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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

António-Pedro Vasconcelos (1939 - 2024): o senhor do grande público em Portugal

Hugo Gomes, 06.03.24

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Sinto que será uma figura sobre a qual iremos debater nos próximos tempos com uma maior exatidão e menos reação, mas fora isso, para o bem e para o mal, António-Pedro Vasconcelos fazia parte deste círculo reduzido e conflituoso que é o Cinema Português. Muitas vezes expressei o quanto gostava de ouvi-lo falar sobre cinema, mesmo que discordasse inteiramente da sua visão e, claro, da sua maneira de fazer filmes. No entanto, é neste diálogo que a cinefilia parece ter se perdido, na passarela de egos, na falta de escuta do outro e na defesa da pluralidade de pensamentos.

Quanto aos filmes, é triste que a sua despedida tenha sido com o telenovelesco "Km 224", mas há alguns momentos na sua cinematografia que guardo com carinho (deixo de lado os seus trabalhos de consagração, “Oxalá” e “Um Lugar do Morto”), nem que seja pelo desempenho mais do que feliz de Nicolau Breyner em "Os Imortais", personagem que se tornou num meme vivo - "Está tudo preso, meus cabrões". Ou, como sempre defendi, pelo lado B do cinema americano que "Call Girl" proporcionou. "Deus não existe, porque se existisse era um incompetente", dizia Joaquim De Almeida à sua protegée e isco humano Soraia Chaves "disposta a tudo", ou do malconceituado "A Bela e o Paparazzo", comédia romântica que piscava o olho a um legado iconográfico hollywoodiano. Não que tenha sido a oitava maravilha do cinema português, mas entre isto e os muitos atentados que se praticam em nome do "cinema para o grande público", até ficamos bem servidos com os singelos e até humildes "contos de coração partido" narrados por Nuno Markl.

Houve um tempo em que Paulo Branco jogava poker em "Perdidos por Cem", filme de referências e brindes, ou o encanto do Porto ao som de Rui Veloso em "Jaime", e não podemos esquecer "Amor Impossível", um romance jovial autodestrutivo que chegou a (re)conquistar alguns céticos. Ficamos então sem António-Pedro Vasconcelos, despedimo-nos de um homem cuja visão do seu cinema o relegava a uma certa marginalidade.

A geometria do Mito ...

Hugo Gomes, 03.03.24

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Na véspera da sua exibição no Festival de Roterdão, os jornalistas portugueses, dirigindo-se ao visionamento de imprensa de “Diálogos Depois do Fim” no Cinema Nimas, foram recebidos pela produtora Ana Pinhão Moura que os elucidou sobre um aspecto peculiar da obra. Inicialmente produzida como uma série televisiva composta por 19 episódios, este filme foi concebido e realizado através da "colagem" de 6 "diálogos". No entanto, em Roterdão, o "filme" seria diferente daquilo a que os profissionais de imprensa iriam assistir, tal como indicou a produtora, essa versão seria de uma montagem diferente, uma compilação de episódios previamente selecionados pela comitiva de seleção do festival holandês. 

Assim, "Diálogos Depois do Fim" estabeleceu-se como um filme fragmentado, composto por partes que são construídas pela iniciativa do curador/espectador, nunca detendo uma estrutura original, mas mantendo a sua essência - a adaptação de "Diálogos com Leucó", a obra predileta do escritor neorrealista italiano Cesare Pavese (1908 - 1950), integrado na sua visão de desapropriação do mito grego e igualmente a sua subjugação à natureza mitológica (“O mito é (...) o esquema de um facto acontecido de uma vez para sempre, e retira o seu valor desta unicidade absoluta que o leva para fora do tempo e o consagra como revelação”, citando o próprio).

Em resumo, é um exercício performativo digno de instalação, onde 39 atores e uma pequena equipa, liderada por Tiago Guedes ("Os Restos do Vento", "Coisa Ruim", "A Herdade"), aventuram-se no arquipélago açoriano para encenar os diálogos totalizados (19 dos 27 originalmente presentes no livro) e extrair as figuras mitológicas e mortais fantásticas de Pavese, em conflito de ideias, orbitadas pelos fascínios declarados pelo autor. Desde a existência à dicotomia entre a morte e a vida, da violência à paz, da utopia à distopia, estas conversas imaginadas com o mar no horizonte e a selvajaria intactamente indomável servem de palco para a teatralidade encontrada.

Embora Straub e Huillet tenham feito destas inspirações muitos dos seus campos elísios, nas mãos do oscilante realizador Guedes, entendemos como uma variação mais digna do seu processo do que da sua própria conclusão. "Diálogos Depois do Fim" é um filme transmutável, sem um lar ao qual possa chamar seu, encaminhado como um gesto produtivo em vez de uma obra finalizada. Os Açores contribuem com o ambiente nesta móvel residência artística, e a sua conjuntura para com o desconhecido apela constantemente à imaginação e crença do espectador. O resto tenta permanecer relevante depois do fim. Não sabemos se resultará com a sua arte ...

Dois cinéfilos, um diretor de fotografia e Mário Soares entram num snack-bar ...

Hugo Gomes, 21.02.24

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"Soares é Fixe" (2024)

"Cumpliciamo-nos com a ideia de que o cinema português é dividido por duas grandes trincheiras: a de autor e a comercial, vulgo popular. O que me incomoda com tudo isto é: por que razão esses filmes que apelam às massas são visualmente ‘feios'?” 

Num jantar de puro acaso, numa sexta-feira, tendo um snack-bar/cervejaria à moda franchisada como escolha rápida, dois amigos reencontram-se, a conversa entre ambos vai ao encontro das suas experiências nos últimas dias, com paragens intermitentes no Cinema, o coração de tudo, o pensamento de todos. Entre imperiais, “lambretas” e "príncipes" (termo pelo qual o empregado foi questionado, para garantir que não fosse pedido por engano algo que não satisfizesse a sede por cevada a temperaturas polares), um cachorro do outro , uma francesinha de um lado com batatas fritas à parte- "Se quiseres, podes tirar batatas?" "Não, deixa estar, obrigado" - expondo-se em certo momento esta preocupação, uma discussão retórica, que vale o que vale. 

"E mais, se de um lado tens Acácio de Almeida, Rui Poças, João Ribeiro, Jorge Quintela..."

"Não te esqueças do Leonardo Simões."

"Como poderia esquecer? Já agora, adiciono a Leonor Teles... Mas do outro lado, na vertente 'popular', não tens ninguém que realmente se destaque; é como se esses filmes fossem tão homogéneos, televisivamente falando, e por isso, tão 'feios', nada cinematográficos." 

"E isto vem a propósito de..." 

"Vi 'Soares é Fixe', e para além dos seus defeitos... que não são poucos, um dos aspectos que me incomodou foi a sua fotografia. Não vi cuidado na luz, nem sequer coerência estética ao longo do filme, para além de uma falta de profundidade. Soou-me tudo tão enevoado. Não sei, talvez esteja a ser mesquinho. Procurei nos créditos, Miguel Manso, colaborador frequente do universo de Sérgio Graciano. Ele até pode ser 'bom', percebes? Mas não vejo qualidade neste tipo de trabalhos, o que havia demonstrado e acabou por o fazer neste, foi um tom que não o separa da qualidade televisiva. Facilmente olha-se para "Soares é Fixe" e encontramos uma sensação de conforto num pequeno ecrã

Aqui seria importante contextualizar o dia. Esta saída improvável ocorreu após uma sessão categorizada como warm-up [“Janela para o Arquivo”], aperitivo para a próxima edição do CINENOVA: Festival Interuniversitário de Cinema, na FCSH [Faculdade de Ciências Sociais Humanas, em Lisboa]. Uma sessão integrada por três filmes-escolas, oriundos de ante-câmaras para personalidades como hoje reconhecemos como a realizadora Susana Nobre ou o músico Manuel Fúria, a primeira numa aproximação performativa de um drag-queen [“Transformistas”, 1995 - 1996], o segundo mostrando uma aptidão para distopias numa Lisboa imaginada [“Os Bons Alunos”, 2004 / “Arquivo Geral”, 2006]. A partir daí, discutiu-se o processo, e mais do que isso, as equipas improvisadas e as alianças aí forjadas. Contextualizo porque é aí que o 'parceiro do crime' argumenta: 

"Como pudeste ver na sessão, muitas dessas alianças nascem dos tempos de escola, e para além disso, podem ser cumplicidades criadas ao longo da carreira. Orson Welles dizia que preferia trabalhar com amigos do que com os melhores atores da contemporaneidade, e o mesmo se deve aplicar a este aspeto. Uma questão de comparsas." 

