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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Manuela Viegas numa conversa sobre as suas glórias: "a imperfeição tem de fazer parte da obra, ela acrescenta algo ao seu significado."

Hugo Gomes, 02.11.24

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

Em 1999, estreava em Berlim aquela que seria a primeira e única realização de Manuela Viegas, uma consagrada montadora no panorama do cinema português. A obra, “Glória”, viria a tornar-se um objeto de culto, um canto obscuro para aqueles que ousassem entrar, penetrar e ficar. A narrativa desenrola-se em torno de Ivan (Francisco Relvas), uma criança levada pela mãe de Lisboa para o interior rural, para viver com o pai numa estação de comboios quase abandonada. Lá, Ivan conhece Glória, uma menina que partilha um destino semelhante ao seu, mas entregue a uma perversidade própria que o guiará até às distantes margens do rio, em busca de um refúgio cavernoso onde possam escapar da cruel intenção dos adultos que os rodeiam.

É um filme com o olhar de uma montadora, como a realizadora reconheceu durante esta nossa conversa em torno da sua obra... e da sua arte. “Glória” desafia o espectador, a sua posição e a sua percepção, recusando narrativas aristotélicas ou de “caracará”. Move-se na profundidade da atmosfera, naquilo que se adensa no coração humano. E no seu recanto secreto, encontramos algumas notas sobre um país em mudança, sobre o abandono das tradições, das suas gentes, do meio rural, em particular. “Glória” regressa agora à vida, sob as vestes de cópia restaurada, tendo sido exibida como tal no Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal, a terra que, há 26 anos, a gerou. Uma retornada, “bem-vindo a casa”!

Esta sessão especial, integrada no programa europeu A Season of Classic Films, promovido pela Associação das Cinematecas Europeias, serviu de motivo para este encontro. Agora reformada, Manuela Viegas falou ao Cinematograficamente Falando … sobre a sua paixão, sobretudo pela montagem, a arquitetura invisível que sustenta um filme, vincando “Glória” como a sua glória de passado, e isso, sem nada a esconder.

Foi montadora durante vários anos, como também contribuiu para a escrita de alguns argumentos, por isso mesmo, pergunto-lhe o que motivou este grande salto na realização do filme?

Desde o início, desde o surgimento do meu interesse pelo cinema. Frequentei o conservatório depois de ter realizado vários estudos noutras áreas distintas do programa de cinema, e, logo nos primeiros anos, surgiu essa possibilidade, o desejo de filmar, etc. Ao entrar numa espécie de comunidade, como é, por exemplo, a do cinema — um seio bastante fechado — sente-se algo contagiante, um poder de contaminação do cinema em relação a todos os outros aspetos da vida, passando e pensando o cinema na vida das pessoas. Sai-se para um bar e as coisas que se encontram e o que se veem, remete-nos ao cinema. Cinema, cinema e Cinema. Assim, o desejo de trabalhar em cinema foi enorme desde o princípio. Tem componentes que me interessam muito e que se ajustam ao meu modo de ser, desde “arregaçar as mangas” e partir para a prática. Mas isto aplica-se a todos os seus departamentos — montagem, realização, tudo. Por um lado, há esse lado prático, e por outro, há um aspecto de ligação com a História do Cinema, que leva a refletir sobre como transpor, digamos, vários interesses, temas e situações para imagens e sons — como filmar e tudo mais.

A montagem é precisamente esta construção que me fascina, que dá vida a uma pessoa: descobrir os filmes que estão dentro dos materiais, das imagens, dos sons, do filme inicialmente idealizado, em diálogo constante com os realizadores, até os filmes materializarem e ganharem a sua devida forma. Assim, a montagem torna-se quase como uma pequena oficina criativa; é como fazer filmes também, só que em colaboração com outra pessoa, o que é muito… Enfim, é melhor do que nos afundarmos nas nossas próprias intenções e objetivos, isso é algo a evitar o máximo possível. Trata-se de entrar, por assim dizer, numa abordagem conjunta, ouvir os outros, ser ouvido, falar e trazer para as conversas uma visão sobre o mundo, através dos planos que se descobrem. É um processo fantástico, muito enriquecedor.

… e ao mesmo tempo é como se fosse uma arquitecta dentro do meio.

Sim, podemos dizer que há uma construção que se faz, mas existe também um enorme desejo de descobrir o essencial de qualquer coisa, de captar o que está por dentro. Não se trata de procurar o que está por trás, mas sim de perceber que, por vezes, o essencial está mesmo à superfície. Trata-se de descobrir lá aquilo que possui profundidade. Este processo ocorre na montagem de forma muito eficaz, entre angústias e alegrias — alegrias que nos fazem quase saltar da cadeira quando encontramos algo significativo, e angústias que nos tiram o sono, transformando a nossa percepção acerca das coisas. Porque os passos que damos são incertos, e ao mesmo tempo, acusamos aqueles que já estão predeterminados, os que fazem parte de esquemas de construção mais convencionais — as chamadas técnicas de escrita, de montagem e outras.

