Herrmann (que talvez origine um livro daqui a uns anos) e segundo, não mais sobre um compositor, e sim de um realizador, David Lynch. Uma ideia de musicalidade envolto nos seus filmes, e nas séries televisivas, é um pouco pegar no que ele acredita, ou seja, segundo Lynch as suas obras são como partituras musicais, e isso é comprovado através deles. Na verdade ainda estou em fase, de levar os meus artigos a conferências, com isto recolher feedback das pessoas desse campo, tendo a ideia máxima de transformá-lo num livro.

Do ponto vista da composição, tenho várias ‘coisas’! Sou de formação clássica contemporânea, logo todos os meus projetos não são todos necessariamente relacionados com o cinema. Tenho um projeto que envolve coro e orquestra, e talvez eletrônica, e ainda existe outro que coloca ópera e ecrã. Peço desculpa, mas tenho que ser muito abstrato aqui. [risos]   

Caminhando entre gigantes: Paul Vecchiali, um homem maior que a vida

Hugo Gomes, 19.01.23

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Le Cancre (2016)

Paul Vecchiali nunca acreditou em fazer parte da História do Cinema, o que não lhe impossibilitava de atormentar as suas próprias bases. Provocador, como muitos lhe apelidavam, digamos mesmo que era um prolífico, um polivalente, um homem de “mangas arregaçadas” no que requer à prática de “fazer Cinema”. 

Crítico como crítico na sua vida, descobri Vecchiali nas oportunidades trazidas pelo Indielisboa [em 2017]. Vi parte da sua obra nesses andamentos, sem a menor resistência. Comecei pela empatia, a empatia em não julgar as suas personagens, de nem sequer persegui-las e “enclausurá-las” nas esquadras da moral e da razão. Desse jeito, olhei para aquela face de piedade que só Geneviève Thénier possuía em Les Ruses du Diable” (1966), um contacto directo a de Harriet Andersson em “Sommaren med Moniks” de Bergman, ambas quebrando a quarta parede e solicitando o julgamento por parte do espectador. Nesse particular momento, aquelas personagens deixaram de ser personagens e transformaram-se em algo “nosso”, da nossa realidade, do nosso espírito, Andersson atravessou essa realidade, seguido pela Thénier num filme em que a sua persona era tudo menos agradável de estar. 

Nada no cinema de Vecchiali invoca a fácil conexão, porém não se refugia nos seus “mundinhos”, o seu universo, que se vem abrindo, mais e mais, adquirindo um tom acentuadamente mais intimista (“Le Cancre”, “Train de vies ou les voyages d'Angélique”), mas antes disso o gesto da importunação, “nascer para irritar” seguindo a dica vivente do dramaturgo Dias Gomes. Ora, pena de morte, homossexualidade em períodos tabus, carnalidade, entre outros, “irreverentes” satélites que orbitam essa sua filmografia, Paul Vecchiali foi tudo num só, mas pouco valor lhe atribuíram, hoje esquecido, injustamente ignorado ao cânone e por vezes em desuso perante as correntes ideologias. 

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La Machine (1977)

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Once More (1988)

O único produtor francês na atualidade sou eu” declararia em Cannes em 2016, determinado em não deixar morrer a sua presença naquela nefasta indústria, porém, apesar dos constantes punhos erguidos, Vecchiali era um Senhor (o “S” grande é propositado). Pessoalmente, foi com ele que tive uma das melhores conversas na minha (ainda curta) jornada pelo cinema. Aconteceu na Cinemateca Portuguesa [em 2016], por entre as abarrotadas estantes da sua livraria, ao lado do seu livro de apontamentos sobre cinema francês, “acabadinho” de chegar ao estaminé. , falamos um pouco de tudo - aproveitando o pouco tempo dado pela organização do festival - principalmente sobre a sua relação atual com a arte que aos poucos lhe virava costas e dos seus “pecados”. 

Hoje em dia é necessário bater na política de autores”, frase que ecoou em mim ao longo destes anos, a sua insubordinação contra a uma prisão intelectual e impotência crítica, e além de tudo, uma ode à nossa capacidade de pensar. O homem foi um mestre, e eu, por minutos, o seu discípulo, mesmo que a língua tenha sido uma barreira (o meu francês não é dado a vanglórias). Não me julgou, ao invés disso, demonstrou um carinho pelo meu esforço em construir uma ponte entre duas distintas gerações, cujo ponto-comum era sem dúvida as imagens na tela, esse dialeto universal e transmissível. 

Por fim, recordo, absolutamente, de um acenar de cabeça leve e gentil após ter-lhe dirigido um obrigado pelo tempo disponibilizado por mim. E não foi tempo perdido. Aliás, com Vecchiali nunca é tempo perdido.

Paul Vecchiali (1930 - 2023)

"A Culpa não morre solteira": o ano terrível para o Cinema Português

Hugo Gomes, 24.12.22

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"Km 224" (António-Pedro Vasconcelos, 2022)

2022, mais um ano, mais lamentações a caminho. O Cinema Português, essa formalizada instituição que muitos adoram cuspir, resiste face aos números vergonhosos nas bilheteiras nacionais, mesmo que, muitos deles beneficiam de “boa imprensa”, de críticas esplendorosas, artigos requintados e o esforço hercúleo por parte das suas distribuidoras e produtoras em os promover. 

