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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Vacuum Cleaner Haunting

Hugo Gomes, 03.06.25

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Imaginem pegar no "Tio Boonmee" (“Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives”) de Apichatpong Weerasethakul e desafiar a sua costumeira naturalidade com a sobrenaturalidade: numa espécie de paródia que transgride constantemente a sua própria essência. 

Para olhos ocidentais, conviver com fantasmas que encarnam aspiradores, que aguardam nas salas de espera dos hospitais respeitando as normas dos mortais ou assistir à oficialização matrimonial entre mortos e vivos pode parecer um prólogo de fantasia trágico-humorística. Mas, em "A Useful Ghost", isso surge como uma tentação de colar os elementos paranormais à sua politização. Aqui, os fantasmas são postos à prova quanto à sua utilidade, não se trata de assombrar por assombrar, deve-se antes possuir um propósito quanto à sua deambulação no mundo que os pertencera na pré-finitude. Nesse acto, há que evidenciar, ou até exibir, uma funcionalidade perante a sociedade.

E então, julgando nós, entre carne, órgãos e vértebras, seremos capazes de decidir se outros, mesmo os que já partiram,  são mais úteis do que alguns vivos? Ratchapoom Boonbunchachoke criou um filme algures entre o ridículo, o lúdico, o camp, e a crítica social travestida desse registo, do propósito humano enquanto ser social. Que com o aumento populacional, sem ceder a métodos malthusianos, será possível encontrar uma definição para quem quer que seja?

Um curioso retrato fantasmagórico, com sequências a fazer corar ou rir embaraçosamente, mas pouco dessa sensibilidade ocidentada (e acidentada) importa: é precisamente para isso que serve. O filme tem a utilidade de ser um ‘cadavre exquis’ com uns quantos ditos prontos a subjugar o espectador.

Filme visualizado no âmbito da Semana da Crítica, Cannes 2025

Michelangelo Frammartino: "sacrificamos muito para que 'Il Buco' fosse possível ser visto em grande ecrã"

Hugo Gomes, 24.10.22

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"Il Buco" (2021)

Em agosto de 1961, ocorre a primeira expedição ao Abismo Bifurto, situado ao sul de Itália, naquela que é considerada uma das mais profundas grutas do Mundo. Michelangelo Frammartino extraiu dessa história, não só o relato, como também uma experiência, tentando com isso reproduzir a descida e "convidar" o espectador a participar nesta descoberta a um mundo subterrâneo governado pela escuridão e pelo ensurdecedor silêncio. “Il Buco”, o “buraco”, é esse filme-sensorial que merece o escuro do cinema e o misticismo do seu espaço.  Pode não ser “storytelling” nem estética desconstrutiva, mas é entre os seus ecos que a experiência cresce, definitivamente, obrigando-nos a olhar para cima, para a luz que nos abandona gradualmente. Bem-vindo ao submundo!

Conversei com o realizador sobre o projeto na sua vinda a Portugal, durante a antestreia da Festa do Cinema Italiano, uma tentativa de decifrar o mistério da “gruta viva” e do cinema aqui praticado. 

Não gostaria de começar esta conversa com a pergunta “de onde surgiu a ideia para este filme?”, ao invés disso, com o que o “levou a concretizar um filme desta maneira”?

Quis com este filme prosseguir, ao invés de descobrir, pretendia construir. Ou seja, seguir no trilho da profundidade de uma gruta não é, para mim, um ato de descoberta, antes um gesto de construção ou até mesmo de instituição. Através daquela gruta criei toda uma condição espacial, dimensional, de luz e até de pensamento, isto, baseado na própria natureza. Na escuridão da gruta deparamos com uma feixe de luz, o que condiciona o nosso olhar como também o motiva a construir uma imagem sensorial. Tentei levar à sala de cinema essa mesma imagem alegórica, a de olhar para o feixe luminoso, traduzida no crepúsculo vindo da cabine de projeção, uma imagem-construída e não uma imagem-descoberta.  