Essas técnicas, ou normas, acabam por ser desafiadas pelo próprio material que encontramos: pelas imagens e pela criação dos sons, que podem imensamente influenciar. Comecei com película, então digamos que trabalhava em faixas — na altura, tínhamos a imagem e dois ou três sons possíveis em simultâneo, no máximo, dependendo das mesas de edição disponíveis.

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

Na película, trabalhei sobretudo em 16 e 35mm, criando coisas absolutamente inventadas e caóticas, muitas delas arriscadas, sempre lado a lado com o realizador. É muito estimulante, esse lado criativo associado à montagem. Portanto, a transição para a realização foi quase como uma extensão disso, mas no próprio terreno — ou seja, filmar com uma equipa enorme, com câmaras de 35 milímetros, em exteriores, à noite, de madrugada, nas horas mais fotogénicas, em locais como as escarpas do Zêzere. Filmar ali implicava arrastar toda a equipa com o equipamento. Na rodagem, acreditava que, baseado na experiência da montagem, seria quase o mesmo processo, com ambos — eu e outros — a fazer filmes. Contudo, a rodagem exige uma rapidez de reação face ao que se encontra na natureza, nas pessoas, na organização das produções, etc., uma rapidez que não permite a concentração que a montagem proporciona. Entramos numa sala de montagem…

Ouço na sua voz uma admiração pela montagem inquebrável, tendo em conta que quase esse cargo está a desaparecer, hoje, chamamos editores, e a edição por via do digital. Perdemos essa concentração a que se refere?

Mesmo na montagem digital, no computador, ainda há aquele contacto, o toque da montagem, que existe mais intensamente na montagem em película do que na digital. No entanto, mesmo em digital, para fazer a montagem, é preciso entrar numa bolha, numa espécie de noite; é uma experiência pessoal. Sei que… sou sempre eu que preciso dessa imersão, é isso que define o meu ritmo, a minha velocidade, é a concentração. A verdade é que é um processo nada fácil. Há sempre muitas interferências, são tantas coisas.

E, portanto, estava, na verdade, sempre a pensar. Morria de saudades da montagem, mas ao mesmo tempo, ao ver os planos, pensava nos planos que gostaria de ver ganhar forma na montagem.

Ou seja, realizava com olhos de montadora, é isso?

Sim, claro, na escrita, desde sempre. Aliás, acho que o nosso pensamento é, de alguma maneira, uma forma de montagem. Trata-se de relacionar ideias, colocar coisas lado a lado e encontrar fios de continuidade, que não precisam de seguir as regras da montagem convencional. Pode ser uma continuidade mais subterrânea, digamos assim, algo que também sinto no “Glória”.

Gostaria de explorar a questão da subterraneidade, uma vez que o filme evoca uma aura bastante misteriosa. Temos uma narrativa, e, embora esteja focada nessa narrativa, aqui o filme desafia o espectador a tentar decifrar o que está realmente a acontecer, pois nunca nos diz claramente do que se trata. Assim, ficamos em dúvida, absorvidos por aquela atmosfera. O filme é muito atmosférico, no sentido de ser bastante sombrio. Isso também me faz pensar que, apesar de ter assumido o papel de realizadora neste filme, não conseguiu desvincular-se da sua experiência como montadora. Acha que isso a poderá ter influenciado a sua abordagem ao filme?

Sem dúvida! Não tenho dúvida nenhuma quanto a isso. Como já estava a dizer, desde a escrita até à planificação, sinto que há uma continuidade. Devo dizer que, nas cenas filmadas, houve coisas mais bem-sucedidas do que outras; houve material que se revelou impossível de usar. A mise-en-scène, digamos assim, exige uma sensibilidade que, por vezes, questiono se possuo verdadeiramente, mas que sempre esperei conseguir, pelo menos em parte. A mise-en-scène envolve olhar para o espaço, ver as pessoas nele inseridas e ligar tudo organicamente à cena em formação, esse é o ideal, porque as coisas não são só planos e imagens num lado, com o resto separado para outro. Os temas, as questões, e até a História, estão todos interligados, é isso que acredito que define o filme: a imagem e o som, a sua matéria contêm o que chamamos de continuidade.

Portanto, essa sensação que descreveste ao ver o filme, de uma certa ambiguidade sobre o que ele trata — mais ambiente, menos história —, faz parte da intenção.

Sabemos que está a acontecer algo, mas, como espectador, tentamos encaixar todas as peças para entender. E até mesmo a planificação esconde as ações-chave.

