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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O mundo acabará num dia qualquer ... a espera é o essencial

Hugo Gomes, 03.05.24

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Nina Hoss em "Do Not Expect Too Much from the End of the World" (2023)

Aproprio-me do seu título - "Do Not Expect Too Much from the End of the World" -, que por sua vez foi apropriado de uma frase do poeta polaco Stanislaw Jerzy Lec (1909-1966), para refletir sobre uma das naturezas de Radu Jude nos seus mais recentes passos: a apropriação, e com isto um caminhar em direção ao possível apocalipse. Ao contrário das fantasias de Fim do Mundo que impregnaram tanto a nossa cultura popular quanto a intelectual, o cineasta romeno despoja essas ideias das suas eventuais distopias e imaginários estabelecidos, concentrando-se num mundanismo com que a Humanidade se vê envolvida, num perpétuo movimento à sua decadência moral onde a selvajaria capitalista reina e subjuga.

Não tão diferente do seu anterior e galardoado "Bad Luck Banging or Loony Porn" [Urso de Ouro em Berlim], Jude continua a fazer uso do presente para expor uma espécie de antologia de empatia ausente, aqui, através da história de uma assistente de produção com condições precárias (Ilinca Manolache), que trabalha estrada fora na concepção de um filme institucional ("todos os filmes são institucionais", como se ouve a certa altura). Nas suas breves pausas, ela filma-se em brejeiros reels de Tik Tok com camadas e camadas de filtro em cima, pregando as lições emuladas de um Andrew Tate e outros "ismos" que isso pode acarretar. É a criação de um alter-ego, Bobita e as múltiplas e imaginárias vaginas com que atravessa, uma distorcida caricatura à moda de Charlie Hebdo como a própria autora orgulhosamente clama em oposição do “putinismo” que a acusam.

Em paralelo, segmentos intermitentes da obra conterrânea, "Angela merge mai departe" (Lucian Bratu, 1982), remixados e recontextualizados, uma anomalia de um tempo modelado numa diferente fluidez, emaranhado algures num passado que vai tocando e tocando na narrativa central, posando como uma musa perante o seu pintor, neste caso a Jude que parece induzir como um ensaio, gerando uma recriação modernizada. A nossa protagonista parece confinar-se a essa inovação, visto que o filme intrusivo nos apresenta uma mulher taxista, fazendo da sua viatura mais do que via de passagem, a sua casa ambulante com abraços rotos à condição precária.

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Não só na aproximação com o seu material, Radu Jude parece estabelecer outra ponte com Godard que é o convite-cameo de realizadores de cinema, neste caso o alemão e infame Uwe Boll 

"Do Not Expect Too Much from the End of the World" não esconde a sua inclinação pela experimentação narrativa (acima dos suas estéticas), como é natural do realizador, deparamos com uma fome intensa de abocanhar tudo e todos numa crítica mordaz, que tanto aponta para norte como para sul. No fundo, é como as nossas redes sociais, uma cascata de informações, lixo e conteúdo atropelando-se num ciclo caótico, como sinistralidades rodoviárias, um cemitério de cruzes que se estendem ao longo da estrada,como daquela, em direção à cidade de Buzau, que a protagonista compartilha numa conversa fiada com Nina Hoss (a anterior musa de Christian Petzold), o destino sombrio que todos nós esperamos contra a nossa vontade.

Talvez seja este o fim do mundo medíocre que Jude menciona, sem espetacularidade nem salvação, porque os maniqueísmos resumem-se apenas a perspectivas que se cruzam sem nunca se aliarem, enquanto que essa Empatia, meramente um acidente de percurso. A seu tempo podemos encarar o cineasta fora dos habitués da anteriormente decretada Nova Vaga Romena (salpicando o formalista realista com que uma geração de cineastas mantiveram como manifesto), um homem godardiano com uma visão no mundo, e desse ponto de vista entendido como uma matéria de improvisação fílmica, e ao mesmo tempo, fala-nos de Cinema, de um modo cínico, por vezes falsamente ingénuo, dando conta ao seu óbito e ao renascimento enquanto arte de inquietar.

Inquietante, sem dúvida, mas não esperem muito desse armagedão ou do filme, sem ser a sua viagem interior que nos mantém colados após o seu visionamento. Portanto, temos um filme da nossa modernidade, como Radu Jude já nos familiarizou, porque já não nos espantamos com o extraordinário, apenas residimos ao ordinário.

É mais fácil imaginar o fim da sua vida do que o fim do capitalismo

Slavoj Zizek

Arranca o 6º BEAST IFF, da Eslovénia cinematográfica a finais (nada) felizes: "uma procura por novas fórmulas, por novos destinos e por novos caminhos"

Hugo Gomes, 26.09.23

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I Miss Sonja Henie (Karpo Godina, 1971)

A Eslovénia torna-se assim no centro geocultural desta sexta edição do BEAST IFF, o Festival Internacional de Cinema que acontecerá já no dia 27 de setembro, estendendo-se até ao primeiro dia de outubro em vários pontos da cidade do Porto. Este ano, para além do país homenageado e do melhor cinema do leste o qual tem dedicado com coração, poderemos contar (e continuar a contar) com um enorme foco feminino - com especial destaque para argumentista e figurinista Ester Krumbachová, uma das parceiras da “mãe” Věra Chytilová nos seus devaneios que lançaram a nova vaga checoslovaca para o holofote do mundo - e uma forte aposta no cinema queer originário das Balcãs. Sem esquecer Karpo Godina, um dos nomes maiores do cinema esloveno, que marcará presença numa retropectiva à sua figura.

É "no happy ever after" a inundar a cidade invicta nestes cinco dias, mas apesar do slogan pessimista, o BEAST IFF promete ser um festival "feliz", porque Cinema haverá, logo a felicidade é garantida. Só que esta felicidade está nas longitudes longínquas das utopias e dos "we are the worlds" hollywoodescos. Mas deixemos de descrições baratas e passemos aos nossos diretores e programadores - Radu Sticlea e Teresa Vieira - que, respondendo ao convite do Cinematograficamente Falando …, desvendam a rota desta edição.

Ao chegar a uma sexta edição do festival, e olhando em modo retrospectivo, quais os objetivos atingidos e o que poderá ainda atingir?

Radu Sticlea: Acredito que com cada edição conseguimos curar com sucesso um programa que não só mostra o trabalho de realizadores de renome, mas também dá destaque a talentos emergentes. Esta abordagem permitiu-nos nutrir e promover a próxima geração de realizadores da Europa de Leste, enquanto nos estabelecemos como uma plataforma única.

Como festival, a nossa missão é a seguinte: construir uma plataforma dinâmica para colaborar e fazer networking entre Portugal e a Europa Central e de Leste, enquanto simultaneamente desafiamos e desfazemos estereótipos associados à região. Nós acreditamos que um programa reflexivo e provocante não é só um testemunho da nossa dedicação para os talentos cinematográficos, mas também é uma oportunidade para expor a diversidade e densidade criativa do cinema da Europa de Leste. Ao abraçar conteúdos provocativos e quebrar barreiras, temos como objetivo incentivar conexões significativas e contribuir para uma compreensão mais extensa desta paisagem cinematográfica vibrante.

Sobre a Eslovénia, o país-homenageado, o que poderá dizer sobre a sua cinematografia e como resumi-la para o seu Focus. Que impressões os espectadores terão com esta viagem?

Teresa Vieira: Todos os anos, o BEAST dedica-se à criação de uma programação focada no panorama cinematográfico de um país, apresentando trabalhos de realizadores de renome e realizadores emergentes, num leque de diferentes temporalidades (das marcas do passado, ao presente e apontando para um futuro). Este ano, a escolha do Foco na Eslovénia surgiu por diversas razões. Desde logo, por sentirmos uma falta de representatividade do país - ou um certo desconhecimento da sua cinematografia - no panorama nacional, procurando criar um espaço para uma mostra mais aprofundada de produções passadas e presentes. A tal adicionado o facto de ser o primeiro país pós-comunista a legalizar a adopção e o casamento entre casais do mesmo sexo, o que se liga à nossa atenção para com as questões queer na Europa Central e de Leste

Em termos de programação específica, decidimos alterar o modelo de selecção para a cerimónia de abertura (que, ao longo da história do festival, se concretizava com a exibição de uma longa-metragem do País em Foco), seleccionando três curtas-metragens de três realizadoras da Eslovénia. Consideramos esse gesto representativo do festival de diversas formas: o formato de curta, sobre o qual trabalhamos um pouco por toda a programação, como forma de lançamento do mote para esta 6ª edição; e a escolha de três obras realizadas por mulheres, que traduz a nossa atenção para com questões de género na programação. 

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Věra Chytilová e Ester Krumbachová

Aquilo que o público poderá esperar, após esse ponto de partida, é uma viagem por diferentes pontos: uma retrospectiva de curtas metragens dos anos 60 e 70 de Karpo Godina, realizador de renome (aqui num ponto de passado estabelecido e fortemente marcado na história do cinema); duas sessões de trabalhos de duas escolas de cinema (criando uma mostra dos futuros nomes da cena cinematográfica, dando também um espaço para estas produções circularem noutros territórios e contactar com outros públicos); uma sessão especial de LGBT_SLO_1984, parte do programa queer do festival, para um maior entendimento dos movimentos artísticos, activistas e históricos associados à evolução dos direitos LGBTQIA+ do país; uma retrospectiva de video-art, um formato que foi (e ainda é) marcante da cena artística do país, e que consideramos fundamental para um maior entendimento das abordagens artísticas e cinematográficas da Eslovénia, procurando ao mesmo tempo enfatizar o nosso ângulo de criação de espaço para “outros formatos”, por vezes afastados das salas; um cine-concerto de “No Reino Do Chifre De Ouro” (“In the Kingdom of the Goldhorn”, 1931), com o artista sonoro Ivo São Bento, em que exibiremos a primeira longa-metragem realizada na Eslovénia acompanhado por um trabalho musical e sonoro original e exclusivo para este evento.

Procuramos, no fundo, apresentar uma seleção diversificada de múltiplas formas - e despertar todos os sentidos do público pelo caminho.

Em BEAST IFF existe uma “apetite”, chamaremos assim, em se focar num cinema feito por e para mulheres, descortinando nomes emergentes como a de Tereza Nvotová [“Nightsiren”] ou de heroínas como Ester Krumbachová, colaboradora de Věra Chytilová, ambas representadas nesta edição. Gostaria que me abordasse esta abordagem, se é algo coincidente ou uma convicção político-social-artística do festival?