"Sim, tens razão. Porém, estamos a falar de indústria, coloco aspas para não vender uma mentira. E será que nessa indústria, um produtor ou algo do género, não tem uma indicação ou requisito dos melhores no mercado? Por exemplo, nenhuma dessas produções contrata um Rui Poças?"

"Talvez o Poças prefira outros voos?" 

"Sim, e belos voos, o 'Zama' da Lucrecia [Martel] é um postal vivo. Aquela cena nas pampas com palmeiras ao fundo e uma cavalgada lenta tornou-se no papel de parede do computador." 

"Sim, concordo, parece um postal. E o João Ribeiro com o Ivo M. Ferreira?"

"Falas do 'Cartas da Guerra'?" 

"Sim, esse." 

"Não é bem cinema comercial dentro dos padrões convencionais." 

"Possivelmente... mas pronto, o que quero dizer é que este é um meio tão pequeno, os projetos são poucos e, no caso dos diretores de fotografia que mencionaste, possivelmente preferem trabalhar com o seu conforto ou, como integram um cinema que facilmente se estende a território internacional, são mais facilmente contratados por produções estrangeiras. O país é pequeno para a ambição de muitos."

"Faz lembrar o Eduardo Serra.

"Aí está! Fernando Lopes... belíssimo 'Delfim', a sensualidade de Alexandre Lencastre ali captada numa espécie de veludo estético... Luís Filipe Rocha, José Fonseca e Costa e depois, Carlos Saura, Patrice Leconte, Winterbottom e umas voltas em Hollywood." 

"Esteve por detrás de um dos Harry Potter, o do Cuarón, um dos mais interessantes do ponto de vista visual. Sabes, tenho um amigo que diz que ter um bom diretor de fotografia é meio caminho andado." 

"Talvez, conseguirias imaginar o duo do Canijo sem Leonor Teles? Mas mudemos de assunto, como foi o 'Soares é Fixe'?" 

"Há um senso de oportunismo neste filme, além do seu tom puramente televisivo. Já anunciaram uma segunda parte, sobre o Álvaro Cunhal." 

"É uma tentativa de fazer filme político em Portugal?" 

"É demasiado apolítico para isso, apenas descreve as turbulentas eleições de 1986, Mário Soares contra Freitas do Amaral, em termos simbólicos esquerda contra direita, de uma forma esquemática, quase como um fraco manual de História." 

"Para ser cinema político, tem de posicionar-se mais, claramente."

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"Soares é Fixe" (2024)

"Exato! Não se posiciona em nada, não digo explicar quem foi o Mário Soares a quem nasceu ontem, mas sim acreditar no filme e na sua consciência. Em vez disso, limita-se a apresentar factos e episódios, sem grande esforço para construir um cenário sociopolítico da época em que pudéssemos acreditar. É o mesmo problema que teve em 'Salgueiro Maia: O Implicado', apesar de este ter tentado ser um biopic nos termos mais convencionais e com a intenção de ser explorado como uma série televisiva. Aliás, Graciano tem demasiados vícios da sua carreira em televisão." 

"Não sei como continuas a acompanhar, eu desisti no 'Linhas de Sangue'..." 

"O 'Assim Assim' não era mau, tinha ideias e, acima de tudo, humildade, e no 'Njinga, Rainha de Angola', há uma sequência tão antoniana que me apeteceu perdoar o filme pelos seus pecados originais... agora, 'Linhas de Sangue' é outra história... Vejo, porque faz parte, quer se goste ou não do Cinema Português e da sua história, como também tenho o perverso desejo de ser apanhado de surpresa um dia destes." 

"Achas que ele te vai surpreender de alguma forma?" 

"Tu próprio já usaste o caso Todd Phillips como exemplo, dizendo que é um realizador pouco interessante e, no entanto, certo dia pariu um 'Joker'. E dou-te o exemplo de Richard Kelly, 'Donnie Darko' foi um ‘one hit wonder’, por que não acreditar no oposto?" 

"Sim, mas..." 

"'Soares é Fixe' é um desperdício de oportunidade, é um facto. Tenho fé de que, num futuro próximo, Sérgio Graciano nos dará um bom filme. Quem sabe se será 'Os Papéis do Inglês'..." 

"Esse é o que terá produção do Paulo Branco?" 

"Sim, esse."

A noite prolongou-se com mais um par de cervejas até se perceber que só restava estas duas almas no estabelecimento, para além dos seus funcionários que lançavam olhares reprovadores - “quando é que pensam ir embora, estes” - devem ter pensado enquanto rogavam ‘pragas’. Uma espreitadela no relógio. A mínimos minutos para a meia-noite, a indireta de que deveriam seguir para as suas respectivas casas.. Algumas últimas notas sobre o quotidiano, planos futuros e promessas para uma próxima vez. Uber solicitado. A chegada ao ponto de recolher acompanhado com a devida despedida. “Deixa o ‘Soares é Fixe’ de lado, não vale a pena escrever sobre ele.” disse à medida que abria a porta do Tesla preto que o aguardava. “Olhe que não, olhe que não”, respondeu acenando o amigo.

Um talentoso senhor português em Londres

Hugo Gomes, 07.02.24

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Rodrigo Areias [em entrevista à Agenda Cultural Lisboa] desafia os espectadores a discordarem do título da sua nova longa-metragem - “O Pior Homem de Londres” - que aborda o chantagista, trapaceiro e manipulador negociador de arte, Charles Augustus Howell (1840 - 1890), figura digna de uma Londres vitoriana à luz de Arthur Conan Doyle (aliás é sabido que o escritor inspirou nele para compor um dos arqui-inimigos de Sherlock Holmes, e o filme mantém a sua presença como easter egg para os mais atentos). Aqui, interpretado por Albano Jerónimo em generosas doses de pomposidade, estabelece-se como um dos responsáveis pela difusão e influência do grupo de Pré-Rafaelitas, autores e artistas que na ordem de discordar da estética corrente e acadêmica, regressam às bases românticas e góticas, procurando nelas uma espécie “honestidade artística”. Dessa colheita surgiram personalidades como John Everett Millais e Dante Gabriel Rossetti, este último como estrutura óssea do drama de época aqui imposto, e cujos espíritos estabelecem pontes entre as ambições de Howell e a sua sensibilidade artística, deveras ambíguo devido à natureza da sua personagem-central.

Areias, produtor prolífico (“O Barão”, “Listen), une-se a Paulo Branco para trazer esta história sob uma perspectiva portuguesa, visto que o infame Howell tinha umas quantas “costelas lusitanas”, e tal como o manifesto artístico serviente como cenário, “O Pior Homem de Londres” anseia a regressão, instalar-se no belo conforto do “filme de época”, e para tal abre-se o armário de um vistoso guarda-roupa, até à criatividade, sem falhas, de converter Viana do Castelo numa Londres “faz-de-conta”, ou pela fotografia de Jorge Quintela, a declaração artística Pré-Rafaelitas, aliando-se à câmara irrequieta e igualmente dócil com que cada travelling por salões afora é "pincelado". É um filme com o seu "quês" de oliveriano com injecção generosas de naturalismo, ou do romantismo com que Visconti se encantou nos seus exercícios “de época”, ou, com influências de Branco, a prolongação da “portugalidade do tempo da outra senhora” de Raúl Ruiz.