Exato, digamos que há um conjunto de opções conscientes, relacionadas com um tipo de cinema em que o essencial das ações, das histórias, ou das situações acontece fora de campo, ou passa para o outro lado. É como se houvesse um território imaginado, no qual filmei várias populações, em diferentes pontos de rios, por exemplo. Imaginei, a partir dessa claridade e diversidade, um território de ficção onde me podia instalar livremente. Sentia-me à vontade para colocar a câmara aqui, ali, em qualquer ponto. Quando filmava num local específico, tinha a noção do que estava a acontecer noutras áreas. Não estava lá com a câmara, mas sabia o que ocorria. Esse "fora de campo", ou “off”, mesmo não estando visível, cria tensão com o que está em cena, remetendo, na verdade, aos efeitos de algo que já ocorreu — os vestígios, os resíduos, o que sobrou ou se desfez após um acontecimento. Talvez esta abordagem reflita algumas influências cinematográficas.

Não sei se consigo explicar exatamente o que é, mas sei que algumas das minhas opções, inclusive na montagem, visam descentrar o foco, deslocar aquilo que normalmente é central, e faço-o, talvez, pela crença de que essa estratégia traga uma compreensão mais profunda do que se está a passar. As histórias, na narrativa tradicional, tendem a relatar factos de forma explicativa: aconteceu isto, que se liga com aquilo, e foi causado por tal coisa. No entanto, a construção de um filme, com esta abordagem, procura algo diferente — algo menos explícito e mais evocativo.

Penso que a intensidade da nossa percepção, ao capturar as possibilidades e o significado das cenas, torna-se mais incisiva, mais forte, quando tudo não está diretamente à vista. Mizoguchi faz algo assim. Embora seja um realizador clássico, ele utiliza essa técnica. Por exemplo, um gesto fundamental entre um homem e uma mulher que vão ser crucificados aparece apenas no final do plano e quase não se vê. Esse “quase” — o risco de quase perdermos o gesto — cria uma perceção fulminante da situação. Em Mizoguchi, essa sensação é imediata, quase explosiva; no meu trabalho, talvez não tenha o mesmo impacto, mas uso o mesmo princípio: filmar o que está entre uma coisa e outra, explorar os efeitos, como um sorriso ou uma luz que ilumina subitamente um rosto, sem que imediatamente se compreenda o motivo. É algo que se percebe mais tarde, é como uma aposta — não dar tudo de imediato, mas permitir que se revele aos poucos.

Acredito que com isto se ganha uma presença muito forte do que está em campo, exatamente porque está tensionado pelo que não se vê.

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The Crucified Lovers (Kenji Mizoguchi, 1954)

O grande ponto de atração do seu filme é a curiosidade. Sim, sentimos curiosidade em descobrir aquilo, ganhamos pistas e juntamos as peças, como disse. Não se trata de algo concreto ou óbvio, mas de algo mais intangível.

Não é curiosidade pelo que está ali, mas pelo que surge a partir disso. Juntamos as peças, como disse: não é o concreto, mas o que ele evoca. Não é a curiosidade pelo que está diretamente em cena, mas pelo que vem dessa presença. Não se trata da ação, mas de filmar as margens da ação, os efeitos, como se estivesse a filmar um abalo de terra. Não filmo o epicentro, mas sim as ondas provocadas, e é através dessas ondas que o sentido se vai revelando. Mas é importante que se entenda claramente, que não seja apenas um jogo de esconde-esconde. Não se trata de um jogo; é uma busca séria de formas de fazer passar o sentido, sem recorrer ao "Ah, isto já sei o que é, já vi isso 500 vezes na televisão". É, de certa forma, uma recusa disso, uma tentativa de fazer com que os elementos surjam como se estivessem a nascer.

No final, penso que algumas dessas cenas têm uma presença muito forte, especialmente as que resultaram de uma rodagem mais intensa e satisfatória, embora sejam só duas ou três cenas. A certa altura, notava-se que a equipa inteira estava ali concentrada. Era uma equipa muito grande, e ninguém estava a pensar no almoço ou no lanche; estávamos todos focados no que se estava a criar. São só duas ou três coisas que se expandem e, se derem um pouco a volta ao filme, ele já ganha outra dimensão.

Há pouco disse-me algo que me fez pensar, mas primeiro deixe-me perguntar: é devota do Kenji Mizoguchi?

Acho o Mizoguchi extraordinário!