Mas o cinema nacional demonstrou-se alheio aos planos do grande público, que o diga o veterano António-Pedro Vasconcelos e o seu drama de custódias “Km 224” que terminou com uns “míseros” 4.128 espectadores (tendo em conta a sua ambição comercial, 830 sessões contra, comparativamente, as 161 de Lobo e Cão de Cláudia Varejão que arrecadou, até ao momento, valores mais acima), ou o que dizer a estreia de Tiago R. Santos e o quarteto de luxo [Ricardo Pereira, Teresa Tavares, Margarida Vila-Nova e Cristóvão Campos] com “Revolta”, filme que em outros tempos chegaria, na pior das hipóteses, aos 5.000 espectadores, apenas arrecadou 1.719. Melhor posicionado esteve “Salgueiro Maia: O Implicado” de Sérgio Graciano [16.777], o qual convém referir a importância ainda memorial da sua figura-alvo, e a dupla rural “Restos do Vento” de Tiago Guedes e “Alma Viva” de Cristèle Alves Meira [11.685 e 7,537].

Nem mesmo João Botelho, possivelmente o realizador com mais imprensa por metro quadrado nos seus filmes, que nos trouxe uma das suas melhores obras em muito tempo (“Um Filme em Forma de Assim”), não escapou à derrota nessa estrangulada luta nas bilheteiras [2.208], e num ano em que contou com retrospetiva integral na Cinemateca, novamente promovida em todos os meios, mas igualmente captada pela indiferença do seu público-alvo. Cinema português e bilheteiras são um eterno fado e que nada descura da qualidade de muitas destas obras. 

Já os restantes autores propriamente ditos; "Fogo-Fátuo" de João Pedro Rodrigues a exibir a sua legião de adeptos [3.533 espectadores], com cerca do dobro do atendimento, Marco Martins e o seu “Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965 - 2005” demonstraram adesão ao documentário português (enquanto o mais visto nessa categoria foi “Cesária Évora" de Ana Sofia Fonseca com 7.057 espectadores). Números longínquos para com uma Rita Azevedo Gomes, por exemplo, cujo O Trio em Mi Bemol levou até ao momento 467 espectadores, mais que o tríptico de Joaquim Pinto e Nuno Leonel acolheram [“Pathos Ethos Logos / 178 espectadores]. Comparativamente, com menos promoção e imprensa, a segunda longa-metragem de Adriano Mendes - “28 ½ - concretizou 725 espectadores, em 43 sessões, menos que as projeções do filme da Azevedo Gomes, ainda em cartaz [62 até à data].

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"O Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Estes trazidos números serviram para mostrar um só propósito - o constante desfasamento entre o público e o seu cinema - um fenómeno latente à dissertação das salas pelo conforto do ambiente doméstico sob a febre das “novidades do streaming”, ou a cada vez mais “exigente” seleção do que realmente ver numa sala de cinema … a aspas são pertinências visto que o cardápio parece fundamentado em redor de super-heróis ou franchises duradouros. Contudo, quando o tema é cinema português, a discussão resume-se na própria qualidade destes do que no gosto do espectador. Anos a fio a ouvir os mesmos queixumes, enfrento-o esses argumentos com os iguais números.  

Mas antes disso, há que procurar as causas para esse divórcio? Possivelmente, um dos graduais problemas, como havia sido sugerido, seja a reputação que a nossa produção adquiriu e acumulou ao longo destes anos. As avenças de “Amor de Perdição” de Manoel de Oliveira ou os enterros antecipados a António Macedo (o sketch satírico de Herman José fantasmagoricamente ainda povoa na nossa imaginação coletiva), conspiradas raízes para este boicote orquestrado ou até politizado que hoje fomenta furiosos pedidos de uma renovação de histórias, de estilos, de ritmo, de atores e sobretudo uma “americanização” do nosso cinema, em jeito de encabeçar sem grandes histrionismos um catálogo de um globalizado streaming

Porém, o desejo é diferente dos sucessos, “Dois Duros de Roer” ou Curral de Moinas: Os Banqueiros do Povo, inquestionavelmente amadora televisão descaradamente embutida na tela conquistou espectadores (48.830 e 314.115 respetivamente), muitos deles assinantes dessa “carta de exigências". Com este cenário em conta, para quê continuar a debater sobre o que o cinema português precisa de fazer para “apelar” ao seu público? Claro que não, como todos os divórcios, a culpa não morre solteira. 

Escusado será totalmente imputar a nossa produção tendo em conta que o dito “espectador português” tem demonstrado ao longo destes anos zero paladar no ramo.

Todo Comenzó por el Fin: um adeus a Luís Ospina

Hugo Gomes, 28.09.19

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Luís Ospina na Cinemateca, durante o Doclisboa 2018

Há uma honestidade intelectual em Luís Ospina.” Era a frase feita que nos vendiam quando da sua vinda à Cinemateca de Lisboa, no período correspondente ao que Doclisboa lhe dedicava numa retrospectiva integral em 2018.

Nesse mesmo ano notava-se na sua figura uma certa fragilidade. O tempo não lhe estava a ser generoso (foi-lhe diagnosticado cancro alguns anos antes), porém, era identificável a sua resistência. O cineasta e cinéfilo de “boa raça” colombiano manteve-se incansável, presenciando todas as sessões e inclusivamente indo ao encontro com os espectadores. Como uma espécie de “teaser”, antes da projeção, ele falava sobre as respectivas produções, os pós e contras, as suas percepções, confirmando aí a sua honestidade para com o seu legado.

Era um realizador que caiu no erro de explorar o miserabilismo naquilo que apelidava de “porno miséria”, até por fim encontrar o conforto na busca pela dignidade dos mais pobres, tendo concretizado “Agarrando Pueblo” com Carlos Mayolo, como um “antídoto (…) para abrir os olhos dos espectadores quanto à exploração por detrás do ‘cinema de miséria’ que converte pessoas em objetos“, segundo o seu manifesto de 1978. Apesar de ter estado presente em todas as sessões, o colombiano não conseguiu estar presente no nosso marcado encontro. No dia seguinte, a curadora da retrospectiva (Agnès Wildenstein) veio desculpar-se da ausência e, em jeito de confissão, disse-nos que o estado de saúde de Ospina piorava a olhos vistos e que nessa altura encontrava-se demasiado fatigado para se encontrar com a imprensa.