Contudo, com rasgos ali e acolá, a sua narrativa devidamente esquemática (assinado por Eduardo Brito, o mesmo autor na conversão da obra-prima de Bessa-Luís ao reinado do cinema) expressa um travão a qualquer criatividade fora das quatro linhas, sentimos preso à convencionalidade em um jogo que tem tanto de televisivo (sentimos alojados a um espírito à la BBC) e de uma passividade que nunca exalta devidamente a figura de Howell (apesar de Albano Jerónimo estar em grande forma, como também está Victoria Guerra na sua representação de Elizabeth Siddal, uma das principais musas do movimento Pré-Rafaelitas). E como falou-se em “território televisivo”, e pelo andar da carruagem das nossas produções cinematográficas, não seria de estranhar a passagem de “O Pior Homem de Londres” como série, expandida e adequadamente recortada ao pequeno ecrã.

Takes Roterdão 2024: na balada das 'vidas passadas'

Hugo Gomes, 05.02.24

The Ballad of Suzanne Césaire

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Se o espectador nada conhece sobre Suzanne Roussi-Césaire (1915 - 1966), escritora e precursora do movimento afro-surrealista e pan-tropicalista, isso não se converte em impedimento algum para o exercício trazido deste “The Ballad of Suzanne Césaire”, primeira longa-metragem de Madeleine Hunt-Ehrlich, e tal é evidente no momento em que Zita Hanrot - a atriz encabeçada para a interpretá-la (num filme dentro de um filme, e vice-versa) -, após a leitura de alguns dos seus escritos se dirige ao público, quebrando a quarta parede, constatando: “estamos a tentar fazer um filme de uma artista que não deseja ser recordada”. 

Portanto, o filme parte do suposto que nada se conhece sobre Césaire e que a própria Césaire nada se revê nessa pedagogia, prosseguindo então à ‘balada’ propriamente dita, ao gesto da rodagem de um filme sobre a escritora, biopic a apontar a convencionalidade, e a forma como essa convencionalidade é distorcida num constante “salto ao eixo”, ora entramos na ficção, ora entramos no exercício meta. Porém, o meta pouco ou nada tem de meta sem ser a auto-conscientização do exercício em si, o filme apregoa num ensaio atrás de ensaio, citações e espiritualidades sublinhados ao ato de desconstrução, que em Césaire aprontava num anti-colonialismo, aqui na intenção de quebrar fronteira entre as mais diferentes realidade. 

The Ballad of Suzanne Césaire” é um biopic contra todas as biopics, garantindo o lugar da sua personalidade a léguas da banalização que o cinema em massa pressupõe, e fora isso, a sua riqueza lírica embalada nas imagens que tanto tem de obscuras como nostalgicamente confortantes, ou da escuridão que também albergaria espíritos de outras épocas, exorcizadas através de danças milenares. Conhecer ou não conhecer Suzanne Césaire não é a questão, a questão é manter o seu legado vivo em frame

Tiger Competition

 

Praia Formosa

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Olhar para o passado, como quem olha para o presente. “Praia Formosa”, co-produção luso-brasileira, é a continuação do trabalho da realizadora Julia De Simone sobre a génese do Rio de Janeiro, invocando os fantasmas aí “enterrados” na sua cidade portuária. 

Adução ao seu passado colonialista, e acima de tudo um descortinar dessa História intencionalmente apagada e “desculpada” em nome do Progresso, projetada ao futuro que se reflete num espelho de uma nação que pouco ou nada de interesse tem pela seu próprio percurso, e tal nota-se pelas ruínas substituídas pela arquitetura moderna, a paisagem que metamorfoseia até se tornar naquilo que hoje conhecemos e identificamos como Rio de Janeiro, seja fílmico, seja de postal turístico. Através dessa intenção, “Praia Formosa” saboreia a esquizofrenia do seu ambiente, representado numa diluição de narrativas guiadas por épocas distanciadas temporalmente, unidas apenas pela demanda de uma personagem que de passado como de futuro se diluem na sua própria deambulação, a vivente de um esclavagismo que faz “turismo” pelas ruínas daquele cenário forçado. 

Julia De Simone explora as raízes afro-culturais da sua cidade, e para isso empresta-se à sua heroína, Muanza (Lucília Raimundo, “Um Animal Amarelo”), para a encaminhar e ser encaminhada. É um retrato sobre os temas que hoje perduram na discussão da realidade brasileira, que leva-nos à sua polarização, de um lado um encobrimento e “branqueamento”, afigurado na cidade em constante construção, e do outro os “vingadores” pelas memórias de outrem, resgatadas dos escombros. A discussão é complexa, vasta, o qual não se resume a meia dúzia de linhas e muito menos a um filme de 90 minutos, porém, “Praia Formosa”, esse descolar das vertentes documentais de Simone (o filme insere-se numa trilogia composta por curtas documentais, “O Porto” e “Rapacidade”), é encorajado pelo seu exercício de pseudo-época, sem condescendência nem paternalismo, ou agressividades quanto ao seu discurso. 

Relembrar vidas passadas como quem deseja homenageá-las e não vingá-las, entendendo-as como matéria performativa e dramatúrgica. Quanto ao retrato da cidade, reflexo esse que tem contagiado um novo cinema brasileiro, quase arqueológico e museológico (o gesto leva-me ao exercício de invisibilidade / visibilidade de “Todos os Mortos”, assinado pela dupla Marco Dutra e Caetano Gotardo), que funciona como arquivo que o Brasil carece, e muito. 

Tiger Competition

 

O Filme Feliz :) 

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A boa disposição de “O Filme Feliz :)” aufere-lhe um manto de especialidade enquanto atravessa territórios comuns principalmente associados ao cinema português recente. Gonçalo [Almeida] e os seus amigos rumam à casa do seu falecido avô e nela deparam-se com as memórias e , pelo meio, alguns fantasmas que por lá se foram “encalhando”, só que essa jornada de descoberta (e de auto-descoberta) parte de um tom milagreiro, uma benção que lhe transfere uma transcendência e igualmente júbilo com que se relaciona com a morte e outros nefastos afazeres. 

Duarte Coimbra (“Amor, Avenidas Novas”) cita de tudo, esses lugares comuns do cinema familiar e memorialista da nossa praça (embrulhado numa linguagem de artesanato tão característico dos autores da desconstrução - Miguel Gomes e João Nicolau, para exemplificar), desde fotografias a filmes-achados, e por outras, sobressaindo entre bandas improvisadas e um pontuado “Menino da Lágrima” lá pendurado, “O Filme Feliz :)” tem tanto de kitsch como de modernaço, triste como de alegre, vivaço como de fúnebre, e nesse último aspecto, Luís Miguel Cintra, decadente (nada podemos fazer para contornar essa inevitável da vida) que nos surge como um “fantasma do natal passado”, de olhar encantado e continuamente triste, presença que enriquece e transfere ao trabalho de Coimbra uma espécie de legado a preservar. 

Portugalidades, juventudes, a mesma “sopa” … porém, vénia feita, um filme bem disposto sobre memórias que deixamos e das memórias que procuramos. 

Secção: Short & Mid-length

 

On Plains of Larger River & Woodlands

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Português residente na Tasmânia, Miguel de Jesus afasta-se lentamente do bestiário animal de “Ultimate Bliss”, filme-curta epistolar sobre relações humanas onde esse factor encontrava-se visualmente ausente e no seu lugar o Reino Animal detendo as imagens como suas. 

Em “On Plains of Larger River & Woodlands” arrancamos com a rapina e sequencialmente o wallaby albino, mas é na partilha do primeiro que notamos precocemente um fragmento humano, sinal antecedente a essa eventual cedência, atalho para o território doméstico, mais concretamente um quarto, íntimo e convidativo, onde duas amigas partilham as suas experiências e vivências. De Jesus desejou trazer a este filme uma ideia de “exotismo” desconstruído, primeiro porque o discurso entre elas rodeia-se de situações nada vulgares que em outros olhares apelariam à indignação ao choque ou ao embaraço, e segundo, aí novamente, a animalidade que se confunde com essa humanidade, até ela se tornar, imagéticamente, simbiótica. 