Perguntei isto, porque um dos elementos recorrentes na cinematografia de Mizoguchi é a presença do rio. Desde “O Intendente Sansho” [“Sansho the Bailiff”, 1954], “Os Amantes Crucificados” [“The Crucified Lovers”, 1954], “A Vida de O'Haru” [“The Life of Oharu”, 1952], até “Contos da Lua Vaga” [“Ugetsu”, 1953], todos os filmes têm essa presença marcante do rio, como fosse uma personagem própria, um elemento que conduz estas personagens ou os leva a cometer os seus atos e confrontar dilemas. Em “Glória” existe essa igual presença com o rio …

Bom, aproveitando este paralelismo com Mizoguchi — embora não haja um verdadeiro paralelismo, pois estamos a falar de coisas absolutamente extraordinárias —, há realmente algo na presença dos rios, tanto em Mizoguchi como aqui, no “Glória”. A água e os rios têm um poder imenso, e creio que representam a energia desse território, o rio, ou melhor, os rios. Em certos momentos, o rio assemelha-se a um paquiderme, imóvel, com costas castanhas, vasto e pesado; noutros momentos, irrompe e rasga, numa força intensa. Essa energia parece aglutinar a dispersão que constitui o filme. Não sei se posso descrevê-lo assim, mas não é um conjunto de coisas dispersas, sem ligação, saltando de uma coisa para outra. Em vez de uma continuidade linear, o rio é a presença que flui entre tudo, presente também no som, como uma energia aglutinadora.

Por outro lado, os rios, ou aquele rio que vemos no filme — são vários pontos do mesmo rio, diferentes rios ligados entre si — têm uma espécie de força de atração que, em certo ponto, parece até um pouco maléfica. Exerce uma atração particularmente forte sobre os miúdos, porque o filme procura mostrar o ponto de vista deles: não é a minha perceção, ou a de um adulto sobre eles, mas sim o olhar dos próprios miúdos. E, assim, os medos, os pesadelos, os desejos, as alegrias, as brincadeiras — tudo tenta ser visto a partir desse ponto de vista. O rio exerce sobre eles, os miúdos, mais do que sobre os adultos, uma espécie de atração inevitável, uma força que quase roça o maléfico. Talvez seja isso… talvez, mas não sei ao certo.

Perverso?

Exato, é como se ela fosse arrastada para lá; essa é, no fundo, a essência da história, quando a vemos do ponto de vista das crianças. Elas observam os adultos e veem neles comportamentos aberrantes, ficam incrédulas ao ver como são capazes de certas atitudes, como podem ser violentos uns com os outros. Mas, então, a Glória [a personagem interpretada por Raquel Morais] arrasta o rapaz para o rio, como se algo dela o tocasse, o contagiasse — e é isso que acaba por marcar profundamente a minha própria vida. Esse poder, essa energia, impede que o filme seja apenas uma manta de histórias soltas, dando forma a um território próprio onde se movem as crianças, os adultos, todos. E há nesse poder de atração algo inexplicável, mas sentimos que algumas das vivências da Glória se tornam visíveis, que captamos algo do seu passado ou do que ainda a assombra.

Sabemos que há crianças pequenas, filhos de imigrantes, deixadas ao cuidado daquela senhora, a Teresa [personagem interpretada por Isabel de Castro]. Não é propriamente uma “mãe”, e a própria Glória é uma delas, deixada ali desde sempre. Ninguém a veio buscar. Ao contrário das outras crianças, cujos pais tentam sempre ir buscá-las, ninguém vem por ela. Talvez o rio tenha qualquer coisa que transcende a razão e que, em última análise, molda o filme. No trabalho que fizemos agora em digital, sinto que esse lado irracional salta ainda mais à vista — como se o rio encarnasse uma figura quase mítica, uma força irracional e inconsciente. Não quero ser pretensiosa, nem afirmar nada de forma categórica...

Mas, no fundo, o rio liga-se a um inconsciente coletivo, principalmente o rio à noite, ligado aos desejos, medos, pesadelos — tudo isso, os sonhos dela, ou pelo menos da Glória

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Glória (Manuela Viegas, 1999)

“Glória” esconde na sua “carne” uma espécie de crónica, ou crítica, do seu espaço sócio-político. Do seu tempo, aliás, visto ter sido rodado por volta do ano 1998 …

Talvez tenha sido até antes, não me lembro ao certo. Talvez tenha sido escrito em 1995. Na altura, os grandes fogos ainda estavam muito presentes; tinham acabado de acontecer e ainda havia aqueles incêndios intensos, como os que atingiram a zona de Leiria e arredores. E, por todos esses lugares onde andámos, os grandes incêndios continuavam a marcar a paisagem, tal como as novas estradas, que estávamos a filmar, em plena concretização, aquelas “estradas cavaquistas”, fruto de uma certa cultura de expansão rodoviária.

O que eu queria mesmo era situar esse contexto temporal, porque há um plano no seu filme, com o Ivan numa esquina, junto a uma montra, onde se vê o logotipo da Expo 98. Foi um tempo de mudança neste país, e igualmente demonstra isso, subtilmente em “Glória” com o desaparecimento daquela ferrovia, a dar lugar a uma auto-estrada, uma conexão rápida entre as metrópoles e o interior algo decadente …

Não sei se se pode considerar uma crónica ou algo mais lógico, mas, do ponto de vista político, há uma ideia de que estamos a lidar com uma zona do país que apresenta velocidades diferentes, mas simultâneas. Por um lado, temos partes do país que continuam lentas, enquanto outras evoluem rapidamente, com a construção de vias mais rápidas e a presença de grandes bancos, por exemplo. No entanto, essas novas estradas acabam por deixar para trás as populações, criando uma divisão sociológica entre os mais pobres e os desamparados.

