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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Somos um 'case study', uma espécie de aberração!": Ricardo Vieira Lisboa e Luís Mendonça desvendam novo livro do À Pala de Walsh e percurso de 13 anos numa conversa sobre "O Cinema das Palavras" (Parte II)

Hugo Gomes, 30.11.24

LER PARTE 1

Agora, virando um pouco para o site, visto que já têm treze anos. Ao longo desta conversa, vocês referem muito esse grande salto de blog para site. Recordo muito daquele período em que existiam os TCN [extintos prémios para blogs de cinema]. Vocês saíram premiados, julgo que com o “Melhor Blog Coletivo”, e no vosso discurso de vitória anunciaram que iriam deixar de ser um blog. A partir daí, os blogs de cinema começaram a decair e anunciou-se o fim da blogosfera...

RVL: Não foi certamente por nossa causa!

Claro que não. O que quero perguntar, por via deste contexto, é se não sentem que causaram uma espécie de influência, uma pegada? A “pegada walshiana”, como disse há bocado. Algo que conduziu a um novo modelo de site de cinema em Portugal nos dias de hoje?

RVL: Sim. Mas acho que não é tanto por aí. Porque o que aconteceu foi que, sem termos consciência disso, mas compreendendo já que havia uma doença qualquer que alastrava aos blogs, o João Lameira teve a premonição de dizer: “Isto não vai continuar muito mais tempo.” E nós, cada um no seu sítio, pensámos: “Não, não vamos a lado nenhum.” E, portanto, numa lógica de coletivo, de uma coisa mais estruturada, mais organizada, surgiu a possibilidade de criar um projeto com alguma consistência e duração. E a verdade é que foi isso que nos salvou.

LM: A nossa existência crítica. Sim.

RVL: Porque, provavelmente, se continuássemos nos blogs, desapareceríamos e desistiríamos. Foi o estarmos juntos num projeto coletivo que nos deu força, mas isso só funciona porque é um esforço de todos. Quando um está mais cansado, os outros compensam, ou vice-versa. Há uma lógica rotativa que funciona muito pela agremiação de novas pessoas e isso coincidiu, de facto, com o momento em que os blogs estavam a ir abaixo.

LM: Estava um bocado em negação. Tinha um blog, o CINedrio, que tinha uma organização que para mim era importante; era o meu bloco de notas, conceptual, onde eu experimentava coisas. De vez em quando até volto lá. Não me sinto assim tão distante daquilo quanto isso. Uma das coisas que achava, na altura, era que nós devíamos preservar ao máximo os nossos próprios projetos individuais. Não via com bons olhos o fim da blogosfera. Não sei se já era absolutamente evidente. Para mim, ainda não era. Quando entrei no À Pala de Walsh, não estava claro que a blogosfera ia acabar.

Só quando entrei no Facebook, aliás, muito por causa do site, que rapidamente percebi que a blogosfera ia acabar. Até escrevi um post no meu blog, na altura, a dizer que a blogosfera tinha os fins contados e que a culpa era do Facebook. Fiz até um meme com o Godzilla a devorar a blogosfera, sendo o Godzilla o Facebook. [risos] E foi o que aconteceu! 

Quando o publiquei, havia muita gente dos blogs, até dos mais profissionais, com vários prémios nos TCN, a dizer: “Não, olha que estás a exagerar.” Mas aconteceu e não fiquei nada contente com isso. Também não fiquei quando tive de dizer a mim mesmo que já não dava. Que já não conseguia. Porque, quando acabou, perdeu-se uma dinâmica incrível que a blogosfera tinha, aquele ping-pong entre bloggers. Era de uma vitalidade extraordinária. E acho que se perdeu mesmo. Não acho que o que veio depois seja muito estimulante. Ao mesmo tempo, não vejo um grande efeito da À Pala de Walsh no meio. Não consigo ver uma influência clara, uma grande herança.

Mas é engraçado. Até brincava com isso, com aquele meme do Batman a esbofetear o Robin. O Robin dizia: “À Pala de Walsh? Esse blog?” e o Batman respondia: “Esse site!” Queríamos dar o salto para algo mais, mas a verdade é que nunca conseguimos totalmente. Talvez porque também não queríamos verdadeiramente. Mas o certo é que, quando a blogosfera desapareceu, aquele contexto morreu com ela.

RVL: Mesmo assim, nunca quisemos transformar o projeto numa coisa profissional. Isso foi uma discussão longa, mas a conclusão foi sempre a mesma. Fazer do À Pala de Walsh uma fonte de rendimento seria insustentável. Éramos e somos muitos. O que entrasse seria sempre pouco para dividir, criando desequilíbrios ou situações absurdas. Essa lógica amadora — no melhor sentido da palavra, fazer isto por amor ao cinema — sempre foi o pressuposto do projeto.

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Gojira (Ishirô Honda, 1954)

E qual foi a vossa gratificação com o site ao longo dos anos? 

LM: Financeira?

Não nesse sentido de gratificação. Se atingiram os vossos objetivos pessoais com o site? E o facto de institucionalizar-se como referem … detesto esta palavra institucionalização!  … pode ser visto como uma espécie de recompensa?

LM: Sim, sim, em certa medida. 

RVL: Coisas diferentes, coisas boas e coisas más. A verdade é essa. Gosto de contar isto porque acho muita graça. Foi há uns dois anos, por volta dos dez anos do site. O Miguel Dias, diretor do [Curtas de] Vila do Conde, veio ter comigo e perguntou: “Olha, tu conheces um site de crítica português chamado À Pala de Walsh?”. Encolhi os ombros e fiquei assim meio sem saber o que dizer. E ele continuou: “Ah, não deves conhecer. Olha, esquece, esquece.

Disse: “Calma, Miguel, conheço sim. Eu sou um dos fundadores.” Ele ficou surpreendido. Porque, para ele, eu era apenas o programador do IndieLisboa. E mesmo eu escrevendo todos os anos sobre Vila do Conde — talvez não todos, mas já o fiz umas quatro ou cinco vezes —, ele nunca associou o meu nome ao site.

Isto para dizer o quê? Que o site tem esta característica curiosa: para algumas pessoas, nós somos só do site e não fazemos outras coisas. Para outras, fazemos tudo menos o site, e nem nos associam a ele.

LM: Sim, também já senti isso. É como aqueles autores muito citados, mas que ninguém lê. Eles estão lá, à vista, mas só para “efeito de loja”. Acho que isso também acontece connosco, e é algo que já se sente há algum tempo, quase desde o início. Na verdade, foi quase imediato. Até porque as redes sociais, na altura, eram mais generosas para projetos como a À Pala de Walsh.

Agora são péssimas …

LM: E a verdade é que as pessoas conhecem o site, mas também já ouvi, aqui e ali, colegas ou outras pessoas dizerem: “Ah, sim, À Pala de Walsh é muito importante. Mas, olha, vou ser franco: eu não leio.” É como aquela coisa do Marcelo em relação ao aborto: “Sim, deve ser muito importante, mas é proibido.” Parece uma espécie de efeito Marcelo, percebes? Algo do género: “É muito importante.” Mas, afinal, lês? Não. Sabes o que tem lá? Não. E isso deixa um amargo de boca grande.

Transformo logo isso numa crítica, porque é frustrante. Dá a sensação de que não somos suficientemente bons. Mas depois, quando penso nisso, não faz sentido. São as mesmas pessoas que escrevem para o site e para o Público, e, se formos a ver, apesar de ser um jornal excelente — provavelmente o melhor que temos na área da cultura —, não acho que editorialmente seja assim tão melhor que nós.

Tens falado do nosso livro de estilo, da política de revisão que aplicamos. Nós temos uma boa política de revisão, por exemplo, e não acho que o Público seja necessariamente melhor do que nós nesse sentido. E, sendo as mesmas pessoas a escrever para ambos, onde está a diferença? Não faz sentido nenhum.

RVL: Há uma certa circulação …

LM: Sim, mas não posso transformar imediatamente isso numa crítica, dizer: "nós não somos suficientemente o que quer que seja". É uma questão cultural, tem a ver com estas barreiras intransponíveis que, em 13 anos, nós nunca conseguimos quebrar. No início, éramos mais chatinhos e, se calhar, perfuramos mais para desabar certas muralhas e deixámos de fazer porque nos acomodamos também, porque nos fartamos, desistimos e também porque perdemos a batalha, etc. Não sei se é se perdemos a guerra.

RVL: Ou então é ao contrário, não é? Porque hoje em dia quer o Público como todos os outros jornais viraram sites, onde as coisas se perdem. Sim, são publicadas, só que dois dias depois desaparecem numa espécie de torrente.

LM: Mas os textos… Sinto que nós trabalhámos muito por fora. Penso que o À Pala’ é um projeto completamente desligado de qualquer establishment. É um projeto genuinamente espontâneo e de cinefilia, e sinto que é um projeto de alta exposição. Nós desdobrámo-nos em múltiplas coisas e fomos super generosos ao mesmo tempo. Porque nós temos uma coisa que acho que é geracional. Eu, como dou aulas, também contacto muito com outras gerações mais novas, que têm imensas qualidades, sublinho imensas. Mas esta não é necessariamente uma qualidade nem um defeito, não gosto de pôr as coisas nesses termos. É uma coisa que não têm, que nós temos, é uma questão até certo ponto geracional.

Nós não somos exatamente todos da mesma geração, mas há uma coisa que nos une. Não sei se é “millennial” ou alguma ‘coisa’ assim, mas é uma grande reverência em relação ao passado. Uma vontade de ser um "Anjo da História", de colher os cacos que estão para trás. Uma vontade de criar pontes. Vejo as gerações mais novas mais descontraídas, mais descomplexadas e muito mais disponíveis para seguir em frente e virar costas ao que está para trás. Vejo isso muito, por exemplo, na academia. Portanto, esta coisa de puxar quem está para trás, não deixar cair, não deixar cair a memória… Por exemplo, é muito de nós.

Isso ficou estatisticamente comprovado numa tese. Nós somos referidos em teses! Porque somos um “case study”, uma espécie de aberração!

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Agnès Varda, Jean Douchet e Jean-Luc Godard

RVL: Entramos em mais pelo menos duas teses.

LM: Temos a autora de uma delas, a Beatriz Fernandes, uma walshiana, mas tivemos outras. Uma delas, lembro-me, dizia — muito cedo até — que nós éramos o site que citava mais autores de todos. [risos]

RVL: Em comparação com o Público, o DN, e outros …

LM: Foi algo que nunca nos foi muito reconhecido pelo meio: a extraordinária generosidade de quem está completamente fora, a correr por fora, sem qualquer vantagem. E que vai ao encontro de… Não é contra, mas ao encontro de várias coisas. Convoca. Até houve más interpretações ao longo do tempo sobre isso. Porque a ideia era sempre convocar para um diálogo, e havia pessoas que, naturalmente, estavam muitíssimo acomodadas e não estavam minimamente para aí viradas. Achavam que convocar era quase uma espécie de: "Quem são estes para julgar? Quem julgam que são?".

É um aspeto extraordinário, muito generoso, no sentido de nos misturarmos, miscigenarmos — uma palavra difícil - não necessariamente para colhermos qualquer benefício, mas no sentido de criar um diálogo. Por vezes um diálogo divertido, provocador, entretido desse ponto de vista, não aquela coisa de apenas reproduzir.

Mas nós usávamos uma questão, que é para mim o epítome do jornalismo preguiçoso, televisivo sobretudo, que é: "Projetos para o futuro?". É exatamente o que nós não queríamos de todo.

Outra coisa que penso ser uma adversidade para quem está no À Pala de Walsh é uma questão cultural — e aí já não tem nada a ver com geração, e sim com o país. É aquela velha expressão, muito sábia, do qual gosto muito: "Quem anda à chuva, molha-se". Conheço muita gente do meio que tem muito poder. Quase todas as pessoas que têm muito poder não escrevem, não têm visibilidade. Muitas delas não escrevem, ficam na sombra. Isso significa alguma coisa? Quem anda à chuva, molha-se. Já não chove muito. Quem anda ao sol, queima-se.

As pessoas que fazem muito, que fazem acontecer, às vezes vão por um caminho muito pedregoso, muito difícil. As pessoas que não fazem acontecer de repente são aquelas que decidem se estas pessoas que fazem acontecer estão a fazer acontecer de uma determinada maneira ou não. Há quase uma proporcionalidade, que acho extremamente perversa, já que estamos nos 50 anos de Abril, que é o entre criar e o fazer, e a capacidade de mudar, de transformar.

Quando digo mudar, falo em transformar, e aí vou voltar à história do choque cultural, que era, em certo sentido, pretendido. Já tive ocasião de partilhar isso em público — mais uma vez, nos Encontros de Cinema, no Batalha. Não houve qualquer impacto. As pessoas vão escrever para os jornais, mas não operam mudança nenhuma nesses meios. Os jornais tiveram sempre este fenómeno, como À Pala de Walsh e todo o online, como a blogosfera, em certa medida, nunca foram vistos como um terreno fértil …

RVL: … nem transformador. Foram sempre absorvidos.

LM: Houve recrutamento de pessoas, mas nunca houve recrutamento de ideias. Isso, para mim, é a falência do projeto na sua génese mais ou menos utópica. E quando digo utópica, sublinho a generosidade do projeto, que, sinceramente, não sei se alguma vez foi totalmente reconhecida. Acho que não. Porque acredito que a recompensa estava aí, nessa generosidade, nessa aproximação positiva em relação a um meio qualquer ou a uma nomenclatura qualquer.

A própria nomenclatura implica reconhecer que há diferentes maneiras de lidar com o cinema e, ao mesmo tempo, de o transformar. Isso acontece. Quer dizer, acontece constantemente. Mas ainda há essa visão redutora de qualquer pessoa que se apresenta, até hoje, como “o crítico do online”. Seja do À Pala do Walsh, seja do Tribuna [de Cinema], do Cinematograficamente Falando …, como de outro projeto. Isso tem um efeito visível.

Sinto isso na academia e até em candidaturas ao ICA. É algo que se manifesta de maneira geral. É uma postura redutora, no sentido de nos diminuir, de nos reduzir. Não é algo que abra possibilidades. É um movimento que engaveta as pessoas, mas não no sentido de permitir que se desengavetem outras coisas. É uma forma de arrumação, no sentido mais total do termo: despacham-se as pessoas para uma gaveta, e pronto. Ficam lá e não chateiam.

RVL: Há uma citação na entrevista com o Guerra da Mata que é muito boa: “Eu não passei não sei quantos anos da minha vida para sair do armário para depois me meterem numa gaveta.” [risos]

Les Sièges de l'Alcazar (Luc Moullet, 1989)

Um último tópico em relação ao site e não só, a esta nova geração. Visto que vocês são os pais fundadores, quer dizer dois dos quatro pais fundadores …

RVL: Não, eu sou … como se diz … padrasto! [risos]

Padrasto?

RVL: Sim, eu não estava na reunião onde tudo aconteceu. O Luís, o Carlos [Natálio] e o João [Lameira] é que estavam presentes.

E segundo a “lenda”, onde é que a ideia surgiu?

LM: Foi aqui [Cinemateca] que tivemos a nossa primeira reunião, a primeira vez em que nós três nos encontramos.

RVL: Só estive presente na segunda reunião.

Houve pais e padrastos fundadores. Houve uma primeira geração e agora estamos a falar de uma nova. Já mencionámos um “walshiano” novo, mas há outros nomes a surgir. Olhando para o que vocês eram inicialmente, com a ingenuidade que já admitiram ter, como vêm estas novas pessoas que chegam ao site? Que ferramentas elas trazem? E, ao mesmo tempo, acham que já há uma certa formatação do que significa ser 'À Pala de Walsh'?

RVL: Houve um site brasileiro chamado Cinética que teve uma geração fundadora muito marcante. Depois, passados dez anos, como aconteceu connosco, as pessoas ficaram dez anos mais velhas. Têm outras preocupações nas suas vidas, não é? Já não têm a mesma disponibilidade que tinham aos 23, 24, 25, 26 anos. De repente, tornam-se trintões, alguns até quarentões. A energia e a disponibilidade diminuem. Era um site incrível, mas, nos últimos dois ou três anos, tentaram passar a “bola” e a ‘coisa’ acabou por seguir uma lógica de dossiês e, passado um ou dois anos, o site fechou. Acabou. A Cinética está lá, conservada em formol.

O À Pala de Walsh, eventualmente, poderá passar pelo mesmo. Se um dia nós os quatro nos cansarmos, não me parece que haja um grupo de pessoas com vontade — não é só uma questão de conseguir, mas de querer — e disponibilidade para assumir a continuidade do projeto. Assim, acho que irá terminar, caso deixemos de fazer o trabalho de edição.

No entanto, enquanto continuarmos a editar, mesmo que sejamos apenas redactores minoritários (escrevendo um ou dois textos por mês, no máximo, ou até nenhum), gerimos um grupo de colaboradores e mantemos o projeto. É um modelo diferente do que tínhamos no início, quando o ideal seria criar um texto por semana.

Mas a lógica mudou. Os contributos das pessoas que foram integradas no site ao longo do tempo são muito variados, e isso foi sempre uma premissa inicial. Nunca quisemos que todos escrevessem da mesma maneira, sobre os mesmos temas, ou tivessem as mesmas opiniões. Sempre houve uma vontade de diversidade, que continua presente.

O que acontece é que a institucionalização trouxe um certo peso. As pessoas já não escrevem quatro parágrafos em meia hora e ficam contentes. De repente, querem escrever o texto sobre determinado filme, ou o texto de referência, mas sem desonrar a aura do site. Isso pode ser contraproducente, porque muitas vezes as pessoas definem padrões demasiado elevados para si mesmas e depois não conseguem mantê-los.

Tem sido um problema recorrente. Muitos fazem um texto, dois, três, dão tudo, e depois dizem: "Porra, não aguento isto todos os meses!" Assim, a longevidade do site trouxe um peso para os redatores, que pode ser prejudicial.