Trazendo consigo um intimismo partilhável e com desejo de partilhar, esta curta também partilha (prometo não abusar mais do verbo) o lado epistolar de “Ultimate Bliss”, não exposto no discurso-narrado, mas disfarçado na sua concepção. Segundo o realizador, o filme foi montado à distância, e cuja correspondência fílmica se revela numa alegoria às milhas que geograficamente separam Tasmânia e Portugal, porém, é desta maneira o Cinema a assumir no mais dedicado dos sistemas de correios. 

Secção: Short & Mid-length

"Não é um filme sobre carros, é um filme com carros", Paulo Carneiro guia-nos pela "Via Norte"

Hugo Gomes, 22.01.24

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"Périphérique Nord" (2022)

À segunda longa-metragem e ao segundo encontro, Paulo Carneiro mantém-se motivado em presentear-nos com o seu cinema, a sua ideia, a sua concepção, para a qual não existe pessoa melhor para a explicar do que ele próprio. Mas voltando ao filme, depois da sua autodescoberta em "Bostofrio", segue para a Suíça ao encontro de uma comunidade lusa de emigrantes, cujo carro é a respetiva catedral, um altar à sua identidade, ao seu jeito memorialista de "ser português". O realizador frisa constantemente para que não nos deixemos levar ao engano; "Via Norte" ("Périphérique Nord") não é um "filme sobre carros", é um "filme com carros", no qual as viaturas são atalhos ao que realmente mais importa no cinema de Carneiro, que é aproximar pessoas.

Numa nova conversa, com novos temas, mas rodando os anteriormente mencionados tópicos, Paulo Carneiro disponibilizou o seu tempo para nos falar de "Via Norte", do cinema "que lhe dá na telha", sobre emigração e identidade portuguesa, e do seu próximo filme, "A Savana e a Montanha".

Avanço com a questão-base, como surgiu a ideia para a sua segunda longa-metragem?

Geralmente, a temática dos meus filmes – refiro-me "os meus filmes" porque, bem, estou a concluir outro, neste momento - é fruto de processos muito orgânicos. Ou seja, não ando à procura de ideias; elas vão surgindo porque alguém menciona algo, e a partir daí encontro algo muito pessoal nelas. Aqui, na verdade, faz parte de um imaginário infantil. Na aldeia dos meus pais, a minha mãe na Beira Baixa e o meu pai em Trás-os-Montes, em Bostofrio, onde realizei o meu primeiro filme, em criança, via a chegada dos emigrantes, acompanhados pelos os seus grandes carros. Ficava ali especado, a observá-los, porque talvez eles me transmitissem algo. Este fascínio também era responsabilidade do meu pai, visto que sempre gostou de carros; já trocou imensas vezes e dedicou bastante tempo a isso. Também partilho essa paixão.

Na verdade, havia muito julgamento por parte das pessoas que permaneceram na aldeia em relação aos emigrantes. Mas para mim, emigrar é um ato de coragem e há sempre críticas por parte daqueles que ficaram em relação a eles, que chegavam com grandes carros, alguns modificados e outros não, mas geralmente tinham sempre os veículos a brilhar. Isso intrigava-me, porque eu verdadeiramente apreciava ficar ali como quem visita um museu para ver uma pintura ou uma escultura, ou algo do género. E, de certa maneira, refletindo sobre isso.

Ou seja, é uma coisa imaginária da minha infância que continua presente em mim, e até recordo que, na altura em que “Bostofrio” estreou, várias pessoas comentaram comigo sobre isso, questionando o que se faz depois de realizar um filme na aldeia, meio autobiográfico e assim por diante.

Eu digo: olha, vai-se para a cidade e faz-se um filme à noite, e brinca-se com esta ideia da cultura pop, mas tentando e tentando, sempre indo para um dispositivo formal muito clássico. E, na verdade, é um bocado isso. 

Para mim, era também tentar glorificar a ideia de emigração. Tenho dois tios emigrados, fui viver para a Suíça durante uns tempos para fazer este filme. Pronto. Mas isso é uma situação forçada. Mas efetivamente dou muito valor à emigração porque tenho noção das dificuldades e de várias pessoas que conheço que trabalham no estrangeiro, das dificuldades que é a tua adaptação a uma nova cultura. E é, não me parece nada que faça sentido julgar esta coisa da exibição do carro. Porquê? Porque o carro para mim é como para eles, pelo que percebi no processo deste filme, aquela imagem do caracol que anda com a “casa às costas”, neste o carro é a “casa deles”. Estás a ver que é um símbolo de sucesso? E qual é o problema de se gostar de carro e gostar de exibir um carro? Eu acho que não tem problema nenhum.

A minha leitura do teu cinema, desde "Bostofrio", onde foste à procura de uma memória do teu avô e acabaste sempre por (re)descobrir-te a ti próprio, a tua própria identidade. E aqui também vais buscar um pouco dessa identidade, mas desta vez a identidade portuguesa, através desta conversa com o dono daqueles carros, fala muito, sobretudo, sobre a sua própria identidade espelhada nos respetivos veículos.

Pois, eu acho que é isso! O Kaurismäki também diz isso! Ele diz que o carro é o dono. É uma continuação do dono. Acho que carros que tento mostrar no filme, são fruto da relação dessas pessoas. Elas tentam incutir nas viaturas, modificam à sua maneira, ou seja, a forma como tratam os carros é o espelho delas próprias. Alguém disse que os carros de hoje em dia não têm personalidade, por isso prefere o seu um carro antigo porque reflete a sua personalidade.

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Paulo Carneiro

Acho que este é um filme com carros, mas que não é um filme sobre carros. Serve-se dos carros para falar de outras pessoas, das pessoas e de um amor e de um carinho. E de que forma a máquina pode transpor a personalidade da pessoa? Por vezes as pessoas confundem-se um bocado e ficam com medo de um filme sobre carros. Isso não interessa para nada. Costumo dizer, isto é um filme com carros, não é um filme sobre carros. Pode interessar até mesmo às pessoas que andam de bicicleta.

E tu fazes constantemente essa finta. Abordas as pessoas só para falar sobre o carro e eles acabam por falar sobre a sua própria experiência na Suíça e do que é ser português ou o conceito que têm da questão da imigração. Como sofrem? Quer na Suíça quer em Portugal, porque quando regressam, sentem que não são mais portugueses de alguma maneira, porque todo o ambiente faz com que eles sintam que não são de lá.

Exato, efetivamente, a grande proposta era fazer uma elegia a estas pessoas e criar um filme em que se visse o trabalho, mas que não se filmasse o trabalho, mas que se vê o trabalho no objeto do carro. Não estava interessado em fazer aquele cinema da emigração que fala do trabalho, no sentido de que se filma-o e as suas más condições, etc. Pretendia mostrar um lado diferente e fazer uma espécie de elogio a estas pessoas, uma homenagem até. Do que tenho ouvido, existem pessoas que se irritam com este pessoal que vinha, e que trazia o seu objeto de sucesso - o carro, o seu tesouro - e que fazem as pazes com elas, porque acho que também é um preconceito, é um estereótipo que se criou e que na verdade não é bem assim. E o filme também joga contra esse estereótipo.

Absolutamente, aliás, saliento que até existe uma palavra associada aos regressados, “avecs” penso eu, que é uma maneira de separá-los dos “portugueses que ficaram”. Separar os “contaminados”, culturalmente, dos “puros”.

Quando estás a ver o filme, não sentes um amor por aquelas pessoas e sentes que elas legitimam esse amor pelo carro? Porque o carro também é um objecto de integração. Os que têm carro se juntam num grupo com outras pessoas que têm carro, e assim formam uma comunidade.

A sensação que tenho é que os portugueses quando estão lá fora fortalecem os laços entre uns e outros, porque os que os une é a própria identidade.