A extinção da ruralidade, de alguma forma.

Exato! No filme há uma abordagem muito consciente e profundamente política, uma reflexão sobre o que é o progresso, o desenvolvimento do país, etc. Do ponto de vista político, a minha ideia é que o progresso é algo sustentado em roubos de matérias-primas, em sacrifícios, numa separação cada vez maior entre grupos e corpos, tudo isto é construído com base nesse processo, portanto, não sabemos bem. Também há algo que costumava referir nas aulas, já com alguma idade, relacionado com o quarto mandamento do Orçamento, onde o ancião da família olha para algo fora de campo. Há uma luz que vem desse lugar fora de campo, que talvez sugira que está junto a uma lareira ou algo semelhante, e uma “voz-off”. E bem, agora não vou dissecar o plano, mas faz lembrar bastante a ideia de que o progresso é uma pilha de escombros e ele é empurrado nessa direção.

Quero dizer, é uma ideia bem conhecida. Talvez não seja algo que me pertença, mas que é complementado por outras ideias. No entanto, essa ideia de desenvolvimento e progresso exige que perguntemos: progresso para onde? O que é esse "para onde"? O que está a acontecer no mundo? Continuamos a lidar com a questão das matérias-primas, mas isto ainda não terminou, ainda há mais e mais coisas para serem apropriadas. Portanto, diria que talvez, e não sei se isto é muito rebuscado – provavelmente só pensei nisto depois de fazer o filme – mas trata-se de refletir sobre essa ideia de recusa do progresso a qualquer preço, de um progresso que acaba por ser destrutivo para o planeta, inclusive. Essa ideia, talvez, não encontra uma correspondência direta no desenvolvimento do próprio filme, que também não segue uma estrutura rígida de apresentação, desenvolvimento, conclusão, etc.

E sobre essa ideia de ruína de que me falou. O filme, hoje, é considerado uma obra de culto no cinema português e, talvez, seja mesmo incontornável o icónico cartaz criado pelo artista plástico Julião Sarmento. Todo o cartaz transmite essa sensação de ruína, com o lettering grafitado como aquele que aparece no “falso-crédito” do filme. Então, falando rapidamente, como surgiu a ideia do cartaz? Teve alguma influência na sua criação, ou foi algo imposto pela produtora?

Nós mostrámos o filme ao Julião, e ele ofereceu-se para fazer o cartaz. Portanto, é com isto que estás: o fundo é branco e tem nódulos, manchas de uso, vestígios, marcas – pedaços de gestos.

Como uma parede daquelas casas de pedra?

Sim, faz mesmo lembrar isso. Diria que o aspecto da imagem transmite uma textura de parede, uma daquelas de rua, um muro, onde ficam marcas, como se tivessem sido deixadas pelo tempo e pelo uso. Ou seja, ele viu o filme,interpretou-o e manifestou esse pensamento através deste cartaz.

Voltando ao “inconsciente” político, ou não, do filme, como é que essa ideia de recusa a um progresso a qualquer preço, tão enraizada nas contradições entre desenvolvimento e destruição, se traduz na estrutura do filme? 

Não pode ser algo certinho e acabado; precisa de ser fragmentado, de transmitir essa ideia de montagem. Não me lembro exatamente, mas a intenção era trazer essa recusa política para a própria forma do filme. Claro, talvez tenha pensado nisso mais tarde, quando precisava de falar sobre o filme, e pensei: “Do que é que vou falar?”. Encontrei aí uma espécie de necessidade de que a forma de filmar, a montagem, as imagens que escolhemos, os sons que inventamos, tudo isso fosse profundamente contaminado pelo que está a acontecer no contexto ambiental e político. Por exemplo, nas cópias em película, deixámos os sais de prata nas imagens, o que dá um tom de carvão ao filme – carvão que está, de certa forma, em sintonia com a História que está a ser retratada.

A História de um território devastado, onde o elemento vital, o rio, se vê ameaçado, onde há incêndios, encerramentos de espaços, entre outras coisas.

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Manuela Viegas durante a apresentação da cópia restaurada de "Glória" no Centro Cultural Gil Vicente no Sardoal / Foto.: Paulo Jorge de Sousa

Está tudo a acontecer ali, e talvez fosse interessante refletir sobre como o argumento era antes de filmar. Já há muito tempo que não penso nisso, mas lembro-me que ao encontrar aqueles locais, tive de mudar imenso o argumento. Adaptámo-lo completamente à casa da estação, onde não mexemos quase nada. As coisas estavam tal como as encontrámos. Levámos apenas uma cama de ferro, entre outras pequenas coisas, para as encaixar no cenário. A casa estava vazia, era a casa do chefe da estação. Não pintámos, não alterámos nada. Já a casa ao lado, onde vive a senhora que toma conta das crianças dos imigrantes – que depois vêm buscar os bebés – também não era um casarão. Tinha aquele sótão, e as paredes cheias de vegetação, de ninhos de pássaros, etc. Apropriámo-nos do espaço, entrámos de mansinho e colocámos alguns elementos. E assim, grande parte do argumento foi adaptada. Na montagem, foi totalmente desconstruído. Fui reduzindo até ao essencial. Cada filme pede um método específico de montagem, mas o princípio básico é começar por alinhar tudo o que foi filmado e depois ir retirando o que não funciona, deixando apenas o essencial, aquilo que é realmente bom.