Tal como o seu anterior “Le Quattro Volte" (2010), “Il Buco” partilha a mesma essência, a busca por um naturalismo e com isso encontrar uma "vértebra" mística. Há algo de além-físico nos seus filmes.  

Tento proporcionar no meu cinema, que as ‘coisas’ falem por si, e não obrigá-las a “falar” - captar o seu naturalismo e não forçá-lo - e com isto também retirar a figura humana do centro desta paisagem fílmica, posicionando-a igual para igual com a Natureza no qual embarco. Aquilo que poderás chamar de misticismo, é antes uma comunhão entre tecido, a dos Homens com as ‘coisas naturais’. A espiritualidade não é mais a diluição de todos os materiais terrenos; humanos, animais, vegetais ou minerais. 

Além da Natureza, existe em ambos os seus filmes uma figura humana central, apesar de tudo. Em “Le Quattro Volte” como em “Il Buco”, temos um pastor, o qual suponho que seja um vínculo entre Homem e o natural, ou seja mais do que uma personagem, um alternativo “ser místico", curiosamente não-atores. Não pude deixar de reparar, também, que o pastor é o único “humano” que filma em grandes planos neste filme. Isto tudo para lhe pedir que falasse sobre a sua relação e o seu processo de trabalho com os “não-atores”, e o facto de serem peças centrais na sua filmografia.

O protagonista de “Le Quattro Volte” e o pastor do “Il Buco”, que chama-se Nicola [Lanza], foram frutos de uma intensa procura. Quanto a Nicola, que já não está entre nós, não era uma pessoa dirigível durante as filmagens. Não conseguíamos dizer-lhe rigorosamente nada. É um problema recorrente em não-atores, principalmente daquela idade, a sua incapacidade de relembrar deixas e gestos para os filmes chegava a ser caricato. 

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Michelangelo Frammartino e a argumentista Giovanna Giuliani na estreia de "Il Buco" em Veneza

No caso do Nicola, notava-se, e nota-se em “Il Buco”, uma ligação fortíssima com aquele mesmo ambiente, com aquele lugar, com aquele “buraco”, coloquei essa presença como prioridade no filme, acima da minha intervenção na sua persona, porque como disse, pouco ou nada conseguia fazer dele, ou deixava tudo correr naturalmente ou teria que constantemente verbalizar com ele, o que seria uma tarefa hercúlea. Recordo de pedir-lhe num determinado momento para olhar para o horizonte - “Nicola, olha para ali” - automaticamente me respondia-  “Não vejo nada” [risos]. Ou da cena em que o médico o visita, e supostamente a sua "personagem" encontrava-se numa fase de comatose, Nicola rompia o seu “papel” para informá-lo que estava bem [risos]. 

Se optasse por esta segunda opção, o de dirigi-lo ao máximo das minhas forças, provavelmente “Il Buco” seria completamente distinto, e possivelmente sem a ligação pretendida aquele lugar e aquela naturalidade. Nicola é como uma montanha, simplesmente longe de mim moldá-la.  

Quanto à questão do enquadramento, se bem reparaste, os espeleólogos são filmados como um só corpo, uma só existência, Nicola, por sua vez, é emancipado, livre e soberano. Esteticamente, encontramos algo topográfico no seu rosto envelhecido, mais um ponto em comum com aquele território montanhoso e manifestamente resultante do tempo e da Natureza. Enquanto os espeleólogos exploram a caverna, a nossa câmara explorava a face de Nicola, que da mesma forma que a gruta tinha impressa nela toda uma história ainda por contar. 

Ao ver “Il Buco”, tive a impressão que estamos perante um filme cuja rodagem seria ela própria um filme à parte. Foi arriscado a sua rodagem nesta gruta?