LM: Por isso lamento tanto o fim da blogosfera. A blogosfera era um espaço de escrita rápida, a uma velocidade qualquer, e foi aí que o site nasceu. Recrutávamos diretamente nesse território.

RVL: Agora deixámos de poder recrutar.

LM: De repente, a blogosfera praticamente deixou de existir. Apesar das nossas ligações à academia e da atenção que tentamos dar aos novos valores, é um trabalho completamente diferente. Muitas vezes, são pessoas que mal conhecemos, e que também não se conhecem entre si.

Apesar disso, ainda há uma certa unidade no site. Não há posições oficiais, mas há uma unidade visível, por exemplo, no livro anterior, em torno de um conjunto de fixações e realizadores. Mesmo que alguns não gostem, acham graça. Temos interesses em comum, como o Godard ou o James Wan. Também há um certo foco no terror, ainda que abordado de forma diferente daquela que algumas pessoas do género adotam.

No entanto, isso tornou a nossa tarefa mais difícil. Muitos colaboradores confidenciaram-nos que escrever para o site traz uma enorme responsabilidade. Mesmo pessoas experientes dizem que estremecem ao serem convidadas. Essa carga acaba por dificultar uma abordagem mais descontraída e descomplicada, onde se pudesse, por exemplo, lançar uns adjetivos mais feios sobre um filme, sobretudo da nossa praça.

Esse espírito mais livre é raro hoje em dia. Jogamos esse jogo até certo ponto, mas a maioria não quer jogá-lo. É pena.

Queria dizer que a prova de vida do À Pala de Walsh seria o aparecimento de mais “Palas” de outras naturezas, que levassem a mensagem mais longe, de forma diferente. Mas tenho a sensação de que os tempos mais experimentais e ousados dificilmente voltarão.

RVL: Apesar disso, há algo que tem sido das coisas mais divertidas nos últimos tempos: as correspondências. Surgiram nos últimos dois ou três anos e trazem uma abordagem mais despachada, imediatista e reativa. Acho que as pessoas gostam de ler e nós gostamos de escrever. Imagino que, se houver um terceiro livro, será um livro de correspondências.

Aqui está o leak! [risos]

LM: Uma espécie de compromisso entre o oral e algo mais ensaístico. Sim, sim, sim. Acho que aí fica a semente. Pode ser um livro, correspondências cinéfilas! [risos]

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"Somos um 'case study', uma espécie de aberração!": Ricardo Vieira Lisboa e Luís Mendonça desvendam novo livro do À Pala de Walsh e percurso de 13 anos numa conversa sobre "O Cinema das Palavras" (Parte I)

Hugo Gomes, 30.11.24

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Not I (Anthony Page & Samuel Beckett, 1972)

Em contagem decrescente para o lançamento de “O Cinema das Palavras: Entrevistas À Pala de Walsh”, o segundo livro do coletivo À Pala de Walsh, sete anos após “O Cinema Não Morreu: Crítica e Cinefilia À Pala de Walsh”, os fundadores e editores Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa conversaram com o Cinematograficamente Falando … sobre este novo “rebento”. Mais do que uma coletânea de entrevistas e diálogos com realizadores, técnicos, investigadores e críticos, o livro estabelece-se como uma viagem por uma cinefilia ainda reascendente e entregue ao dom da palavra (*colocar “ordet”).

O lançamento, marcado para o último dia de novembro, na Livraria Linha da Sombra, também editora da obra, contará com uma cerimónia de apresentação com os quatro editores do site e ainda do cronista e poeta Pedro Mexia, assinante do prefácio.

Às portas dessa mesma livraria, os dois fundadores, também eles programadores da Cinemateca Portuguesa, partilharam não só a expectativa e o statement por detrás do objeto literário em mãos, como também histórias e reflexões sobre o percurso do site, lembrando a sua génese na blogosfera e os desafios de manter viva uma escrita crítica em tempos de transição. Com “O Cinema das Palavras”, À Pala de Walsh reafirma-se como espaço de resistência e celebração da cinefilia em Portugal.

Nesta conversa, como o leitor perceberá, surgem declarações, punhos no ar, autoavaliações e um olhar analítico sobre o futuro, não só do site, mas também da cinefilia e do meio em que esta se insere. Um triálogo com a Palavra, seja ela cinematográfica ou meramente ostentativa, emerge como o centro de todas as ‘coisas’.

Vou começar com uma pergunta bastante genérica, ou, se preferirem, pela "génese" da questão: tendo em conta que o vosso primeiro livro foi lançado em 2017, já na altura havia uma ideia de seguir com este segundo livro? Ou ele surgiu apenas depois da receção do primeiro?

Ricardo Vieira Lisboa: Não sei quem poderá responder melhor, mas, salvo erro, foi no próprio dia do lançamento de “O Cinema Não Morreu” que o João Coimbra [Oliveira], o editor dos dois livros e responsável pela livraria Linha de Sombra, nos disse: "Estou muito contente. Vamos começar a trabalhar no próximo." Isto aconteceu logo no dia do lançamento.

Claro que não começámos a trabalhar no mês seguinte, mas ficou essa promessa no ar. A verdade é que, por volta do décimo aniversário do site, em 2022 — cinco anos depois do primeiro livro —, começámos a trabalhar efetivamente no que viria a ser este segundo volume. Por isso, a maior parte das entrevistas incluídas no livro corresponde aos primeiros dez anos do site. As entrevistas realizadas nos dois anos seguintes, que poderiam teoricamente integrar o livro, acabaram por não entrar, pois já tínhamos o projeto praticamente fechado nessa altura.

Houve, no entanto, dois anos de melhorias, revisões e até alguns adiamentos. Foi um processo longo de finalização, mas o índice do livro ficou praticamente definido no final de 2022. A última entrevista feita já com o propósito de entrar no livro foi a conversa da Daniela [Rôla] com Mia Hansen-Løve. Essa é a mais recente. Por outro lado, a entrevista mais antiga deve ser a com o João Rui Guerra da Mata, provavelmente uma das primeiras que fizemos, logo em 2012, quando o site tinha apenas alguns meses.

Na época, essa entrevista foi publicada em duas partes, mas, no livro, aparece numa versão bastante editada, reduzida e melhorada. Aliás, todas as entrevistas passaram por um processo de edição substancial, com cortes e ajustes para se tornarem mais legíveis. No site, há sempre um caráter mais imediato, mas, num livro — que é algo que permanece —, o texto precisa de maior depuração literária. Apesar de já termos essa preocupação com o site, aqui dedicámos meses a retrabalhar os textos, reescrever e aperfeiçoar cada detalhe. Foi, de facto, um trabalho minucioso.

Luís Mendonça: Além disso, há algo que considero uma espécie de "prenda" no livro. Aliás, diria que são duas grandes prendas. Não sei se queres que fale já sobre isso…

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João Rui Guerra da Mata

Sim, eu ia justamente perguntar sobre isso: os supostos inéditos. Vai haver inéditos no livro? São essas "prendas" de que estão a falar?

LM: Sim, posso falar de uma delas. Como não participei diretamente, posso falar como um espectador privilegiado. Trata-se de uma entrevista com o Vasco Pimentel, que muitos só conhecem como "o nome nos créditos", o grande operador de som do cinema português. Para quem o conhece mais de perto, sabe que ele é um contador de histórias extraordinário, extremamente carismático.

A verdade é que o Vasco foi entrevistado poucas vezes, e especialmente não da forma como o Ricardo e o Carlos [Natálio] o entrevistaram. Estive presente durante a gravação e pude assistir a tudo. Foi uma entrevista gravada em áudio e vídeo, mas nunca chegou a ser disponibilizada. Na altura, a ideia era que ela servisse como ponto de partida para uma série que estávamos a desenvolver — uma proposta de televisão, com episódios centrados em entrevistas como esta.

RVL: Sim, seria o episódio-piloto de uma série de televisão.

LM: A verdade é que depois isso não teve sequência. A ideia não se desenvolveu, não chegou a ganhar visibilidade sequer. Mas aquela entrevista ficou sempre “in the back of my mind”, pelo menos para mim, como espectador. Queria fazer alguma coisa com ela, reabilitá-la de alguma maneira. Quando decidimos lançar um livro dedicado a entrevistas, achei que era a oportunidade perfeita.

Por outro lado, há outra coisa que já fazemos há bastante tempo, mesmo antes de virar moda: os registos em áudio, o que hoje se chamaria podcasts. Na altura, não chamávamos de podcasts; eram gravações áudio que disponibilizávamos, sobretudo com realizadores — as Conversas à Pala. Às vezes também fazíamos conversas entre nós, algumas mais públicas, outras nem tanto. A ideia era transcrever essas conversas e torná-las mais acessíveis, mais confortáveis até, para o formato escrito.

RVL: Sim, e especificamente, no livro, temos uma conversa com o Miguel Gomes, outra com o João Salaviza e outra com a Leonor Teles. Essas nunca foram publicadas nem transcritas antes.

LM: Depois, há ainda duas conversas muito especiais que fizemos entre nós, no formato mais "podcast". A primeira foi logo após um grande evento: a primeira projeção semi-pública de “Visita ou Memórias e Confissões”, do Manoel de Oliveira. Digo semi-pública porque foi um visionamento interno na Cinemateca. Tivemos acesso a ele e, em primeira mão, quisemos registar uma reação nossa ao filme. Era um filme póstumo — e não qualquer filme póstumo, mas um que o próprio Manoel de Oliveira deixou preparado com essa intenção, 40 anos antes. Um caso raro e muito especial na história do cinema.

A segunda conversa, para mim, é muito importante. Foi gravada na altura do lançamento do nosso primeiro livro, “O Cinema Não Morreu”, no Nimas. Transformámos isso num diálogo escrito, que acabou por ser mais sobre o futuro da cinefilia e o papel d’À Pala de Walsh no contexto da cinefilia digital. E é de certa medida premonitório, o que acho interessante, e que só me apercebi disso quando a reli. É um documento quase histórico, que só ganhei noção de como era importante quando tive essa relação com o texto, e não com o áudio.

Referem aquela conversa no final da sessão do filme de Maria de Medeiro?

RVL: Sim, o “Je t’aime… moi non plus: Artistes et critiques”. A última sessão do ciclo.

LM: O filme da Maria de Medeiros sobre a crítica… Aquilo que o Ricardo disse é importante: houve um grande trabalho de edição. Nós trabalhámos muito nas entrevistas. Claro que há sempre uma certa ditadura da atualidade. No entanto, ao contrário de outros órgãos de publicação, não nos sentimos completamente subjugados por ela. Esses órgãos têm outras obrigações, o que é compreensível, mas isso acaba por nos permitir decantar mais os textos, trabalhá-los para serem lidos com mais calma, com outro tempo.

Talvez um tempo que a imprensa escrita já não consegue dar. E nem falo da televisão, que praticamente deixou de agir no meio cultural, pelo menos na área do cinema, e muito menos no sentido que queremos desenvolver.

Acho que, apesar de tudo, houve um trabalho suplementar que foi importante. Isso dá ao livro um outro valor, também do ponto de vista literário. Além disso, há a questão da montagem do livro, que acho igualmente relevante. Mas, pronto, força.

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Luís Mendonça, Ricardo Vieira Lisboa e Carlos Natálio no Cinema Nimas, em debate após a projeção de "Je t’aime… moi non plus: Artistes et critiques" (Maria de Medeiros, 2004) / Foto.: Sabrina D. Marques

Bem, agora ia entrar na parte da edição, que o Luís já mencionou há pouco. Falávamos sobre a questão das entrevistas e de como depurar o texto. Há um lado mais formal, mas também um lado mais oral, para dar aquela autenticidade ao diálogo.

Então, queria perguntar-vos sobre esta edição de que já me descortinaram alguns detalhes: houve uma espécie de transformação dos textos? A intenção foi torná-los mais formais ou mantê-los com um tom mais oral, como autênticos diálogos?

RVL: Talvez possa começar dizendo o seguinte: acho que uma das coisas interessantes que aconteceu ao longo dos anos com as entrevistas no site é que, de algum modo, muitas vezes havia pessoas que nos liam mais por causa das entrevistas do que por causa da crítica do dia a dia — se quisermos colocar assim. Quer fosse pelas estreias, quer fosse por outros textos, as pessoas diziam: "Ah, as entrevistas do À Pala de Walsh". E porquê? Por duas razões.

Em primeiro lugar, porque nós fazíamos as entrevistas de uma maneira muito própria. Sempre odiámos aquelas entrevistas tradicionais de festivais, aquelas de 10 minutos. Aliás, acho que no livro talvez haja uma entrevista dessas, de 15 ou 20 minutos, mas uma exceção: com o Apichatpong.

De forma geral, as entrevistas mais curtas, aquelas que fomos obrigados a fazer, acabaram por não entrar.

LM: Deixa-me só fazer um parêntese, que acho que só comprova essa nossa convicção. Ou seja, por várias circunstâncias, e pelos constrangimentos do meio, fizemos algumas dessas entrevistas recentemente para escolher quais incluir no livro. Entrevistámos pessoas muito valiosas, que significam muito para nós, mas, muitas vezes, não as incluímos exatamente como estavam. Atribuo isso ao próprio modelo de entrevista.

O caso do Tobe Hooper é um exemplo, assim como o do Roger Corman. Não é que não os apreciemos — bem pelo contrário. Mas o modelo da entrevista, tal como nos foi imposto, resultou em textos que, a nosso ver, não estão à altura do que queríamos para o livro, do ponto de vista literário. Não estavam no nível crítico que nós desejávamos.

RVL: Muitas vezes, essas entrevistas são muito formatadas, onde o realizador dá a mesma resposta a dez pessoas na mesma tarde, não importa a pergunta que lhe façam. Ele já tem a resposta organizada na cabeça e vai repeti-la. São entrevistas que, no fundo, têm muito pouco valor de interesse. Claro, são importantes num dado momento, mas não são entrevistas para ficar, apenas preencher a lacuna da atualidade.

LM: Exato, essa é a grande urgência da imprensa tradicional. Mas não acho que essas entrevistas tenham um valor intemporal, não têm essa qualidade. Ou seja, se precisávamos de provar a nós mesmos que esse modelo está errado, o livro é a prova viva disso. Nós praticamente excluímos todas as entrevistas feitas dentro desse formato. Algumas foram feitas em regime de festival, mas foi um trabalho de resistência muito grande. Foi uma guerra.

RVL: E, de certa forma, as próprias entrevistas acabam por ser uma resposta a essas limitações. Mas o que estava a dizer é que, por um lado, havia a consciência de que uma entrevista implicava um trabalho de reflexão e pesquisa tão ou mais complexo que um ensaio. Do ponto de vista da preparação, não havia diferença. Íamos ver as obras dos realizadores, o mais completas possível, e organizávamos um pensamento crítico para fazer as perguntas. Acho que isso ressoou com um público, com leitores, e é por isso que as entrevistas têm essa característica.

Outra coisa que caracteriza as entrevistas do À Pala’ é que elas têm um tom mais reconhecível. Quando entrevistámos o Guerra da Mata, ele odiou a entrevista na altura em que foi publicada.

Porquê?

RVL: O Guerra da Mata dizia palavrões o tempo todo, tipo "merda", "caralho", "foda-se". E nós transcrevemos tudo isso, sem filtro, do começo ao fim. Ele estava à espera que houvesse uma espécie de "décolage" institucional, uma limpeza higiénica, digamos assim, mas a graça estava justamente aí. Depois, o Guerra da Mata disse-me: "Mas é a entrevista que os meus alunos do Conservatório mais gostam!" No começo, fiquei incomodado, mas agora gosto muito da entrevista. E isso aconteceu um pouco em geral, ou seja, sempre foi importante para nós que as entrevistas mantivessem o tom da pessoa e que fossem reconhecíveis na oralidade. Não queríamos que as palavras dos outros fossem filtradas pelo nosso discurso. A ideia era aproximar o máximo possível do discurso original. Ou seja, transformar em literário o discurso do outro, não filtrá-lo através da nossa sensibilidade.

A preparação, então, é uma espécie de fidelidade à voz do entrevistado. E isso fez com que, ao longo destes 12 anos, fôssemos mais reconhecidos pelas entrevistas do que pelas críticas. E olhe que nem fazemos tantas entrevistas assim. Às vezes fazemos uma a cada três meses, ou algo do género.

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Pedro Costa com Vitalina Varela e Ventura na rodagem de "Vitalina Varela" (2020) / Foto.: Vítor Carvalho/Optec Films

LM: Também não fizemos tantas quantas aquelas que gostaríamos, por causa desse modelo que está completamente implementado, quase como um dogma. Quase não conseguimos dobrar a nossa maneira de encarar a entrevista. Acabámos por estabelecer um padrão, uma maneira de fazer as coisas, e a partir daí ficámos presos a esse padrão. Claro, talvez seja um choque cultural sem solução. Talvez não seja insuportável, mas é algo que, por exemplo, os festivais ou outras instituições querem evitar. Eles querem algo mais próximo de um "dossiê de imprensa".

Mais a quantidade que a qualidade …

RVL: A última entrevista publicada na À Pala, com o Pedro Costa, foi uma entrevista de seis horas. Não é qualquer jornalista da imprensa que tem disponibilidade para fazer uma entrevista de seis horas e ainda por cima publicá-la.

LM: Respeitando esse tempo, claro.

RVL: Exato. Ou seja, ela foi editada e reduzida, mas ainda assim, continua muito extensa. Mas porquê o Pedro Costa quis falar por seis horas? A verdade é essa, ninguém o obrigou a isso. Ele quis falar por seis horas. Não fazia sentido, de repente, reduzir a entrevista a 5000 caracteres.

LM: Já cheguei a ter entrevistados que estavam em regimes desses, em que o tempo era ditado. E às vezes, até o próprio "agenda setting" das entrevistas era mais ou menos controlado, de forma subtil. Mas, sobretudo, a questão do tempo e o nome do órgão de imprensa. Porque era o nome do órgão que condicionava, por exemplo, a ordem das perguntas, e isso tinha a ver com essa necessidade de "frescura" do entrevistado. No início, quando me colocavam nessas situações de entrevistas rápidas, ficava incomodado. Por exemplo, o Tobe Hooper estava super cansado, terminei a entrevista e fiquei com a sensação de que havia uma hierarquia implícita ali. Isso aconteceu várias vezes. 