Portanto, montagem foi essencialmente retirar, retirar e retirar …

Sim, mas depois tive de recuperar algumas coisas do “lixo”, que tinham sido descartadas [risos]. Só mais tarde percebi, e explico-o agora com palavras que nem tinha na altura, que a imperfeição tem de fazer parte da obra, ela acrescenta algo ao seu significado. Aquilo que, por vezes, não está bem enquadrado ou que não seria o mais “certo”, acaba por trazer um valor especial. Sem esses detalhes, a obra ficaria reduzida a uma série de substantivos soltos: “ponte, poço, casa” – sem nada à volta. Por isso, fui buscar essas partes novamente. Filmámos muito, começámos a trabalhar nas filmagens bastante cedo, quase que nos esgotámos, mas tínhamos uma equipa incrível, muito dedicada, embora pequena.

Que bem se molharam nesta rodagem [risos] …

Molhamo-nos sim, e não só, arriscámo-nos muito, e pusemos em perigo, por vezes, uma quantidade de equipamento. Tivemos uma ajuda fabulosa dos bombeiros, especialmente nas filmagens noturnas, em que precisamos de iluminação e de várias preparações para nos expormos – com bombeiros dentro de água, debaixo das estruturas, etc. Foi muito arriscado; hoje em dia, não seria capaz de pedir isso a ninguém, pois é realmente exigente. Mas isso está no filme, sente-se. O resultado traz um benefício à produção, uma vibração do real, das coisas que estavam lá. Sente-se essa autenticidade a vibrar, creio.

Mas … depois de “Glória”, não teve mais vontade de filmar?

Gostava de ter continuado a filmar, mas durante a rodagem, houve várias fases. A primeira fase, a da escrita, foi muito difícil – estávamos todos sem dormir ou a dormir pouquíssimo, e não estávamos bem da cabeça [risos]. Mas, aos poucos, fomos ganhando ânimo, e no final da rodagem, já tinha vontade de sair de lá. Queria ficar ali, sozinha, a dizer “podem ir todos embora, eu fico aqui”. Realmente fiquei mais uns dias, naquele calor comunitário, no local que nos acolheu, e senti-me grata por tudo aquilo ter sido possível. Logo a seguir, tinha vontade de continuar com algumas destas personagens ou com outras, de prolongar um pouco aquele ambiente. Talvez não ali mesmo, mas num lugar semelhante. Comecei a escrever algumas coisas, mas o tempo foi passando e outras vocações se sobrepuseram. Tenho interesse em várias coisas. Não é assim tão fora do comum, mas quero buscar inspiração em várias áreas.

Gosta de ensinar [menção à trajetória enquanto professora na Escola de Cinema e Teatro], é isso?

Gosto de ensinar, mas não no sentido de ensinar diretamente – gosto de observar as pessoas a descobrirem as suas próprias coisas e de oferecer o que puder, seja estímulo ou entusiasmo. No fundo, é isso que as aulas devem ser: estimular, inspirar gosto pelo cinema, criar comunidades de apreciação e paixão, onde cada um valoriza à sua maneira. Depois, comecei a pensar numa abordagem mais orgânica, inspirada em livros que foram marcantes para mim, que têm acompanhado a minha vida e que se tornaram inesquecíveis. Pensei em criar algo mais parecido com um concerto de música, onde cada "instrumento" está organicamente ligado, onde todos participam com naturalidade, como se cada um trouxesse a sua nota única. E lá fui eu, por aqui e por ali, mas o tempo vai passando e nunca é suficiente para tudo. Dou-me por completo a tudo o que faço, seja nas aulas ou em qualquer outro projeto. Desde a licenciatura, com a passagem para o mestrado e tantos trabalhos, uma boa parte do meu tempo foi para isso. Mas não significa que ainda não possa surgir outra coisa.

É importante associar ideias a cada elemento. E, dentro dessas limitações, talvez o fenómeno seja inicial, mas é também o que consegui realizar. Entretanto, tenho uma saudade imensa do processo de montagem. Agora, já não se trata apenas de me responsabilizar pela parte técnica; é mais sobre tomar decisões relacionadas ao filme em si, sobre que filme quero ver com as pessoas, e manter sempre a concentração. O que mais valorizo é essa capacidade de concentração, a ponto de, como acontecia nos laboratórios de fotografia, onde uma pessoa entrava para revelar e, de repente, passavam 24 horas sem almoçar, nem jantar, e ali permanecia. A montagem é semelhante a isso.