Chamam-lhe “gruta viva”, porque é uma gruta que constantemente altera o seu estado ao longo do ano. Tem ligação a um rio subterrâneo, o que nos possibilita entrar nela apenas em agosto ou em períodos mais secos, e quando começa a chover, temos exatamente uma hora para sairmos dali, visto que ficará novamente inundada. 

Em junho de 2019, fizemos uma repérage lá, e repentinamente começou a chover, e a equipa ficou “presa” no seu interior. Fomos resgatados, um momento que chegou a figurar no telejornal nacional. Durante as filmagens éramos uma equipa de sete, todos com licença e preparação para descer a gruta, juntamente com mais sete espeleólogos que serviriam de segurança. Para além das condições agrestes do ambiente, lidamos também com um delay temporal. Imagina, para chegarmos a 300 metros demorávamos 5 horas, o que nos garantia apenas 1 hora de filmagem. A imagem, que provinha de uma pequena câmara trazida pelo diretor de fotografia, estava ligada à superfície por via de um cabo de fibra, eu supervisionava as mesmas de um pequeno ecrã no topo. Facilmente a escuridão apoderava-se da área, a luz era uma incógnita, pelo que diversas vezes teria que mudar um diafragma. 

Naquele processo de filmagens, eu não era só o realizador, teria que também ser o futuro espectador daquele futuro filme, e como sentia-me impotente, porque a única intervenção que poderia fazer era somente a mudança do diafragma. Então a comunicação entre a superfície e as profundezas era quase impossível. Estava refém daquilo que o diretor de fotografia conseguia captar e registar.  

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Nicola Lanza em "Il Buco" (2021)

Gostaria de ‘tocar’ na “eterna” luta entre cinema em sala e streaming, referindo que “Il Buco” é definitivamente um filme imperativamente a ser projetado. É uma experiência sensorial, imagem, som, quase nos sentimos presos naquele “buraco”. 

Como arquiteto, tenho a percepção que para cada objetivo há que utilizar diferentes materiais. No caso de “Il Buco”, pretendíamos um filme para sala de cinema e desenvolvemos-o para esse mesmo destino. Para outros projetos, poderão ser calculados para outras plataformas, e aí criaremos um filme com “outros materiais”, mas em relação a “Il Buco”, em termos de distribuição, sacrificamos muito para que fosse possível ser visto em grande ecrã. Com a vinda de festivais, como o de Veneza, recusei o uso de links. Praticamente “obriguei” a imprensa a vê-lo em sala para usufruir toda a experiência que “Il Buco” tinha a oferecer. A única excepção foi com os prémios Donatello [prémios de cinema italiano], o qual concordei, de forma a dar mais visibilidade ao projeto, principalmente nas categorias de som, garantir um link de visionamento à Academia

Mas isso acaba por ser paradoxal, porque ver “Il Buco” em link, é ficar aquém das possibilidades do seu trabalho sonoro. 

O problema é que o link de visionamento é um requisito para a candidatura do filme. Dessa forma não o conseguiria candidatar aos prémios. 

Percebo, só que metade da experiência desaparece com esse tipo de visualização, a sonorização, que pouco se fala nestes contrastes, torna-se refém da poluição sonora em redor. No fundo, o envio de links para tal categoria, acaba por prejudicar a sua nomeação. É um pouco como o “Memória” do Apichatpong Weerasethakul, o qual o realizador tentou resistir ao máximo às outras formas de visualizações para tentar permanecer intacto a sua experiência sonora. Tal como “Il Buco” são filmes bastante sonorizados. 

"Memória" é um filme incrível! Vi em Londres, no Festival, e foi uma experiência indescritível. Mas de qualquer modo, fico feliz que seja os espectadores a guardar a “experiência” de ver “Il Buco” em sala, os votantes são meras formalidades. 