Estas pessoas que o filme mostra, se juntam a outras pessoas com carros da mesma forma que cá nós juntamo-nos para ir ver futebol no café ou outro desporto. Na Suíça faz mais frio, e é um ambiente diferente, não se juntam num café, e até a cerveja custa entre 5 a 6 €. 

Mas é isso. Cada pessoa vê no filme o que quiser. No meu ponto de vista, é um filme que se aproxima das pessoas através de outras pessoas.

Mais próximo do final, antes da cena do mercado da Pontinha, que já te questiono, gostaria que me falasse daquela boleia do curdo, os “não-pátria”, os que têm identidade mas que não têm país. Até que ponto encaixas nesta ode identidade portuguesa, o qual têm o seu lugar, Portugal, com as dos curdos que são desprovidos de uma nação?

Comecei a falar com o Abu por mero acaso, não estava planeado integrar o filme. Ele elogiava muito as habilidades dos portugueses, especialmente no que diz respeito à modificação de carros, ou seja, no tuning. A sua entrada simplesmente aconteceu. O Ricardo Leal, diretor de som, que tinha ficado na Suíça, foi apresentar o “Bostofrio” em França, e foi aí que conheceu o Abu. Na altura das apresentações, quando vou falar com ele, e conta que é curdo. Já tinha pressentido qualquer coisa, porque praticamente toda a montagem do filme segue cronológicamente a ordem de que o filme é filmado, por isso é que nota-se a modificação da minha abordagem, como o tipo de perguntas que faço aos entrevistados. O filme é também o processo de construção do próprio filme.

Mas voltando ao Abu, parece que os imigrantes encontram-se numa espécie de limbo. É como disseste, têm uma pátria, mas mesmo assim sentem-se num limbo, sem pátria porque é difícil readaptar em cada regresso. O que o filme faz é criar ali um paralelo, claro que é um paralelo incomparável. Quer dizer, são situações muito diferentes. A nossa relação com a guerra é muito diferente, como a nossa relação com o território. E mais díspar nessa ideia de pátria, porque é o maior povo do mundo que não tem uma pátria. Para mim, o  importante ali, de certa forma, era mostrar esta relação com os carros. Não sei se se percebe no filme que esta relação com os carros e esta forma de integração através deles não são uma marca meramente portuguesa. 

Há também muitos albaneses que têm esta relação, kosovares, e o Abu, que é curdo iraquiano, se bem me engano. 

Chegou a ver o filme?

Nunca vi o filme. Fiquei, entretanto, sem o contacto dele no WhatsApp. Andei na Suíça à procura dele, visto que o filme estreou no Vision du Réel, fui à mercearia, ao trabalho, ao bairro dele e nada. Para mim, era importante mostrar as franjas da sociedade suíça, efetivamente do exterior, pessoas que foram para ali à procura de uma vida melhor, seja por que razão for - no caso dele era exílio político - e que tinha essa relação automobilística. Como também, de certa maneira, mostrar que a imigração portuguesa não era fechada e única. 

Nesse sentido, era importante ele estar lá. Todos nós gostamos de carros, mas nós não fechamos a porta a outras pessoas e comunidades. É esse espírito que pretendo criar ali, nessa viagem que prossigo. Ou a de um português que abre a garagem, e que nasça daí a possibilidade de um filme. É abrirmos as portas uns aos outros e não deixar o filme acabar e  eu acho que não acaba.

Por isso é que a conversa com o Abu dá-se por via de uma boleia, a possibilidade de sermos guiados …

Sim, a do cruzamento, ou seja, isso foi pensado … são detalhes. Esse é o único plano que está em movimento, porque está relacionado com a questão da viagem. Vamos acabar, mas estamos em movimento, porque queria que o dispositivo formal fosse diferente do resto. O início, que é visto como o começo da viagem, e depois, mais tarde, é a primeira vez que vês o dia, o filme maioritariamente passa-se todo durante a noite. E pronto, são formas de tentar sublinhar e destacar esses momentos.

Agora sim, podemos falar do último plano, a do Mercado da Pontinha, que neste preciso momento virou arquivo visto que aquele mercado não existe mais. No seu lugar está um parque de estacionamento.

Agora sim, mas ainda não se sabe o que vai ser realmente aquilo. Os carros ainda não estacionam lá. Tiraram a parte do telheiro, que era onde tinham aquelas mensagens do 25 de Abril, as fotografias do Alfredo Tropa … acho que também tinha as do Eduardo Gageiro, mas não tenho a certeza. Em suma, aquele mercado já não existe.

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"Périphérique Nord" (2022)

Mas sobre esse específico plano, e apesar de termos mencionado o Mercado da Pontinha, que desapareceu, julgo que o grande ponto era o quartel da Pontinha e todo aquele simbolismo do 25 de Abril trazido por esse espaço. E tendo um filme sobre emigração …

E viste bem! Não sei se sabes mas esse quartel virou quartel da GNR, logo também é matéria de arquivo. 

Achava que seria uma referência muito direta, portanto, pensei que não faria sentido incluí-lo no filme. Mas havia mais, mais dois planos, um à entrada do quartel, e outro sob toponímica e referência ao 25 de Abril. Então, pois, mas quer dizer, de certa forma, para te clarificar, no sentido de achar que é um piscar de olho nada direto, porque a imigração que retrato não é uma imigração com essa idade; já são as segundas e terceiras gerações. Mas de certa maneira, é um toque a essa emigração, porque foram os pais deles, um boost inicial da emigração, a partir da década de 50. Para a Suíça começou mais tarde, depois do 25 de Abril

Quero dizer, o meu filme é na Suíça, mas poderia ser no Luxemburgo ou em outro lugar. Ao falar deste filme ao José Vieira, ele dizia-me que não poderia diferenciar as emigrações, que a sua separação era uma mentira. “Imigração só há uma!” Os sentimentos são iguais para todos, sejam dos que vêm do Norte de África, seja da emigração portuguesa para França antes de 74, é igual para toda a gente, independentemente dos traumas de guerra ou não. Percebes aquilo que sentes na relação com o teu país, esta ‘coisa’ de não saber onde pertences.

Para mim, aquela cena é uma referência clara, mas não é uma espécie de libertação. O cinema que me interessa é um cinema que se serve de uma coisa para se expandir para outra. Por isso é que estou neste universo automobilístico, falo dos carros para falar de outros tópicos. Como “Bostofrio”, o qual vou na verdade para me encontrar, para o encontrar, para procurar ou para ir mais fundo na questão da doença da minha avó e fazer uma elegia à minha avó, uma homenagem ao meu pai. Esse é o cinema que me interessa. Se vou falar de uma história de amor, não vou filmar um casal de namorados. Não é isso que procuro no cinema.

Continuas focado na tua demanda pelo “cinema da rua”, o cinema “sangue na guelra”?

Penso que sim. Quando vires o meu próximo filme, vais perceber. É um cinema “bora, bora, ….”. É aquela máxima de todos os filmes que fazes são os filmes que tu viste e que cresceram contigo. Continuo a trabalhar da mesma maneira. Há coisas que posso pensar antes, mas não trabalho com storyboard, isso não me interessa, o que me interessa é chegar ali e perceber o que é. Interessa-me trabalhar com as pessoas que quero, e é essa ideia do “cinema de rua”. É um cinema que te vai dando estímulos atrás de estímulos, e suscitam um brilhantismo como aquele do último plano do “Via Norte”. 

Isso é a minha energia. Sou assim. Eu tenho essa energia e acho que isso é um cinema que me representa, a mim e à minha produtora, a Miguel [de Jesus]. Fazer um cinema espontâneo, que procura mostrar aquilo que somos - nós não procuramos ser aquilo que não somos. Se quiseres chamar isso de “cinema da rua”, penso que também poderá ser alcunhado de “cinema do subúrbio”, porque é uma forma de ver as ‘coisas’ de uma outra perspetiva. Isso se sente. 