Um canto isolado do resto do Mundo?

Exato. É uma questão de solidão e concentração, mas também de estar sempre à espera de compreender a visão que o realizador tinha para aquilo.

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O Som da Terra a Tremer (Rita Azevedo Gomes, 1990)

A Manuela tem sido, possivelmente, uma verdadeira escola de cinema, pois fez a montagem de muitas primeiras obras de realizadores que hoje tão bem conhecemos. Trabalhou com Pedro Costa em “O Sangue” (1989), com Rita Azevedo Gomes em “O Som da Terra a Tremer” (1990), Teresa Villaverde em “Idade Maior” (1991), por exemplo.

Acredito que essas primeiras obras coincidiram com os anos após os meus estudos no Conservatório de Cinema. Ainda estava no conservatório quando comecei a trabalhar com o Fernando Mato Silva, por exemplo, montando conteúdos para televisão e até documentários encomendados [Cinequipa]. Foi uma fase intensa, repleta de informação – uma verdadeira corrida, mas tudo ótimo. Entre os primeiros filmes que montei, destaco "A Conversa Acabada" do João Botelho (1981). Nessa época, terminei os três anos do curso, que ainda estava a decorrer no conservatório.

Estávamos nos anos 80, numa época em que o instituto não se chamava ICA, mas ICAM ou IPACA – qualquer um desses nomes. O "A" referia-se ao audiovisual, e acabei por estar envolvida nessa transição. Houve uma política de apoio, que talvez tenha começado com o [Alberto] Seixas Santos, focada nas primeiras obras. No início, não havia tanto apoio, mas depois começaram a surgir concursos especiais para as primeiras produções. Eu e os meus colegas também nos inscrevemos, embora eu já tivesse algumas experiências anteriores ao conservatório, tendo vivenciado outras fases da minha vida.

Tinha estado em dramaturgia no teatro, e além disso, fiz um curso de economia, mas sempre mantive uma ligação muito forte com os livros. Gostava muito de ler e, com o tempo, comecei a escrever argumentos para filmes, cenas, situações e gestos. No entanto, naquela altura, isso não teve financiamento. Depois, continuei a acompanhar os meus colegas e as novas pessoas que estavam a surgir no meio.

Na altura “novos”, agora veteranos [risos] …

Apareceram depois do Paulo Rocha e do Fernando Lopes, e havia também o Seixas. Estávamos inseridos naquele núcleo formidável que incluía o António Reis, um ambiente muito inspirador. Transitávamos por ali, muito tocados por essas influências. Para mim, tudo o que falei sobre montagem e sobre a forma de dar aulas está profundamente ligado ao Reis. Naquela altura, no entanto, era mais brincalhona e não sabia bem para onde ia.

O que pensa sobre os novos processos de “montagem”? O digital?

Gosto muito do lado da montagem com película, mas não tenho nada contra as novas tecnologias. O que aprecio é o aspecto táctil da montagem, que não precisa ser necessariamente o toque da matéria. Essa dimensão táctil pode ser uma conexão mais ampla que se estabelece com os filmes, não é? Não sei se isso faz sentido, mas, às vezes…

Sim, pode-se dizer que o filme está dentro de uma bobina; sabe-se que aquilo é o filme, não é um ficheiro. O cinema como matéria, como algo físico, que toma espaço.

Mas é possível um estabelecer com esse “filme de ficheiro”, estabelecer uma relação também de tacto. Mas, pronto, essa ideia do táctil e dos grandes planos vem já desde Griffith e outros. Por falar nisso, há dois dias, vi aquele filme que o Victor Erice fez em Guimarães, chamado "Vidros Partidos" (2022). Viu?

Sim, fazia parte de um conjunto de obras que formavam o “Centro Histórico”, tinha um filme estupendo do Pedro Costa, e outros mais curtos de Aki Kaurismaki e Manoel de Oliveira. O do Erice é emocionante, recordo aquele momento em que se toca o acordeão virado para uma enorme fotografia que juntava todos os trabalhadores daquela fábrica. 

É de chorar, e não sabemos bem porquê. Quer dizer, suspeitamos que tenha a ver com o processo de produção. Mesmo uma coisa tão objetiva e material, de repente, ganha uma dimensão fulgurante, uma intensidade que perdura do princípio ao fim, envolvendo cada uma daquelas pessoas. E, sabendo também o método que foi utilizado na realização, é uma fábrica têxtil que deixou de operar e cujos trabalhadores ficaram desempregados. Não interessa muito o “enredo” agora, mas o que realmente conta é o método de trabalho que o Víctor Erice adotou: ele trabalhou com cada um dos desempregados e, a recolher os depoimentos deles e na reescrita deles. Assim, cada um deles decorou o texto resultante disso e, diante da câmara, recitaram as suas próprias histórias e experiências na fábrica, principalmente o trabalho de fabrico. Esse processo é absolutamente fascinante.