Na memória das vidas passadas como nas futuras

Hugo Gomes, 25.01.22

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Somos o que sonhamos, e sonhamos com aquilo que somos. O sobrenaturalismo de Apichatpong Weerasethakul teoriza que a nossa existência é uma linha contínua, o nascimento liga-se intrinsecamente à morte, os nossos desígnios estão prescritos faz tempo e o sono faz parte dessa comunicação entre os dois estados, no meio existe a prolongação, o hiato, aquilo que normalmente apelidamos de Vida como definição absoluta. “Memoria” não inova nesse mesmo mojo autoral, o tailandês persiste nessa interação infinita entre as coisas ao seu redor, e com isso provocando uma cisão entre espaços, territórios e línguas.

Há muito que os festivais optaram pelo reconhecimento do “slow cinema”, ou “cinema lento” em tradução de Camões, o que não é mais que uma generalização da economia temporal. Deste lado uma provação tal catalogalização, até porque o cinema não vive de etiquetas, vive da sua universalidade. Porém, em língua “festivaleira”, Apichatpong é um Deus desse “mercado”, um artista feito e remodelado em contraposição à euforia e a aceleração das nossas vivências, e depois de uma Palma de Ouro (“Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives”, 2010) reafirma-se como um diamante em bruto. E com esse estatuto que recaiu em “Memoria”, se por um lado o cinema do autor me faz viajar, mentalmente “expulsando-me” da cadeira do cinema para o meu estado de tranquilidade, que por si só é dialeto universal comummente falado por nações várias, por outro não consigo deixar de encontrar nesta migração para Bogotá (Colômbia), um certo “olhar estrangeiro”. 

O exotismo seu não translada de todo para este novo cenário, resultando numa homogeneização de signos culturais e a reutilização das fórmulas de dominância “anglosaxónica”, a conquista do “selvagem” pela “pureza do Ocidente”, por outras palavras a utilização e o afunilamento do filme para com a presença de Tilda Swinton transforma a paisagem colombiana num pano de fundo homónimo (mesmo que visualmente belo seja essa anonimato). Mas Apichatpong é tailandês, o leitor perguntará incrédulo, o que de ocidentalizado ou anglosaxónico existe nele? Inconscientemente, talvez por ambição de sair de um círculo de “world cinema” (mais uma vez, etiquetas mercantis) e tentar “abraçar” uma aproximação a um reconhecimento … como diria … de degustação americana. 

Entretanto “Memoria” preza-se pela experiência em sala, não somente pela imagens-instalação ou pelo tempo sem pressas, como também pelo som, a sua importância, quer narrativamente, quer interativamente com o espectador. Não desejo ser equivocado, este é um filme menor do tailandês, mas mesmo menor continua a ser Cinema, com todas as propriedades que isso acarreta.

Room Service!

Hugo Gomes, 09.06.20

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Chambre 212 (Christophe Honoré, 2019)

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Anomalisa (Duke Johnson & Charles Kaufman, 2015)

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The Best Exotic Marigold Hotel (John Madden, 2011)

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Don't Bother to Knock ( Roy Ward Baker, 1952)

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Four Rooms (Allison Anders, Alexandre Rockwell, Robert Rodriguez & Quentin Tarantino, 1995)

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The Grand Budapest Hotel (Wes Anderson, 2014)

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Home Alone 2: Lost in New York (Chris Columbus, 1992)

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1408 (Mikael Håfström, 2007)

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2046 (Wong Kar-Wai, 2004)

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The Shining (Stanley Kubrick, 1980)

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Some Like It Hot! (Billy Wilder, 1959)

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Room 304 (Birgitte Stærmose, 2011)

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The Bellboy (Jerry Lewis, 1960)

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The Million Dollar Hotel (Wim Wenders, 2000)

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Chelsea on the Rocks (Abel Ferrara, 2008)

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Hotel (Jessica Hausner, 2004)

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Love Steaks (Jakob Lass, 2013)

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Mekong Hotel (Apichatpong Weerasethakul, 2011)

Um pedaço de lugar entre um rio dominante!