TV: A resposta poderá passar pelas duas partes: surge de uma convicção político-social-artística e aconteceu igualmente (de forma não coincidente mas) natural - sendo que tal advém, desde logo, por exemplo, de escolhas em pré-criação de programação. A nossa atenção para com questões de representação de género está presente, em primeiro lugar, na constituição da equipa do festival: procuramos ter um grupo de vozes diversas, o que de forma natural influencia os resultados nas escolhas curatoriais e na programação. 

Não tendo uma maioria de programação cis masculina, implica que, regra geral, a questão (necessária, urgente, fundamental) que tem de ser muitas vezes apresentada e reforçada noutros contextos - e firmada constantemente -, de atenção para com a representação de género, se tornou quase “redundante” no nosso processo colectivo de trabalho. No sentido em que, enquanto pessoas que não fazem parte de uma categoria de “privilégio”, tal implica inevitavelmente um posicionamento individual e colectivo - um olhar - que carrega em si estas questões de forma contínua - é a nossa vida, a nossa luta, a nossa história. Faz parte de nós e a programação reflecte isso mesmo. 

Relativamente a elementos de secções não-competitivas, o caso do programa de retrospectiva de video-art da Eslovénia poderá ser ilustrativo: após a selecção de grande parte das obras que vão ser agora exibidas ao público, foi possível observar que o programa, de si, já representava uma maioria feminina. Assim, foi mantida a programação exatamente como estava após essa análise. Em relação a outros programas temáticos (fora de competição e do Foco Eslovénia), dar destaque a Ester Krumbachová é dar uma atenção para o trabalho criado por uma mulher mas também para uma pessoa cuja função não recaiu somente na realização. É igualmente um posicionamento do festival de que é necessário criar e fortalecer espaços de foco em áreas além da realização e produção: o caso da Ester, multi-facetada e fundamental set designer, costume designer, guionista da New Wave Checa, é uma forma de demonstrar essa vontade.

Uma questão pertinente, visto que o festival foca este ano numa mostra de cinema Queer (ou simplesmente de temática LGBTQIA+), o qual decorrerá em simultâneo com o Festival Queer Lisboa e posteriormente com a extensão no Porto. Existe diálogo entre os dois festivais, ou há um sentimento de concorrência?

TV: O BEAST tem dedicado ao longo de diversas edições um espaço para programação de cinema queer. Este ano, o festival decidiu criar um título para essa secção: “How to Care for Cosmos”. Um título que surgiu, entre outras coisas, de inspiração a partir de “Modern Nature”, de Derek Jarman. Uma ideia de um jardim que tem de ser cultivado, com flores que representam o “tudo”, o “universo” - o “nós e es outres”. É um programa que procura o cuidado, a atenção para com questões que consideramos urgentes, de forma a procurar um futuro melhor para todes. 

Este foco transparece uma identidade queer que não é somente uma secção: faz parte do ADN do festival, composto maioritariamente por pessoas da comunidade LGBTQIA+. O programa desta secção, este ano, resulta em grande parte de colaborações com dois festivais de cinema queer da Europa de Leste: Sunny Bunny (Ucrânia) e FFi (Eslováquia). O Sunny Bunny é o primeiro festival de cinema queer da Ucrânia e teve este ano a sua primeira edição. Exibir estas curtas-metragens ucranianas neste momento é também um statement do BEAST, que tem reforçado o seu foco - já existente em edições passadas - no cinema ucraniano durante este período de guerra, com uma vontade explícita de dar voz aos cineastas do país - e, este ano em particular, à comunidade queer. A colaboração com o FFi resulta de uma preocupação para com a situação sócio-política do país: em 2022, duas pessoas da comunidade LGBTQIA+ foram assassinadas à frente de um bar (safe space para pessoas queer). 

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Before Curfew (Angelika Ustymenko, 2023)

Mostrar curtas-metragens da Eslováquia é também uma forma de demonstrar o nosso apoio para com a comunidade do país, e uma procura para um alerta de movimentos de ódio que ainda (ou desde sempre) acontecem na Europa. Os programas que serão apresentados foram criados colaborativamente: uma selecção que uniu diversos olhares de diferentes pontos geográficos - todos a partir de perspectivas de indivíduos queer.

Esta resposta passou, primeiro, por uma mostra do gesto programático desta secção: colaboração, diálogo e trocas. Não foi por acaso: serve de ponte para aquilo que poderá ser dito em relação ao Queer Lisboa e a sua extensão no Porto. Não só não existe qualquer concorrência entre festivais, como almejamos que existam cada vez mais e mais espaços para vozes, visões e identidades queer - algo que consideramos crucial. Felizmente, nos tempos que correm, é possível ver cada vez mais a presença de cinema queer em programações não dedicadas exclusivamente ao cinema queer

No entanto, a existência do Queer Lisboa/Porto, que têm notoriamente das identidades mais firmadas e estabelecidas no panorama de festivais nacionais, é algo que consideramos absolutamente fundamental, insubstituível e de um valor imenso. A sua linha de programação denota preocupações partilhadas - desde logo, por exemplo, exibindo filmes que relatam as questões da Guerra na Ucrânia - , também com produções de países como a Roménia, o Kosovo, mas também de múltiplas regiões além-Europa (filmes da Nigéria, do Brasil, da Colômbia, entre tantos outros). Partilha de preocupações, um olhar atento para com as questões da comunidade LGBTQIA+ e uma selecção de excelência a nível de qualidade de produção cinematográfica são ingredientes para a receita perfeita para aquilo que diremos de seguida, em jeito de conclusão.

O Queer Lisboa e o Queer Porto são festivais que respeitamos, que admiramos, com quem claramente partilhamos (para além das datas de calendário entre Queer Lisboa e BEAST) uma simpatia imensa e com quem obviamente gostaríamos de um dia colaborar (se elus nos quiserem também ;) ).

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

TV: Um dos destaques inevitáveis da programação é a retrospectiva de Karpo Godina, realizador que marcará presença no festival. As obras produzidas entre os anos 60 e 70 por esta figura incontornável da história do cinema são uma magnífica amostra da originalidade, frescura e a abordagem satírico-politizada (com uns óptimos travos musicais e de humor à mistura) que marcam o espólio deste cineasta e um pouco do seu trajecto inicial no universo cinematográfica - essa descoberta que podemos ter dos primeiros passos que o realizador deu nessa sua própria (e única) viagem.

Destaque igualmente para o programa “Post Porn - Radical Visibility”. Criado em colaboração com o Post Pxrn Film Festival Warsaw, surge como resultado de uma curadoria conjunta entre os festivais, de apresentação de uma selecção de curtas-metragens polacas de post porn. O encontro com os diretores deste festival, que estarão presentes na sessão, será uma excelente oportunidade para conhecer melhor o “post-pxrn” mas também a relevância da produção destas - e outras obras -  no contexto sócio-político e artístico particular da Polónia.

Em relação ao programa queer, não só destacamos todas as sessões — Sunny Bunny, FFi e LGBT_SLO_1984 — como também consideramos importante mencionar a Queer Talk que decorrerá durante o festival, onde será possível participar numa conversa com todos os directores desses festivais, aos quais se juntará Romas Zabarauskas, cineasta lituano reconhecido pelo seu trabalho no cinema queer, convidado do evento de indústria do BEAST.

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In the Kingdom of the Goldhorn (Janko Ravnik, 1931)

Por fim, destaque para o regresso da secção CINE-GEOGRAFIA SOCIALISTA | ÁFRICA - EUROPA DE LESTE. Este ano, com um programa em que será exibido um documentário de Traian Cocoș e Răzvan Marchiș “Viagem... longe da África” (1972-194), seguido de uma talk com Iolanda Vasile. Este programa, que conta com o apoio do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, através do projecto EDU-AM, e do Instituto Cultural Romeno, criará espaço para uma conversa que terá como ponto de partida a investigação de Iolanda Vasile sobre as ligações que a República Socialista da Roménia teve com vários países do continente africano entre os anos 1965- 1989. Será discutido como os câmbios educacionais, principalmente no cinema, mas também em outras áreas, contribuíram para as transições políticas no continente Africano colocando as bases do processo de transição pós-colonial.

O festival contará com a presença de realizadores das diversas secções, para além de convidades de indústria que estarão presentes durante esta edição.

Muito deste cinema do leste que aposta enquanto tema do evento é normalmente ignorado pela distribuição comercial nacional. Existe um preconceito para com estes filmes, ou entendimento (provavelmente pelo senso comum adquirido pelo experimentalismo de muitas destas cinematografias) como pouco acessíveis a públicos maiores.

RS: Nós reconhecemos o panorama evolutivo do consumo de cinema português. O público português está a demonstrar um interesse cada vez maior pelo cinema de nicho, incluindo as particularidades únicas e cativantes da Europa de Leste. Esta mudança na preferência do público é encorajadora e sinaliza um desejo crescente por experiências cinematográficas diversificadas, para além dos filmes comerciais mainstream.

Além disso, observamos uma tendência positiva no sector da distribuição. Os distribuidores estão a começar a reconhecer a mudança dos gostos do público português e estão mais abertos a atribuir espaço a conteúdos de nicho, incluindo filmes da Europa de Leste. Esta abordagem progressiva reflete um reconhecimento amplo do valor cultural e do significado artístico destes filmes.

Enquanto festival, esforçamo-nos ativamente para estar na vanguarda desta onda de transformação. O nosso objetivo é tornarmo-nos num ponto de encontro fundamental para os profissionais da indústria, incluindo cineastas, produtores e distribuidores, tanto de Portugal como da Europa de Leste. Acreditamos que a promoção de ligações entre estas duas regiões pode levar a oportunidades interessantes de colaboração e co-produção.

Sobre um eventual crescimento do festival, alguma vez colocou-se em cima da mesa extensões das vossas mostras? Ambições para o futuro?

TV: O festival tem realizado extensões ao longo dos anos, vendo esses momentos como forma de reforçar a presença do festival mas acima de tudo de criar a possibilidade de expansão de visibilidade de obras de cineastas. O BEAST, estabelecido, nutrido e com raízes no Porto (onde se pretende manter) já realizou mostras em espaços em Lisboa, como no Cinema City Alvalade e na Galeria Zé dos Bois (neste último caso, em colaboração com o Cineclube Aparição, com uma mostra de cinema ucraniano - o país de foco em 2021 - e os filmes vencedores da competição desse ano).