Confesso que não guardei rancor por ele ter faltado ao seu compromisso, pois notava-se a léguas que Luís Ospina mantinha em segredo, apesar de em vão, as suas fraquezas, neste caso o tempo que lhe restava, e que o próprio pretendia transformar numa eternidade.

Se o seu objetivo foi ou não foi cumprido, só o tempo dirá, mas até lá há que sentir o pesar. O Mundo perdeu um dos seus grandes autores marginalizados, que mesmo sob o registo de duas longas-metragens de ficção que operaram como experiências de género, foi no seu trabalho documental que costurava questões sociais e culturais do seu país, imortalizando os seus amigos artistas e do “povo” que até à sua chegada não tinham voz, que deparamos com um incalculável legado.

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Carlos Mayolo e Luis Ospina em "Agarrando Pueblo"

Nascido na cidade de Cali, em 1949, Ospina estudou cinema na UCLA (EUA) e concretizou o seu primeiro aperitivo cinematográfico ao adaptar o conto de Eróstrato de Sartre numa abordagem livre em Acto de fé. A sua paixão pelo cinema norte-americano levou-o diversas vezes a revisitar, quer no documentário sobre os filmes mudos de Hollywood (“Slapstick: La Comedia Muda Norte Americana”, 1989), quer na influência nas suas tentativas de enriquecer a arte de contar histórias no cinema colombiano (“Pura Sangre” em 1982 e “Soplo de Vida” em 1998, terror e noir com crítica social injetada).

Contudo, foi com isso mesmo, a vénia ao cinema colombiano, oculto por esse mundo fora, que Ospina consultava constantemente como sua fonte inspiracional. Procurou o primeiro filme mudo do seu país em “En Busca de “Maria”” (1985), percorreu o seu cinema em “De La Ilusión al Desconcierto: Cine Colombiano 1979 – 1995” (2007), e prestou homenagem ao seu amigo crítico Andrés Caicedo, “Unos Pocos Buenos Amigos” (1986), com o qual fundou a revista “Ojos del Cine”. Quanto às suas amizades, com o cineasta chileno Raoul Ruiz filmou uma curta em modo “cadáver esquisito” denominada de “Capítulo 66”.

E foi através desses vai e vem pelo património cinematográfico que Luís Ospina revelou pela primeira vez os seus problemas de saúde, mais concretamente em 2015, num olhar ao chamado Caliwood, grupo cinematográfico de Cali (também fundado em conjunto com Andrés Caicedo no anos 70), em “Todo Comenzó por el Fin” (2015). Como premonição, a morte por fim visitou-o a 27 de setembro de 2019, em Bogotá, onde estava radicado.

Antes disso, esteve presente no FidLab em Marselha, em junho deste ano, em busca de financiamento para um novo projeto: o de pegar em doze filmes mudos colombianos e montá-los como uma obra imaginária. Mesmo não concretizado, é um final digno de um cineasta. Luís Ospina morreu aos 70 anos, mas morreu na paixão daquilo que tanto amou: o Cinema.

Para Fellini todo o Amor é pouco

Hugo Gomes, 30.06.19

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Porque Fellini é uma das figuras mais importantes da minha cinefilia, foi com total agrado que revejo La Voce della Luna (A Voz Da Lua), desta vez em grande ecrã na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema. O filme continua, após estes anos todos, a apresentar aquela aura melancolizada, um adeus a um cineasta distinto e tão próprio. Não me interpretem mal, mas foi melhor assim, o panorama do audiovisual italiano estava a mudar drasticamente, a televisão adquiria a sua dominância frente a Sétima Arte, e esta cada vez mais despida pelas constantes “despedidas” dos maestros. Fellini era uma espécie de fóssil vivo, não se adaptava, apenas lutava para manter o seu imaginário livre, e simultaneamente fechado. O Cinema era o seu refúgio, a sua mentira prolongada, as suas memórias enfeitiçadas pelo brilho da Lua.

Que saudades tenho de Fellini!

"Soplo de Vida": citando o "noir" em negro

Hugo Gomes, 24.10.18

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Luis Ospina pode muito bem ser referenciado como um denunciador de uma realidade ocultada, a divulgação de uma pobreza extrema na Colômbia, captada para o grande ecrã, o qual atravessou o Globo, conquistando assim os mais ímpares cinéfilos. A sua forte conotação política sempre o colocou debaixo de muitos olhares, da admiração e até ao desdém, tudo orientado para o tornar num dos mais importantes cineastas da América Latina, hoje uma voz esquecida, mas sem com isso negada essa relevância. Os documentários da precariedade e de contexto social, as “reportagens” disfarçadas de ensaios cinematográficos, são tidos como as suas marcas autorais, porém, não só a realidade imprimida fez parte do seu currículo. A ficção também está no cardápio, neste caso duas fitas que realçaram, acima de tudo, a sua fervorosa cinefilia.