Outras vezes, nem conseguimos fazer as entrevistas que queríamos, porque o modelo não nos dava acesso. Quando conseguíamos entrevistar, a ditadura do tempo era implacável. Cheguei a ter uma situação em que um entrevistado estava super à vontade, numa conversa ótima, e já tinham se passado dez minutos, quando alguém do festival impôs o fim da entrevista. O entrevistado disse: "Porquê? Isso não faz sentido, a conversa está boa, e eu não tenho mais nada para fazer agora." Foi o auge de uma série de entrevistas feitas nesse regime, e depois disso nunca mais quis fazer entrevistas assim. Foi uma grande decepção.

E, por outro lado, há algo a considerar: nas entrevistas que fizemos, éramos nós que escolhíamos quem íamos entrevistar. No caso do Guerra da Mata, por exemplo, acho que é uma história importante, quase uma bandeira do site, porque aconteceu numa fase em que o site estava numa espécie de estado de graça. Foi no início, mas também com um certo grau de ingenuidade. O que era nosso, mas também do entrevistado, porque esse tom, digamos, blasé e descontraído... também dizia muito sobre o que o site representava na altura. Era algo novo, pouco ou nada reconhecido, e não levavam a gente muito a sério. Por isso, as pessoas, em certa medida, falavam mais à vontade. Diziam mais asneiras, estavam mais descontraídas. 

Alguns de nós já éramos reconhecíveis, mas não éramos levados a sério. Isso não era muito comum na blogosfera, pelo menos naquela época. Era mais típico de jornalistas tradicionais. E, no caso do Guerra da Mata, acho que o que torna a entrevista interessante não são só as asneiras, mas a franqueza dele. A honestidade é quase didática. Ele diz as coisas como elas são, de forma muito frontal, muito aberta. Quase "cândida", no sentido anglófono do termo. Tem um efeito de "fly on the wall", algo que acho muito interessante. E agora, vejo que isso é previsível. Hoje em dia, já não conseguiríamos mais ter uma entrevista como a do Guerra da Mata.

Pretendem reparar essa ingenuidade inicial?

LM: Já não há essa espontaneidade de parte a parte, já não existe mais...

RVL: Pois, o meio se institucionalizou, com coisas boas e coisas más. E um exemplo disso é o Pedro Costa. Ele nunca daria uma entrevista de seis horas para um blog qualquer que ele não conhecia. Mas deu à À Pala de Walsh.

LM: E, por outro lado, o Guerra da Mata, hoje em dia, já não diria as coisas da maneira que dizia antes. Enfim, ganham-se coisas, perdem-se coisas.

RVL: Isso. Nos primeiros anos do site, havia um lado mais combativo e provocador, algo até intencional. Foi um período que durou uns três ou quatro anos, de forma consciente e até militante.

LM: Não vou mais longe. Foi exatamente nessa época que tivemos um dos primeiros grandes dissensos entre nós, e tudo por causa de uma entrevista. E foi gerado exatamente pelas questões que estamos a falar agora. Foi esse lado completamente escancarado de um entrevistado, que foi contra a nossa própria responsabilidade editorial. Porque ao mesmo tempo que queríamos ser irreverentes, também queríamos ser levados a sério e ter uma responsabilidade.

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Fernando Guerreiro / Foto.: Mariana Castro

RVL: Exato, não queríamos publicar acusações infundadas só porque alguém as disse. Não era para ficarmos a fazer "lavagem de roupa suja" ou algo do tipo.

LM: Sim, era uma questão importante, do ponto de vista da nossa própria orientação editorial. Não era só nas entrevistas, mas também nas reportagens, e até nos textos críticos. Queríamos saber: será que devemos entrar por esse caminho ou não? E foi uma entrevista que gerou um debate entre nós. Foi um momento que provocou um grande confronto metafórico. 

RVL: Uma grande “batatada” metafórica [risos], com todos os quatro fundadores e editores da primeira fase do site completamente em desacordo sobre essa entrevista.

Vocês já estão a falar disso, sobre o que o site se tornou, porém vou adiar a questão Sobre essa “pegada walshiana”, mas, continuando nas no livro, queria que me falassem um pouco sobre o trabalho fotográfico da Mariana Castro, que vai estar presente. Aliás, comparando com o primeiro livro, este é um livro “ilustrado”, não é?

LM: Sim, apesar do primeiro ter um fotograma que estava num encarte, que gosto muito de referir como uma espécie de thumbnail. Foi uma das várias fotografias que a Mariana tirou quando foi contigo ao ANIM. Foi uma reportagem da ação de intervenção, e isso foi muito valioso.

As fotografias da Mariana eram outra marca diferenciadora, por acaso. Um elemento muito importante que marcava a diferença em relação às outras entrevistas feitas noutros sites, e noutros jornais. E, este livro vai ter um encarte com várias fotografias. São retratos. Um caderno.

De todos os entrevistados?

RVL: Não, foram apenas oito. Houve uma seleção …

LM: Na realidade, nem sempre é possível. Nem sempre dá. Porque há uma lógica complementar, mas não é uma lógica estritamente de ilustração. 

RVL: Até porque a Mariana intervinha nas entrevistas e fazia perguntas também. Ou complementava, ou dava uma opinião. E, portanto, ela não era só uma fotógrafa que estava ali para tirar uma fotografia. Ela era um membro ativo do site. Como figura pensante.

LM: E ela tem... Da mesma maneira que nós temos uma maneira de entrevistar. Foi um factor de união e de unidade muito importante. Porque isso é das coisas mais transversais no site. Todo o site é um coletivo, não há oposições oficiais. Ninguém assume uma posição oficial em nome do site.

RVL: Nem posições oficiais, nem oposições oficiais. [risos]

LM: É importante dizer isso. É um coletivo. Mas depois há ali uma espécie de argamassa estilística autoral e acho que estava bem presente nas entrevistas. Sempre achei. Desde a primeira edição do primeiro livro, achava que as entrevistas eram um imprint muito importante. Era aquilo que nos definia quase como um todo.

Ou seja, o site não tem um livro de estilo?

LM: Temos sim um livro de estilo. A escrever um livro de estilo... Não sei se a culpa foi minha ou do João Lameira, mas estou a falar de duas pessoas que são formadas em Comunicação Social, e tendo esta ideia de que o verdadeiro estudante de Comunicação Social, mesmo que já soubesse que era démodé, tinha de estudar o livro de estilo do Público como se fosse uma espécie de Bíblia. Era assim na minha faculdade.

LM: É que eu sei que, depois de ter lido, "em casa de ferreiro, espeto de pau", se calhar o livro de estilo do Público não era uma bíblia dentro do próprio Público, mas para mim era uma bíblia. Como estudante de Comunicação Social no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, foi algo estruturante. O João é da Católica de Lisboa, mas, de qualquer maneira, para mim, o livro era essencial. Isto porque, naquela altura, estava a pensar na transição da blogosfera para um site — para algo que fosse uma verdadeira "empresa". Empresa não no sentido comercial, mas enquanto coletivo de comunicação social que tivesse uma face institucional. Para ser levada a sério, achava que tinha de haver um livro de estilo.

Nós temos o nosso livro de estilo, que usamos até hoje. Ele é precioso e estruturante. Mas, claro, uma coisa é ter a receita, e outra é fazer o bolo. E o bolo, quando o fazemos, tem de ter uma marca distintiva. Tem de ser algo que se reconheça como vindo daquela pastelaria. É aí que acho que as entrevistas entram como uma espécie de assinatura do site. Se eu tivesse de dar um "bolo" a alguém que não conhece À Pala de Walsh para provar, iria à secção de entrevistas, escolhia algumas e dizia: "Pronto, o site é isto."

Isso tem a ver com a preparação que colocamos, mas também com um certo tom. Misturamos um sentido de humor muito próprio com uma preparação rigorosa, e isso nem sempre é fácil de conciliar. Mas é essa mistura que dá identidade ao site e ao que fazemos.

RVL: Já agora, convém dizer algo sobre as fotografias da Mariana. Ela é uma fotógrafa, e não só uma fotógrafa, mas uma fotógrafa importante, com uma carreira própria significativa. O trabalho que ela fazia connosco era uma enorme oferta, como aliás foi todo o site — À Pala’ é isso mesmo, está no nome. Todos nós estávamos "à pala". [risos]

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Foto.: Mariana Castro

O que a Mariana fez foi não só acompanhar entrevistas, mas também colaborar noutras iniciativas, como uma série de visitas a cinemas de Lisboa com o Tiago Baptista, resultando numa extraordinária coleção de fotografias. Ela também fez reportagens, mas os seus retratos de realizadores — e de outras pessoas — foram especialmente marcantes. Hoje, muitas dessas fotografias tornaram-se as imagens oficiais que certos realizadores utilizam para se apresentarem ao mundo.

LM: É verdade que temos esta dualidade: entrevistamos realizadores, mas também professores, críticos, teóricos, ensaístas — toda uma diversidade que quisemos trazer para o livro. Está bem representada lá. Alguns desses críticos também foram fotografados, à semelhança dos realizadores. A Mariana tinha o mesmo interesse em fotografar, por exemplo, o Fernando Guerreiro, como teria em fotografar um realizador, e, de facto, alguns desses retratos passaram a ser usados como imagens profissionais. Lembro-me de críticos, em particular, que agora utilizam as fotografias da Mariana como os seus retratos oficiais. O mesmo acontece com realizadores; é comum vermos essas imagens circularem noutros contextos, quase como se fossem os seus retratos de marca.

RVL: Complementando o que o Luís disse, o livro está organizado em quatro partes. A primeira reúne entrevistas com realizadores estrangeiros, essencialmente “fazedores de cinema”. A segunda parte foca-se no contexto português, onde temos realizadores, mas também técnicos, o que torna esta secção mais variada. A terceira parte é dedicada exclusivamente a críticos, pensadores e ensaístas ligados ao cinema. Finalmente, a quarta parte, que é da responsabilidade do Luís, embora com alguma ajuda nossa, é uma espécie de dicionário temático. É um trabalho importante e muito elaborado.

LM: Sim, nessa secção final temos temas como argumento, censura, cinefilia, cinemateca — depois damos saltos para internet, película, personagens, programação, queer, sala de cinema, som, terror, trabalho de atriz e ator, TV, e por aí fora.

Em cada tema, incluímos passagens retiradas de entrevistas com críticos e realizadores cujos textos completos não conseguimos ou não quisemos publicar integralmente no livro. Foi a maneira que encontramos para dar visibilidade a esses conteúdos, oferecendo um mapeamento mais conceptual das preocupações e interesses do site. Essa secção ajuda a refletir o espírito e as inquietações que guiaram À Pala de Walsh ao longo dos anos.

Os suportes físicos, que tem sido uma das bandeiras do À Pala de Walsh, obviamente que tem que estar representada nesse dicionário?

LM: Exatamente, temos temas que vão da película à internet, passando por cinefilia e crítica, mas são questões que nos preocupam e que acabam por refletir inquietações transversais.

RVL: É muito interessante perceber isso. Quando juntamos todas as entrevistas num único documento e começámos a lê-las consecutivamente, notámos que havia recorrências de perguntas ao longo dos anos. São questões ou obsessões que reaparecem em entrevistas feitas com um intervalo de cinco anos, mas que partem das mesmas inquietações. O resultado é uma espécie de conversa contínua, um diálogo que atravessa o tempo, mesmo com respostas de pessoas diferentes. Isso deu forma ao dicionário temático do livro, mas mesmo antes disso, essas conexões já estavam presentes.

E há algo fascinante: às vezes as entrevistas parecem contradizer-se ou dialogar umas com as outras de maneira espontânea. Por exemplo, o Alberto Serra pode dizer algo completamente absurdo que parece gozar com o que o Kechiche defendeu numa entrevista imediatamente anterior. O Kechiche, por exemplo, fala apaixonadamente sobre realismo, e o Serra, logo a seguir, declara que "o realismo é uma merda". Esse contraste cria um efeito dinâmico. Mais do que uma simples coleção de entrevistas, o livro é quase uma discussão contínua sobre o cinema contemporâneo, mediada por uma diversidade de vozes que respondem, mesmo que involuntariamente, umas às outras.

LM: Sim, isso também reflete a força documental do livro. É como se fosse uma caixa de ressonância de ideias e inquietações de mais de uma década. A pluralidade de perspectivas dialoga com as questões que eram centrais para nós, os entrevistadores, mas também para o cinema do período.

RVL: É verdade. E agora, relendo o material, notamos como algumas coisas já ficaram datadas. Por exemplo, o fascínio que tínhamos pelos ensaios audiovisuais e pelas possibilidades da internet. Na época, víamos isso como algo revolucionário, mas hoje esses elementos são dados adquiridos ou até ultrapassados. A onda dos vídeo-ensaios, por exemplo, meio que se esgotou. Figuras ou fenómenos que nos fascinavam — como Kevin B. Lee ou plataformas específicas de vídeo-ensaio — já parecem pertencer a um passado distante, quando estávamos a capturar um momento vibrante, e agora parte disso já soa como uma memória histórica.

Essas obsessões também estão definidas nos autores das entrevistas?

LM: Sim, isso também é possível. Ou seja, apesar da argamassa que constitui as entrevistas, a rubrica, as entrevistas, há pessoas aqui, existem estilos muito vincados, que são muito diferentes uns dos outros. 

O Francisco Valente tem um estilo de fazer entrevistas, como também tem de escrita. Na realidade, não é muito divergente a esse nível, que eu acho que é muito próprio e muito dele. Se calhar, a Inês também, só pensando em pessoas que escrevem para jornais. E que... mas o caso da Inês [Lourenço] começou com À Pala de Walsh, que também tem aqui uma entrevista ao Jean Douchet. Acho que nós olhamos para os títulos e eles estão lá. Portanto, há uma marca de cada um. No tipo de questões que coloca, na maneira como as coloca, torna-se evidente e ao mesmo tempo, sinto uma grande unidade.

Por exemplo, isso é muito menos conseguido no livro “O Cinema Não Morreu. O livro são textos, a diferença salta à vista, porque a cada texto nota-se uma diferença gigantesca que às vezes cria uma espécie de... efeito contraproducente para a leitura, porque aquilo afunda-se num registo mais académico e depois, de repente, recupera alguma genica num texto, num estilo mais humorístico. Outras vezes, pronto … e essas velocidades todas alternantes no “O Cinema Não Morreu”.

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Maria João Madeira, Luís Mendonça, Carlos Natálio e Ricardo Vieira Lisboa na apresentação de "O Cinema Não Morreu: Crítica e Cinefilia À pala de Walsh", na Cinemateca / Livraria Linha de Sombra [22 de Dezembro de 2017]

Nós tivemos críticas positivas, bastante positivas ao livro, mas houve uma menos positiva, que tinha alguma razão - aquilo é um bocado um pára-arranca na leitura que não é muito producente.

RVL: Diria que “O Cinema Não Morreu" não é um livro que dá gosto de ler do início ao fim.

Julgo ser mais um livro de consulta …

RVL: Exacto, um livro mais de consulta. Mas este não é. Os quatro capítulos lêem se como uma espécie de radiografia de um momento, de uma década, uma biografia de uma década.

LM: Concordo plenamente.

LER PARTE 2

Abril Sempre!

Hugo Gomes, 24.11.24

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Na procura de uma memória coletiva sobre os preponderância da Revolução, Luciana Fina “resgata” do arquivo uma montagem, quase a cheirar a coletânea, de ventos que se defrontam numa ideia conceptual num ato. O 25 de Abril, ponto-chave, e de lá o Antes, o Durante e o Depois: o que se ganhou, o que se perdeu e o que se manteve. “Sempre, título ou grito afirmativo das promessas, acalora corações, como a “venda” de um Abril retirado da normalização do seu calendário e transformado numa Primavera ideológica. Assim, deparo-me com os conselhos de “não descansar até o Abril se concretizar”.

Leia-se nos murais, nas faculdades, ouça-se das bocas dos idealistas, dos otimistas, dos sonhadores. Sonhar é fácil; acordar é mais difícil, porque é nessa sobriedade que nos damos por vencidos pelas frustrações do tempo. “Sempre é um ensaio de intenções, imagens e sons costurados, projetados dias e dias numa parede de tijolos do átrio da Cinemateca de Lisboa. Ali encontrou uma textura que lhe condizia: o picotado retangular de cada peça compunha cada imagem como um puzzle, algo apenas sustentado pelo “poder da projeção” — essa luz tremeluzente como uma acidental alegoria de um país imaginado.

Porém, 50 anos de Abril levam-nos a estas comemorações. Mas a comemoração adquire asas próprias: chega Veneza, e a oportunidade de esta instalação virar filme é outro sonho acordado. Os italianos também comemoram o 25 de Abril — não o nosso, outro. Será que entenderão o peso das imagens que Fina acarreta no seu “Sempre? Ou apenas as olharão como uma curiosidade de arquivo?

Para nós, portugueses, essas mesmas imagens são sentimentos: ora de compreensão, ora de indignação. As forças opostas — os saudosistas ou os que consideram que se perdeu a “essência” (qual, não sei) do primeiro cravo — encontrarão em “Sempre uma propaganda contra o seu paladar. Os críticos “pés-de-barro” virarão costas, como sempre (e “Sempre). Não foi para eles que o filme foi feito.

Luciana Fina demarca-se num ensaio cujo sabor difere conforme o espectador. Há quem o veja como uma continuação de uma luta. Há quem o entenda como uma desilusão: às influências de Abril, ao engodo, à traição e, sobretudo, à decepção trazida pela engrenagem política. “Bom Povo Português”, de Rui Simões, documento crucial dessas paradas, igualmente serviu-se de imagens para demonstrar o fracasso acima da exaltação. Muitos viram o ato como uma traição à Pátria, uma patranha, sem conceber a hipótese de que a crítica é o avanço da sociedade.