Para mim é importante que as pessoas que eu filmo gostem e que consigam vê-lo. É importante para mim, e não é por isso que seja um filme que artisticamente tenha menos valor que outro filme. É trabalho do ritmo, o tempo das ‘coisas’, tudo tem um tempo. Aquela ideia do plano fixo ser entediante, é puramente mentira, porque as pessoas que fizeram o filme, que contribuíram nele ou foram filmadas, viram-o e não tiveram problemas com esses planos. Mas acho que já estamos a ter problemas com esse rótulo de ser um “filme de autor”, mas igualmente popular nas salas de cinema. “Ah, mas eu não tenho público para isto”. O público não é tipo a alta burguesia.

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"Périphérique Nord" (2022)

Continuarás com esse registo no “Savana”, o teu próximo filme? Já agora, fala-me desse projeto.

A Savana e a Montanha” é resumidamente um “filme de cowboys”. O montador de som lá do Uruguai diz que é um “western social”. Vou adotar essa perspetiva. [risos] 

Na verdade, foi um filme pedido. Foi filmado em Covas do Barroso, que está a cerca de cinco quilómetros de Bostofrio, de onde surgiu a especulação sobre a maior mina de lítio da Europa. O que saiu foi um documentário muito derrotista, e não era isso que pretendia.

Demorou três anos a ser filmado, mas como não gostei do resultado, e que vai contra o espírito daquelas pessoas - “A gente dos Trás-dos-Montes não é assim!” - decidi fazer outra ‘coisa’. “A Savana e a Montanha” é um filme de intervenção sem ser um filme de intervenção, que se assume na pele de um “filme de cowboys”, o qual mostra a organização do povo contra uma grande multinacional. O lado documental está preservado, com a ficção inspirada na própria vida das pessoas e cujos diálogos são escritos em colaboração com eles.

Também posso dizer que neste filme, eu não entro em cena. 

Na nossa última entrevista declaraste que não te vias a fazer ficção, porque a ideia de dirigir atores não era a tua vontade. 

Não são atores, são não-atores. Foi difícil, mas ao mesmo tempo já tínhamos uma relação de confiança com estas pessoas porque estávamos a filmar o documentário. A ficção foi uma maneira de mostrar a força deles, porque é inspirado nas suas histórias. São eles próprios a fazer deles mesmos. 

E já o meu o meu outro filme, o de Cabo Verde, é um filme de detetives … [risos]

Mas quanto ao lado western de “A Savana’”, não será algo à lá Ennio Morricone, nem nada dessas fantochadas, será uma ‘coisa’ desconstruída, filmado a 16mm e em película.

Catálogo UBICinema 2017 - 2021

Hugo Gomes, 11.01.24

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Grato pelo convite de Paulo Cunha, Tiago Fernandes e Manuela Penafria para participar no mais recente catálogo da UBICinema, que já pode ser adquirido pela Lab Com ou para ser lido (gratuitamente) através deste link.
 
A minha contribuição foi para "Esfera", trabalho de Vitor Gonçalves e Karla Cunha. Dançar como na Vida, na Vida como no Cinema.

"Os nossos filmes servem como arquivo ambulante": Susana de Sousa Dias e Ansgar Schäefer em conversa sobre "Viagem ao Sol"

Hugo Gomes, 09.01.24

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Viagem ao Sol (2021)

É através dos olhos de uma criança, ou melhor, crianças que delineiam as memórias de um país, a essa relação, junta-se o estrangeiro, o estranho e o inquietante de um regime silenciosamente operando nas sombras. Falamos do caso das “crianças austríacas”, enfants da Segunda Grande Guerra, “resgatadas” pela Cáritas portuguesas e levadas para Portugal como parte de uma estrutura propagandística. Um país como o grande refúgio, os “brandos costumes” como a paz alcançada, porém, as crianças relataram anomalias nesse Paraíso, desde um miserabilismo conformado, ao analfabetismo predominante e o provincianismo religioso como estandarte de um regime. Essas crianças, brancas, muitas delas loiras, graciosas e de olhos azuis, a figura perfeita e angelical desta “Viagem ao Sol”.

Trata-se do novo filme de Susana de Sousa Dias, realizadora e investigadora, responsável pelo escrutínio de um tempo de “sótãos e caves” mantidas em segredo, o século XX lusitano, aqui, unida a Ansgar Schäefer, revelam uma história longe dos nossos olhares mas mantida e conectada através de olhares. 

Viagem ao Sol”, documentário de viagens de arquivo e relatos captados por essas outrora “crianças”, um projeto transversal marcando presença nas salas de cinema, incentivando a curiosidade. Histórias que muitos não contam, mas que a dupla deseja, sobretudo, torná-las acessíveis ao comum dos mortais. Uma biblioteca ambulante. 

Segue uma conversa com os realizadores e produtores, sobre esta viagem às “cores”, segundo um dos narradores, e das Histórias à portuguesa que o século XX ainda nos quer ocultar.

Como nasceu este projeto? Pelo que entendi tem uma grande relação com os constantes trabalhos do Ansgar, em que se baseiam nos êxodos, os ecos da Alemanha nazi para Portugal?

Ansgar Schäefer: Pois, é exatamente isso que estava a mencionar. Este projeto está relacionado com o meu trabalho de investigação, que se concentra nos refugiados judeus provenientes do território anexado pela Alemanha nazi. Na minha pesquisa, deparei-me com informações que indicavam a existência de crianças vindas da Áustria, o que, do ponto de vista histórico, não fazia sentido, já que não há registos de crianças a chegar a Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Na verdade, não havia crianças refugiadas em Portugal nesse período. Posteriormente, descobrimos que a situação não ocorreu durante, mas sim após a Segunda Guerra Mundial. Assim, surge uma contradição entre os factos históricos e as afirmações das pessoas. No entanto, dado que esta narrativa envolvia várias pessoas, havia algo subjacente a essa história. Só mais tarde que compreendi que a diferença crucial estava no tempo, ou seja, não durante a guerra, mas sim no pós-guerra.

E, além disso, é importante porque a ideia do refugiado da guerra foi também utilizada para a propaganda do Estado Novo. Ou seja, o Estado Novo fechou as fronteiras aos refugiados judeus e, posteriormente, usou essa situação a seu favor. A ação era promovida e organizada pela Cáritas para mostrar que Portugal era um país que oferecia refúgio, calma e tranquilidade às crianças que sofriam com a Guerra. Assim, tornou-se uma ação propagandística bastante eficaz nesse aspecto, pois alegadamente alinhava numa ideia de Portugal como o único porto seguro, quase um paraíso.

Susana de Sousa Dias: Nessa altura, pensamos em realizar um projeto sobre isso. Para mim, seria uma espécie de imersão nesse mundo dos refugiados que vieram para Portugal. Haviam muitos deles, e começamos a discutir várias questões, o que despertou a nossa curiosidade para aprender mais sobre o assunto. Isso foi há bastante tempo, e depois nunca mais pensamos nisso, não é verdade? [dirigindo-se para Ansgar] Entretanto, envolvemo-nos em outros projetos, e foi apenas em 2016, ou talvez em 2015, que retomamos a esta ideia.

AS: Também tivemos a sorte de entrar em contacto com a Embaixada da Áustria.

Como conseguiram chegar a estas “crianças”?

AS: Como disse, tínhamos contato com a Embaixada da Áustria, e eles, de facto, tinham preparado uma exposição ou um evento semelhante, no qual percorriam várias escolas e abordavam o tema. Haviam compilado uma base de dados com informações de várias centenas de pessoas, e entre essas estavam as tais “crianças austríacas”. Assim, através dessa organizada base de dados, eles podiam fornecer os contatos de determinadas pessoas. Essas, por sua vez, ajudaram-nos bastante. Na Áustria, conseguimos estabelecer contacto com outras pessoas através delas. Portanto, o que acontece é que muitas destas “crianças” encontram-se regularmente em várias cidades. Elas reúnem-se em Viena e mantêm contacto regular entre si. Existe uma certa ligação, quase como uma rede.