Em relação ao próprio festival, apostamos na criação de uma plataforma de networking e colaboração — East, Match, Go! —, que terá este ano a primeira edição. Um evento de Indústria que procura aproximar — e fomentar ligações — entre profissionais de Portugal (com ênfase no Porto) e profissionais da Europa Central e do Leste.

Nesse sentido de aproximação de Portugal a esta região da Europa, o festival tem realizado a curadoria de programas de cinema português. Nomeadamente, o exemplo mais recente, foi a criação de um programa de curtas-metragens queer portuguesas, que chegaram a diversos festivais da Europa Central e de Leste (como o BRNO 16, o Sunny Bunny, entre outros).

O objectivo do BEAST — como o de todos os festivais — será sempre o de crescer, mas também de amadurecer e de se fortalecer de forma consciente e atenta àquilo que o rodeia, tendo sempre presente a atenção para com a forma através da qual tal evolução poderá ser sustentável e adequada para a manutenção da qualidade e dos valores do festival. Para o futuro é possível dizer que pretendemos criar uma ligação cada vez mais forte com festivais e mostras com quem partilhamos ideais - e ideias -, num gesto de manter activa e em funcionamento a nossa perspectiva de que, através da colaboração, será possível crescermos — equilibradamente — em conjunto.

no happy ever after”, o tema desta 6ª edição, é um reflexo de uma procura por novas fórmulas, por novos destinos, por novos caminhos. É nesse percurso, de construção, de análise, de escuta e aprendizagem, em que queremos — e precisamos de — estar.

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Toda a programação poderá ser consultada aqui

Os Melhores Filmes de 2022, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 28.12.22

Em 2022 pude constatar a queda anunciada do cinema norte-americano, por mais que se tente rechear as nossas salas comerciais com produções à lá Hollywood, pouco ou nada saem deles para além de fórmulas, refilmagens sob selos de novidades, produtos direcionados ao streaming e super-heróis com fartura (demonstrando a sua regra equacional a servirem para universos partilhados).

Num ano em que “Avatar” chega com a soberba atitude de experiência de sala, um “Top Gun”, outra aguardada sequela, abre caminho por via do físico a possibilidade sensorial em sala, isto num ano em que a Academia decidiu promover um filme de streaming (“CODA”, que num estalar de dedos caiu no esquecimento). Se existe filme de Hollywood a merecer destaque neste ano, então Maverick e Tom Cruise (de difícil desassociação) levam a medalha. Porém, também foi o ano em que Michelle Yeoh pode finalmente brilhar nas terra-yankee graças ao frenesim entre o parvo e de genial que fora “Everything Everywhere All at Once” de Dan Kwan e Daniel Scheinert, ou das memórias cinéfilas de Spielberg em “The Fabelmans”, ou do terror de mãos dadas para com o seu legado cinematográfico - “Nope”, de Jordan Peele e “X” de Ti West

Mas este 2022 a congregação de 10 filmes foram para mim difíceis, o que automaticamente me deixa agradado com o turbilhão de novas vozes e novos movimentos que florescem por este Mundo fora, do Japão ao Irão, da França à Suíça, da Noruega ao México, da Coreia do Sul a Portugal. E falando em território nacional, destaco 12 meses recheadas em variadas e diversificadas produções; o rural novamente motor de inspiração ("Alma Viva”, “Restos do Vento), um João Botelho livre e fluido (“Um Filme em Forma de Assim”) e uma surpresa na realização (“Revolta”), já em temática de festivais [ainda sem estreia comercial], as questões identitárias e geracionais com deslumbre encanto ("Périphérique Nord”, “Super Natural”, "Frágil", “A Visita e um Jardim Secreto”, “O Que Podem as Palavras"), mas apesar desse leque de possibilidades, a minha escolha nacional cedeu à melancolia, à incerteza, ao fim da juventude retratado no misterioso “28 ½” de Adriano Mendes

Segue os dez filmes do ano, segundo o Cinematograficamente Falando e respeitando o calendário de estreias nacionais (sala ou plataforma de streaming):

 

#10) 28 ½

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“Doloroso, é verdade, de igual forma que deparamos com a nossa impotência perante o “mundo em cacos” o qual tentamos ignorar - a sequência do comboio, o momento mais hitchcockiano que o nosso cinema português já produziu (e não por decorrer no interior de uma carruagem, mas pelo trabalhado “suspense” oferecido a um espectador com conhecimento suficiente, por exemplo, de que a personagem de Anabela Caetano tem destreza física e experiência para lidar com tão incomoda situação). E são estas constatações, este peso concentrado que nos faz duvidar de tudo e de todos. Perdemos a inocência, fiquemos só a aguardar pelo inesperado, com a fé de este “incógnito” resgate-nos deste estado de existencialismo passivo.” Ler crítica

 

#09) La Civil

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“Por entre guerras de cartéis, Mihai espelha uma descida infernal de uma “inocente”, um mero dano colateral, que cuja contaminação com este ambiente a transforma numa espécie de impiedoso anjo da vingança. Tudo isto lido entrelinhas, de câmara à mão, orbitando de volta à ação e sugerindo mais do que expondo. “La Civil” escapa dos lugares-comuns pela sua imposição de poder, descortinando as vozes silenciadas de uma disputa moral.” Ler crítica

 

#08) A Hero

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“Através deste “regalo”, somos induzidos a um confronto entre razões e uma proposta de desconstrução arquitetónica (cada com a sua perspetiva) à definição de “herói”, o indivíduo máximo da moralidade na sociedade. O retorno ao Irão é propício a esses dilemas, uma sociedade “estranha” aos olhos ocidentais opera como uma distopia possível sobre as mais variadas questões morais e éticas. Como tal, “A Hero” é uma “caixinha” de tópicos para um debate pós-sessão, e Farhadi feliz para que isso aconteça.” Ler crítica

 

#07) In Front of your Face

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“E aí está o trunfo deste enésimo filme, um Hong Sang-soo amadurecido, elegante e delicado na sua estética (sem com isso ceder a “makeovers” radicais), que nos fala sobre vida, morte e promessas vencidas e embebidas em álcool, por sua vez de “pinga envelhecida", sem nunca descrer da sensibilidade desses mesmos temas, com quem encara o encerramento já visível do outro lado da esquina. Deste lado o cético que testemunhou um milagre, pequeno mas que basta, num cinema que sempre fora mais preocupado em alimentar o seu culto do que verdadeiramente interrogar as suas próprias emoções.” Ler crítica

 

#06) Onoda, 10 000 nuits dans la jungle

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O Cinema é também memória, não em jeito memorialista e intimista, mas antes de uma lembrança do que esta arte foi e do percurso percorrido até à sua presente forma. Embora “Onoda” seja uma produção atual, é um filme hoje impraticável pelas mais diferentes razões. Não se trata de resumir ou mencionar gestos de outros e de distantes tempos, Arthur Harari persiste numa vinheta histórica para aludir ao “coração das trevas”, abraçando a selva como a mais eterna inimiga dos Homens. Tropicalismo? Exotismo? Nada disso, esta floresta que albergará os últimos resíduo de uma Guerra desvanecida assume-se como uma armadilha, um labiríntico cativeiro, onde o tempo estagnou num cruel sigilo e a carne está predestinada à sua regressão natural. Harari cumpriu, onde muitos falharam, o de trazer de volta um Cinema físico, protetor da sua herança e com ela a possibilidade de avançar “mato a dentro”. 

 

#05) Azor 

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““Azor”, primeira longa-metragem do suíço Andreas Fontana, marcou presença na edição de 2021 da Berlinale na secção Encounters, um thriller assombroso que tece um universo que bem poderia ser extraído dos enésimos “filmes sobre Máfia” ou dos gestos calculados e maturados de Costa-Gavras. Aqui, nesta Argentina dos anos 80, sem nunca condicionar a um evento histórico preciso, o silêncio é de ouro e a meticulosidade poderá garantir a nossa sobrevivência nesta descida ao inferno capital.” Ler entrevista ao realizador

 

#04) Un Monde

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“Não olhemos para as crianças como um poço de inocência, mas antes como “peregrinos” que desbravam “novos mundo”, claramente “novos” diante dos seus respectivos olhos, e é esse “mundo, a palavra transportada do título original (“Un Monde”) que Laura Wandel concretiza um tratado experiencial num biótopo a nós familiar, e igualmente distante.” Ler entrevista com a realizadora

 

#03) Vortex

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O tempo destrói tudo”. Gaspar Noé "pavoneou" esse lema ao longo da sua filmografia, todas elas indiciadas no ato de provocar. Enfim, o tempo ameaçou destruir, até porque Noé, perante uma  hemorragia cerebral que o quase levou às “portas da morte”, desliga-se dos aspectos xamânicos e místicos, ou da crueldade exaltante em ira, que testemunhamos nos seus filme para se partir numa claustrofobia formal e existencial. Protagonizado por Dario Argento, demonstrando-se decadência física (ontem, um “maestro” do terror, hoje, uma vítima do terror pendular da sua expirável “carcaça”), “Vortex” veste-se de negrume desumano, discreto, e acutilante a um quotidiano vencido, corpos arrastam-se e mentes dilaceram perante o voraz apetite do tempo. Em jeito de “split-screen”, amantes que depois do seu coro distanciam, mais e mais, até que os vestígios do seu último sopro temporariamente instalam-se nos lençóis usados. Morte, fim, nada de digno, nada de romântico, Gaspar Noé parece saber do que fala.

 

#02) The Worst Person in the World

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The Worst Person in the World” é de uma manobra arriscada em pleno século XXI que é o de dar uma oportunidade a estas mesmas personagens de recontar as suas vivências, e demonstrar que ainda há espaço para elas, sem as glorificar ou as vitimar. No fundo, aquela pessoa “horrível”, a “culpa europeia branca sentada no sofá”, é um fruto social que revolta-se silenciosamente contra esses parâmetros. Ler crítica

 

#01) Drive My Car

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“Poderíamos dizer tanta “coisa” sobre “Drive My Car”, poderia e posso, mas é ao terceiro visionamento que percebo, emocionalmente, a cerne de toda aquela palavra (Hamaguchi contou-me o quanto a palavra se tornou no motor do seu Cinema) não está na conquista dos sentimentos, mas as tréguas para com as nossas mágoas, aquilo que nos endurece perante um “mundo em chamas”. Talvez o meu "refúgio de cartão” esteja no Cinema, como disse em tempos, este parece comunicar comigo, ou é somente a manifestação do seu lado zeitgeist, e nós não somos tão “especiais” assim. Conforme seja a verdade absolutista, um facto é que “Drive My Car” vive entre nós, é um filme do nosso tempo projetado para quem olha para ele com desconfiança.” Ler Texto

 

Outras menções: Everything Everywhere All at Once, Nope, Top Gun: Maverick, Memory Box, Flee, The Girl and the Spider

Radu Jude em edição Unrated

Hugo Gomes, 31.08.22

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Bad Luck Banging or Loony Porn (Radu Jude, 2021)

Em “Bad Luck Banging or Loony Porn” (“Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”), a questão não se resume a “mau porno”, ao invés disso, como a atualidade transformou-se em “pornografia rasca”. A mais recente longa-metragem de Radu Jude (cineasta que tem dado cartas na pós-vaga romena e realçando um cinema muito crítico à história do seu país) venceu o Festival de Berlim de 2021 (mesmo que virtual) com distinção, provando além de mais estar ao desencontro do dito radicalismo que muitos querem vender perante o seu formalismo algo tosco, é um cinema que fala na contemporaneidade por vias de uma ridicularização cruel.