Sempre nunca obtém tal sentimento, até porque é um objeto do seu tempo, deste tempo, em que se olha para a Revolução tentando encontrar um fio condutor. Quem sabe, para seguir até esse sonho, cada vez mais distante, de um Abril Sempre.

Manuela Viegas numa conversa sobre as suas glórias: "a imperfeição tem de fazer parte da obra, ela acrescenta algo ao seu sentido."

Hugo Gomes, 02.11.24

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

Em 1999, estreava em Berlim aquela que seria a primeira e única realização de Manuela Viegas, uma consagrada montadora no panorama do cinema português. A obra, “Glória”, viria a tornar-se um objeto de culto, um canto obscuro para aqueles que ousassem entrar, penetrar e ficar. A narrativa desenrola-se em torno de Ivan (Francisco Relvas), uma criança levada pela mãe de Lisboa para o interior rural, para viver com o pai numa estação de comboios quase abandonada. Lá, Ivan conhece Glória, uma menina que partilha um destino semelhante ao seu, mas entregue a uma perversidade própria que o guiará até às distantes margens do rio, em busca de um refúgio cavernoso onde possam escapar da cruel intenção dos adultos que os rodeiam.

É um filme com o olhar de uma montadora, como a realizadora reconheceu durante esta nossa conversa em torno da sua obra... e da sua arte. “Glória” desafia o espectador, a sua posição e a sua percepção, recusando narrativas aristotélicas ou de “caracará”. Move-se na profundidade da atmosfera, naquilo que se adensa no coração humano. E no seu recanto secreto, encontramos algumas notas sobre um país em mudança, sobre o abandono das tradições, das suas gentes, do meio rural, em particular. “Glória” regressa agora à vida, sob as vestes de cópia restaurada, tendo sido exibida como tal no Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal, a terra que, há 26 anos, a gerou. Uma retornada, “bem-vindo a casa”!

Esta sessão especial, integrada no programa europeu A Season of Classic Films, promovido pela Associação das Cinematecas Europeias, serviu de motivo para este encontro. Agora reformada, Manuela Viegas falou ao Cinematograficamente Falando … sobre a sua paixão, sobretudo pela montagem, a arquitetura invisível que sustenta um filme, vincando “Glória” como a sua glória de passado, e isso, sem nada a esconder.

Foi montadora durante vários anos, como também contribuiu para a escrita de alguns argumentos, por isso mesmo, pergunto-lhe o que motivou este grande salto na realização do filme?

Desde o início, desde o surgimento do meu interesse pelo cinema. Frequentei o conservatório depois de ter realizado vários estudos noutras áreas distintas do programa de cinema, e, logo nos primeiros anos, surgiu essa possibilidade, o desejo de filmar, etc. Ao entrar numa espécie de comunidade, como é, por exemplo, a do cinema — um seio bastante fechado — sente-se algo contagiante, um poder de contaminação do cinema em relação a todos os outros aspetos da vida, passando e pensando o cinema na vida das pessoas. Sai-se para um bar e as coisas que se encontram e o que se veem, remete-nos ao cinema. Cinema, cinema e Cinema. Assim, o desejo de trabalhar em cinema foi enorme desde o princípio. Tem componentes que me interessam muito e que se ajustam ao meu modo de ser, desde “arregaçar as mangas” e partir para a prática. Mas isto aplica-se a todos os seus departamentos — montagem, realização, tudo. Por um lado, há esse lado prático, e por outro, há um aspecto de ligação com a História do Cinema, que leva a refletir sobre como transpor, digamos, vários interesses, temas e situações para imagens e sons — como filmar e tudo mais.

A montagem é precisamente esta construção que me fascina, que dá vida a uma pessoa: descobrir os filmes que estão dentro dos materiais, das imagens, dos sons, do filme inicialmente idealizado, em diálogo constante com os realizadores, até os filmes materializarem e ganharem a sua devida forma. Assim, a montagem torna-se quase como uma pequena oficina criativa; é como fazer filmes também, só que em colaboração com outra pessoa, o que é muito… Enfim, é melhor do que nos afundarmos nas nossas próprias intenções e objetivos, isso é algo a evitar o máximo possível. Trata-se de entrar, por assim dizer, numa abordagem conjunta, ouvir os outros, ser ouvido, falar e trazer para as conversas uma visão sobre o mundo, através dos planos que se descobrem. É um processo fantástico, muito enriquecedor.

… e ao mesmo tempo é como se fosse uma arquitecta dentro do meio.

Sim, podemos dizer que há uma construção que se faz, mas existe também um enorme desejo de descobrir o essencial de qualquer coisa, de captar o que está por dentro. Não se trata de procurar o que está por trás, mas sim de perceber que, por vezes, o essencial está mesmo à superfície. Trata-se de descobrir lá aquilo que possui profundidade. Este processo ocorre na montagem de forma muito eficaz, entre angústias e alegrias — alegrias que nos fazem quase saltar da cadeira quando encontramos algo significativo, e angústias que nos tiram o sono, transformando a nossa percepção acerca das coisas. Porque os passos que damos são incertos, e ao mesmo tempo, acusamos aqueles que já estão predeterminados, os que fazem parte de esquemas de construção mais convencionais — as chamadas técnicas de escrita, de montagem e outras.

Essas técnicas, ou normas, acabam por ser desafiadas pelo próprio material que encontramos: pelas imagens e pela criação dos sons, que podem imensamente influenciar. Comecei com película, então digamos que trabalhava em bandas de imagem e som de acetato, palpáveis — na altura, tínhamos a imagem e dois ou três sons possíveis em simultâneo, no máximo, dependendo das mesas de edição disponíveis.

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

Na película, trabalhei sobretudo em 16 e 35mm, criando coisas absolutamente inventadas e caóticas, muitas delas arriscadas, sempre lado a lado com o realizador. É muito estimulante, esse lado criativo associado à montagem. Portanto, a transição para a realização foi quase como uma extensão disso, mas no próprio terreno — ou seja, filmar com uma equipa enorme, com câmaras de 35 milímetros, em exteriores, à noite, de madrugada, nas horas mais fotogénicas, em locais como as escarpas do Zêzere. Filmar ali implicava arrastar toda a equipa com o equipamento. Na rodagem, acreditava que, baseado na experiência da montagem, seria quase o mesmo processo, com ambos — eu e outros — a fazer filmes. Contudo, a rodagem exige uma rapidez de reação face ao que se encontra na natureza, nas pessoas, na organização das produções, etc., uma rapidez que não permite a concentração que a montagem proporciona. Entramos numa sala de montagem…

Ouço na sua voz uma admiração pela montagem inquebrável, tendo em conta que quase esse cargo está a desaparecer, hoje, chamamos editores, e a edição por via do digital. Perdemos essa concentração a que se refere?

Mesmo na montagem digital, no computador, ainda há aquele contacto, o toque da montagem, que existe mais intensamente na montagem em película do que na digital. No entanto, mesmo em digital, para fazer a montagem, é preciso entrar numa bolha, numa espécie de noite; é uma experiência pessoal. Sei que… sou sempre eu que preciso dessa imersão, é isso que define o meu ritmo, a minha velocidade, é a concentração. A verdade é que é um processo nada fácil. Há sempre muitas interferências, são tantas coisas.

E, portanto, estava, na verdade, sempre a pensar. Morria de saudades da montagem, mas ao mesmo tempo, ao ver os planos, pensava nos planos que gostaria de ver ganhar forma na montagem.

Ou seja, realizava com olhos de montadora, é isso?

Sim, claro, na escrita, desde sempre. Aliás, acho que o nosso pensamento é, de alguma maneira, uma forma de montagem. Trata-se de relacionar ideias, colocar coisas lado a lado e encontrar fios de continuidade, que não precisam de seguir as regras da montagem convencional. Pode ser uma continuidade mais subterrânea, digamos assim, algo que também sinto no “Glória”.

Gostaria de explorar a questão da subterraneidade, uma vez que o filme evoca uma aura bastante misteriosa. Temos uma narrativa, e, embora esteja focada nessa narrativa, aqui o filme desafia o espectador a tentar decifrar o que está realmente a acontecer, pois nunca nos diz claramente do que se trata. Assim, ficamos em dúvida, absorvidos por aquela atmosfera. O filme é muito atmosférico, no sentido de ser bastante sombrio. Isso também me faz pensar que, apesar de ter assumido o papel de realizadora neste filme, não conseguiu desvincular-se da sua experiência como montadora. Acha que isso a poderá ter influenciado a sua abordagem ao filme?

Sem dúvida! Não tenho dúvida nenhuma quanto a isso. Como já estava a dizer, desde a escrita até à planificação, sinto que há uma continuidade. Devo dizer que, nas cenas filmadas, houve coisas mais bem-sucedidas do que outras; houve material que se revelou impossível de usar. A mise-en-scène, digamos assim, exige uma sensibilidade que, por vezes, questiono se possuo verdadeiramente, mas que sempre esperei conseguir, pelo menos em parte. A mise-en-scène envolve olhar para o espaço, ver as pessoas nele inseridas e ligar tudo organicamente à cena em formação, esse é o ideal, porque as coisas não são só planos e imagens num lado, com o resto separado para outro. Os temas, as questões, e até a História, estão todos interligados, é isso que acredito que define o filme: a imagem e o som, a sua matéria contêm o que chamamos de continuidade.

Portanto, essa sensação que descreveste ao ver o filme, de uma certa ambiguidade sobre o que ele trata — mais ambiente, menos história —, faz parte da intenção.

Sabemos que está a acontecer algo, mas, como espectador, tentamos encaixar todas as peças para entender. E até mesmo a planificação esconde as ações-chave.

Exato, digamos que há um conjunto de opções conscientes, relacionadas com um tipo de cinema em que o essencial das ações, das histórias, ou das situações acontece fora de campo, ou passa para o outro lado. É como se houvesse um território imaginado, no qual filmei várias populações, em diferentes pontos de rios, por exemplo. Imaginei, a partir dessa claridade e diversidade, um território de ficção onde me podia instalar livremente. Sentia-me à vontade para colocar a câmara aqui, ali, em qualquer ponto. Quando filmava num local específico, tinha a noção do que estava a acontecer noutras áreas. Não estava lá com a câmara, mas sabia o que ocorria. Esse "fora de campo", ou “off”, mesmo não estando visível, cria tensão com o que está em cena, remetendo, na verdade, aos efeitos de algo que já ocorreu — os vestígios, os resíduos, o que sobrou ou se desfez após um acontecimento. Talvez esta abordagem reflita algumas influências cinematográficas.

Não sei se consigo explicar exatamente o que é, mas sei que algumas das minhas opções, inclusive na montagem, visam descentrar o foco, deslocar aquilo que normalmente é central, e faço-o, talvez, pela crença de que essa estratégia traga uma compreensão mais profunda do que se está a passar. As histórias, na narrativa tradicional, tendem a relatar factos de forma explicativa: aconteceu isto, que se liga com aquilo, e foi causado por tal coisa. No entanto, a construção de um filme, com esta abordagem, procura algo diferente — algo menos explícito e mais evocativo.

Penso que a intensidade da nossa percepção, ao capturar as possibilidades e o significado das cenas, torna-se mais incisiva, mais forte, quando tudo não está diretamente à vista. Mizoguchi faz algo assim. Embora seja um realizador clássico, ele utiliza essa técnica. Por exemplo, um gesto fundamental entre um homem e uma mulher que vão ser crucificados aparece apenas no final do plano e quase não se vê. Esse “quase” — o risco de quase perdermos o gesto — cria uma perceção fulminante da situação. Em Mizoguchi, essa sensação é imediata, quase explosiva; no meu trabalho, talvez não tenha o mesmo impacto, mas uso o mesmo princípio: filmar o que está entre uma coisa e outra, explorar os efeitos, como um sorriso ou uma luz que ilumina subitamente um rosto, sem que imediatamente se compreenda o motivo. É algo que se percebe mais tarde, é como uma aposta — não dar tudo de imediato, mas permitir que se revele aos poucos.

Acredito que com isto se ganha uma presença muito forte do que está em campo, exatamente porque está tensionado pelo que não se vê.

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The Crucified Lovers (Kenji Mizoguchi, 1954)

O grande ponto de atração do seu filme é a curiosidade. Sim, sentimos curiosidade em descobrir aquilo, ganhamos pistas e juntamos as peças, como disse. Não se trata de algo concreto ou óbvio, mas de algo mais intangível.

Não é curiosidade pelo que está ali, mas pelo que surge a partir disso. Juntamos as peças, como disse: não é o concreto, mas o que ele evoca. Não é a curiosidade pelo que está diretamente em cena, mas pelo que vem dessa presença. Não se trata da ação, mas de filmar as margens da ação, os efeitos, como se estivesse a filmar um abalo de terra. Não filmo o epicentro, mas sim as ondas provocadas, e é através dessas ondas que o sentido se vai revelando. Mas é importante que se entenda claramente, que não seja apenas um jogo de esconde-esconde. Não se trata de um jogo; é uma busca séria de formas de fazer passar o sentido, sem recorrer ao "Ah, isto já sei o que é, já vi isso 500 vezes na televisão". É, de certa forma, uma recusa disso, uma tentativa de fazer com que os elementos surjam como se estivessem a nascer.

No final, penso que algumas dessas cenas têm uma presença muito forte, especialmente as que resultaram de uma rodagem mais intensa e satisfatória, embora sejam só duas ou três cenas. A certa altura, notava-se que a equipa inteira estava ali concentrada. Era uma equipa muito grande, e ninguém estava a pensar no almoço ou no lanche; estávamos todos focados no que se estava a criar. São só duas ou três coisas que se expandem e, se derem um pouco a volta ao filme, ele já ganha outra dimensão.

Há pouco disse-me algo que me fez pensar, mas primeiro deixe-me perguntar: é devota do Kenji Mizoguchi?

Acho o Mizoguchi extraordinário!

Perguntei isto, porque um dos elementos recorrentes na cinematografia de Mizoguchi é a presença do rio. Desde “O Intendente Sansho” [“Sansho the Bailiff”, 1954], “Os Amantes Crucificados” [“The Crucified Lovers”, 1954], “A Vida de O'Haru” [“The Life of Oharu”, 1952], até “Contos da Lua Vaga” [“Ugetsu”, 1953], todos os filmes têm essa presença marcante do rio, como fosse uma personagem própria, um elemento que conduz estas personagens ou os leva a cometer os seus atos e confrontar dilemas. Em “Glória” existe essa igual presença com o rio …

Bom, aproveitando este paralelismo com Mizoguchi — embora não haja um verdadeiro paralelismo, pois estamos a falar de coisas absolutamente extraordinárias —, há realmente algo na presença dos rios, tanto em Mizoguchi como aqui, no “Glória”. A água e os rios têm um poder imenso, e creio que representam a energia desse território, o rio, ou melhor, os rios. Em certos momentos, o rio assemelha-se a um paquiderme, imóvel, com costas castanhas, vasto e pesado; noutros momentos, irrompe e rasga, numa força intensa. Essa energia parece aglutinar a dispersão que constitui o filme. Não sei se posso descrevê-lo assim, mas não é um conjunto de coisas dispersas, sem ligação, saltando de uma coisa para outra. Em vez de uma continuidade linear, o rio é a presença que flui entre tudo, presente também no som, como uma energia aglutinadora.

Por outro lado, os rios, ou aquele rio que vemos no filme — são vários pontos do mesmo rio, diferentes rios ligados entre si — têm uma espécie de força de atração que, em certo ponto, parece até um pouco maléfica. Exerce uma atração particularmente forte sobre os miúdos, porque o filme procura mostrar o ponto de vista deles: não é a minha perceção, ou a de um adulto sobre eles, mas sim o olhar dos próprios miúdos. E, assim, os medos, os pesadelos, os desejos, as alegrias, as brincadeiras — tudo tenta ser visto a partir desse ponto de vista. O rio exerce sobre eles, os miúdos, mais do que sobre os adultos, uma espécie de atração inevitável, uma força que quase roça o maléfico. Talvez seja isso… talvez, mas não sei ao certo.

Perverso?

Exato, é como se ela fosse arrastada para lá; essa é, no fundo, a essência da história, quando a vemos do ponto de vista das crianças. Elas observam os adultos e veem neles comportamentos aberrantes, ficam incrédulas ao ver como são capazes de certas atitudes, como podem ser violentos uns com os outros. Mas, então, a Glória [a personagem interpretada por Raquel Marques] arrasta o rapaz para o rio, como se algo dela o tocasse, o contagiasse — e é isso que acaba por marcar profundamente a minha própria vida. Esse poder, essa energia, impede que o filme seja apenas uma manta de histórias soltas, dando forma a um território próprio onde se movem as crianças, os adultos, todos. E há nesse poder de atração algo inexplicável, mas sentimos que algumas das vivências da Glória se tornam visíveis, que captamos algo do seu passado ou do que ainda a assombra.

Sabemos que há crianças pequenas, filhos de imigrantes, deixadas ao cuidado daquela senhora, a Teresa [personagem interpretada por Isabel de Castro]. Não é propriamente uma “mãe”, e a própria Glória é uma delas, deixada ali desde sempre. Ninguém a veio buscar. Ao contrário das outras crianças, cujos pais tentam sempre ir buscá-las, ninguém vem por ela. Talvez o rio tenha qualquer coisa que transcende a razão e que, em última análise, molda o filme. No trabalho que fizemos agora, a digitalização parece fazer ressaltar a irracionalidade dos comportamentos daquelas pessoas apanhadas sem saída, ou talvez seja só uma questão de som, de definição do som — como se o rio encarnasse uma figura quase mítica, uma força irracional e inconsciente. Não quero ser pretensiosa, nem afirmar nada de forma categórica...

Mas, no fundo, o rio liga-se a um inconsciente coletivo, principalmente o rio à noite, ligado aos desejos, medos, pesadelos — tudo isso, os sonhos dela, ou pelo menos da Glória

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

“Glória” esconde na sua “carne” uma espécie de crónica, ou crítica, do seu espaço sócio-político. Do seu tempo, aliás, visto ter sido rodado por volta do ano 1998 …

Talvez tenha sido até antes, não me lembro ao certo. Talvez tenha sido escrito em 1995. Na altura, os grandes fogos ainda estavam muito presentes, tal como as novas “estradas cavaquistas”, que estávamos a filmar, fruto de uma certa cultura de expansão rodoviária.