Se em ’82 concretizou um exercício de terror que misturava vampiros com a habitual crítica à sociedade colombiana com “Pura Sangre”, foi em ’99 que se despediu por fim desta visão ficcional. E fê-lo sem o saber em antemão, com uma homenagem ao seu género predileto, o noir. Tal como o próprio afirma com tamanha convicção, o cinema de género sempre lhe deu o prazer e dentro desse leque – diversas vezes restringido a prazeres pecaminosos por parte de muitos cinéfilos -, Ospina decide aprofundar os seus conhecimentos quanto ao universo do chamado “filme negro”. Citando o incontornável cinema norte-americano, os franceses e porque não os exemplares mexicanos, “Soplo de Vida” é fortalecido como uma revisão dos códigos dos mesmos, mas evitando por completo o formato de best hits.

Invocando à memória os célebres antepassados de Hollywood, damos por nós transportados para uma Bogotá suada e suja, embelezada pelas cores quentes que nos remetem automaticamente aos trópicos ao invés das cidades frias, enevoadas e contrastadas com as pálida pele dos seus artistas na indústria que tão bem conhecemos. A voz-off está lá, como “manda a sapatilha”, a narração por parte de uma polícia renegado, agora convertido em investigador privado de gabardine “melvilleano“, Emerson Roque Friero (como gosta de ser chamado), pronto a recontar o seu Caso. Colocamos em maiúscula para enfatizar o signo detectivesco, o Caso é a essência da medula de qualquer investigador do noir. Singular e ao mesmo tempo pluralizado e homogéneo, este, com toda a previsibilidade, envolve uma mulher (quiçá, duas).

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Por entre flashbacks, dentro de mais flashbacks (a separação entre as camadas temporais distingue-se pela sua fotografia), “Soplo de Vida” percorre todos os lugares-comuns do subgénero; as femme fatales (Flora Martinez), as identidades trocadas, a corrupção e politicas à mistura, a amargura melancolizada, as juras de amor ditas em cenários criminosos e a água ardente (aqui a substituir o eterno whisky com gelo). Mesmo sob o efeito de contraste, Luis Ospina mimetiza os códigos, fazendo questão de relembrar ao espectador que o que está a ver não foge da mera reciclagem. “Os mortos são todos iguais”, assim é afirmado na morgue perante as vítimas da violência mundana, citação que encontra cumplicidade num outro desabafo: “os homens são todos iguais, não existem nem bons, nem maus, apenas homens”. Possivelmente, poderíamos terminar por aqui colocando um ponto final na equação, é um mero exercício, não de estilo, mas de memória cinéfila e Ospina passou o teste, confundindo-se com o protagonista, caracterizado como “um homem de princípios (…) e de fins”, de ideias e de resoluções.

Crimes passionais e a ambiguidade costumeira, dois elementos (que não chegamos a mencionar acima para o bem do suspense) que se entrelaçam com um humor algo caricatural e brejeiro, retalhado pelas lembranças e transformados em idiossincrasias para qualquer freguês jubilar (o universo queer colombiano atado a um curioso olhar “Almodovariano”). Por fim, as doses claras de inserção social, um prisma imundo dos necessitados e dos incapacitados (mais uma vez fere em contraste com o formalismo americanizado). É a marca de Ospina a pesar neste cenário onde ninguém sai ileso, até mesmo o “punchline”” confiante ousa em ferir os mais “novatos” com alusões sexualizadas:  “sempre me privei dos investigadores privados” .

“Soplo de Vida” não esconde os seus baixos recursos e a tendência de “desenrasque” da sua produção. O realizador afirmara que os seus filmes são “baratos” e que a liberdade tem um preço baixo a pagar. Infelizmente, mesmo sob o rótulo de pechincha, esta série B foi um fracasso no box-office, forçando um desinteresse de Ospina na ficção e regressando ao que tão bem soube fazer até então, mostrar a Colômbia desconhecida e proibida. Diremos que, com o auxílio do Génesis, esta sua derradeira e segunda ficção, resolve-se como um “faz-de-conta” a entidades divinas, cujo sopro atribui vida a uma moldado pedaço de barro. Por outras palavras, tudo não passa de uma experiência.

Nós paranoicos, sofremos o dobro

Doclisboa'18: um convite à lá Luis Ospina

Hugo Gomes, 17.10.18

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Carlos Mayolo e Luis Ospina em "Todo comenzó por el fin" (2015)

O Doclisboa avança com a sua 16ª edição, um ano que será marcado com regressos de habitués como Wang Bing, Salomé Lamas, Frederick Wiseman e até mesmo Rithy Pahn, e até nomes a descobrir como já é “tradição” na secção Verdes Anos. Porém, afirma-se, no Doclisboa’18 um dos grandes destaques, se não o grande, encontra-se num nome, possivelmente desconhecido para muitos: Luis Ospina.

Originário da cidade de Cali, uma das mais importantes da Colômbia, Ospina estudou cinema nos EUA, mais precisamente na UCLA, tendo regressado após um primeiro filme à terra natal na década de 70. Aí fundou um cineclube e uma revista de cinema Ojos al Cine. Considerado um cinéfilo ferrenho, o cineasta nunca escondeu a sua forte veia política na sua obra, usando diversas vezes o audiovisual como uma denúncia da miséria vivida na sua nação. Para além do seu cinema-intervenção, também concebeu documentários de estudo e investigação de diferentes temas ligados ao Cinema, desde os mudos slapstick até ao perdido e desconhecido cinema colombiano.

O porquê da retrospetiva de Luis Ospina ser o programa mais relevante deste Festival com os olhos postos no Mundo? Porque esta é a primeira retrospectiva integral da sua obra na Europa – ter lugar na Cinemateca Portuguesa contando com a presença do próprio para contextualizar os filmes projetados, um convite para todos os curiosos e aventureiros em conhecer um dos nomes mais fortes do Cinema da Colômbia.