Hugo Gomes, 13.06.15

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De certa maneira podemos assumir que “Mekong Hotel” é todo um concerto de improvisação musical, onde cada acorde corresponde a um pedaço da História tailandesa, e as relações com o seu “vizinho”, Laos, onde apenas um rio (Mekong) os divide. Sob essa metáfora, Apichatpong Weerasethakul ilustra cada tom melódico e o repovoa com o seu universo irreconhecível, uma utopia em que o real e o sobrenatural coabitam, acostumados com a presença de um e do outro, e que os fantasmas dos entes caídos assombram o seu conjunto de personagens com uma exactidão cirúrgica.

Ninguém é deixado para trás nesta reunião de espectros, nem mesmo o espectador que ousa entrar nesta alternativa fantástica, porém, sustentada com uma melancólica nostalgia em que os demónios da guerra e os “vampiros” da actualidade social estão longe de ser exorcizados. Trata-se de uma obra “simplicíssima” e sustentada por poucos recursos, ao contrário da invocação do Homem selvagem em “Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives” (o vencedor da Palma de Ouro em 2010), “Mekong Hotel” nasceu a partir de uma ideia cinematográfica, de um filme não cumprido (“Ecstasy Garden”), um objecto de estudo que Apichatpong Weerasethakul decidiu explorar e polvilhar com a sua imaginação subliminar.

Acrescentando a isto, temos a contemplação de um redor desolado por forças naturais, assim como das iminentes ameaças que as personagens citam constantemente. Uma cultura em pleno estado de auto-devoração (as criaturas alusivas estão integradas nas imagens), vivente de cada nota musical libertada do seu pano de fundo, que formam este fenómeno cinematográfico regido por uma singeleza invejável e por uma mestria solene e despreocupada. Uma das melhores obras de Apichatpong Weerasethakul, um espelho social constituído por uma linguagem subliminar e transversal.

Repousa soldado, a tua hora chegou!

Hugo Gomes, 25.05.15

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Um funeral de luzes, Apichatpong Weerasethakul regressa a Cannes com uma experiência visual puramente artesanal, esboçando uma Tailândia em plena reconstrução e em eterna ligação com o seu misticismo. “Cemetery of Splendor” evidencia-nos um retorno do cineasta ao estilo do seu “Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives” (vencedor da Palma de Ouro em 2010), cuja coexistência entre a realidade e o mundo fantástico de cariz mítico é de tal forma desarmante como natural. Neste seu registo do sobrenatural, Weerasethakul aproveita tal essência para incutir todo um conjunto de "what if", usufruindo de jogos de faz de conta para emanar a magia desta imaginação acorrentada por um medo social e político. 

Nesse sentido, “Cemetery of Splendor” revela-se num conto anti-militarista, tecendo sonhos perdidos e decepções destes militares "zombies", aprisionados num sono inacabado e ao mesmo tempo requisitados para defrontar batalhas que são tudo menos as suas. "Não há futuro no exército", revela-nos uma das personagens que de seguida salienta a futilidade que as próprias forças-armadas adquiriram na sociedade tailandesa. Porém, a mensagem poderá passar despercebida, visto que Apichatpong Weerasethakul faz um filme à sua maneira, sob uma solitude constante e com planos apenas para perdurar o seu olhar enquanto artista visualmente criativo, alguns dos quais verdadeiramente desnecessários e que pouco ou nada acrescentam à narrativa.

Mas o seu mundo continua a ser convidativo, imaginativo e, sobretudo, guiado por um vórtice de estranheza. São deuses sob a forma humana, luzes funerárias que transmitem os sonhos dos seus "soldados caídos", um palácio imaginário algures numa trágica floresta e videntes ao serviço da nação: uma fantasia aberta para todos mas inerentemente "exquisite", isto vindo de um autor que continua, e muito, a deslumbrar uma comunidade cinéfila com as suas imagens harmoniosas e fantasmagóricas. Por fim, termina-se com "o desejo do Paraíso guia-nos ao Inferno". Citação que se encontra numa das placas deste Cemitério de Esplendores.