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Viagem ao Sol (2021)

Como os veteranos de guerra!

AS: Sim! Exato! Como os veteranos.

E tendo em conta aquilo que é transmitido pelo filme, há também essa definição de refugiado de guerra que foi usada pelas crianças austríacas. Também deu a sensação de que, como mencionaram, elas foram utilizadas pela propaganda do Estado Novo, mas também foram retiradas do seu espaço na Áustria, naqueles escombros, para serem trazidas para cá, com o objetivo de promover uma certa imagem positiva do nosso país. O que o vosso filme apresenta é bastante interessante, especialmente o olhar delas sobre o nosso país, que é uma perspetiva única, um olhar diferente. A história sobre Fátima, que achei maravilhosa, é um exemplo desse olhar de alguém que não compreende completamente a veneração, aquele provincianismo. Quando estavam a recolher estas narrativas e relatos, de certa forma, estavam a criar uma narrativa dentro do filme?

SSD: Sim, o filme cria sempre uma narrativa. Quer dizer, há sempre uma história que é proposta pelo mesmo. Porque nós tínhamos a opção de abordar este episódio de múltiplos pontos de vista. Aliás, pensámos muito nisso e tivemos abordagens completamente distintas.

AS: O que demorou muito tempo.

SSD: Exactamente. E depois? Isso também é uma descoberta, ou seja, o quê? O que é que os materiais nos estão a dar, digamos assim. O que é que os testemunhos, que depois são muito ricos, não é verdade? O que é que as imagens de arquivo querem dizer? O que é que a fotografia transmite? O que é que a própria substância nos está a dar? Houve um momento em que decidimos organizar o filme segundo a perspetiva da criança. O que é que a criança viu na altura em que estava lá? Ou seja, não tanto o adulto no presente, porque seria outra abordagem, não é? Ver como é que as pessoas são hoje, como mantêm as relações com os irmãos, dado que os pais de acolhimento já não existem. Portanto, ir ao presente para ver o que sobrou disso, e não, nós decidimos ver como é que o passado chegou ao presente, dando especial atenção precisamente a esse olhar infantil.

E é como disse, é muito interessante. De repente, começámos a perceber que havia um olhar. Essas pessoas viram muitas ‘coisas’, e é muito interessante compreender o que alguém vê quando não sabe qual é o regime político, qual é a população que está presente e o que aquilo revela. E depois, claro, o filme constroi, ou seja, já há uma história, mas há uma forma específica dessa história ser contada. E nós seguimos esse filme, basicamente.

AS: Sim, no fundo, o que contamos aqui é um outro olhar sobre o Estado Novo, um olhar diferente. Não é um olhar exterior, e isso é que é interessante, de facto, porque eles veem. Mas não, não se ouvem. Eles tomam posição, têm uma perspetiva própria.

SSD: Por exemplo, uma delas diz que não ficou chocada porque não sabiam ler nem escrever. Então vai ensinar pelo menos uma pessoa a escrever o próprio nome.

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Susana de Sousa Dias e Ansgar Schäefer na antestreia de "Viagem ao Sol" (2021) na Cinemateca

E sobre a questão do analfabetismo, também muito acentuado no vosso filme, porque há uma dessas crianças que relata não ir brincar com os “meninos lá de fora” porque são todos analfabetos. 

AS: Não é que não deseja, não pode. Não é permitido brincar porque são analfabetos. Estes detalhes, podemos dizer, revelam as várias facetas daquele regime, isto não se consegue ler em livros. O que significa? Há uma estratificação social muito forte, muito acentuada mesmo. De facto, uma criança não pode brincar com as crianças da sua idade que estão lá fora e estão a centímetros de distância, porque simplesmente não sabem ler nem escrever, isto para uma criança é violentíssimo; está então condenada a estar sozinha, tendo a companhia do gato, ou do cão, e lá fora ver um “monte de crianças” do qual não se pode sequer aproximar. 

SSD: São estes pequenos detalhes que nos dão uma perspetiva diferente. Formam um retrato.

Podemos considerar também um relato de um povo conformado com os próprios "brandos costumes". No filme, há um episódio, penso eu, que aconteceu na noite de Natal, em que uma das meninas encontra o rapazinho apenas vestido com uma camisa que não chegava ao umbigo. Ele pegou na mão dela e, como tentasse acalentar a sua dor, disse “pobrezinha, tu és das meninas austríacas que fugiram da Guerra”. A menina ficou chocada com esse miserabilismo. Ou seja, este retrato de um país reside na “luz obscura”, seguindo a senda que Susana de Sousa Dias tem prosseguido nos últimos tempos com os seus filmes, como o já referido "Luz Obscura" (2017) ou "48" (2010), que expõe um outro lado do regime. Histórias não ditas nem contadas. Falo por mim, pois quando estudava História enquanto criança, o Estado Novo era apenas uma menção. Por exemplo, havia alguém chamado Salazar, uma ditadura que durou 40 anos, 25 de Abril e acabou. É uma narração feita num pulo.

AS: Isso reflete-se nos "bons costumes"? Acho que não. Acredito que existem séculos de opressão básica, talvez desde os tempos da Inquisição. A questão é que não havia interesse, já que o povo culto não era incentivado à instrução. Por isso, o grande ponto não é esse. O Estado Novo era algo criminoso, mas não foi culpado por tudo nesse aspeto. É mais uma continuação e uma perpetuação. A continuação da miséria imposta pela ignorância, por assim dizer.

SSD: Mas o Estado Novo promoveu isso de forma extremamente violenta. Não se podia estudar a partir de um certo ponto, se queriam realmente manter as pessoas na ignorância.

AS: E essa é a grande diferença. Em países como a Áustria, por exemplo, o acesso à informação é cultivado. Nesse aspecto, as crianças têm que aprender a ler, escrever e fazer contas. Além disso, como mencionou, a escola existia, mas as crianças tinham que trabalhar por questões sociais e porque os pais não tinham posses para enviá-las para a escola. Quando havia trabalho, precisavam trabalhar. É um sistema complexo, e a influência da Igreja também desempenhava um papel significativo, como é evidente nas imagens e detalhes ligados a Fátima.

SSD: Sim, mas no fundo, tudo converge. A expressão "povo de brandos costumes" é interessante porque é uma questão que surge frequentemente. No entanto, isso não significa que seja um povo reprimido, que não pode ou que não lhe é permitido estudar e pensar. Ainda hoje, vemos reflexos disso no ensino em Portugal. A falta de pensamento crítico é um problema significativo que ainda persiste. Basicamente, os 48 anos de ditadura, com os anos de negociação que se seguiram, causaram danos consideráveis que ainda estamos a tentar superar mesmo agora, em democracia. É um processo que levará algum tempo.

E é muito interessante essa questão dos manuais escolares, que continuam a perpetuar muitas destas ideias e conceções.

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Fordlandia Malaise (2019)

Gostaria de lhe fazer um questão muito pertinente, pelo facto de você ser alemão e estar radicado aqui, em Portugal [Ansgar Schäefer]. Na Alemanha, em termos de ensino de História nas escolas, como é que eles abordam a Segunda Grande Guerra e consequentemente o Terceiro Reich? Como é que vocês abordam essa parte da História?

AS: O próprio Estado alemão incentiva a divulgação de informações sobre o nacional-socialismo. Aí não há dúvida. Qualquer projeto, qualquer escola que queira realizar uma iniciativa desse tipo encontra sempre financiamento disponível. Eu mesmo, em conjunto com colegas da Universidade Nova, organizei uma exposição sobre os trabalhadores forçados portugueses na Alemanha nazi. Recebemos apoio do Estado alemão. Normalmente, para essas iniciativas, há verbas disponíveis. Não há muito que se possa criticar nesse sentido.

O Estado, quero dizer, o governo em si, apoia sempre essas iniciativas. Até porque há facções políticas que não concordam com isso, mas é outra questão. No entanto, a política do Estado é sempre fomentar a investigação e o conhecimento sobre nós.