Luís Miguel Cintra e o mercado não é para velhos

Hugo Gomes, 09.05.18

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Luís Miguel Cintra no 71º Festival de Cannes

O mercado de trabalho para mim não existe. Não sei o que é. O mercado de trabalho é zero. Portanto, não interessa. O que existe de facto é o trabalho de ator, um trabalho que tem a ver com a própria personalidade. O material de trabalho é a nossa pessoa. Portanto, se a pessoa envelhece provavelmente tem um destino diferente. Mas vamos esperar o quê? Que os mais novos inventem personagens de velhos?  Não conhecem. Não têm conhecimento de como funciona um velho. Portanto, a imaginação deles não vai para velhos. Por isso temos de nos resignar, como em tudo na vida.”. Foram estas as palavras de Luís Miguel Cintra em Cannes, quando respondeu à minha questão sobre como é o mercado de trabalho de um ator a lidar com o envelhecimento.

O ator português marcou presença no Croisette para apresentar “Ilha dos Amores”, de Paulo Rocha, filme que regressou ao festival inserido na seção Cannes Classics da 71ª edição do Festival de Cannes. Sobre esse regresso, trinta e seis anos depois da estreia no festival, Cintra mostrou sensações mistas: “Tem que se pensar que este filme foi feito há trinta e tal anos, quase quarenta. Para mim isso significa uma distância – entre o dia de hoje e da exibição original do filme – de quase a minha vida inteira, da vida ativa, digamos. Portanto, tenho uma emoção negativa, por sentir que já acabou. Passaram estes anos, aproveitei o que pude aproveitar e esse é o sentimento que as pessoas têm quando envelhecem – e é um bocadinho chato. Por outro lado, tenho ao mesmo tempo um orgulho muito grande porque no meio do estado das artes, que é tão desesperante, no sentido que é tudo dominado pelo mercado, um filme como este funciona como uma pérola raríssima. 

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Eu e Luís Miguel Cintra no 71º Festival de Cannes

“Uma relação absolutamente sincera e um desejo profundo das pessoas que participaram naquilo, de quererem fazer uma coisa que nunca tinham visto feita, que não sabiam como se fazia e estavam a tentar com a confiança e respeito de que todos eram pessoas com valor; os diretores de fotografia, a música do Jorge Peixinho, os diálogos da Luísa Neto Jorge, os cenários da Cristina, os atores que estavam a representar. A própria figura do Wenceslau, um artista também, que escrevia livros, que era um escritor para além de ser um oficial da marinha. Depois estava-se a fazer uma coisa que partia da ideia do abandono da pátria (…) em busca de uma pátria ideal que não tinha a ver com nacionalismos, mas com o lugar da verdade ou o do coração, ou qualquer coisa desse género. Soa muito a coisas que foram espezinhadas durante muitos anos. Mas a gente continua a acreditar que a história continua. Que umas coisas acabam para começarem outras novas. Só agora mais velho consigo ter essa sensação. Por isso eu tiro daqui o proveito pessoal que me interessa. Não tenho nada a ver com produção, não tenho nada a ver com carreiras. Tem a ver com o gosto de ter feito uma coisa que era muito importante para nós e que fazíamos como algo que queríamos dar ao público”.

Visivelmente emocionado, Cintra não tem problemas em dizer que tem “pena de não ter ainda mais tempo para fazer ainda mais coisas” e que “tem a certeza que daqui para a frente” poderá fazer muito pouco. Ainda sim, mostra-se orgulhoso do seu último trabalho no Cinema: “Tenho muita honra em fazer figuração, uma passagem que não demora um minuto sequer, no filme do Sérgio Tréfaut que estreou  agora [“Raiva”]. Gosto muito do filme. Gosto muito das pessoas que estão no filme, que é fotografado por um velho, o Acácio. Um fotógrafo absolutamente genial com quem comecei; o primeiro filme que fiz tinha a fotografia do Acácio de Almeida, por isso quando o encontro tenho sempre uma ternura muito grande por ele. E fiquei contentíssimo em ver que ele fez uma fotografia tão linda para o filme do Sérgio que estreou agora no Indie. Colocam-me no lugar de ancião sábio. Eu disse que gostava de ser menos sábio“.

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Ilha dos Amores (Paulo Rocha, 1982)

O filme de Paulo Rocha foi exibido numa cópia recentemente restaurada pela Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, que teve origem na digitalização 4K com wet gate de interpositivos de imagem e som em 35mm tirados num laboratório japonês em 1996. A correção de cor digital foi feita por La Cinemaquina usando como referência uma cópia de distribuição de 1982. O restauro digital da imagem foi feito pela IrmaLucia Efeitos Especiais.

Jonathan Beller: "devemos fundar novos arquivos, programá-los ou reprogramá-los para que a imagem torne-se num símbolo de resistência"

Hugo Gomes, 21.04.18

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Teórico fílmico, investigador, crítico e professor do Pratt Institute, Jonathan Beller trabalha constantemente para desconstruir o valor simbólico da imagem e relacioná-la com a perceção do espectador. Os seus livros [“The Cinematic Mode of Production”] referem esse vínculo profundamente psicológica da audiência para com o Cinema, e tal a extensão para o lado mais politizado do visual.

Beller esteve presente em Lisboa, mais concretamente na Cinemateca Portuguesa como um dos intervenientes da 2º edição do Laboratório do Ciclo de Encontros “O que é O Arquivo?”, de forma a debater a importância do Arquivo e da Imagem no ponto de vista social e antropológica.

Nesta conversa, abordamos os seus objetivos assim como do arquivamento, passando pela raiz do seu trabalho e do seu fascínio pelo Cinema das Filipinas.

É sabido que esta é a sua primeira vez em Portugal, o que está a achar do país até então?