O que eu queria mesmo era situar esse contexto temporal, porque há um plano no seu filme, com o Ivan numa esquina, junto a uma montra, onde se vê o logotipo da Expo 98. Foi um tempo de mudança neste país, e igualmente demonstra isso, subtilmente em “Glória” com o desaparecimento daquela ferrovia, a dar lugar a uma auto-estrada, uma conexão rápida entre as metrópoles e o interior algo decadente …

Não sei se se pode considerar uma crónica ou algo mais lógico, mas, do ponto de vista político, há uma ideia de que estamos a lidar com uma zona do país que apresenta velocidades diferentes, mas simultâneas. Por um lado, temos partes do país que continuam lentas, enquanto outras evoluem rapidamente, com a construção de vias mais rápidas e a presença de grandes bancos, por exemplo. No entanto, essas novas estradas acabam por deixar para trás as populações, criando uma divisão sociológica entre os mais pobres e os desamparados.

A extinção da ruralidade, de alguma forma.

Exato! No filme há uma abordagem muito consciente e profundamente política, uma reflexão sobre o que é o progresso, o desenvolvimento do país, etc. Do ponto de vista político, a minha ideia é que o progresso é algo sustentado em roubos de matérias-primas, em sacrifícios, numa separação cada vez maior entre grupos e corpos, tudo isto é construído com base nesse processo, portanto, não sabemos bem. Também há algo que costumava referir nas aulas, já com alguma idade, relacionado com "The Magnificent Ambersons" ("O Quarto Mandamento") de Orson Welles.

Nesse filme, onde se trata da invenção do automóvel e da mudança de época, há uma cena com um longo plano fixo em que o patriarca da família sentado olha horrorizado para fora de campo onde parece haver uma lareira. Ele está à beira da morte e há uma "voz off" melancólica de Orson Welles que fala do tempo da História e, onde todos parecem ver uma cadeia linear de acontecimentos ligados pela ideia de progresso e de futuro, o velho patriarca vê a acumulação de ruínas sobre ruínas. Tem os olhos esbugalhados como se atingido por uma explosão, uma catástrofe. Falávamos disso em Teoria da Montagem. Pensar a História como um tempo de vazios súbitos, descontínuo, não linear. O velho dos Ambersons é quase um Anjo da História, como aquele do quadrinho do Paul Klee.

Quero dizer, é uma ideia bem conhecida. Talvez não seja algo que me pertença, mas que é complementado por outras ideias. No entanto, essa ideia de desenvolvimento e progresso exige que perguntemos: progresso para onde? O que é esse "para onde"? O que está a acontecer no mundo? Continuamos a lidar com a questão das matérias-primas, mas isto ainda não terminou, ainda há mais e mais coisas para serem apropriadas. Portanto, diria que talvez, e não sei se isto é muito rebuscado – provavelmente só pensei nisto depois de fazer o filme – mas trata-se de refletir sobre essa ideia de recusa do progresso a qualquer preço, de um progresso que acaba por ser destrutivo para o planeta, inclusive. Essa ideia, talvez, não encontra uma correspondência direta no desenvolvimento do próprio filme, que também não segue uma estrutura rígida de apresentação, desenvolvimento, conclusão, etc.

E sobre essa ideia de ruína de que me falou. O filme, hoje, é considerado uma obra de culto no cinema português e, talvez, seja mesmo incontornável o icónico cartaz criado pelo artista plástico Julião Sarmento. Todo o cartaz transmite essa sensação de ruína, com o lettering grafitado como aquele que aparece no “falso-crédito” do filme. Então, falando rapidamente, como surgiu a ideia do cartaz? Teve alguma influência na sua criação, ou foi algo imposto pela produtora?

Nós mostrámos o filme ao Julião, e ele ofereceu-se para fazer o cartaz. Portanto, é com isto que estás: o fundo é branco e tem nódulos, manchas de uso, vestígios, marcas – pedaços de gestos.

Como uma parede daquelas casas de pedra?

Sim, faz mesmo lembrar isso. Diria que o aspecto da imagem transmite uma textura de parede, uma daquelas de rua, um muro, onde ficam marcas, como se tivessem sido deixadas pelo tempo e pelo uso. Ou seja, ele viu o filme, interpretou-o e manifestou esse pensamento através deste cartaz.

Voltando ao “inconsciente” político, ou não, do filme, como é que essa ideia de recusa a um progresso a qualquer preço, tão enraizada nas contradições entre desenvolvimento e destruição, se traduz na estrutura do filme? 

Não pode ser algo certinho e acabado; precisa de ser fragmentado, de transmitir essa ideia de montagem. Não me lembro exatamente, mas a intenção era trazer essa recusa política para a própria forma do filme. Claro, talvez tenha pensado nisso mais tarde, quando precisava de falar sobre o filme, e pensei: “Do que é que vou falar?”. Encontrei aí uma espécie de necessidade de que a forma de filmar, a montagem, as imagens que escolhemos, os sons que inventamos, tudo isso fosse profundamente contaminado pelo que está a acontecer no contexto ambiental e político. Por exemplo, nas cópias em película, deixámos os sais de prata nas imagens, o que dá um tom de carvão ao filme – carvão que está, de certa forma, em sintonia com a História que está a ser retratada.

A História de um território devastado, onde o elemento vital, o rio, se vê ameaçado, onde há incêndios, encerramentos de espaços, entre outras coisas.

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Manuela Viegas durante a apresentação da cópia restaurada de "Glória" no Centro Cultural Gil Vicente no Sardoal / Foto.: Paulo Jorge de Sousa

Está tudo a acontecer ali, e talvez fosse interessante refletir sobre como o argumento era antes de filmar. Já há muito tempo que não penso nisso, mas lembro-me que ao encontrar aqueles locais, tive de mudar imenso o argumento. Adaptámo-lo completamente à casa da estação, onde não mexemos quase nada. As coisas estavam tal como as encontrámos. Levámos apenas uma cama de ferro, entre outras pequenas coisas, para as encaixar no cenário. A casa estava vazia, era a casa do chefe da estação. Não pintámos, não alterámos nada. Já a casa ao lado, onde vive a senhora que toma conta das crianças dos imigrantes – que depois vêm buscar os bebés – também não era um casarão. Tinha aquele sótão, e as paredes cheias de vegetação, de ninhos de pássaros, etc. Apropriámo-nos do espaço, entrámos de mansinho e colocámos alguns elementos. E assim, grande parte do argumento foi adaptada. Na montagem, foi totalmente desconstruído. Fui reduzindo até ao essencial. Cada filme pede um método específico de montagem, mas o princípio básico é começar por alinhar tudo o que foi filmado e depois ir retirando o que não funciona, deixando apenas o essencial, aquilo que é realmente bom.

Portanto, montagem foi essencialmente retirar, retirar e retirar …

Sim, mas depois tive de recuperar algumas coisas do “lixo”, que tinham sido descartadas [risos]. Só mais tarde percebi, e explico-o agora com palavras que nem tinha na altura, que a imperfeição tem de fazer parte da obra, ela acrescenta algo ao seu sentido. Aquilo que, por vezes, não está bem enquadrado ou que não seria o mais “certo”, acaba por trazer um valor especial. Sem esses detalhes, a obra ficaria reduzida a uma série de substantivos soltos: “ponte, poço, casa” – sem nada à volta. Por isso, fui buscar essas partes novamente. Filmámos muito, começámos a trabalhar nas filmagens bastante cedo, quase que nos esgotámos, mas tínhamos uma equipa incrível, muito dedicada, embora pequena.

Que bem se molharam nesta rodagem [risos] …

Molhamo-nos sim, e não só, arriscámo-nos muito, e pusemos em perigo, por vezes, uma quantidade de equipamento. Tivemos uma ajuda fabulosa dos bombeiros, especialmente nas filmagens noturnas, em que precisamos de iluminação e de várias preparações para nos expormos – com bombeiros dentro de água, debaixo das estruturas, etc. Foi muito arriscado; hoje em dia, não seria capaz de pedir isso a ninguém, pois é realmente exigente. Mas isso está no filme, sente-se. O resultado traz um benefício à produção, uma vibração do real, das coisas que estavam lá. Sente-se essa autenticidade a vibrar, creio.

Mas … depois de “Glória”, não teve mais vontade de filmar?

Gostava de ter continuado a filmar, mas durante a rodagem, houve várias fases. A primeira fase, a da escrita, foi muito difícil – estávamos todos sem dormir ou a dormir pouquíssimo, e não estávamos bem da cabeça [risos]. Mas, aos poucos, fomos ganhando ânimo, e no final da rodagem, já tinha vontade de sair de lá. Queria ficar ali, sozinha, a dizer “podem ir todos embora, eu fico aqui”. Realmente fiquei mais uns dias, naquele calor comunitário, no local que nos acolheu, e senti-me grata por tudo aquilo ter sido possível. Logo a seguir, tinha vontade de continuar com algumas destas personagens ou com outras, de prolongar um pouco aquele ambiente. Talvez não ali mesmo, mas num lugar semelhante. Comecei a escrever algumas coisas, mas o tempo foi passando e outras vocações se sobrepuseram. Tenho interesse em várias coisas. Não é assim tão fora do comum, mas quero buscar inspiração em várias áreas.

Gosta de ensinar [menção à trajetória enquanto professora na Escola de Cinema e Teatro], é isso?

Gosto de ensinar, mas não no sentido de ensinar diretamente – gosto de observar as pessoas a descobrirem as suas próprias coisas e de oferecer o que puder, seja estímulo ou entusiasmo. No fundo, é isso que as aulas devem ser: estimular, inspirar gosto pelo cinema, criar comunidades de apreciação e paixão, onde cada um valoriza à sua maneira. Depois, comecei a pensar numa abordagem mais orgânica, inspirada em livros que foram marcantes para mim, que têm acompanhado a minha vida e que se tornaram inesquecíveis. Pensei em criar algo mais parecido com um concerto de música, onde cada "instrumento" está organicamente ligado, onde todos participam com naturalidade, como se cada um trouxesse a sua nota única. E lá fui eu, por aqui e por ali, mas o tempo vai passando e nunca é suficiente para tudo. Dou-me por completo a tudo o que faço, seja nas aulas ou em qualquer outro projeto. Desde a licenciatura, com a passagem para o mestrado e tantos trabalhos, uma boa parte do meu tempo foi para isso. Mas não significa que ainda não possa surgir outra coisa.

É importante associar ideias a cada elemento. E, dentro dessas limitações, talvez o fenómeno seja inicial, mas é também o que consegui realizar. Entretanto, tenho uma saudade imensa do processo de montagem. Agora, já não se trata apenas de me responsabilizar pela parte técnica; é mais sobre tomar decisões relacionadas ao filme em si, sobre que filme quero ver com as pessoas, e manter sempre a concentração. O que mais valorizo é essa capacidade de concentração, a ponto de, como acontecia nos laboratórios de fotografia, onde uma pessoa entrava para revelar e, de repente, passavam 24 horas sem almoçar, nem jantar, e ali permanecia. A montagem é semelhante a isso.

Um canto isolado do resto do Mundo?

Exato. É uma questão de solidão e concentração, mas também de estar sempre à espera de compreender a visão que o realizador tinha para aquilo.

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O Som da Terra a Tremer (Rita Azevedo Gomes, 1990)

A Manuela tem sido, possivelmente, uma verdadeira escola de cinema, pois fez a montagem de muitas primeiras obras de realizadores que hoje tão bem conhecemos. Trabalhou com Pedro Costa em “O Sangue” (1989), com Rita Azevedo Gomes em “O Som da Terra a Tremer” (1990), Teresa Villaverde em “Idade Maior” (1991), por exemplo.

Acredito que essas primeiras obras coincidiram com os anos após os meus estudos no Conservatório de Cinema. Ainda estava no conservatório quando comecei a trabalhar com o Fernando Mato Silva, por exemplo, montando conteúdos para televisão e até documentários encomendados [Cinequipa]. Foi uma fase intensa, repleta de informação – uma verdadeira corrida, mas tudo ótimo. Entre os primeiros filmes que montei, destaco "A Conversa Acabada" do João Botelho (1981). Nessa época, terminei os três anos do curso, que ainda estava a decorrer no conservatório.

Estávamos nos anos 80, numa época em que o instituto não se chamava ICA, mas ICAM ou IPACA – qualquer um desses nomes. O "A" referia-se ao audiovisual, e acabei por estar envolvida nessa transição. Houve uma política de apoio, que talvez tenha começado com o [Alberto] Seixas Santos, focada nas primeiras obras. No início, não havia tanto apoio, mas depois começaram a surgir concursos especiais para as primeiras produções. Eu e os meus colegas também nos inscrevemos, embora eu já tivesse algumas experiências anteriores ao conservatório, tendo vivenciado outras fases da minha vida.

Tinha estado em dramaturgia no teatro, e além disso, fiz um curso de economia, mas sempre mantive uma ligação muito forte com os livros. Gostava muito de ler e, com o tempo, comecei a escrever argumentos para filmes, cenas, situações e gestos. No entanto, naquela altura, isso não teve financiamento. Depois, continuei a acompanhar os meus colegas e as novas pessoas que estavam a surgir no meio.

Na altura “novos”, agora veteranos [risos] …

Apareceram depois do Paulo Rocha e do Fernando Lopes, e havia também o Seixas. Estávamos inseridos naquele núcleo formidável que incluía o António Reis, um ambiente muito inspirador. Transitávamos por ali, muito tocados por essas influências. Para mim, tudo o que falei sobre montagem e sobre a forma de dar aulas está profundamente ligado ao Reis. Naquela altura, no entanto, era mais brincalhona e não sabia bem para onde ia.

O que pensa sobre os novos processos de “montagem”? O digital?

Gosto muito do lado da montagem com película, mas não tenho nada contra as novas tecnologias. O que aprecio é o aspecto táctil da montagem, que não precisa ser necessariamente o toque da matéria. Essa dimensão táctil pode ser uma conexão mais ampla que se estabelece com os filmes, não é? Não sei se isso faz sentido, mas, às vezes…

Sim, pode-se dizer que o filme está dentro de uma bobina; sabe-se que aquilo é o filme, não é um ficheiro. O cinema como matéria, como algo físico, que toma espaço.

Mas é possível um estabelecer com esse “filme de ficheiro”, estabelecer uma relação também de tacto. Mas, pronto, essa ideia do táctil e dos grandes planos vem já desde Griffith e outros. Por falar nisso, há dois dias, vi aquele filme que o Victor Erice fez em Guimarães, chamado "Vidros Partidos" (2022). Viu?

Sim, fazia parte de um conjunto de obras que formavam o “Centro Histórico”, tinha um filme estupendo do Pedro Costa, e outros mais curtos de Aki Kaurismaki e Manoel de Oliveira. O do Erice é emocionante, recordo aquele momento em que se toca o acordeão virado para uma enorme fotografia que juntava todos os trabalhadores daquela fábrica. 

É de chorar, e não sabemos bem porquê. Quer dizer, suspeitamos que tenha a ver com o processo de produção. Mesmo uma coisa tão objetiva e material, de repente, ganha uma dimensão fulgurante, uma intensidade que perdura do princípio ao fim, envolvendo cada uma daquelas pessoas. E, sabendo também o método que foi utilizado na realização, é uma fábrica têxtil que deixou de operar e cujos trabalhadores ficaram desempregados. Não interessa muito o “enredo” agora, mas o que realmente conta é o método de trabalho que o Víctor Erice adotou: ele trabalhou com cada um dos desempregados e, a recolher os depoimentos deles e na reescrita deles. Assim, cada um deles decorou o texto resultante disso e, diante da câmara, recitaram as suas próprias histórias e experiências na fábrica, principalmente o trabalho de fabrico. Esse processo é absolutamente fascinante.

O facto de eles dizerem o texto de cor e notarmos, através das suas expressões, que cada um tem a sua própria maneira de lidar com a representação é incrível. Passa a ser uma demonstração poderosa do que o cinema e a representação podem fazer com as pessoas e as suas situações. Não consigo explicar muito bem essa emoção; é quase inexplicável. Mas é como uma gravidez, algo que se desenvolve dentro de nós. Pronto, agora, não sei por que estávamos a falar disso … [risos]

Vidros Partidos (Victor Erice, 2012)

Mas, ao recuperar essa memória dos “Vidros Partidos”, tem acompanhado o cinema recente? Acha que falta algo ao cinema português de hoje, especialmente? Ou acredita que está no bom caminho, como nos fazem crer?

Acompanho sempre o que vai saindo no cinema, mas não gosto de vê-los logo de início; prefiro esperar um pouco, é como com os livros. Também não gosto de ir às livrarias comprar os títulos que estão em destaque, gosto de adquirir os livros mais tarde. O mesmo acontece com os filmes. Contudo, acho que há coisas boas a surgir. Não tenho uma opinião definitiva sobre todos eles; ou seja, aprecio algumas obras, enquanto outras não me agradam tanto, especialmente em relação à estratégia e à postura do realizador em relação ao que pretende filmar. Mas isso não significa que não reconheça o valor de algumas obras. Por exemplo, gostei muito de um trabalho do Marco Martins que vi na televisão, um filme sobre espectáculos que foram realizados…

“Um Corpo que Dança” (2022)? Do Ballet Gulbenkian?

Talvez, agora não me lembro do título. Um filme muito bonito, repleto de montagem, montagem e mais montagem. Gostei imenso. Mas, pronto, o cinema está muito ligado às experiências que se têm ao ver os filmes. Portanto, habituo-me, nas aulas, a não expressar opiniões de forma unilateral, como se agora fosse dizer se este filme é bom ou não. Nem pensar.

Não puxa os “galões”: “trabalhei com o João César Monteiro, ou algo assim” [risos]? 