O filme inicia assim como um choque frontal. Pornografia explícita e real frente aos nossos olhos, o dispositivo narrativo que culminará toda esta paródia tragicómica de perspetiva quase apocalíptica. Como tal, seguimos a professora Emi (Katia Pascariu), de uma reputada escola, que irá enfrentar o dia mais desafiante da sua vida. Em plena pandemia, ela será sentenciada por um bando de pais raivosos, com a responsabilidade de ditar o seu futuro. O porquê? Porque a nossa protagonista é estrela de um filme de sexo caseiro com o seu marido, que por obra, ainda desconhecida, “cai” na internet à mercê de qualquer um, principalmente dos seus alunos.

Radu Jude não é um nome praticamente desconhecido para os espectadores portugueses, os seus filmes são presença habitual em festivais nacionais, principalmente o Indielisboa  onde conquistou o Grande Prémio com “Aferim!”, em 2015, e “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental” não foi excepção nessa mesma tradição, garantindo lugar cativo na programação do festival lisboeta de cinema independente em 2021. Foi nesse período e através desse evento para o qual o contactei para falarmos sobre o seu filme. Dessa conversa nasceu uma troca de ideias que para além da sua nova produção, pandemia, Roménia e até mesmo cinema português eram igualmente mencionados.

[Abaixo segue a entrevista, versão integral e completa da publicada no Sapo]

Gostaria de começar por lhe perguntar de onde surgiu a ideia para este filme e ao mesmo tempo questionar se a pandemia teve um papel fundamental na inspiração do projeto?

Na verdade, a ideia veio antes da pandemia, só que a vinda dela me obrigou a adaptar a tal cenário.

Sendo assim, que desafios trouxe a pandemia ao filme?

Influenciou-se de duas maneiras. A primeira foi a adaptação da história ao contexto pandémico e tivemos de alterar alguns pormenores ali e acolá. A outra, talvez a mais importante, esteve relacionada com a segurança e proteção da equipa e do elenco. Quando estávamos a rodar, no final do Verão do ano passado, os casos de COVID estavam a subir e todos nós estávamos preocupados. Tínhamos alguns atores vulneráveis e que solicitavam mais proteção, por isso tive que mudar. Como se pode ver, no último ato de “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, a ação era para decorrer numa sala de aula, mas talvez por razões dramáticas, visto que durante a pandemia tais reuniões em sítios fechados não eram recomendados, alteramos a sequência para o ar livre, com distância social e máscaras. E é isso também, o uso das máscaras, não só entre a equipa, mas no filme. Queria captar aquele momento em que vivíamos, a cidade “vestida” nesse medo pandémico. Como tal, as máscaras não só funcionaram como um método de segurança na rodagem, mas também como um marco temporal para o filme.

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Radu Jude na rodagem de "Bad Luck Banging or Loony Porn" (2021)

Teve que lidar com algum caso de anti-máscara na equipa?

Sim, mas... no caso dos anti-máscaras ou anti-vacinas... compreendo que, para se ser rebelde, tem que se quebrar regras, ser contra as autoridades. Apoio totalmente isso... só que, nestes casos, julgo que vão numa direção oposta. Porque ser contra as máscaras é ser contra o outro, a saúde do próximo. Não usar máscara não é só um risco para quem não quer utilizar, mas para os outros, é como ir na autoestrada a 200 km/h, torna-se um perigo, quer para si como para os outros. Nisso não vejo rebelião alguma, mas sim narcisismo e egoísmo. Expus isto à minha equipa e apenas alguns é que resistiram. Claro que custa fazer um filme ou atuar com máscara, rodamos com tempo caloroso e durante várias horas. É normal que torne o processo ainda mais fatigante. Mas há uma diferença entre esse cansaço e o sacrifício que todos nós fazemos para levar a cabo o projeto. Ou seja, todos, de alguma maneira, cedem para pertencer a uma equipa.

No terceiro e último ato do seu “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, aquela reunião entre pais e a professora, foi quase como olhar para a atualidade das nossas redes sociais. Ouvimos teorias da conspiração, antissemitismo, racismo, misoginia, homofobia, um conservadorismo prejudicial, entre as outras barbaridades, é como se o Facebook ganhasse um corpo e rosto.

É verdade. Houve um crítico romeno, Andrei Gorzo, que escreveu que se assemelhava a um conflito de Facebook. Penso que têm razão porque baseei-me realmente no tipo de interações e no dito "barulho" de como saltamos de tópico em tópico nas nossas discussões no espaço virtual. É por isso que tento artificializar essa mesma discussão, tratando-a como uma "sitcom" ou uma comédia de arte, afastando do realismo e abraçando a caricatura. É como Picasso disse uma vez sobre as caricaturas, se não são realistas é porque são verdadeiras.

Para ser sincero, não fiquei convicto que essas figuras fossem totalmente caricaturas, por vezes pareceram-me tão … familiares. 

Sim, claro que juntar todas aquelas vozes no mesmo espaço por mais de meia hora seja meio exagerado. Mas hein? Não é isso que são as redes sociais? Agregadores de discursos díspares? Infelizmente, como bem sentes, aqueles discursos podem ser encontrados exatamente daquela maneira.

Há uma frase que não é literalmente citada no seu filme, mas que parece ser constantemente invocada – “Não há revolução, sem revolução sexual”. Tal que foi vezes sem conta mencionada no clássico jugoslavo de Dusan Makavejev, “WR: Os Mistérios do Organismo” (1971), que acredito que tenha sido uma influência para si, principalmente na forma como a sociedade descrita no seu filme lida com o intimismo e o desejo sexual da Mulher.

Antes de mais, temos que ter em conta que existe uma diferença entre países. O que se passa na Roménia é bem diferente do que ocorre na Alemanha, ou do que ocorre na Holanda, ou até mesmo em Portugal. Não existe bem um senso comum na Europa ou Ocidente, como quisermos chamar.

Porém, é verdade que na Roménia estas atitudes sexistas, misóginas, homofóbicas são mais acentuadas que em outras sociedades como aquelas que mencionei … pelo menos em comparação com a Holanda e Alemanha, nisso tenho a certeza. Claro que o Makavejev foi uma influência para mim, e aqui tentei prestar a sua devida homenagem, não sei se reparou, mas a certa altura é possível ouvir parte da banda sonora do “WR: Os Mistérios do Organismo”. E não só Makavejev, mas uma fatia importante do cinema jugoslavo. No meio deste turbilhão de influências também posso garantir que me baseei na Vaga Francesa, desde Rivette a Godard, e “pitadinhas” de literatura modernista, propícias a esta fragmentação narrativa.

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Katia Pascariu em "Bad Luck Banging or Loony Porn" (2021)

Mantendo a questão da sexualidade, gostaria que me falasse sobre aquela primeira sequência.

O filme porno?

Exatamente.

Foi a única cena filmada antes da pandemia. Um mês antes. Tivemos um ator pornografico e a Katia Pascariu o qual devo-lhe todos os elogios. É uma grande atriz, que tem feito bastante teatro independente e político, e que demonstrou zero complexo para com esta sequência. Aliás,a rodagem desta cena foi bastante cómica, e curiosamente o ator porno mostrou-se mais inibido que a Katia

No segundo ato, intitulado “Pequeno Dicionário de Anedotas, Signos e Maravilhas”, quando chegamos à definição da palavra 'Cinema', somos confrontados com a seguinte ideia: “O cinema reflete os horrores do Mundo, os quais estamos demasiados amedrontados para ver na sua realidade”. Isto, entrando numa metáfora alusiva ao mito de Medusa. Gostaria de confrontar esta mesma definição com o seu cinema.

A citação, em si, do contexto da Medusa e do seu olhar para atribuir significado para com a nossa relação com o cinema, foi retirada do livro “Theory of Film”, de Siegfried Kracauer. É uma frase poética, mas que penso não se enquadrar totalmente com a ideia de cinema. No fundo, gosto desse paralelismo com as imagens visualizadas no ecrã para com a mitologia ateniense de Perseus e o seu escudo espelhado, como única forma de olhar para a monstruosa Medusa. Neste caso para os horrores do mundo que os nossos olhos “a nu” são incapazes de lidar. Colocando dessa maneira, são levantadas mais questões do que respostas. Susan Sontag falou disso no seu livro “Regarding the pain of others” [“Diante da Dor dos Outros”], sobre a complexidade e questionabilidade da realidade. A imagem, em si, é questionada consoante a sua natureza. Por isso mesmo, não tenho com isto uma resposta concreta, nem sequer uma solução para permanentes dúvidas sobre a que imagens deveremos assistir, quais as que devemos rejeitar. Se é eticamente correto vermos imagens de horrores ou se as devemos desprezar. Julgo que nós, enquanto Humanidade, teremos uma resposta absoluta para isto.

Mas no seu filme “I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians” (2018), você exibe essas “imagens de horror” com o propósito de captar as reações a elas. 

Sim, é verdade … por vezes mostro “imagens de horrores”. No filme que mencionas não era bem o ato de mostrar, quer dizer era impossível reconstruir um massacre, mas foi uma tentativa com um propósito. Só que sim, é um problema e um interminável dilema. 

Em muita da sua obra, assim como neste filme, critica a Igreja Ortodoxa ...