Bastante agradável, Portugal é tudo aquilo que esperava. Provavelmente melhor. As pessoas são amigáveis e o ambiente é absolutamente relaxante.

Começaremos por falar sobre o seu trabalho bibliográfico, como por exemplo o seu livro The Cinematic Mode of Production. É curioso como você habilmente mistura a natureza das imagens com questões políticas. Recordo que utiliza inúmeras vezes a palavra Marxismo para clarificar a economia simbólica das mesmas.

Ou seja, o meu trabalho é marxista e lírico? [risos] Para dizer a verdade, não uso a palavra ‘Marxismo’ como um conceito ou uma teoria, apenas desenvolvo as minhas doutrinas das imagens através das ideias fixas do marxismo e do capitalismo. Dessa forma enuncio a organização da qualidade consoante a evolução das tecnologias visuais e assim das estruturas financeiras.

Gostaria de invocar a pergunta que serve de título para este evento-ciclo: O que é O Arquivo?

O Arquivo é uma questão que tem muita atividade em diferentes sentidos. Um desses, é que senão existir acesso ou oportunidade de “navegar” no arquivo experienciamos uma sensação de empoderamento. Cuja realidade destes é fabricada por aqueles que têm o controlo do Arquivo, sendo que, principalmente no caso dos EUA, há uma tendência de fabulação dessa mesma realidade através da ausência / lacuna. Contudo, existe outra questão a ser feita: o que pretende ser arquivado ou merecer esse espaço? E de que ponto as novas descobertas pretendem inserir-se no mesmo? Será que existe legitimidade social nesse campo?

O que pretende atingir com a sua intervenção neste evento?

Nesta conferência espero elucidar que o Cinema é um “world making” (um “criador de Mundos”) e que a programação é um algoritmo que faz com que as pessoas acedam ao arquivo, fortalecendo assim o seu próprio conhecimento. Mas o meu trabalho de pesquisa não se baseia simplesmente na questão do Arquivo. Eu trabalho sobretudo, naquilo que apelido de “Imagens Programáveis”, o qual uma imagem é utilizada para organizar espaço social, assim como desejo e pratica. Nesse sentido, o autor destas imagens transmitem o seu significado, como por exemplo espelhar nelas a promoção dos ideais do capitalismo ou da supremacia branca. Mas tal difere do autor e as suas próprias ideologias e objetivos. Este problema com a criação de imagens afeta todos nós, até porque estamos a produzir em massa novos conteúdos. Para tal devemos fundar novos arquivos, programá-los ou reprogramá-los para que a imagem torne-se num símbolo de resistência.

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A Short Film About India Nacional (Raya Martin, 2005)

Curiosamente, quando usamos a palavra Arquivo, somos levados à preservação de um certo espólio cinematográfico, sendo esse um dos papéis fundamentais das Cinematecas. Contudo, a minha questão é, com toda esta preocupação com o material fílmico físico, é possível o digital assumir um papel de salvador dessa conservação patrimonial cinematográfica?

Respondendo diretamente à tua pergunta, não. Todavia, o digital não é sinônimo de objeção nem sequer de neutralidade, as pessoas tendem a esquecer que o digital emerge como parte da História de uma espécie. Porém, não quero responder quanto à nossa manifestação enquanto espécie ou enquanto História. Essas questões cabem ser respondidas pelo filme em si e não pelo formato. Outra questão a ser respondida é aquela que tenho lecionado em palestras, o facto destes arquivos serem compostos por materiais físicos como bobines, fitas, ou o que quiserem chamar, e a sua relevância quer cultural ou social.

Relembro um cineasta filipino, o qual tenho colaborado em muitos trabalhos, Raya Martin, que realizou um filme chamado “A Short Film About India Nacional” (2005), no qual retratava eventos ocorridos durante a independência das Filipinas em relação à Espanha. A obra foi dirigida como se tivesse sido concretizado em tempos do “Early Cinema” (Cinema Primitivo). Os movimentos de câmara, a fotografia, os intertítulos, tudo executado a mimetizar aquele período em contexto tecnológico. O curioso é que muitas das situações do filme decorrem em 1893, ou seja, muito antes do nascimento oficial do Cinema, e como tal ele é criado de forma a constituir uma ausência do arquivo no panorama filipino.

O que quero dizer é que, sem o arquivo, os filipinos não teriam poder enquanto colónia, e sobretudo não teriam acesso ao real. A destruição deste património físico poderá ser encarado como uma prática de colonialismo.

Tem um fascínio enorme pelo Cinema das Filipinas, inclusive tem trabalhos bibliográficos nesse sentido.

Sim, interesso-me bastante por este Cinema, aliás, por toda a sua cultura artística. Foram precisos 6 anos de investigação para conseguir concretizar o livro "Acquiring Eyes", que foca principalmente o cinema social-realista das Filipinas. Muito deste Cinema surgiu em ambiente de opressão ditatorial, mas mesmo assim são poderosas obras de arte.

Curiosamente, aqui em Portugal é escassa a exibição e distribuição desse cinema.

Os filmes existem, mas enquanto não houver interesse por parte das audiências ou dos programadores, estes mesmos não poderão sair do seu “arquivamento”. Por isso, não me admira que esses filmes tenham pouca divulgação e difusão.

Quanto ao Cinema atualmente produzido? Como o vê?