Nós portugueses, por exemplo, a Guerra Colonial é muito deixada de lado.

AS: É o nosso próximo filme. [risos]

SSD: Aliás, a Guerra Colonial durou 30 anos. Pouco se falou, e depois foi o Joaquim Furtado com a sua série - “A Guerra” -, que de repente começou. É porque também tem a ver com o facto de que foram os militares, e, oposição à Guerra Colonial, que “fizeram” o 25 de Abril

AS: Agora voltando novamente para a Alemanha. Eu acho que a grande nódoa na história de Portugal é a guerra colonial, tal como o Holocausto é na história alemã. E o Holocausto tinha que ser debatido na Alemanha. Porquê? Porque os americanos e os ingleses, os franceses, a comunidade judaica, todos obrigaram os alemães a aceitar este passado. Ou seja, é uma pressão vinda de fora, não foi por iniciativa dos alemães. “Vocês têm que confessar isto.” “Vocês devem reconhecer o vosso passado nazi, racista e criminoso.” Foi algo imposta exteriormente. 

A própria população normalmente quer esquecer. É o típico.

SSD: Sim, isso é interessante que estás a dizer, porque passa-se aqui a mesma coisa. Quer dizer, o mito do lusotropicalismo foi extremamente poderoso e continua atual.

AS: Mas já existia antes de Salazar, só que fora fomentado por ele. 

SSD: Sim, sim. Precisamente com propaganda. E é uma coisa que ficou até os dias de hoje. Eu fico sempre espantada por ver jovens que continuam a achar que nós fomos os bons colonialistas e que não há racismo em Portugal. Quer dizer, temos movimentos como o Black Lives Matter e toda esta dimensão, e mesmo assim … e mesmo as pessoas que vêm das ex-colónias. Porque no fundo é preciso olhar para isto, o que é muito problemático ainda hoje. Aliás, basta ver toda a polémica envolta do museu. Esta ideia do Museu dos Descobrimentos é inacreditável! Pois era da Descoberta, e deixou de ter a Descoberta. Como é que se quer fazer um museu com esta designação? Quer dizer, não se aproveita esta conjuntura para de facto fazer um museu que que que que desmonte e que mostre todas as facetas e que dê todas estas questões a pensar, nomeadamente o caso da escravatura. De facto, há muito trabalho a fazer aqui.

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Viagem ao Sol (2021)

Fala-nos desse projeto sobre a Guerra do Ultramar.

SSD: Foi filmado em Angola. A ideia veio aqui do Ansgar … não sei se posso dizer assim … mas eu roubei-lhe o projeto. [risos]

AS: Já estou habituado. [risos]

SSD: E esta é de realização minha o que não impede que depois não façamos outros, aliás nós trabalhamos sempre juntos, seja enquanto produtora, realização, enfim, ou em mais funções. Estamos também a fazer um filme também na Amazónia

A segunda parte do “Fordlandia Malaise” (2019)?

SSD: Exato, é a segunda parte. Eu fiz em imagem, ele [Ansgar] foi assistente de imagem. Ele fez o som, eu fui assistente de som. Ele foi produtor, eu fui assistente de produção. Portanto cruzando trabalhos. 

Fomos filmar a "fazenda", que era uma fazenda modelo colonial e é impressionante aquilo que começamos a descobrir. Posso dizer que é um dos relatos mais terríveis que eu ouvi em toda a minha vida, em termos do que se passou em Portugal e daquilo que eu conheço e conheço muito. E posso dizer isto, porque estive nos arquivos. Temos estado há anos a investigar e foram relatos que ultrapassaram tudo aquilo que nós ouvimos até hoje, é de outra dimensão. E, portanto, é um filme que procura precisamente ser uma peça, nós que consideramos os filmes como pequenas peças, e não ‘coisas’ fechadas, tentamos que seja uma contribuição para abrir algo, nem que seja uma brecha. É qualquer coisa do conhecimento do que se passou e que continua a perpetuar no nosso presente, ou pelo menos, que o vai “contaminando”. 

É o ato de revelar essa História, que está “tapada”, ocultada de nós.

AS: É também uma corrida contra o tempo. Quando estas pessoas morrerem, já não temos os relatos, aliás, os nossos filmes servem como arquivo ambulante.

SSD: Mais uma biblioteca ambulante. Uma das pessoas que mais entrevistámos, um combatente guerrilheiro dos Movimentos de Libertação, ele dizia que nós éramos uma biblioteca ambulante. É através da palavra que transmitimos.

De certa forma, também encara o seu cinema como uma espécie de arquivo para o futuro?

AS: Sim, basicamente criamos o arquivo. Ou seja, é uma coisa triste, mas efetivamente é a vida, é que desde que fizemos as entrevistas, várias pessoas que participaram no filme já faleceram. Portanto, isto é uma realidade difícil, especialmente num documentário.

SSD: Sim, vamos constituindo um arquivo e sobretudo de testemunhos orais

É sabido que muitos dos relatos de “Viagem ao Sol” serão transformados em podcast. Poderiam partilhar mais sobre esse projeto e como planeiam realizar isso, considerando que muitos dos relatos estão em alemão?

AS: O podcast permite-nos fazer algo que não podemos realizar no filme. Já experimentamos isso com um episódio-piloto, e, surpreendentemente, funcionou muito bem. As vozes alemãs falam basicamente uma ou duas frases no máximo, depois passam para a voz portuguesa. Isso é algo comum na Alemanha, onde a dobragem tornou-se uma cultura. Qualquer ‘coisa’ chega-nos dobrada, os filmes que via mais novo eram todos dobrados. Eu via os westerns clássicos, com cowboys a falar alemão, e até os índios falavam alemão. [risos].

Apesar de eu ser cético em relação a isso, fiquei impressionado com o bom funcionamento dessa abordagem no podcast. Até possibilita a utilizar relatos que não foram utilizados no filme.

SSD: Ou seja, todas as histórias …

AS: Sim, todas as histórias.

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Viagem ao Sol (2021)

SSD: Somos uma equipa muito pequena, e todos nós trabalhamos em várias coisas. Atualmente, as pessoas responsáveis pelo podcast são o Mário Espada e o Nikolaus de Macedo Schäfer, que estão a concebê-lo de forma cinematográfica, com uma abordagem sonora interessante que funciona muito bem. Inicialmente, teremos seis episódios, mas planeamos transformá-lo numa série. Esta decisão surgiu porque, ao fazer um filme, estamos a mostrar apenas a ponta do iceberg, e pela primeira vez, decidimos explorar mais a fundo. Além disso, é uma forma de motivar as pessoas, e elas estão a apoiar esta iniciativa.

Na antestreia na Cinemateca, surgiram muitas perguntas após a exibição do filme, e grandes partes delas, por exemplo, serão respondidas no podcast

E quanto à sonoridade no filme? Sei que foi da autoria de Dídio Pestana, o qual tive o prazer de conversa na promoção do seu "Sobre Tudo Sobre Nada", mas gostaria de saber se vocês estiveram envolvidos na criação e conceção desta sonoridade, que causa um certo efeito de distância em relação a estas histórias, que premeia a sua longinquidade? 

SSD: Sim, foi bastante discutido. A questão do som num filme é fundamental, absolutamente crucial. Nós, com o Dídio, conseguimos um sistema que nos permitiu montar os materiais sonoros. Em vez de ele criar uma composição e depois inseri-la no filme, ele propunha materiais e nós íamos montando com esses materiais. Este é um trabalho fundamental de articulação entre imagem, som e palavra, onde tudo precisa de acontecer simultaneamente. Isso implica um trabalho específico em termos de composição sonora, e nesse sentido, resultou muito bem. O Dídio avançava, e depois precisávamos de sons específicos. Perguntávamos a ele o que tinha disponível e o que queria propor. Ele fornecia-nos os seus materiais, e nós, por nossa vez, fornecíamos os nossos a ele, e assim a composição foi se formando através num processo contínuo, e muito demorado.