Não tanto como queria. [risos] Deixe-me só salientar isto: não tenho problema algum com religião. Claro, desde que não apelem à violência. Nem com os crentes, com a fé em geral. Por mim, as pessoas podem acreditar no que quiserem, até mesmo no horóscopo [risos]. O meu problema com a Igreja, a Ortodoxa neste caso, é ela como instituição, que por diversas vezes se associou a movimentos fascistas. Desde a sua origem turbulenta, que levou à criação daquilo que foi comummente designado como “Ku Klux Klan Ortodoxo”, passando pela ditadura comunista, onde a Igreja fez parte do regime, até posteriormente ligar-se ao poder político e difundir sempre uma mensagem racista, homofóbica e aí fora. É neste sentido que estou contra a Igreja. Quer dizer, se fosse simplesmente para cuidar dos seus fiéis não me oporia, mas pelo facto de se assumir como uma força política com ambição de mudar a sociedade não só para crentes, mas para todos nós... não posso apelar a qualquer simpatia por uma instituição destas.

Tendo em conta o tipo de produção que nos chega, nomeadamente a dita Nova Vaga (Cristian Mungiu, Cristi Puiu, Corneliu Porumboiu ou até mesmo você), na qual o podemos incluir, e até, recentemente, pelo documentário “Colectiv”, ficamos com a sensação de que a Roménia é um país terrível para se viver. [risos].

É uma questão demasiado complexa, e tem, obviamente, uma relação de comparação e perspetiva. Por exemplo, se eu vir os filmes de Pedro Costa, a minha primeira impressão é que Portugal é um país horrível para viver. Mas depois assistimos a um Manoel de Oliveira, ou até mesmo ao “Diamantino”, e já não partilhamos essa ideia. A verdade é que os cenários oferecidos pelo cinema não são 100% coerentes. O que acontece é que nós, romenos, sofremos com a comparação. Comparamo-nos com muitos dos países ocidentais e sentimo-nos mal com essa comparação. Sentimo-nos pobres, incultos ou pequenos. Como referiu, um "terrível país para viver”, com imensos problemas, pobreza e maus políticos. Temos muito para resolver, mas equivalente aos nossos problemas, muita boa gente que forma este país.

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Colectiv (Alexander Nanau, 2019)

Mas nem tudo é mau, e voltando à comparação, se fizermos com, talvez, uma Albânia ou uma Ucrânia, reparamos que, na Roménia, possuímos algumas liberdades que faltam a esses países. E poderíamos ser grandes com uma boa direção, com os ditos bons políticos. Mas como dizia, são questões complexas e a culpa não é concreta. Pode ser nossa, como pode ser da União Europeia, sei lá, é simplesmente complicado. E nisso, é para mim, um dos grandes problemas com o "Colectiv, porque o filme praticamente nos diz que o problema vem da velha política e sistema, e que isso pode ser resolvido com a entrada de novos políticos. Como Vlad Voiculescu, que se especulava que teria a possibilidade de alterar o cenário se fosse promovido a ministro da Saúde. Como tal, fica “bem” no filme, mas é bastante ingénuo e simplista. Porque isso aconteceu, esse tipo converteu-se no ministro da Saúde num novo governo no ano passado e o que resultou foi um desastre. Não por ser corrupto, ele não é corrupto, mas por ser um incompetente e narcisista. Obviamente, que a culpa não seja só dele, o sistema é demasiado grande e profundo para ser alterado apenas pela vontade de uma só pessoa. É uma ideia ridícula e ridiculamente inocente. E é esse o meu problema com o “Colectiv”, o de dar a ilusão de que o sistema pode ser combatido por apenas uma pessoa.

Referi “Colectiv”, porque o filme teve uma forte expressão aqui em Portugal. 

Atenção, acho o “Colectiv” um bom filme, nada contra e não estou a menosprezar o seu impacto, só que traz a ideia errada de que algo tão entranhado pode ser mudado com a força quer de um político ou de um jornalista, é mais complicado que isso.  

Se grande parte do cinema romeno que atravessa as fronteiras é um cinema político e contra as forças políticas em atividade, como é a sua relação com elas? Existem boicotes, “censuras” ou impedimentos para que esta visão seja transmitida para o mundo fora?

Na Roménia, o cinema é tão insignificante que não se torna cúmplice do poder local e gere como cresce de uma forma independente. Apesar de existirem certos aspetos, estamos satisfeitos com essa independência que nos garante uma certa liberdade que, novamente voltando à comparação, alguns países não possuem. Por exemplo, a Hungria. Claro, que temos alguns jornalistas, políticos, conservadores e 'influencers' que se revoltam contra o nosso cinema, mas, na minha perspetiva, acho isso ótimo [risos].

Quanto a novos projetos? É sabido que apresentou recentemente em Locarno uma curta experimental.

Bem, tenho dois projetos. O que foi apresentado em Locarno [“Caricaturana”], o outro que será em Veneza [“Plastic Semiotic”]. E estou a trabalhar em mais duas curtas, sobre a história da Roménia e da Europa. Acabei de receber financiamento para um novo filme, que espero começar a rodar já para o próximo ano. Tenho reescrito o guião, será um filme bastante simples mas que sempre tive vontade de concretizar e espero conseguir fazê-lo. Será sobre relações entre indivíduos e grandes empresas.

De que maneira a pandemia o afectou, ou afecta, a si enquanto realizador?

Tirando todos os elementos que abordamos, sinceramente não me afetou de todo. Para mim é como se não tivesse tido confinamento [“lockdown”]. Trabalhei neste filme e fiz muita ‘coisa’ online, incluindo casting, encontros e preparações, como também viajei, mesmo que difícil se tenha tornado. Fui à República Checa e ao Luxemburgo para a correção de cor e a edição de som. Depois entrou a Berlinale, de seguida trabalhei nas minhas curtas, tenho ido aos festivais quando consigo. Para mim é como se não tivesse havido uma pandemia, quer dizer, estava ciente e a minha vida social foi afetada, mas a nível profissional continuei a minha jornada como realizador. Nada mudou na trajetória, só os meios. 

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I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians (2018)

Em Portugal, o cinema saiu bastante afetado com pandemia …

Ah sim, os cinemas … Obviamente que sim, aqui na Roménia também muito do nosso cinema foi afectado e as salas de cinemas. Mas o que posso fazer? Apenas continuo o meu trabalho enquanto posso e pelas suas possibilidades. Resistimos e acredito que o cinema resistirá.

Há pouco citou nomes como Oliveira, Pedro Costa e o filme “Diamantino”, segue ou costuma ver Cinema Português?

Oliveira, Costa, Miguel Gomes, Susana Sousa Dias e … bem, agora está-me a faltar o nome … o realizador do “Comédia de Deus”.

João César Monteiro?

Isso. Gosto de cinema português e sigo aquilo que consigo. Mas do que vi encontro muitas parecenças como cinema romeno, não consigo bem explicar, mas deve ser algo de espírito. Mas não é só de cinema, sou um admirador do Fernando Pessoa, amaria visitar a casa dele aí em Lisboa

Nunca veio a Lisboa?

Não, nunca meti os pés em Portugal. [risos]

Mas os seus filmes são “habituèes” dos festivais de cá, principalmente o Indielisboa, onde o seu “Aferim!” ganhou o prémio principal no certame de 2015. 

Eu sei, e nunca faltou oportunidades para ir aí.

 

* O filme está disponível na Filmin Portugal [ver aqui]

Será a justiça civilizada?

Hugo Gomes, 15.07.22

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A realizadora Teodora Mihai “apropria-se” duma história envolvente de narcotráfico e do flagelo de raptos ocorridos no norte mexicano, conduzindo essa jornada ilícita e ambígua pelos olhos de uma civil - Cielo (Arcelia Ramirez quase leva o filme de atrelado) - que vê a sua filha sequestrada por essa mesma rede. Mesmo com o resgate pago, a protagonista é “aprisionada” em esquemas atrás de esquemas, cujo desespero a leva a unir-se a militares especializados no combate aos cartéis, uma associação que revelará em Cielo uma fúria constante, o antídoto à sua constante impotência, como também acesso a um mundo onde por vezes a salvação é tão ou mais sádica do que as forças que combatem. 

Coloquei aspas na palavra “apropria-se” com um simples propósito, trata-se de um relato mexicano, puro e duro e evidente nas suas entranhas, fruto de uma pesquisa intensa quanto a este cenário, contudo, a cineasta é de origem romena (a primeira longa-metragem), a encarregada de trazer para o grande ecrã esta desesperada resistência maternal. Se por um lado, encontramos um enredo que facilmente envergaria pelos estreitos caminhos da vigilância revanchistas (“Taken” depressa nos ocorreria na ponta desta intriga) ou nos habituais jogos culturais e político-sociais entre mexicanos e norte-americanos, a fronteira como trincheira, que deu origem a toda uma tendência por vezes muito bem-sucedida (“Sicario”). Contrariando isso, “La Civil” afronta-se na óptica de uma “civil”, fora das brigas entre federais e criminosos, rompendo também as objetivas da ação normalmente reconhecidas nas variações hollywoodescas, para encaminhar num registo de realismo austero (não é por menos que o romeno Cristian Mungiu e os irmãos Dardenne integram a produção do filme). 

Porém, sendo um filme próximo de uma cadência documental (o projeto foi pensado como um documentário, transitando para a ficção como mera segurança) é vertiginosa a transformação algo tortuosa da personagem de Ramirez, em paralelo com a de Álvaro Guerrero (ator célebre no mundo telenovelesco mexicano), o pai da jovem raptada, que manifesta uma impotência ainda maior, tendo em conta que a sua masculinidade é conflituada pela ocultada e não perceptível carência.

Por entre guerras de cartéis, Mihai espelha uma descida infernal de uma “inocente”, um mero dano colateral, que cuja contaminação com este ambiente a transforma numa espécie de impiedoso anjo da vingança. Tudo isto lido entrelinhas, de câmara à mão, orbitando de volta à ação e sugerindo mais do que expondo. “La Civil” escapa dos lugares-comuns pela sua imposição de poder, descortinando as vozes silenciadas de uma disputa moral. 

Os Melhores Filmes de 2021, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 29.12.21

Depois da tempestade vem a bonança, pelo menos seguindo os ditados populares poderemos considerar que 2021 foi o ano revitalizador do cinema. Contudo, os ecos da pandemia e as ameaças de novas variantes têm indicado um regresso tímido às salas, em oposição de um cinema-fénix que surge das cinzas da modernidade que conhecíamos e que muita tristeza nossa apelidamos de “normalidade”. São filmes que nasceram dessa decadência civilizacional e que debruçam na nossa "barbárie" como foi o caso de Radu Jude e o seu “Bad Luck in Banging or Loony Porn”, ou que remetem-se a paraíso longínquos da nossa memória [“O Movimento das Coisas”], ou questionam a nossa identidade nos confinamentos da existência [“Titane”]. No fim de contas, o Cinema sobreviveu, o que nos basta é procurá-lo nos meios das proclamadas ruínas! Segue a lista dos 10 filmes imperdíveis do ano de 2021, que (privilegiadamente) tiveram estreia portuguesa.