Para dizer a verdade, já não vejo mais Hollywood, interesso-me por muito do Cinema Europeu, especialmente o de Haneke, assim como o cinema do Sudoesta Asiático. Particularmente interessa-me o Cinema das imagens repreensivas, como o caso do Haneke, em que o filme gira em volta do que não está representado no ecrã, e trabalham em volta disso mesmo. A resistência da mentira invisível, da vida desaparecida através das possibilidades do tempo, um sítio interessante para as intervenções cinematográficas. Não é que pense que estes elementos sejam realmente necessários, transformativos, ou seja, não há garantia que tal cinema mudará o Mundo para melhor, mas julgo que são importantes, assim como, em paralelo, o trabalho do Arquivo, a datação dessas vidas invisíveis. Uma conexão desses tempos, dessas realidades, uma ligação direta com o nosso imaginário.

Jonathan Rosenbaum: "Nem a própria audiência sabe o que quer!"

Hugo Gomes, 05.02.17

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Jonathan Rosenbaum

Jonathan Rosenbaum, um dos maiores e mais importantes críticos de cinema da atualidade, está em Lisboa esta semana, a apresentar na Cinemateca Portuguesa uma retrospetiva dedicada ao cineasta alemão Erich von Stroheim.

Tive o privilégio de o entrevistar na mesma instituição, numa conversa que envolve não só o realizador, como também a importância de se ser um crítico de cinema, a falta de diversidade de filmes estrangeiros no EUA, um pouco de cinema português e, obviamente, os filmes prediletos de Rosenbaum.

Como descobriu e qual a sua opinião sobre o trabalho de von Stroheim?

Vi primeiro o “Greed – Aves de Rapina'' (1924) em Nova Iorque quando andava na faculdade, juntamente com o “Foolish Wives” (1922). Sobre o que me interessa nele, antes de ser crítico, escrevi muita ficção, contos e romances que nunca chegaram a ser publicados. E foram essas qualidades novelísticas que me apelaram nele.

Qual julga ser a importância de von Stroheim no cinema?

Ele percebe as pessoas melhor que outros realizadores. Há uma grande complexidade emocional e ainda uma enorme densidade humana nos filmes dele.

Em 2012, para a ``Sight & Sound'', nomeou “Greed – Aves de Rapina” como o maior filme de sempre. Quer fundamentar o porquê desta sua decisão?

Não me lembro, já fiz essa sondagem imensas vezes em tempos diferentes. Mas uma coisa que já disse sobre o filme e que acho que faz parte do seu sucesso, é que as personagens não existem só dentro dos planos, mas também entre elas. Que vivem fora do filme e que até é possível conhecê-los, o que é muito invulgar.

Como crê que um filme deva ser apreciado? Muitas pessoas avaliam um filme pela história e pelo argumento, mas e quanto à mise-en-scène?

Não acho que devam existir regras. Acho que um filme deve ditar diferentes possibilidades para diferentes pessoas. Mas não creio que haja uma lista única que queira impor enquanto crítico. Um filme é algo muito complexo. Alguns mais complexos e interessantes que outros, é certo, mas recuso-me a dizer porque é que as pessoas devem ir ao cinema. Cada filme deve sugerir diferentes critérios se for bom. E é isso que é interessante na crítica de cinema, ter de se mudar os próprios critérios em relação ao que o filme faz, ao invés de se ter uns antes de vê-lo. Às vezes os melhores filmes são aqueles que te forçam a rever os teus critérios.

E que acha do sistema de parte da crítica em dizer apenas que um filme é “bom” (“thumbs up”) ou “mau” (“thumbs down”)?

Isso tem a ver com as políticas de mercado, não com a arte. É sobre dinheiro e consumo, nada mais que isso.

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“Greed'' (Erich von Stroheim, 1924)

Qual a diferença que vê agora nos críticos de cinema norte-americanos relativamente a quando trabalhava no Chicago Reader?

Não tenho a sensação de um desenvolvimento ou mudança porque ainda só passaram 9 anos desde que deixei o Chicago Reader. A diferença principal é que conheço cada vez menos críticos a trabalharem profissionalmente, isto é, a serem pagos pelo que fazem nos jornais. Mas não acho que tenha de haver uma correlação entre as pessoas serem pagas ou não, tal como não acho que seja relevante terem ou deixarem de ter formações académicas. Às vezes as pessoas que mais sabem sobre filmes não são pagas nem têm formações. Quando se fala de alguém ser um profissional, não acho que isso seja genuíno, não aceito as regras que dizem. Acho que há menos pessoas a escrevem numa base regular para ter dinheiro, mas ainda assim há um grande interesse em escrever. E, de alguma maneira, há mais pessoas interessadas em escrever sobre cinema. E depois há a crítica em formato de ensaios audiovisuais que tem vindo cada vez mais a ser aperfeiçoada, como é o caso do Kevin B. Lee.

É bastante crítico do sistema de Hollywood e da falta de filmes estrangeiros nos EUA. Como se pode descobrir estes filmes e como explica esta falta de diversidade?

Eu descubro-os quando vou a festivais. Mas acho que este problema tem a ver com as pessoas que têm o controlo fílmico e não a audiência. A audiência só conhece aquilo que lhes está a ser oferecido. Quando dizem “a audiência detesta alguns géneros de filmes” parece-me idiota porque a maioria dela nem sequer ouviu falar deles. Não os estão a rejeitar. E, por outro lado, há géneros que se revelaram grandes sucessos comerciais como “The Schindler 's List” (1993) ou o “Dance with Wolves” (1990). Nem a própria audiência sabe o que quer! Mas sabemos o que os produtores e distribuidores gostam e é a isso que estamos presos, infelizmente. Mas a Internet tem vindo a mudar isso, temos muitos mais filmes disponíveis, tanto do passado como do presente, nacional ou estrangeiro.

Já que falamos na Internet, hoje em dia a maioria dos filmes são vistos nela. Acha que usá-la como sistema de distribuição é útil, nem que seja para ver os filmes estrangeiros que referiu, ou que se trata apenas de pirataria e deve acabar?