Nada disso. E isso não é produtivo, pois só cria facções e divisões. A única coisa que fazia nas aulas era selecionar pedaços de filmes, alguns filmes inteiros, e estar ali a analisá-los em profundidade. A ideia era compreender o que está a ser feito e como se faz, e, acima de tudo, como podemos fazer. Portanto, era uma aprendizagem teórica, focada na teoria da montagem e em todos esses aspectos. O objetivo era resolver problemas, porque há coisas tão difíceis de filmar. Como é que podíamos filmar isso? Ver exemplos era o normal.

E isso permitia, nas aulas, uma oportunidade valiosa: ter uma simbolização do que se pensa. Ou seja, dar aos alunos instrumentos para expressarem o que querem dizer, por palavras, sobre os seus filmes e sobre outros filmes. Passar por esse plano de reflexão é importantíssimo. Eles começavam a perceber ou a gostar — não sei se realmente sabiam —, mas gostavam de dizer coisas que sugeriam e que estimulavam a nossa atenção, pois tudo é uma questão de atenção.

Nas aulas de cinema, a prioridade era captar a atenção. 

Só uma última pergunta, se me permite, para finalizar. Sou bastante curioso: você trabalhou com João César Monteiro [montagem de “À Flor do Mar”, 1986], como já mencionou. Gostaria que me contasse sobre essa experiência? Foi difícil trabalhar com ele?

Não, ele era encantador. 

Estava a montar na Tobis, que era muito giro, porque havia várias salas de montagem, e nós, montadores, pegávamos numa e andávamos de uma para outra, conversávamos, assistíamos a filmes, trocávamos ideias sobre o que fazer ou não fazer nos respectivos filmes ... Era uma verdadeira caverna! E ao mesmo tempo uma comunidade de afinidade e disponibilidade. Havia também muitas sacanices. 

O César veio me dizer que estavam com um problema com o “Silvestre” (1981). Era uma cena enorme filmada em estúdio com o Jorge Silva Melo como ator. Ele falava, falava e caminhava sobre um palco cheio de brita e areia. Eu disse: "Olha, ele está a falar, mas aquilo estava inaudível". Precisavam de ajuda muito concreta para resolver isso, mas era algo bem pontual.

O que aconteceu foi que gravaram N takes para cada fala do Jorge Silva Melo, e era preciso ver as takes e organizá-las na mesa de montagem. Foi preciso dobrar tudo, tirar o som direto — em película tudo era magnético. O Vasco Pimentel estava a trabalhar no som, mas pediram-me esta tarefa específica de retirar aquele som, escolher as takes e sincronizá-las.

Correu muito bem! Conclusão: passado algum tempo, o César me convidou para montar “À Flor do Mar”. Entretanto, tive uma filha e, a certa altura, não aguentei estar separada dela. Uma parte do filme foi montada pelo José Nascimento, e eu ficava inquieta por causa do bebê, já que estava fora de Lisboa

No 11º Olhares do Mediterrâneo a revolução do dia-a-dia faz-se no feminino ... e com Cinema!

Hugo Gomes, 27.10.24

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A Mulher que Morreu de Pé (Rosa Coutinho Cabral, 2024)

Falemos de Cinema, mas também de Mulheres, e da dissociação entre ambos. É com este mote que o Olhares do Mediterrâneo se apresenta, com uma programação forte em filmes e eventos paralelos que discutem o género, as possibilidades e a importância de desvendar um cinema pensado, feito e concretizado por mulheres. Ao ultrapassar a marca de uma década, agora com a sua 11ª edição, o Festival Internacional convida-nos novamente a percorrer as margens do Mar Mediterrâneo, explorando culturas e perspetivas audazes que culminam na arte que tanto valorizamos. Este ano, a Palestina surge não apenas como horizonte, mas como algo tangível através das imagens, já que este olhar traz consigo atualidade, urgência e subversão.

O Olhares do Mediterrâneo arranca no próximo dia 31 de outubro, transformando o habitual “Dia das Bruxas” numa celebração do feminino e da sua cinematografia. O evento prolonga-se até 7 de novembro com várias atividades e exibições em novos espaços, como o Cinema São Jorge, a Cinemateca Portuguesa, o Goethe-Institut e a Casa Comum.

Silvia Di Marco, co-diretora do festival, foi desafiada pelo Cinematograficamente Falando … a descortinar as novidades, a programação de mais um ano e a essência desta importante montra cinematográfica. 

O tema desta edição, "Revoluções Quotidianas", é uma escolha particularmente simbólica no ano em que se comemoram os 50 anos da Revolução de Abril. Pode explicar como se deu a escolha deste tema e de que forma ele se reflecte na selecção dos filmes?

Este ano escolher o tema da “revolução” era incontornável para nós, porque os valores de Abril de democracia e igualdade fazem parte do ADN do Olhares do Mediterrâneo - Women's Film Festival, assim como a ideia de que o quotidiano das mulheres que se empenham pela igualdade tem uma forte carga revolucionária: querer que as nossas vozes sejam ouvidas e não sejam apagadas, que as nossas histórias sejam contadas nos nossos termos e não por outros, é uma revolução que fazemos todos os dias e o Festival é uma forma de ampliar e concentrar a força destas revoluções quotidianas. 

Aliás, não é a primeira vez que trazemos a Revolução ao festival. Em 2021, por exemplo, acolhemos a estreia do documentário “Elas também estiveram lá” de Joana Craveiro. Na programação deste ano uma ideia mais subtil de revolução norteou o programa, exactamente para captar esta ideia de quotidianidade do gesto revolucionário, que é o gesto de quem não se conforma ao status quo, seja qual for. Por exemplo, na primeira sessão de curtas-metragens, a 31 de outubro, apresentamos cinco filmes que questionam o corpo de mulheres e crianças, como ele é vivido e socializado. No documentário “The Desert Rocker”, da argelina-canadiana Sara Nacer, damos a conhecer ao público a vida de Hasna El Becharia, a mulher que transformou a música Gnawa, tradicionalmente tocada exclusivamente por homens. 

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Remember my Name (Elena Molina, 2023)

No filme de encerramento da parte competitiva do festival, “The Girls Are Alright”, da espanhola Itsaso Arana, revela-se o potencial revolucionário de um ensaio de uma peça de teatro numa casa de campo, onde quatro actrizes e uma encenadora usam da palavra no gesto extremamente “feminino” de partilhar vivências  e tecer mundos possíveis em longas conversas imprevisíveis.

O Festival dá especial destaque ao cinema palestiniano, com a secção "Olhares da Palestina". O que motivou a escolha da Palestina como país convidado desta edição e qual a importância de dar visibilidade a estas cineastas, principalmente nos tempos incertos que o Médio Oriente vive hoje?

O Festival chama-se Olhares do Mediterrâneo e é impossível olhar ao e do Mediterrâneo sem ver o que acontece na sua costa oriental. Por isso, sempre nos posicionámos de forma clara relativamente à chamada questão palestiniana. Sem nunca deixar de reconhecer e defender o direito dos judeus a viver em segurança em qualquer lugar do mundo, incluindo Israel, consideramos que a opressão do povo palestiniano é inaceitável e tem de acabar já. 

Os horrores de 7 de outubro de 2023, que o governo de Israel utilizou como carta branca para o genocídio em Gaza, é a razão principal que nos levou a decidir que este ano devíamos ter uma restrospectiva sobre as realizadoras palestinianas. É uma forma de homenagear a vida e o trabalho destas mulheres e ao mesmo tempo oferecer ao público uma oportunidade de descobrir uma cinematografia e uma história amplamente desconhecidas e criar oportunidades de debate. Os filmes que apresentamos são essencialmente filmes da diáspora. Porquê? O que obrigou e obriga estas mulheres a viver fora da Palestina? Muitos deles falam de memória e arquivos perdidos. Que memórias são estas? Porque os arquivos, assim como as pessoas, sofreram uma diáspora ou foram destruídos? Acreditamos que no momento actual é essencial conhecer o trabalho das realizadoras palestinianas para reconhecer a sua humanidade e estamos convencidas de que estes filmes oferecem também  uma oportunidade única para ajudar a compreender como se chegou ao ponto em que estamos no Médio Oriente.

A programação inclui uma forte componente de filmes sobre migrações, colonialismo e racismo. Como é que o cinema pode contribuir para aumentar a consciência sobre estas questões sociais e políticas?

Dando a ver e “sentir”, através do documentário, da ficção, do cinema experimental, as múltiplas facetas das migrações, o colonialismo e o racismo. Apresentando narrativas diferentes daquelas que são habituais. Criando oportunidade de debate e encontro. Despoletar curiosidade, pensamento crítico, mas também empatia. O cinema tem esta capacidade incrível de transmitir conhecimento objectivo e ao mesmo tempo mexer nas nossas emoções, dois elementos essenciais para fomentar a consciencialização sobre questões sociais e políticas.

Com um total de 67 filmes de 28 países, como foi o processo de curadoria para garantir uma diversidade geográfica e temática, especialmente num festival dedicado a realizadoras da região do Mediterrâneo?

Muito trabalho e uma equipa dedicada! A maioria dos filmes são seleccionados a partir de uma chamada. Este ano recebemos cerca de 530 filmes, entre longas e curtas-metragens através desta chamada. Cada um foi visto e avaliado por pelo menos duas pessoas. Além destes, avaliamos mais cerca de 50 filmes que procurámos activamente, vendo quais passaram nos festivais mais importantes e os catálogos de várias distribuidoras independentes. Para os “Olhares da Palestina” contactámos vários arquivos e a selecção foi feita em colaboração com a equipa da Cinemateca Portuguesa.

Este ano, o festival traz várias estreias nacionais e até uma estreia mundial com o filme português "A Mulher que Morreu de Pé", de Rosa Coutinho Cabral, envolto da influência e pensamento da escritora Natália Correia. Gostaria que me falasse dessa estreia e a sua importância num festival como este?

Foi um achado! Nós estávamos já a fechar a programação e a Rosa Coutinho Cabral estava ainda a acabar de montar a versão definitiva do filme quando nos contactou. Pensámos logo que era uma oportunidade imperdível: homenagear a Natália Correia no Festival no ano do 50º aniversário de 25 de Abril tem algo de especial para nós. "A Mulher que Morreu de Pé" é um documentário-ensaio visual fascinante e a sua estreia no Festival será também uma oportunidade para pensar no legado da Natália como pensadora e artista revolucionária, que viveu e pensou de forma autónoma todas as questões, artísticas e políticas, inclusive na sua relação com o feminismo da altura. 

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A realizadora Farah Nabulsi durante a rodagem de "The Teacher" (2023) / Foto.: Omar Al Salem

O filme de abertura, "The Teacher", de Farah Nabulsi, aborda a complexa questão da violência na Cisjordânia. Que impacto espera que este filme tenha no público português, especialmente no contexto de um festival dedicado às revoluções quotidianas e no vivenciado zeitgeist?

Trata-se de um filme que, a nosso ver, mostra a situação atual na Cisjordânia de forma honesta e equilibrada, tomando claramente uma posição, mas sem desumanizar o outro lado, e questionando a violência como forma de luta. Gostaríamos que o filme oferecesse ao público português a oportunidade de conhecer uma realidade que muitos desconhecem e que atingisse o objectivo da sua realizadora, a britânica-palestiniana Farah Nabulsi, de levar os espectadores numa viagem intensa e emocional dentro das vidas dos protagonistas do filme, que faça reflectir sobre as escolhas e decisões que as personagens tomam e a realidade cruel em que essas decisões são tomadas.

Além das exibições, o festival oferece uma programação rica em workshops e debates. Pode destacar quais as iniciativas paralelas que considera significativas nesta edição?

Sem dúvida os debates sobre colonialismo. São dois, o primeiro na sexta-feira, 1 de Novembro, pelas 16h, à seguir à projecção do documentário “Maria India - Genealogia de Migração e Colonização”, moderado pela jornalista Joana Gorjão Henriques. O segundo, no domingo 3 de Novembro, pelas 18h, intitulado “Colonialismo/Decolonialismo e as Suas Representações”, no seguimento de uma sessão de quatro curtas-metragens que tocam de forma diversa este tema. Em Portugal é impossível pensar a revolução sem pensar no passado colonial do país, portanto estes debates são particularmente importantes. 

Incontornável também o “Debate Travessias” deste ano, cujo tema será a migração de menores não acompanhados e contará com a presença da realizadora do documentário “Remember My Name”, a espanhola Elena Molina. Entre os workshops assinalamos “Género, Autoconhecimento e Empatia”, a 31 de Outubro, com Laura Falésia e André Tecedeiro, da associação Flecha, o workshop Gender Stereotypes and Sexism in Films”, sábado, dia 2 de Novembro de manhã, organizado no âmbito do projecto “Olhares do Mediterrâneo with Eurimages For Equality” e, numa nota mais leve, a Oficina de Cantos do Mediterrâneo, no mesmo dia à tarde, que o ano passado teve grande sucesso.

Sendo o mais antigo festival de cinema no feminino em Portugal, quais foram as principais mudanças que notou no panorama do cinema realizado por mulheres ao longo dos últimos 11 anos? E para onde o Olhares irá “olhar” nas futuras edições?

Há cada vez mais filmes realizados por mulheres e a sua visibilidade vai aumentando, o que nos anima muito. Ao mesmo tempo, as mulheres continuam a ter problemas de acesso aos financiamentos mais substanciais, que tipicamente servem para poder realizar longas-metragens de ficção. O que é muito interessante é que aumenta a capacidade e a vontade das cineastas de se organizar ou criar redes para melhorar e reforçar as suas condições de trabalho, como é o caso da MUTIM - Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento aqui em Portugal

Relativamente aos filmes que apresentamos no Festival, continuamos a notar que os que entram através da chamada para filmes variam muito consoante os anos e o zeitgeist do momento, mas há temas, nomeadamente os que dizem respeito às relações humanas e familiares nas suas múltiplas vertentes e manifestações que continuam a ser recorrentes, confirmando a necessidade das realizadoras de explorar o quotidiano e o privado como elementos fundadores do colectivo e do político. 

Nos próximos anos continuaremos a olhar com muito cuidado para tudo o que acontece, cinematograficamente falando, mas não só, à volta do Mediterrâneo, especialmente ao Sul e ao Leste, mas não excluímos a possibilidade de alargar as nossas fronteiras a outros horizontes. Estamos a criar redes com vários festivais de cinema feito por mulheres e esperamos que em breve isto nos permita criar novas actividades, como, por exemplo, residências artísticas.

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Toda a programação e informação aqui

Consolidar um legado: Doclisboa arranca com nova direção e para novos rumos

Hugo Gomes, 17.10.24

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Entre as novidades desta 22ª edição do Doclisboa, a maior de todas é claramente a presença da mexicana Paula Astorga, ex-produtora e ex-diretora da Cinemateca do México a assumir a liderança do festival neste 2024, cheio de riscos, despedidas e comitivas de boas-vindas a frescos olhares e autores e os habitués. O Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa recorda o crítico e programador Augusto M. Seabra, voz e corpo da secção de Riscos, uma das mais badaladas da história do evento, e que semeou os rumos que vingariam no formato, a homenagem é sentida e garantida, e até mesmo Astorga, não o conhecendo pessoalmente, dirige-lhe com uma respeitosa vénia ao seu legado. 

Paul Leduc (1942-2020), o cineasta mexicano e experimental nas diferentes vias cinematograficas, que tem uma das raras retrospectivas fora do México, e o brilho dos olhos na diretora ao referir a sua obra é por si só uma conquista, os habituais cantos da casa; Heart Beat, da Terra à Lua, Competição Nacional e Internacional, Verdes Anos e Harmony Korine com o bizarro “Agro Dr1ft”, o futuro do cinema? Enquanto oportunidade única. 

Paula Astorga recebeu o Cinematograficamente Falando … no “quartel general “ do festival na Culturgest, numa longa conversa sobre filmes, secções, autores e beleza cinematográfica. As seguintes vinhetas são extractos desse mesmo encontro, para alimentar o apetite nestes próximos 10 dias de janelas para o Mundo. Aquele que é de facto um dos mais importantes festivais de cinema da nossa praça.  

GS400377_post-scaled.jpgPaula Astorga

A Tocha … depois de Seabra

Esta não é a primeira vez que dirijo um Festival, e no fundo, adoro o conceito de Festival de Cinema que são espaços necessários que articula, cada vez mais pertinentes e integrados naquilo que encaramos como o ecossistema da vida dos filmes. 

Para mim receber o Doclisboa foi com grande prazer, porque é um festival de uma identidade bastante definida. São 22 edições e é um momento maravilhoso, porque ainda é um evento jovem mas com este número de edições já requer uma certa responsabilidade, um jovem adulto que sabe o que é e o que deseja ser. Um festival com uma audiência construída e claramente sabe o que quer dizer. 

Nestes 22 anos, o Doclisboa atravessou e testemunhou imensas mudanças, seja da indústria, de uma pandemia que vivenciamos recentemente, ou geracional. Nisto vemos um festival que pede renovação frente às abordagens frescas incentivadas pelas redes sociais, com as plataformas e com o surgimento de novas linguagens cinematográficas, sempre mantendo o rigor da programação que sempre nos habituou. É isso que significa ser um festival adulto.

Um festival que proponha Cinema, que fale-nos de política, do social, do Mundo em nosso redor, mas que não tenha medo do poético, que crê na beleza, no cinema enquanto arte. Isso são pontos intocáveis no Doclisboa

Portanto, receber o legado deste festival é também uma grande responsabilidade, e como tal devo manter e proteger os seus valores. A minha chegada deu-se com a despedida de Augusto M. Seabra, uma  voz predominante neste festival e fundador da secção Riscos, o qual sem essa secção não haveria Doclisboa. Nunca tive a oportunidade de conhecê-lo, mas parece-me que o seu pensamento crítico e a sua aposta nas equipas de programação tornaram esta despedida muito contundente para as estruturas do festival.  

Como tal, chego numa altura em que se solicitava novos rumos, novas ideias sem nunca perder a sua personalidade tão vincada. O meu papel é consolidar a ideia de um legado. 