 

#10) Compartment Number 6

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"Nunca me canso de citar Fernando Lopes na sua breve aparição de "The Lovebirds" de Bruno De Almeida - “Existe uma beleza triste na derrota” - e tendo esse signo em vista, é de facto inegável a beleza nas ferrovias de “Compartment Nº6”. Resistindo à melancolia como uma falhada festa!" ler crítica

 

#09) Les choses qu'on dit, les choses qu'on fait

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"“As Coisas que Dizemos, As Coisas que Fazemos” percorre por vias de palavras essas dúvidas supostamente existenciais das personagens, que se vão cruzando e entrelaçando umas com as outras através de relato e discursos. Está feito aqui um universo a merecer ser explorado, de felizes e tristes acasos, e de conflitos discretos, de ênfases dramáticas subtilmente embutidas nos gestos, nas carícias ou nos beijos trocados antevendo despedidas. Sensibilidade é o que é aqui pedido, porque casos amorosos todos nós vivemos, nem que seja por um dia. Dentro dos tais ditos “filhos de Rohmer”, eis um filme que é, de facto, um pedaço de céu." Ler crítica 

 

#08) Bad Luck Banging or Loony Porn

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Em “Bad Luck Banging or Loony Porn”, a questão não se resume a “mau porno”, ao invés disso, como a atualidade transformou-se em “pornografia rasca”. A mais recente longa-metragem de Radu Jude (cineasta que tem dado cartas na pós-vaga romena e realçando um cinema muito crítico à história do seu país) venceu o último Festival de Berlim (mesmo que virtual) com distinção, provando além de mais estar ao desencontro do dito radicalismo que muitos querem vender perante o seu formalismo algo tosco, é um cinema que fala na contemporaneidade por vias de uma ridicularização cruel. Ler crítica

 

#07) The Human Voice

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A atriz britânica é das forças maiores deste projeto, que requer mais do que a sua capacidade de assimilar, a sua expressão em nos convencer de uma veracidade poética tida nas suas palavras, nas suas angústias, na sua linguagem corporal, enquanto emana um monólogo justificado. Esta é a história de uma mulher em jornadas existencialistas cuja ausência do seu "mais que tudo", o impulsor de toda a postura trágica, a leva a tomar medidas. Ler crítica

 

#06) Nomadland

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Inspirado no livro “Nomadland: Surviving America in the 21st Century”, de Jessica Bruder, Chloé Zhao marca a sua posição, quer na definição de realismo, separando qualquer simulacro "hollywoodesco" e submetendo McDormand, bem como outros atores, a um convívio de constante aprendizagem com não-atores, as tais pessoas de carne-e-osso que tanto procuramos nos filmes. Trata-se de um processo de criação que funde ficção em território documental e o híbrido daí gerado percorre os trilhos de um "império" deixado ao abandono. Império que aqui não é citado por acaso: remete para a ironia do destino, em que a cidade Empire onde vivia a protagonista, outrora industrializada e habitada, se tornou um endereço postal inexistente. Ler crítica 

 

#05) Titane

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Portanto, “Titane” opera consoante a interpretação e representação que lhe quisermos dar e visualizar, nunca prescrevendo em absolutismos ou propagandas. É terror, choque, sangue e bizarrias. E, ao mesmo tempo, política, identidade e sociedades espremidas numa só arte. Uma complexa panóplia disfarçada num gesto de repugnar o espectador, com uma atriz titânica como Agathe Rousselle a servir-nos de compaixão e incómodo e um dos mais excêntricos desempenhos de aclamado ator Vincent Lindon. Ambos em figuras presas às suas maldições, que ambicionam pelo aço o que os seus corpos invejam. Ler crítica

 

#04) O Movimento das Coisas

São poucos os que ainda preservam essa veia cinematográfica na ruralidade, ao invés de ceder ao facilitismo formal, diversas vezes elogiado por elites de pensamento crítico cinematográfico. E é por isto, e não só, que “O Movimento das Coisas” é um filme crucial na nossa História, um modelo ora acidentado, ora poetizado sem bucolismos latentes. Ler crítica

 

#03) Undine

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Undine torna-se Berlim, e Berlim torna-se Undine, uma cidade, um corpo, que não morre, simplesmente dá a vez a outro. Christian Petzold pode não ter aqui a essência bruta e já flexível da sua cooperação com Nina Hoss (saudades), mas sabemos que temos, não um desfecho, e sim, uma aurora. Um reinício do seu Cinema. Não querendo banalizar um termo, por si só, tão banalizado, eis um belo filme. Ler crítica

 

#02) Another Round

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Pelo que sabemos, a tragédia bateu à porta de Vinterberg a pouco tempo do início da rodagem, automaticamente virando uma possível comédia de “velhotes” que ousam sonhar com uma juventude embebida em martinis, numa superação ao seu luto, uma história pessoal e experiencial (não confundir com experimental) sobre o retomo da vida, à “normalidade” que foi configurando perante as mudanças. Nesta lufa-lufa de confinamentos e desconfinamentos, chegar a nós um filme assim, tão antiquado e igualmente vívido é um quasi-antidoto da melancolia contraída pelo nosso quotidiano. Aliás, Cinema é também isto – sentimento – até porque é Vida. Então brindemos à Vida … mais um shot!Ler crítica

 

#01) Gunda

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Kosakovskiy conseguiu mais uma experiência a merecer, de forma digna e obrigatória, o grande ecrã, porque no fundo o cinema transporta quem o vê para uma outra dimensão, realidade ou linguagem. “Gunda” fala-nos com exatidão de um mundo tão perto de nós, mas tão ignorado pelo nosso antropocentrismo. São animais a serem simplesmente animais e as imagens de crua beleza assumem exatamente aquilo que são e nada mais. Não existe engodo, tudo respeita a natureza e a sua autenticidade. Obrigatório. Ler crítica

 

Outras menções: Beginning, The Father, Cry Macho, Colectiv, Prazer Camaradas

 

Simplesmente, "mau porno"!

Hugo Gomes, 12.03.21

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Em “Bad Luck Banging or Loony Porn”, a questão não se resume a “mau porno”, ao invés disso, como a atualidade transformou-se em “pornografia rasca”. A mais recente longa-metragem de Radu Jude (cineasta que tem dado cartas na pós-vaga romena e realçando um cinema muito crítico à história do seu país) venceu o último Festival de Berlim (mesmo que virtual) com distinção, provando além de mais estar ao desencontro do dito radicalismo que muitos querem vender perante o seu formalismo algo tosco, é um cinema que fala na contemporaneidade por vias de uma ridicularização cruel.

O filme inicia assim como um choque frontal. Pornografia explícita e real frente aos nossos olhos, o dispositivo narrativo que culminará toda esta paródia tragicómica de perspetiva quase apocalíptica. Como tal, seguimos a professora Emi (Katia Pascariu), de uma reputada escola, que irá enfrentar o dia mais desafiante da sua vida. Em plena pandemia, ela será sentenciada por um bando de pais raivosos, com a responsabilidade de ditar o seu futuro. O porquê? Porque a nossa protagonista é estrela de um filme de sexo caseiro com o seu marido, que por obra, ainda desconhecida, “cai” na internet à mercê de qualquer um, principalmente dos seus alunos.

Bad Luck Banging or Loony Porn” aborda uma suposta “obscenidade” para a confrontar com outras presentes, e cada vez mais, na nossa sociedade. Enquanto Emi é atacada pela sua exposição sexual, os argumentos vindos destes encarregados são recheados de discursos extremistas, misóginos, antissemitista, homofóbicos e com algumas teorias da conspiração à mistura. Porém, o alvo é a sexualidade da mulher (e podemos colocar em letra maiúscula porque as nossas mencionadas sociedades “modernas” lidam mal com a libertação sexual, muito mais proveniente da área feminina), o resto, esse caldeirão de perversidades, mau-caracteres e gestos antiéticos são banalizados.

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O que resta é uma reação, um impulso aos estímulos que mantêm viva uma sociedade decadente, ainda conservadora e reprimida. “Não há revolução sem revolução sexual”, os ecos do tão atípico “W.R.– Os Mistérios do Organismo” (Dusan Makavejev, 1971), mencionada invocação pelo próprio Jude, inserem-se como um espírito condenado por um fantasiado armagedão. O Mundo à beira do seu ponto final, não por culpa de um vírus, mas por culpa da nossa natureza, rude e apática (mesmo que a palavra empatia seja a segunda mais pesquisa na internet na Roménia, um passo atrás de “felácio”, segundo o dicionário de idiossincrasias romenas que surge como interlúdio dos seus atos narrativos).

Aproveitando o “palanque”, esse dicionário assumido, irónico e mórbido, gostaria de transcrever a passagem de “Cinema”, o qual essa mesma definição invoca a lenda de Perseus, guerreiro mitológico grego, e o seu encontro com a temível rainha das górgonas, Medusa. Como bem sabem, a outrora mais bela mulher do mundo, castigada pelos deuses e reduzida a uma hedionda criatura, tinha como habilidade (talvez seja mais maldição) transformar carne em pedra através de um simples olhar. Perseus conseguiu o feito de dizimar a tal criatura, utilizando um escudo espelhado. Graças a esta ferramenta, o herói pôde enfrentar Medusa sem olhar diretamente para esta. A lição retirada é a seguinte – o Cinema reflete os horrores do mundo para nós, o qual somos demasiado amedrontados para olhar na sua realidade.

Bad Luck Banging or Loony Porn” é, isso mesmo, um espelho da nossa contemporaneidade.

Um Urso pornograficamente corajoso!

Hugo Gomes, 05.03.21

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Houve coragem em consagrar "Bad Luck Banging or Loony Porn" do romeno Radu Jude com o Urso de Ouro numa edição, longe do normal, do Festival de Berlim. Uma alegoria aos tempos modernos ... e pandémicos, um mundo perverso pronto demonizar a "perversidades" dos outros. Estamos cada vez mais apáticos, incoerentes e sós, Jude apenas dá-nos o nosso "Muro das Lamentações".
 
PS: filme que será abatido quando chegar à nossa praça, até porque o "cinema confortável" ainda mora nas fachadas.