Não acho que a pirataria seja má. Acho que é a única maneira de manter algumas culturas fílmicas vivas. Não faço streaming porque escrevo uma coluna sobre DVDs e, portanto, não sinto a necessidade disso. Raramente vi um filme no computador e, portanto, acho difícil julgar porque não faço parte dessa cultura. Mas é-me difícil ver quando me mandam links do Vimeo e assim porque aquilo pára e arranca. Prefiro ser um pouco antiquado nesse sentido. Mas não tenho nada contra quem o faz.

Há muitos jovens a escreverem críticas na Internet. Alguns pensam que estão a matar a atividade da crítica cinematográfica.

Há mais críticas do que havia antes, boas e más. Mas dizer que estão a destruí-la é treta. Isso tem a ver com essa falsa ideia do que é o profissionalismo contra o que não é, que eu não acredito. O único problema tem a ver com a escolha de que filmes ver, que advém de que críticas ler, o que torna difícil a navegação.

Qual a sua opinião sobre o sistema de pontuações do Imdb e Rotten Tomatoes?

Não os uso. Só se ocasionalmente quiser ter acesso a uma crítica. Mas isso tem a ver com desporto, médias e essas coisas. Para mim esses sites estão a transformar o cinema num desporto, o que não me interessa.

Li numa entrevista que deu aos Les Inrocks onde dizia que o cinema de autor de Ford e Hawks já não consegue existir no sistema de Hollywood. Que crê que mudou?

Os estúdios. São estas entidades fixas com os mesmos produtores e pessoal, é uma instituição inteira que está a trabalhar sempre com as mesmas facilidades. É óbvio que há uma perda enorme no cinema por causa disso.

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"O Sangue" (Pedro Costa, 1989)

É bastante crítico na forma como o capitalismo define o sistema de distribuição americana. Sugere alguma alternativa?

Gosto da ideia de mercado de nicho, que é outra ideia capitalista que acho mais dócil. Há a ideia errada de que quanto mais pessoas gostarem de um filme, melhor. Prefiro a ideia dos gostos das minorias e não julgar os filmes pelos países de onde vêm. Quando trabalhava para o Chicago Reader, a minha audiência media-se pelo número de pessoas que liam esse jornal. Mas no meu website (http://www.jonathanrosenbaum.net/), que consulto diariamente, são mais importantes as pessoas que me leem à volta do mundo inteiro. E vejo que há mais indivíduos a verem o meu site fora dos EUA do que dentro deles, o que me agrada bastante. A ideia de que os meus leitores são internacionais é muito importante para mim.

Sei que é fã de algum do cinema português. Que vê nele que esteja em falta noutros países?

Não penso no cinema português como entidade porque não sei o suficiente dele. Mas para mim o que tem de especial chama-se Manoel de Oliveira e Pedro Costa. A grande maneira de descrever o que o Oliveira ofereceu ao cinema é uma fúria sobre a civilização. A civilização e o seu passado, presente e futuro, o que vai para além do cinema. Quanto ao Pedro Costa, é um bom exemplo de um cineasta que, para além do seu lado poético, é também um crítico. Mesmo que ele não o seja diretamente, sinto que aprendi imenso enquanto crítico de cinema a ver os filmes dele. Evidentemente que há outros filmes portugueses de que gostei, mas não consigo generalizar nem vê-los em termos nacionalísticos.

Quem considera ser os maiores críticos de cinema no momento?

Dos que conheço, Shiguehiko Hasumi que escreveu o melhor livro existente sobre o Ozu (Yasujiro Ozu) que, infelizmente, não existe em inglês, mas só em francês. Também gosto muito do Adrian Martin e do Raymond Bellour. A Murielle Joudet que escreve no Trafic e fez artigos muito entusiasmantes sobre a Bette Davis e o James L. Brooks. E o Ignatiy Vishnevetsky que escreve para um jornal humorístico chamado The Onion.

Quem considera os maiores cineastas vivos?

Béla Tarr, Pedro Costa, Godard (obviamente) e Kira Muratova. Dentro dos EUA, o Richard Linklater, o Albert Brooks parece que já não faz mais filmes, mas, se fizesse, inclui-lo-ia, o Jim Jarmusch e o Michael Snow. Tenho a certeza que há outros, mas estes são os que me vêm à cabeça agora.

Sei que já se cruzou com alguns dos grandes mestres do cinema como Godard, Tati, Nicholas Ray ou Orson Welles. Que encontro foi o mais marcante e recorda com mais afeição?

O Orson Welles porque foi uma figura muito importante para mim. Andava em Paris e escrevi-lhe uma carta sem saber se alguma vez teria resposta. E depois fui convidado a almoçar com ele, o que foi memorável porque só falámos dos filmes dele. [Risos]

Qual é o seu filme favorito?

Tenho 3 que, de vez em quando, vou revendo. O primeiro é “Playtime – Vida Moderna” (1967) do Tati, o “Gertrud” (1964) e o “Ordet – A Palavra” (1955), ambos do Dreyer. A cada nova vez que os vejo, ensina-me mais sobre o mundo e, consecutivamente, do cinema. O “Playtime” ensinou-me, literalmente, a viver em cidades e a lidar, de uma forma criativa, com o excesso de informação. O “Gertrud” é sobre as pessoas não serem capazes de assumirem compromissos, tanto num sentido negativo como positivo. E o “Ordet” é mais complicado. Eu não sou crente e acho que o Dreyer também não era, mas ao mesmo tempo admiro a forma como falada fé e não só no sentido religioso do termo.

 

Entrevista concebida em conjunto com Duarte Mata