Reed.-Insurgent-Mexico.jpgReed, México insurgente (Paul Leduc, 1970)

Paul Leduc, "nuevas miradas"

Quando estávamos a discutir a retrospetiva deste ano, pareceu-me evidente, e em certa parte um statment politico e não só, apresentar um cineasta mexicano. Mas mais do que ser mexicano, Paul Leduc a condizer com esta nova ideia de festival, porque não só experimentou os mais diferentes cantos, quer documentais, quer ficcionais - e até animação ["Los Animales", 1994]! - como também era um homem de esquerda, bastante político, sem nunca descartar o seu lado artístico. 

Foi autor de um dos primeiros retratos da artista plástica mais importante do México com "Frida, naturaleza viva" (1984), demonstrou as revoluções sócio-culturais, o seu latino-americanismo, o seu pensamento político e artístico, a geografia e a etnografia como foi o caso de "Etnocidio. Notas sobre la región del Mezquital" (1976), em que segue para território indígena. Em "Historias prohibidas de Pulgarcito" (1980), aborda a guerra civil de São Salvador sob o olhar do poeta Roque Dalton e do seu homónimo livro, ou por outro lado, na ficção, adaptaria os contos do escritor brasileiro Rubem Fonseca com "Cobrador: In God We Trust" (2007), com o ator Peter Fonda, que estreou no Festival de Veneza

O meu papel seria traduzir o que transmitia o Doclisboa, quer no seu pensamento político, papel social, estético, um festival que celebra autores e memórias, por exemplo, há uns anos tivemos uma retrospectiva do colombiano Luis Ospina o qual consolidava todas essas ideias, Leduc não estava longe disso, aliás dialogava com todos esses pontos. A Cinemateca após ter recebido a proposta deste ciclo - um dos mais completos do autor e e a primeira a ser realizada na Europa, com cópias restauradas - reagiram com bastante agrado. 

Posso garantir que é um ciclo alucinante, Paul Leduc era um autor ecléctico e prolífico no contexto completamente adverso para o cinema mexicano. Julgo que não haveria espaço melhor para honrar a sua memória do que o Doclisboa.

66fb0c5b85b6e.jpgSempre (Luciana Fina, 2024)

Competições, diálogo ao invés de concorrência … a cinematografia portuguesa como parte do Mundo

Em relação à Competição Internacional posso, antes de mais, revelar a minha surpresa e gratidão com a equipa de programação e artístico do Doclisboa. Este anos contamos com Cíntia Gil e Justin Jaeckle enquanto programadores associados, mas a Competição Internacional passou por todo nós, e foi uma seleção difícil de ser consolidada, porque o festival tem um sentido muito particular de encontrar quais os filmes que integrar o espírito do nosso espaço, fugimos do temático e do manipulador, e construímos pontes com a beleza, com as possibilidades de Cinema. 

Quando olho para esta selecção vejo isso, um cinema contemporâneo que persegue os horrores, os cantos tenebrosos, mas que mesmo assim encontra beleza na maneira de transmitir as suas histórias, mesmo sob cargas dolorosas, e o nosso ponto era ter uma linha de filmes que celebram, mais que tudo, o Cinema e com alguns autores não estranhos por este festival. Esforçamos para entregar aos espectadores uma seleção que dialoga entre eles, que vale a pena descobrir. 

Em relação à Nacional, enquanto mexicana os meus anteriores contactos com o cinema português foram em curadorias minhas, digo minha mas obviamente tive uma equipa de programadores associado, a retrospectiva de Miguel Gomes na Cinemateca Nacional ou o ciclo de Pedro Costa quando dirigia Festival Internacional de Cinema Contemporâneo da Cidade do México, distribui o "Tabu" de Miguel Gomes com a minha empresa e mais tarde o seu "Mil e uma Noites". Mas o meu relacionamento com o cinema português, o qual ia entendendo através dos grandes importados, tem um lado mais íntimo que para mim foi um prazer em descobrir. Na Competição Nacional temos seis co-produções, o que para mim é um sinal importante, porque demonstra um cinema que está a relacionar com o restante Mundo, e que está pactuando com uma visão global.

Já fora da Competição, gostaria de referir "Sempre" de Luciana Fina [Filme de abertura] e a minha experiência enquanto mexicana. O que é a História de Portugal Contemporânea a ser recontada de uma maneira que me faz querer saber mais. Vejo uma sociedade com os problemas do Mundo, os feminismos, as revoluções, os ideais, e vindo de uma país latino-americano como o México, essas imagens é como experienciar um parte da minha própria História, mas como não é realmente é aí que alimenta a minha curiosidade a partir da própria ideia do cinema numa investigação que quanto a mim, é impecável. E no ato consolidador para com novas visões, revisitando a sua História, apropriando-as e contextualizando-as, portanto, as suas memórias recentes, é algo que vibra com a razão do Mundo e que tem uma coerência maravilhosa. 

MV5BNTViYTI5YjEtOTgzMS00YjM1LTllNWEtMTg4M2EzNzYyMDAgro Dr1ft (Harmony Korine, 2023)

“Agro Dr1ft”, Harmony Korine (ar)riscado …

Esse é o futuro! Sim, tem uma linguagem videogame, é a desconstrução do código da violência nesta contemporaneidade e sem filtros, e falando em nome do Doclisboa, estamos inteiramente satisfeitos com a possibilidade de o projetarmos em sala de cinema. “Agro Dr1ft” é toda uma experiência visual, evidentemente, não necessariamente gratuita, porque infiltra-se em ti e a tela grande é literalmente uma oportunidade para o experienciar. Acredito que é uma obra que conflui, digamos, de todas as distorções da ideia da pós-verdade, da pós-violência, dos tratamentos e da intervenção da imagem até à última consequência. Além do mais, o Doclisboa tem uma relação com o cinema de Harmony Korine, portanto, seria imprudente deixar escapar esta secção especial.

Doclisboa arranca hoje (17/10), prosseguindo até dia 27, na Culturgest, Cinema São Jorge, Cinema Ideal e Cinemateca, a programação completa poderá ser consultada aqui

Margarida Gil: "sempre fugi do real, porque para mim o real não é suficiente."

Hugo Gomes, 03.10.24

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Mãos no Fogo (2024)

Chega às salas portuguesas “Mãos no Fogo”, a mais recente e premiada obra de Margarida Gil, cineasta que tem habitado produções austeras nos últimos tempos. No entanto, talvez habituada a este ambiente ou sentindo-se confortável com a intimidade que ele proporciona, afirma não se importar. Afinal, o "cinema pobre", como a própria define, é a sua arte.

Neste trabalho, vencedor do Prémio de Melhor Longa-Metragem na 21ª edição do IndieLisboa, Gil mergulha no lado sombrio e contido do mal presente no clássico de Henry James — “The Turn of the Screw —, readaptando-o à sua realidade. Uma palavra curiosa, "realidade", visto que, nesta versão, seguimos uma estudante de cinema com o sugestivo nome Maria do Mar (Carolina Campanela), que se instala num casarão algures no Douro, com a ambição de consolidar a sua tese sobre o "real no cinema". À medida que os dias passam, a presença fantasmagórica da casa leva-a a questionar a sua própria realidade e a dos seus atos. Será que a queda de Maria do Mar representa, simbolicamente, um gesto de Gil contra um determinado tipo de cinema?

Foi numa solarenga e escaldante tarde de Setembro, na esplanada da Cinemateca, que a realizadora falou com Cinematograficamente Falando … sobre ideias, oposições e o cinema em que acredita — mesmo que, para isso, tenha de meter as suas mãos nas brasas.

Gostaria de começar com a génese deste projeto, de onde veio a ideia para readaptar … talvez não seja a palavra indicada, ou melhor … trabalhar o livro de Henry James?

Se me perguntares de onde vem, nem sei dizer, porque acho que ninguém é capaz de responder a essa pergunta. Pelo menos, não sou capaz de a responder. Às vezes vem de sonhos, ou de uma visão que se tem. Neste caso, de um livro que me marcou. Depois, nunca foi tanto o livro em si, mas algo que ele me transmitiu. Aquela violência, aquele mal que nunca é por acaso. Interesso-me muito por questões sobre a maldade. Sobre o porquê de se fazer o Mal. Porquê se maltrata? Porquê essa relação maléfica com a vida e com os seres humanos? No fundo é a história da vida. Essa questão, que também é a história do Poder, em que as criaturas exercem o Poder, e normalmente o mal está associado a isso. São questões que me envolvem sempre no cinema. Neste caso, a questão das crianças que são, ou não, cúmplices naquela situação toda, o qual considero o auge da maldade: essa fusão de criaturas indefesas com o Mal. Parece-me a expressão mais maléfica do Mal. E isso deixou-me com uma sensação de indignação insuportável.

Provocou-me uma reação, porque é sempre uma irritação. Não há uma única vez que leia o livro sem ficar profundamente irritada. Aliás, o Henry James, escritor que considero superlativo, tem o condão de me irritar imenso. Já a Agustina Bessa-Luís também me afeta profundamente. São escritores que me deixam possessa, por um lado, pela sua grande imperfeição – que, aliás, adoro –, por deixar tudo em aberto. Essa é a perfeição deles. Será voluntária ou não? As coisas são enunciadas, subentendidas... Há uma necessidade imensa nisso. Estou a referir-me aos dois, mas não sei se o que digo faz muito sentido... É qualquer coisa assim. Mas agora que falo nisto …

Curiosamente ia falar sobre a “presença”  de Agustina Bessa-Luís no seu filme, acho curioso ter a mencionado.

Está no ar, parece que é natural. E essa coisa, do “parece que é natural”, irrita-me muito.

Sim, pegando, por exemplo na “Sibila” da Bessa-Luís, há toda a normalização da má-índole nas personagens …

Como me irrita, é verdade. O Henry James deixa-me sempre perplexa, porque acho que ele é genial. A forma como conta, como esconde... aquela habilidade de ocultar o mal. Ele é o escritor que, por acaso, mais tarde descobri que tinha algo de muito Shakespeareano, muito Hitchcockiano. E, um dia destes, ouvi o Hitchcock dizer que o escritor que ele achava que melhor compreendia o seu cinema era de facto o Henry James. E esse lado perverso que o escritor tem, não há dúvida. A Agustina também o possui, sem dúvida. E o Hitchcock, obviamente. Mas, curiosamente, acho que não tenho esse lado. Contudo, fico fascinada por isso.

Provavelmente, há muitas explicações, mas sinto que acabo por derivar para um lado mais solar, mais "Renoiriano", se calhar. Enfim, quem me dera... Já sou eu a “armar-me aos cucos”.

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Margarida Gil no Festival de Berlim

Sobre essa questão da perversidade, há um ponto interessante, especialmente porque a protagonista é vegetariana, e o primeiro contacto que ela tem com a casa é através da cozinha, onde encontra a cozinheira, Adelaide Teixeira, prestes a preparar um peru. Ou seja, logo ali temos uma relação mefistofélica. Depois, é através do cinema, das filmagens, que ela vai desvendando a diversidade e as complexidades daquela família. Portanto, a perversidade, apesar de você dizer que não a tem, está sempre lá presente.

O assunto interessa-me muito, mesmo que não tenha necessariamente essa perversidade em mim. No entanto, quase todos os meus filmes possuem esse lado, ou pelo menos algo próximo disso. É um tema que me fascina. A rapariga, com a sua candura quase tocante, tem uma visão tão particular do mundo que acredita que o que filma é a realidade, e que o real é aquilo que os seus olhos captam e que é possível filmar. O que ela vê é o que existe, tal como muita gente me diz. Há muitas pessoas que vivem convencidas de que aquilo que veem com os seus próprios olhos é a vida, como se a perceção visual fosse a única verdade.

Que a verdade é só isto que nós vemos, e não há nada mais …

É mais daquilo que nós não vemos. Acho que essa candura da personagem foi a minha pequena traquinice. É como puxar o “tapete”, porque o que está lá debaixo, é o que ela não vê. Mas o percurso que faz, como num "road movie" dentro da casa, acaba por embater com a vida, tal como acontece na realidade. As crianças, que podem ser bastante malvadas, são também quem mais acredita em tudo. Para uma criança, tudo é possível: o elefante voa, as estrelas levantam voo da água ... Para elas, tudo isso é real. Acho isso uma das coisas mais bonitas do mundo.

No entanto, à medida que vão crescendo, começam a encarar a realidade de outra forma, cedendo, cedendo, cedendo, até que o único real que reconhecem é aquele que podem ver e tocar, e aí perdem o encanto. Quando o perdem, começam a participar, de forma mais consciente ou lenta, no Mal, até ao ponto de fusão, como faz Henry James. Mas no meu caso, não o faço assim. Há um ponto em que a personagem está quase a mergulhar nesse Mal, quase a fundir-se com ele. Já estive tentada a seguir esse caminho no filme, mas  depois pensei ... não posso perpetuar isso. Tive que tomar uma posição e, nesse momento do filme, tomei-a.

Sobre essa questão do cinema e do real, que é justamente o que a Maria do Mar defende – já voltaremos ao nome, que também acho uma escolha curiosa – a tese dela é precisamente sobre o real. Ela acredita piamente naquilo, mas ao longo do filme vamos percebendo que as suas convicções são postas em causa. Há um ponto muito curioso no seu percurso, que talvez seja o que mais gostei no filme: ela acredita nesse cinema do real, mas o filme, esteticamente, é construído de forma a parecer uma fábula, uma fantasia. Como disse, tem algo de encantado.

E, olhando para muitos dos movimentos artísticos do cinema contemporâneo, o foco está muito no realismo, na tentativa de capturar a ideia do que é o real. Mas o problema não está no real em si, está na ideia do que se pensa ser o real e isso acaba por despir os filmes do seu lado estético, da sua magia. O que fez foi uma pequena provocação, porque, enquanto a Maria do Mar acredita nessa visão crua do real, o filme esteticamente caminha noutra direção, quase como um “conto de fadas”. É uma contradição que, de forma subtil, questiona essa obsessão moderna pelo realismo e desafia a própria noção de verdade no cinema.

Sim, o filme está cheio de provocações, e essa do peru é um ótimo exemplo. Tenho um prazer especial em "tirar o tapete" ao espectador, e ele escorrega com facilidade nas cascas de banana que vou deixando de lado. Dá-me gozo, é o meu lado sádico, essa ideia de que a pessoa está confortável, convencida de que entende o filme, e de repente eu lhe tiro o chão debaixo dos pés. Interessa-me tanto a técnica quanto a visão, porque sou assim. Gosto do contrassenso. Do que não se vê com os olhos abertos. Acredito muito mais no sonho, no inconsciente, naquelas coisas que não conseguimos explicar, mas nas quais acreditamos. Acredito com convicção. Acho que nunca perdi isso.

Tenho uma confiança total quando sinto que algo é assim, seja porque sonhei, ou porque não sei explicar, mas simplesmente sei. E vou até ao fim. Por vezes, o que surge parece tão estapafúrdio que até chego a pensar: "Mas será que isto faz sentido?", para perceber posteriormente que faz, e as pessoas entendem. Não são estúpidas, percebem o que está lá, ainda que por um caminho menos direto.

Quanto ao cinema do real, não tenho nada contra, apenas acho uma visão limitada. E, mais do que isso, é uma forma de hubris, aquela arrogância que, na cultura grega, o homem tem ao enfrentar os deuses. Quando se faz o chamado "cinema do real", parte-se do princípio de que se pode filmar o real, como se o real fosse apenas aquilo que se pode captar com a câmara. Esses hubris, essa arrogância, as pessoas nem se dão conta de que a têm.

Se me responderem: "Ah, mas Kiarostami fazia ‘cinema do real’?" Não sei se era bem assim. Adoro todo o seu trabalho, e posso garantir que aquilo não é de todo “cinema do real”. Agora, os Dardenne, esses sim, e o cinema deles já não me interessa tanto.

32.jpgMãos no Fogo (2024)

Fiz televisão durante muitos anos como também documentários, aquilo que se poderá chamar “cinema do real”. Mas sempre fugi do real, e de forma automática, porque para mim, na verdade, o real não é suficiente. Não me chega. Preciso de voar, de fazer as criaturas reptilianas ganharem asas. A Humanidade fez isso ao longo da evolução: os peixes saíram da Terra, os répteis voaram e viraram pássaros, transformaram-se e sobreviveram. Porque é que nós não podemos fazer o mesmo?

Falando no documentário, que no senso comum é considerado o auge do realismo em cinema. Há uma crença quase inabalável no que está lá, no que é mostrado. Mas mesmo no documentário, como no caso do seu “O Fantasma do Novais” (2012), tentou evitar esse absolutismo. Nesse filme, mistura o lado de investigação – quem foi Joaquim Novais Teixeira? – com uma dimensão de ficção ou semi-ficção, através da Cleia Almeida, que performaticamente representa essa descoberta. 

Nos meus primeiros filmes, direcionados para televisão, e em película deve-se acrescentar, são considerados documentários, mas na verdade, têm muito pouco de documental. No entanto, são considerados como tal. Como, por exemplo, em “Para Todo o Serviço” (1975), sobre as criadas de serviço e o sindicato de formação para o trabalho doméstico, vou ao encontro da primeira aprendiz desse tal sindicato, uma antiga criada de Salazar ... e tudo aquilo é o mais real possível, é totalmente real, as pessoas, as suas histórias, no entanto, é totalmente ficcionado. Elas estavam a representar os seus próprios papeis, aquilo que faziam na vida real, desempenhavam-no em frente à câmara.

Foi das primeiras ‘coisas’ que fiz, e ninguém me questionou, censurou ou alcunhou aquele meu trabalho de “falso documentário”. Até porque essa questão simplesmente não existe para mim.

O que é que poderemos considerar um “falso documentário”?

Um falso documentário... O que é isso, afinal? Um falso documentário? Pois, é como um falso comentário, uma caricatura.

Sim, é visto como uma caricatura, mas a questão é que, hoje em dia, utiliza-se muito o termo 'falso' para descrever algo gerado pela encenação. Contudo, não há nenhum documentário que não tenha tido a percentagem de encenação, nem que seja de previamente pensado. “Nanook”, por exemplo, tendo o título de “primeiro documentário”, foi um objeto assumidamente encenado por Robert Flaherty. 