 

Falando com Corneliu Porumboiu, a vanguarda romena nas ilhas Canárias

Hugo Gomes, 21.05.19

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Corneliu Porumboiu dirige os atores Vlad Ivanov e Rodica Lazar em "The Whistlers" (2019)

Corneliu Porumboiu é um dos nomes reatores do chamado Novo Cinema Romeno, donde surgiram cineastas como Cristian Mungiu, Radu Muntean, Cristi Puiu ou Cãlin Peter Netzer, que perpetuaram uma vaga de filmes formalmente realistas, desencantados e ambíguos para coa vangm as diversas questões políticas e sociais que assombram a Roménia. Ao longo dos anos, esse dispositivo narrativo e estético começou a dar os seus sinais de desgaste, sendo Porumboiu um dos primeiros a abandonar esse percursoc e afastar-se dos  conterrâneos ao requisitar um cinema mais próximo dos códigos hollywoodescos. Já o havia tentado em “O Tesouro” (“Comoara” / “The Treasure”) e agora fê-lo com maior plenitude com “A Ilha dos Silvos” (“La Gomera" / “The Whistlers"), um thriller noir minado de humor e ironia, onde um polícia corrupto (interpretado por Vlad Ivanov) terá que aprender uma linguagem à base de assobios para executar um elaborado golpe.

Um filme de traições, cumplicidades e muitos assobios que fizeram Corneliu Porumboiu regressar à Riviera Francesa, ao mais mediático festival de cinema do mundo, Cannes, e desta vez na Competição Oficial. Conversamos com o realizador sobre os seus métodos e processos e sobre este seu projeto que é encarado como um atalho para uma nova veia artística e criativa. 

Deixe-me iniciar esta conversa para informá-lo que desde a estreia de ontem à noite [première no Festival de Cannes], começaram a chover artigos sobre o seu filme “pedir uma versão americana”.

Sinceramente, acho que isso é bom [risos].

Porventura, aceitaria realizar um remake deste seu filme?

Não sei não, não me sentiria à vontade para contar a mesma história novamente.

Em A Ilha dos Silvos evidenciamos uma constante desconstrução dos códigos de cinema americanos. Talvez seja isso que fez com que o seu filme seja apetecível para esta “suposta versão americana”.

Eu via imensos filmes quando era criança, desde os filmes de Bruce Lee até aos clássicos canónicos: Hitchcocks, Chaplins e Buster Keatons. A razão foi mais porque vi imensos filmes na minha vida .., não só americanos. Aprecio também o Melville, nomeadamente o jogo de gato-e-rato criado em “Le Cercle Rouge”.

Como surgiu a ideia para este filme?

Este filme estava pensado já há imenso tempo, esta história de um polícia que segue para uma ilha para executar um golpe, aprende uma língua à base dos assobios e essa mesma linguagem torna-se muito mais pessoal que um mero estratagema, tudo foi calculado e trabalhado pacientemente. Desde os capítulos até ao seu ritmo, foi todo um processo que demorou o seu tempo.

Quando trabalhava no Politist, adjectiv, há 10 anos, vi uma série televisiva onde demonstrava esta linguagem, e foi então que me interessei pelo tema e iniciei uma investigação. Escrevi um rascunho, porém, avancei no “When Evening Falls on Bucharest or Metabolism” (…) julgo que depois de “O Tesouro” lancei-me num segundo rascunho, ou seja, regressei a este universo com um guião tão diferente do primeiro.

Foi um processo longo e quando senti que a estrutura estava, por fim, completada, comecei a refletir o tipo de personagens e que atores poderiam encená-las. Para isso, regressei ao noir, um subgénero que não assistia há bastante tempo, e de lá tirei algumas ideias do que poderia ou não reutilizar neste meu projeto.

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Catrinel Marlon em "The Whistlers" (2019)

Esta ambiguidade apresentada em todas as formas no seu filme, reflete um pouco o estado social e político do seu país [Roménia]?

Quando faço um filme obviamente que reflito no meu carácter e a natureza ao meu redor, até porque vivemos num mundo em que tudo motiva uma história. O facto de eu vir de um país ex-comunista e que ainda hoje encontra-se assombrado, gere este tipo de filme de ambiguidades rodeado de personagens ambíguas e sobretudo envoltos na temática da corrupção.

Fale-me do seu trabalho com o ator Vlad Ivanov e o porquê da sua escolha no elenco?

É a segunda vez que trabalho com ele. Este filme nasceu envolto dele, construi a personagem com base nele e o resto do elenco foi também baseado, o qual demorei cerca de um ano a formá-lo. Para mim é um excelente e dedicado ator. Por exemplo, neste papel, o Vlad teve que perder “coisa” como 14 quilos em um mês e meio.

Gostaria que me falasse sobre a seleção de músicas que escolheu para formar a banda-sonora deste filme. É que temos aqui uma coletânea bastante diversificada!

A banda-sonora, em certa maneira, é a representação de uma personagem, de um estado de espírito, um cúmplice emocional destas personagens e da narrativa. Porém, o meu maior objetivo neste filme foi materializar a ilha de “La Gomera” através da música. Era importante para mim transformá-la numa espécie de personagem. Adicionei a música enquanto editava as cenas, desta forma pude encontrar o ritmo pretendido. Por exemplo, o Passengers do Iggy Pop que toca no início transmite-me um certo surrealismo e travessia, visto que a cena que a acompanha é a passagem num túnel.

O facto de “A Ilha dos Silvos” ser um thriller noir definido foi também uma forma de apelar a um público mais vasto?

A questão de género surgiu depois do processo de criação. Nasceu da maneira como estava a tratar da temática, aliás, partindo do princípio que chamava a este sistema de assobios de linguagem teria que procurar uma linguagem para este filme. É óbvio que as audiências se identificarão mais com o género, e isso garantirá um filme mais aberto para um grande leque de público.

Faço filmes de 10.000 euros ou 15.000 euros como o “Infinity Football”, por exemplo, mas quando dirigimos filmes de maior escala como este, devemos ter sempre uma noção de marketing, porque o cinema para além de uma arte é uma indústria. Claro que a atitude de entranhar no cinema de género não foi meramente comercial, eu gosto de experimentar ‘coisas’ novas, de me desafiar e explorar novos horizontes. Por isso, encontrei no noir esse novo olhar.

E foi através dele, aliás, os seus últimos filmes têm seguido essa direção, de demarcar sobre o sigilo formal da nova vaga do cinema romeno? Ou seja, afastar-se do estilo que os seus colegas, como o caso de Cristian Mungiu, ainda persistem?

Para ser sincero, não sei responder a isso. Cada um com o seu cinema. Aliás, o cinema é tão grande que cada um pode ir para um trilho diferente. Gosto do Cristian Mungiu, do seu tipo de cinema, das suas personagens, do estudo que faz com elas, dos propósitos com que as retrata. Não vejo porque tem que ser diferente, ou querer ser diferente. Possivelmente, tentei procurar novas formas narrativas, novas estruturas, mas de certa forma sou eu que estou a ir ao encontro das formas clássicas.

Aqui, a minha concentração foi a história acima de tudo, na ação e o mínimo que precisamos para representá-la. São trabalhos diferentes quando temos personagens que se escondem nos seus gestos e que não aguentam close-ups, é uma outra estrutura que nos puxa para uma direção completamente diferente.

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Vlad Ivanov em "The Whistlers" (2019)

Mas mesmo andando pelos géneros distintos, a sua filosofia se mantém. Continuamos a evidenciar a corrupção moral das personagens.

O meu interesse é o de fazer filmes, não filosofia. A minha preocupação é tornar possíveis mecanismos que funcionam. Por exemplo, quando escrevo, até mesmo nos documentários, improviso imenso e com isso recuo diversas vezes até ao ponto de partida para perceber o que funciona ou não. Se sigo por um caminho que deparo com algo que não funciona no argumento, volto atrás e percorro outra direção.

E um dos caminhos que seguiu foi o humor. “A Ilha dos Silvos” é rico nisso.

O humor é instintivo, além disso tive que cortar muito no filme e muitas dessas cenas continham diálogos realmente cómicos, mas que sentia que não operavam com o ritmo e atenuavam a tensão. Mas é algo que gosto e que surge naturalmente.

É difícil escrever diálogos de conotação humorística?

Quando escrevo diálogos sou bastante preciso e quanto às situações aqui do filme pesquisei e trabalhei o mais possível. Neste tipo de filme, o da jornada e do protagonista que julga ter tudo controlado mas que há sempre alguém que destrói os seus planos, fez-me requisitar um certo tipo de humor. O quanto a vida pode ser absurda até certo ponto, quando imaginamos ter algo e no dia seguinte não está lá mais, tentei com este mesmo esquema na última parte do Tesouro. Aliás, esse filme foi uma espécie de experiência àquilo que iria tentar com A Ilha dos Silvos.

Diga-me, aprendeu a assobiar após este filme? [risos]

Tentei, mas não consegui. [risos] Devido à minha pesquisa, tenho a teoria mas falta-me a prática.

Quanto a novos projetos?

Não gosto de pensar em novos projetos após terminar um. De momento, não tenho nada planeado.

Cristian Mungiu: "Nós é que redefinimos os limites da nossa consciência moral"

Hugo Gomes, 26.11.16

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Graduation (2016)

Premiado com o Prémio de Realização na 69ª edição do Festival de Cannes, Cristian Mungiu apresenta “Graduation” (“Bacalaureat”), a sua última obra que remexe novamente em consciências morais e em fantasmas do regime de Ceausescu. Este filme de fortes traços de realismo filmado, chega às nossas salas após uma passagem pelo Lisbon & Estoril Film Festival. Tive o prazer de falar com um dos grandes nomes da chamada Nova Vaga do Cinema Romeno.

Como surgiu o argumento deste “Graduation”?

Foi uma combinação de vários temas. Durante algum tempo estava determinado em fazer um filme sobre o “envelhecimento“, aquele que só acontece quando olhamos para trás e apercebemos que esse mesmo passado não nos agrada, assim encaramos o futuro com outro objectivo. Na altura, não encontrei automaticamente a história certa.

Em simultâneo, reflectia sobre a paternidade, a educação, nas minhas crianças e foi então que me surgia em mente, questões como: “o que posso dizer aos meus filhos sobre a sociedade que vivemos? Qual o tipo de futuro que queremos para elas e pode ser proporcionado?” Depois, procurei a melhor forma de expor a sociedade atual, uma relação que compromete-se através de uma sociedade corrosiva. Todos estes temas borbulhavam na minha cabeça, a partir daí decidi combiná-las num só filme, porém, como não tinha a narrativa nem a temática escolhida, peguei no meu computador e lancei-me numa pesquisa por inúmeros artigos de acontecimentos que marcaram a nossa sociedade nos últimos 5 anos.

Foram notícias, jornais, revistas, o qual rabisquei, cortei e colei, até conseguir criar um argumento que falasse de todos esses problemas sociais e que tivesse uma certa ligação real, mas que não fosse totalmente baseado em factos verídicos. Como tal nasceu “Graduation”, um filme que fala sobre o futuro, o crescimento e as nossas próprias decisões.

É possível educar as nossas crianças com uma educação diferente daquela que obtivemos?

Não sei, foi graças a essa questão, pelo qual, eu fiz este filme. Através desse dilema tentei fazer com que “Graduation” me respondesse. Será possível que o Mundo mude através de uma nova geração, sabendo que essa mesma é educada pelos mesmos ideais e valores de uma geração anterior? Sinceramente, não sei. Só sei que tal não é racional, para o Mundo realmente mudar, era preciso que essa nova geração afastasse dos seus antecessores, teria que haver um espaço ininterrupto que pudesse quebrar a corrente. Quando falo nisto, não digo que devemos negligenciar os nossos filhos, não, teríamos que sim educá-las consoante o mais adequado para uma eventual mudança, e não para o que achamos correto. Obviamente que com isto não quero afirmar que sou um mau pai, porque uma coisa é fazer da maneira mais racional possível, a outra é comprometer as nossas ligações emocionais com as pessoas que mais amamos.

Penso também que fiz este filme sobre as pessoas que são incapazes de lidar com as situações de forma racional, que se deixam levar pelas emoções. Até porque não somos personagens, somos seres humanos que dificilmente acreditamos ou questionamos aquilo que nos acontece em vida.

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Cristian Mungiu

O "Graduation" é, no geral, uma reflexão sobre os limites da paternidade?

Sim, pode ser um filme sobre os limites da paternidade, sabendo que com a paternidade surgem vários dilemas, muitos deles, não com as respostas corretas. Sabes, por vezes é fácil, enquanto pais, causar danos às nossas crianças, mesmo que isso não seja totalmente intencional, como o encarar a sabedoria como algo hereditário, que passe de geração a geração. É evidente que mesmo com a educação atenta dos nossos pais, praticamos as nossas próprias decisões e cometemos os nossos próprios erros, mas é ao tornar-nos pais que afrontamos a ideia de que podemos realmente moldar os nosso filhos consoante a nossa “educação“, ou seja, acabamos por cometer os mesmos erros que os nosso pais, e assim sucessivamente. É uma corrente.  

Educamos as nossas crianças tendo como base a educação que os nossos pais nos deram, chegando mesmo a afirmar as mesmas afirmações que os nossos progenitores proclamaram certo dia. Pensamos “nem acredito que estou a dizer isto?“. Obviamente, que também pensas como seria bom que as coisas acontecessem desta maneira, mas ao mesmo tempo sabemos que não vai seguir o previsto.

Se nós estamos a preparar as crianças para a vida real, temos que parar com o habitual discurso moralista de “não mentir“, “não roubar“, “não trair“, “não pisar os outros“, esses moldes de doutrinas são, de certa maneira, vistas como ideais de um “falhado nesta sociedade“, por outro lado, ensiná-las a ser lutadoras poderia, de certa forma, alterar essa mesma. Mas isso cabe a nós decidir, quais são os verdadeiros limites da paternidade. Conforme seja a nossa decisão, andamos de “mãos dadas” com as alterações da nossa sociedade.

Em “Graduation”, ficamos com a sensação de que a corrupção, por mais pequena e involuntária que seja, é um ato profundamente natural do Homem moderno.

Para responder a essas questões, eu cito inúmeras vezes a realidade, sem necessariamente julgá-la, nem explicá-la por demasiadas palavras. Mas julgo que essa corrupção é muitas vezes confundida com o compromisso, uma espécie de mecanismo de sobrevivência, uma adaptação aos obstáculos que nos surgem, mas ao mesmo tempo, quando somos pais, temos que carregar este “fardo”. É essa a diferença do mundo idealista, aquele, pelo qual, preparamos a nossa criança, e o mundo real.

O filme tenta investigar aos poucos esta relação, gradualmente aborda as causas da complexidade deste fenómeno [corrupção], que é algo tão fácil de julgar. “Graduation” diz que nem tudo isto é errado, até porque quando queremos ajudar alguém ou até mesmo combater um regime, praticamos estes actos “imorais“, no entanto, os encaramos como uma espécie de luta, até porque as nossas intenções são boas. Nos dias de hoje, o regime já não é mais o inimigo número um, ao invés disso, nós é que nos tornamos a grande ameaça. Nós é que redefinimos os limites da nossa consciência moral.

De regresso à sua questão, julgo que as pessoas encontram-se desapontadas devido à dificuldade, ou quase impossibilidade, de mudar algo. As coisas são o que são, e é preciso imensa energia para uma pequena mudança. Quanto à mudança total, é quase “o impossível“, que é apenas resolvida com soluções coletivas. O filme refere bastantes essas divergências entre decisões individuais, aquelas que fazemos para nós ou para a nossa família. A imigração é um bom exemplo sobre soluções individuais. Todavia, é necessário existir as ditas soluções colectivas, se não, o “barco” naufraga.

“Graduation” entra em paralelismo com um êxito seu, “4 Months, 3 Weeks and 2 Days”, onde um específico evento abala e altera toda a personagem. É este o seu modo de narrar as suas histórias, pegar em acontecimentos que drasticamente marcam as suas personagens?

Não sabemos o que vai acontecer a estas personagens após o desfecho do filme. Quem sabe? Sim, eu pego em eventos drásticos que as suas personagens vivem, mas se estas vão mudar a conta disso, sinceramente, não sei responder. Julgo que isso não acontece muito na vida real e penso que nós próprios não mudámos assim tanto, mas é com as experiências que aprendemos algo. Algo sobre a vida, sobre si mesmo, sobre a situação, sobre a sociedade, até mesmo de integração. Mas julgo que tal não nos altera em longo termo, ao invés disso, algo morre em nós, perdemos algo muito próximo, e compreendemos que vivemos uma vida, e tal evento poderá ser importante, mas que só durará 3 dias, e depois regressas à tua vida.

Por isso, não sei realmente o que vai acontecer a estas personagens, mas o espectador deve entender que eu falo sobre as suas respectivas vidas reais. Por vezes, chegamos a entender o que vivemos através de vidas encenadas no grande ecrã.  

No final das sessões dos meus filmes, mais concretamente nos QaA, ouço imensas experiências vividas pelos espectadores. Ou seja, eles, de certa maneira, identificam-se com o que está retratado. É por essas e por outras que existe o Cinema.

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Graduation (2016)

Então é, em derivação dessa aproximação, o motivo pelo qual os seus filmes devem muito ao realismo?

Faço esse estilo, porque é a minha definição de Cinema. Porque acredito que o Cinema pode ajudar, não só, a conhecermo-nos, mas também a entender os outros, as nossas vidas, o nosso redor, e para isso temos que praticar um Cinema mais vinculado no realismo, apesar da vida real não ser tão espetacular, nem entusiasmante.

E ao seguir esse mesmo estilo, temos que ponderar alguns artifícios bem valiosos no Cinema, um dos exemplos é a edição. Na vida real não há edição, por isso, o meu Cinema tem que possuir o menor uso desse mesmo artifício, toda a cena deve ser filmada num só take. Outro exemplo é a música, não existem bandas sonoras na vida real, tal não poderá existir no meu Cinema. O que tento fazer é captar a emoção através da situação, é uma tarefa árdua, eu sei, sem a utilização desses artifícios, mas é sim que pretendo continuar a fazer Cinema.

As edições rápidas, as músicas que entram e saem, as cenas de ação, são tudo factores sedutores. Principalmente para quem deseja fazer entretenimento. Para os meus filmes que falam sobre a vida das pessoas, não podem existir esses meios de manipulação. Para tal, tenho que abdicar desses mesmos artifícios narrativos.

Por vezes eu sinto que os meus filmes adquirem um certo padrão de thriller, mas isso é a forma com que sinto em relação à vida. As pessoas estão cada vez mais stressadas, angustiadas e decepcionadas.  

É complicado filmar tudo num só take?

Por onde devo começar. Primeiro analiso e escolho a luz, abordo a cena e tento ver qual o ângulo que a filmar, atesto através da perspetiva que anseio contar esta determinada ação. Penso num cenário, durante a escrita, e procuro algo que corresponda ao imaginado. Se não encontro, construo-o. Obviamente que aquilo que imaginas não se aproxima da realidade, mas enquanto não houver mais nada a fazer, adaptas.

Depois trazes a equipa técnica, que trazem equipamentos de variados tamanhos e feitos. O Cinema é um processo bastante técnico que parece criativo. A partir daqui, posicionamos todos nos seus devidos lugares, apontamos a câmara para o ângulo desejado, e os atores decoram os seus diálogos e gestos em cenas de 10 a 15 minutos, pelo qual devem efectuar na perfeição. Todo este processo, só numa cena, demora … deixa lá ver … 20 a 40 takes.

É cansativo, complicado e no final do dia sentimos absolutamente exaustos, mas igualmente realizados. Todos os dias acabo por falar com cada um dos membros da minha equipa, encorajando-os para mais um round ou reparando certos pormenores. Todos os dias é uma luta, se não conseguimos filmar mais que uma cena num dia, tudo bem, alteramos o  cronograma, e recomeçamos no dia seguinte. Eu consigo fazer isto, até porque sou o produtor dos meus próprios filmes, o que me dá o direito de usufruir desta liberdade.

Quanto a novos projectos?

Não falo sobre novos projetos, porque nunca tenho novos projetos. Penso demasiadas vezes nos meus filmes, naquilo que fiz bem, no que correu não tão lindamente, no que foi importante referir ou o que precisa ser referido. Mas também penso nas pessoas, mais concretamente naquilo que as deprime, que as deixa angustiadas. Tento compreender as suas naturezas, as suas causas, e em consequência disso, por vezes, acabo de encontrar o filme certo, o ritmo certo e a história certa.

Muitos pensam que tudo se resume a direção, mas para mim o mais relevante é o argumento. Procuro sempre o tópico, o tema e como o abordar, e como deve ser abordado.