Mas a ficção também não é documentário? Quando filmamos os atores, quem são eles? Bonecos digitais? Estou a fazer um documentário sobre a pessoa que está a interpretar uma personagem específica. Há muitos documentários dentro da ficção. Ou seja, essa barreira não é produtiva, é pouco interessante. Serve para fazer festivais de “cinema do real”, grupos de “cinema do real”, teses sobre “cinema do real”, e depois, qualquer dia muda-se para uma outra coisa. Já ninguém faz documentários sobre cinema de ficção, o que faz sentido. Pronto, o documentário do “cinema do real” ... sempre me pareceu uma ideia forçada. Esta irritação não é de agora, sempre me fez rir essa coisa do “cinema do real”. Não quero ofender ninguém, porque sei perfeitamente que há muita gente que vai discordar…

Gostaria que me falasse o nome da personagem de Carolina Campanella, Maria do Mar.

Simplesmente porque gosto muito desse nome … [risos]

Pergunto porque Maria do Mar leva-me por vários caminhos, especialmente dentro do cinema português. Faz-me pensar no filme “Maria do Mar” de Leitão de Barros, passado em Nazaré. 

É um filme lindíssimo!

E com uma forte carga de erotismo, especialmente naquela cena do salvamento. Mas também porque a sua última longa-metragem chama-se, exatamente, “Mar” … daí a minha questão, se existe uma ligação consciente.

É tão português, e ao mesmo tempo não conheço ninguém com esse nome … Mas não impede de o achar um tão belo nome, tão extravagante de facto. Digamos que pode ter sido uma situação inconsciente, perfeitamente. Mas não vou afirmar que é, porque isso seria presumir algo falso.

36.jpgMãos no Fogo (2024)

Em relação aos recursos disponíveis para fazer este filme, fiquei com a impressão de que, comparando com as suas obras anteriores, especialmente as mais recentes, estamos perante um aumento orçamental.

Não, foi exatamente o mesmo. Não me vou queixar de ter pouco dinheiro. Não quero voltar à pobreza de antigamente, acho que posso fazer cinema pobre, mas não cinema ... para pobres. Sempre trabalhei com muito poucos meios, contudo, gosto de trabalhar com boas câmaras, com a melhor equipa que existe, mesmo que isso seja caro. Sou bastante rápida e preparo tudo muito bem, mesmo que mude tudo … na véspera [risos]. Por vezes, meto um bocadinho de medo às assistentes, mas não o faço de propósito, porque confio nas suas qualidades. Já sabem é que à noite vão receber uma mensagem com as tais alterações [risos].

O “Perdida Mente” foi quase todo improvisado a partir de uma ideia apenas. O “Cavaleiro Vento”, o mesmo procedimento, aliás nasceu de um sonho …

A do cachalote a voar sob o Pico?

Precisamente …

Eu, sabendo a equipa que tenho, que é tão boa e preciosa, tenho confiança em mim e sei que eles podem confiar. Não cedo, sigo o plano de trabalho, e até tenho tendência a simplificar as coisas. Não sou dada a muitos caprichos; quando é preciso, sou convincente, e não preciso de ter muitas exigências. Faço filmes que considero bastante baratos. Portanto, não sou uma cineasta que se sai caro [risos], sei exatamente o que existe e, não … não sou excessiva. A minha escola é a de João César Monteiro, e não é por acaso que se vive com um realizador assim durante tantos anos; sempre tive inclinação para isso. Filmava tudo e aproveitava todo o material que filmava na televisão. Tudo. E filmava um para um. Nunca percebi isso de os cineastas precisarem de fazer muitas takes.

Então é só uma take e pronto?

Não digo que faça apenas uma take, pronto. Isso depende dos atores. Mas tenho tendência a fazer muito poucos takes, e geralmente é na primeira.

Também não é dada a decoupagem?

Depende muito dos filmes, mas normalmente sei aquilo que quero e faço um esboço. Depois adapto tudo conforme necessário. Não tenho feito muitos directos para televisão, mas isso não me preocupa. Adaptar à luz, por exemplo, e ver os atores a seguir por ali é maravilhoso. Porém, tenho tudo planeado; tenho uma carta na manga, por segurança, porque, se não tivesse, não conseguiria dormir. Preciso disso.

Falando em atores, o seu “Mãos no Fogo” tem uma força gravitacional no seu interior que se chama Rita Durão, um papel alucinado e sinistro …

É Henry James puro e duro... ela é a incorporação desse espírito.

A personagem da cozinheira também é muito Henry James, mas a da Rita Durão não existe no livro; em vez disso, há a de um tio. A questão do Henry James está relacionada com o fato de que muitas daquelas personagens não existem realmente; é um truque do autor. Ele mostra uma 'coisinha' e depois desaparecem, ficam apenas a insinuar, a assombrar. A do Marcello [Urgeghe] também é uma mistura de várias personagens da obra.

Mudando drasticamente de assunto, tem existindo um movimento, especialmente aqui na Cinemateca, que é o de resgatar alguns cineastas que estiveram connosco, principalmente a geração que começou a filmar nos 70 e 80, tirá-los do esquecimento. Este ano, recordo, houve um ciclo do Fernando Matos Silva, da Monique Rutler, e do José Nascimento, mais tarde, gerando exaustivos catálogos sobre as suas obras. A Margarida Gil acredita que terá lugar num ciclo destes ou espera que não?

Não [risos]. Peço, por favor, que não façam. [risos] 

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Mãos no Fogo (2024)

Já houve um festival que lhe dedicou um ciclo, o FESTin

Sim, a divulgação para esse ciclo foi escassa, mas louvo a iniciativa e a intenção. Só que tudo isso dá-me um sabor de … postumum. Penso que se deve dar atenção na altura, um pouco como aquela frase que o João César Monteiro sempre usou: “tarde piaste”. 

Por enquanto, espero continuar o mais possível a produzir, portanto, não quero distrações. E são distrações algo narcisistas, não preciso,tenho sido bastante bem tratada, exceto no cinema a certa altura, mas já estou mais que habituada.

E quanto a novos projetos?

Tenho, mas sou demasiado supersticiosa para falar sobre eles. Dá-me azar. [risos]

"Elas Fazem Filmes", e fazem mesmo!: Mostra de realizadoras segue pelo país fora através da MUTIM

Hugo Gomes, 18.09.24

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Frágil como o Mundo (Rita Azevedo Gomes, 2001)

Arranca hoje (18/09) a mostra itinerante “Elas Fazem Filmes” - uma colaboração entre a associação MUTIM (Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento) e a Cinemateca Portuguesa, com o apoio do ICA. A mostra parte da “casa-mãe”, o Museu do Cinema, com uma sessão dupla: Cães que Ladram aos Pássaros, curta-metragem de Leonor Teles, e a segunda longa-metragem de Monique Rutler, “Jogo de Mão”, cineasta a ser redescoberta, e prossegue com a ambição de chegar a 14 cidades de todo o país até julho de 2025, trazendo uma coleção de obras, célebres e algumas esquecidas que merecem uma nova apreciação, todas dirigidas por mulheres - cineastas portuguesas que desafiam o cânone ou oferecem uma um novo olhar sobre a História do Cinema Português.

A mostra inclui fragmentos de Barbara Virginia, indiscutivelmente a primeira mulher realizadora em Portugal, com “Três Dias sem Deus” (dos 102 minutos, só restam atualmente 25), a inaugural produção portuguesa a competir no Festival de Cannes. Inclui também as primeiras obras de Rita Azevedo Gomes (“Frágil Como o Mundo”, 2001), Manuela Viegas (“Glória”, 1999) e Margarida Gil (“Relação Fiel e Verdadeira”, 1987), documentos históricos de Raquel Soeiro de Brito (“Erupção Vulcânica dos Capelinhos”, 1958) e de Ana Hatherly (“Revolução”, 1975), animação (trabalhos de Laura Gonçalves, Regina Pessoa e Alexandra Ramires) e documentário (Catarina Mourão, Cláudia Varejão ou Susana de Sousa Dias), entre outros. Um verdadeiro “espectáculo de variedades”, uma montra polivalente de filmes cujo único elo comum é o facto de terem sido conduzidos, concebidos e produzidos através do trabalho árduo e dedicação de mulheres.

O MUTIM disponibilizou-se a responder a algumas questões do Cinematograficamente Falando… não só sobre o ciclo itinerante, como também sobre as projeções e ativismos que “Elas Fazem Filmes” pretende alcançar, bem como sobre a natureza e a estrutura do coletivo. Mariana Liz, professora e co-autora do livro “Realizadoras Portuguesas: Cinema no Feminino na Era Contemporânea”, e Marta Fernandes, distribuidora e programadora [Midas Filmes], aceitaram o desafio, e respeitando o espírito do movimento, falaram em nome de todas, e não apenas uma. Assim, o MUTIM assume uma entidade coletiva e própria neste informativo diálogo. 

Qual foi o impulso inicial para dar vida à mostra “Elas Fazem Filmes” e quais os obstáculos enfrentados ao longo do processo de curadoria e produção?

Desde a sua criação em Abril de 2022, que a MUTIM promove sessões de filmes realizados por mulheres, sessões que contam com debates e a presença sempre que possível de realizadoras ou membros da equipa e de outras profissionais que possam discutir os filmes. As sessões começaram em Lisboa, em parceria com o Goethe-Institut, e mais tarde passámos também a promovê-las no Porto, em conjunto com a Casa das Artes. O ano passado e depois das conclusões do estudo do meio sobre “A Condição da Mulher nos Sectores do Cinema e Audiovisual em Portugal achámos que devíamos criar uma iniciativa que nos permitisse promover o cinema feito por mulheres em Portugal, mas também discutir a nível nacional e com os espectadores as conclusões a que o estudo chegou. As mulheres ganham menos, ocupam menos cargos de chefia, tem mais entraves à progressão da carreira, são vítimas de discriminação de género, assédio, racismo. 

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Jogo de Mão (Monique Rutler, 1983)

Relativamente aos entraves, o apoio que conseguimos do ICA, sendo fundamental para levarmos a cabo a mostra, foi, infelizmente, inferior ao solicitado e por isso não nos permitirá ir a tantas cidades como ambicionávamos. E no processo de programação, existiram também filmes que gostaríamos muito de ter incluído, mas que não foi possível por uma questão de inexistência de cópias disponíveis ou por questões de direitos. 

A mostra reúne cineastas de diferentes gerações, de géneros como também de movimentos artísticos. Como se deu a seleção dos filmes e de que modo acreditam que essa diversidade de perspetivas traduz o panorama do cinema português à luz das mulheres?

A programação da mostra “Elas Fazem Filmes” foi, como aliás todo o processo desde a procura de financiamento até à produção em curso, um trabalho colectivo, feito a muitas mãos. Queríamos apresentar uma programação inédita que permitisse ser um ponto de partida para reflectir sobre o cinema feito por mulheres em Portugal. E para isso era fundamental apresentar filmes de cineastas de diferentes gerações, a trabalhar em diferentes géneros cinematográficos de forma a que pudéssemos ter uma diversidade fértil de olhares e estabelecer diálogos entre filmes e realizadoras. Quisemos ter o máximo de géneros presentes, ter animação, documentários, documentários mais experimentais, aproximações ao fantástico e ao terror, ao filme etnográfico, à ficção científica. Mostrar que o cinema feito por mulheres em Portugal é muito variado e rico. E ajudar a desmontar preconceitos que existam relativamente ao cinema português e especificamente ao cinema realizado por mulheres. 

A colaboração com a Cinemateca Portuguesa, nomeadamente no que toca à digitalização de filmes, foi um ponto essencial para a concretização deste projeto. Como vêem o impacto dessa parceria na preservação e disseminação da obra cinematográfica de mulheres portuguesas?

É um trabalho imprescindível. Parte dos filmes que iremos mostrar só é possível fazê-lo graças a este trabalho da Cinemateca. Seria muito difícil exibir fora de Lisboa e da Cinemateca muitos dos filmes que programamos. É possível fazê-lo porque existem hoje cópias digitais. É preciso ter sempre presente a questão do acesso. Quando, no passado, outras cidades reivindicavam o direito a ter uma Cinemateca, estavam a pedir a descentralização. É claro que o acesso a cópias em 35mm é sempre difícil e por questões de preservação pode ser limitado. Com a digitalização, a circulação torna-se possível e os filmes passam a ser programados mais facilmente, salvando-os de uma invisibilização a que eram sujeitos por uma questão de suporte. Mas é um trabalho que tem de continuar a ser feito, e deve ser defendido e promovido, porque continuam a existir muitos filmes por digitalizar. 

A MUTIM defende uma maior equidade no sector cinematográfico e audiovisual. Na vossa opinião, que transformações mais urgentes precisam de acontecer para garantir uma verdadeira representatividade das mulheres no meio?

Há várias medidas que podem ser postas em prática e que contribuíram não só para uma maior representatividade das mulheres, mas também uma maior igualdade do setor do cinema e audiovisual em Portugal. Por exemplo, a MUTIM defende o estabelecimento de parcerias com instituições públicas, como a

Comissão para a Igualdade de Género, no sentido de explorar sinergias ao nível do aproveitamento de políticas que tenham impacto no nosso sector, e na sociedade de forma mais lata. Inspirando-nos no que já acontece em outros países europeus, propomos também que se implementem, nos concursos públicos de apoio ao sector, incluindo os do ICA, majorações nos projetos que cumpram critérios de representatividade de género e nos projetos que tenham como criadores e/ou chefes de departamento pessoas racializadas. 

Para além disto, defendemos a atribuição de um valor monetário extra a produções que cumpram 50%/50% ao nível da paridade de género na constituição das suas equipas e respetivas direções de departamento; e a atribuição de um valor monetário extra para a seguinte produção de produtora que continue a cumprir o critério dos 50% / 50% na composição de género das equipas. No que tem a ver com composições de jurados de prémios e financiamentos ao setor, é muito importante não só ter paridade, mas também formar as pessoas no sentido de combater o unconscious bias do sector e diminuir os estereótipos das candidaturas. Dar aos jurados Inclusion Checklists para acompanhar a leitura dos projetos pode também ser útil se contemplado no regulamento, e prevendo a atribuição de pontos extra na avaliação aos projetos que os cumpram. 

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Três Dias sem Deus (Barbara Virgínia, 1943)

Finalmente, recomendamos que seja posta em prática uma avaliação interna contínua sobre representatividade de género e racial, sendo que, na sequência do nosso estudo, acreditamos que ganhar consciência anual dos dados factuais que compõem ou não a diversidade das produções e das narrativas é um primeiro passo fundamental para a construção de um setor mais diverso e menos desigual. Aliada a esta visão, propomos também o estabelecimento de metas percentuais de representatividade e consequente aplicação de medidas para as concretizar.

De que forma a mostra “Elas Fazem Filmes” procura fomentar uma reflexão crítica sobre a imagem e o papel das mulheres no cinema português, tanto no conteúdo narrativo como nas oportunidades de participação?

Todas as sessões da mostra terão uma conversa / debate no final que contará com as realizadoras, profissionais mulheres que integraram a equipa técnica e artística dos filmes apresentados e associadas da MUTIM. E tentámos organizar as sessões de forma a que duas realizadoras de gerações diferentes pudessem conversar sobre as semelhanças e diferenças nos desafios de filmar nas suas gerações. Ao convidar não só realizadoras a falar sobre o filme, mas também outras profissionais, queremos sublinhar o trabalho da criação de um filme como um trabalho colectivo e valorizar todas as profissionais que para nele trabalham. Como já foi dito, queremos também que associadas da MUTIM estejam presentes para discutir as conclusões do estudo do meio, porque falar das conclusões do estudo é o primeiro passo para a mudança. 

A interseccionalidade tem sido um pilar nas discussões da MUTIM. De que modo este princípio influenciou a escolha dos filmes e como têm procurado dar palco a mulheres de diferentes contextos sociais, raciais e geográficos?

É algo que temos sempre presente e que tentamos cumprir o máximo possível e como tal influenciou parte das escolhas que fizemos de programação. Sabemos que as dificuldades que as mulheres enfrentam no cinema e no audiovisual são ainda maiores quando falamos de mulheres fora dos centros urbanos ou de mulheres imigrantes, racializadas ou trans. O nosso trabalho tem obrigatoriamente de passar por ajudar a eliminar essas barreiras.

A mostra vai passar por várias cidades do país. Como esperam que a itinerância contribua para a receção das obras e para a criação de novos públicos, especialmente fora dos grandes centros urbanos?

Quando começámos a pensar a mostra, pareceu-nos crucial que não fosse mais uma mostra que se centrasse unicamente nos grandes centros urbanos, até porque já organizávamos sessões regularmente nas cidades de Lisboa e do Porto. Tendo em conta que é muito mais difícil aceder a cinema português fora das grandes cidades, e mais ainda a filmes realizados por mulheres, achámos desde o início que a itinerância e levar estes filmes ao máximo de cidades possível seria uma necessidade. Mas mais que mostrá-los, os filmes serão acompanhados pelas realizadoras e por associadas da MUTIM porque queremos que se estabeleça um diálogo com os públicos, queremos ajudar à formação de públicos para o cinema português, mas também ajudar ao debate sobre as questões de género. E tentaremos em todas as cidades por que passarmos e com a ajuda dos nossos parceiros locais fazer um trabalho junto do público escolar, trabalho que nos parece de extrema importância.

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Para mais informação sobre a mostra ver aqui

Folheando o Cinema de Luís Miguel Cintra

Hugo Gomes, 07.09.24

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Luís Miguel Cintra em "Mon Cas" (Manoel de Oliveira, 1986)

"E como a urgência da sua publicação, há que solicitar a urgência da sua aquisição; relembrar, recordar, reavivar e resgatar Luís Miguel Cintra, o nosso mais guardado segredo das artes performativas, duque no teatro, eterno príncipe no cinema."

Novo texto no site Libro Ex: "Luís Miguel Cintra: O Cinema", das Edições da Cinemateca. Ler aqui.