O facto de eles dizerem o texto de cor e notarmos, através das suas expressões, que cada um tem a sua própria maneira de lidar com a representação é incrível. Passa a ser uma demonstração poderosa do que o cinema e a representação podem fazer com as pessoas e as suas situações. Não consigo explicar muito bem essa emoção; é quase inexplicável. Mas é como uma gravidez, algo que se desenvolve dentro de nós. Pronto, agora, não sei por que estávamos a falar disso … [risos]

Vidros Partidos (Victor Erice, 2012)

Mas, ao recuperar essa memória dos “Vidros Partidos”, tem acompanhado o cinema recente? Acha que falta algo ao cinema português de hoje, especialmente? Ou acredita que está no bom caminho, como nos fazem crer?

Acompanho sempre o que vai saindo no cinema, mas não gosto de vê-los logo de início; prefiro esperar um pouco, é como com os livros. Também não gosto de ir às livrarias comprar os títulos que estão em destaque, gosto de adquirir os livros mais tarde. O mesmo acontece com os filmes. Contudo, acho que há coisas boas a surgir. Não tenho uma opinião definitiva sobre todos eles; ou seja, aprecio algumas obras, enquanto outras não me agradam tanto, especialmente em relação à estratégia e à postura do realizador em relação ao que pretende filmar. Mas isso não significa que não reconheça o valor de algumas obras. Por exemplo, gostei muito de um trabalho do Marco Martins que vi na televisão, um filme sobre espectáculos que foram realizados…

“Um Corpo que Dança” (2022)? Do Ballet Gulbenkian?

Talvez, agora não me lembro do título. Um filme muito bonito, repleto de montagem, montagem e mais montagem. Gostei imenso. Mas, pronto, o cinema está muito ligado às experiências que se têm ao ver os filmes. Portanto, habituo-me, nas aulas, a não expressar opiniões de forma unilateral, como se agora fosse dizer se este filme é bom ou não. Nem pensar.

Não puxa os “galões”: “trabalhei com o João César Monteiro, ou algo assim” [risos]? 

Nada disso. E isso não é produtivo, pois só cria facções e divisões. A única coisa que fazia nas aulas era selecionar pedaços de filmes, alguns filmes inteiros, e estar ali a analisá-los em profundidade. A ideia era compreender o que está a ser feito e como se faz, e, acima de tudo, como podemos fazer. Portanto, era uma aprendizagem teórica, focada na teoria da montagem e em todos esses aspectos. O objetivo era resolver problemas, porque há coisas tão difíceis de filmar. Como é que podíamos filmar isso? Ver exemplos era o normal.

E isso permitia, nas aulas, uma oportunidade valiosa: ter uma simbolização do que se pensa. Ou seja, dar aos alunos instrumentos para expressarem o que querem dizer, por palavras, sobre os seus filmes e sobre outros filmes. Passar por esse plano de reflexão é importantíssimo. Eles começavam a perceber ou a gostar — não sei se realmente sabiam —, mas gostavam de dizer coisas que sugeriam e que estimulavam a nossa atenção, pois tudo é uma questão de atenção.

Nas aulas de cinema, a prioridade era captar a atenção. 

Só uma última pergunta, se me permite, para finalizar. Sou bastante curioso: você trabalhou com João César Monteiro [montagem de “Flor do Mar”, 1986], como já mencionou. Gostaria que me contasse sobre essa experiência? Foi difícil trabalhar com ele?

Não, ele era encantador. 

Estava a montar na Tobis, que era muito giro, porque haviam várias salas de montagem, e nós, montadores, pegávamos numa e andávamos de uma para outra, conversávamos, assistíamos a filmes, trocávamos ideias sobre o que fazer ou não fazer nso respectivos filmes ... Era uma verdadeira caverna! E ao mesmo tempo uma comunidade de afinidade e disponibilidade. Havia também muitas sacanices. 

O César veio me dizer que estavam com um problema com o “Silvestre” (1981). Era uma cena enorme filmada em estúdio com o Jorge Silva Melo como ator. Ele falava, falava e caminhava sobre um palco cheio de brita e areia. Eu disse: "Olha, ele está a falar, mas aquilo estava inaudível". Precisavam de ajuda muito concreta para resolver isso, mas era algo bem pontual.

O que aconteceu foi que gravaram N takes para cada fala do Jorge Silva Melo, e era preciso ver as takes e organizá-las na mesa de montagem. Foi preciso dobrar tudo, tirar o som direto — em película tudo era magnético. O Vasco Pimentel estava a trabalhar no som, mas pediram-me esta tarefa específica de retirar aquele som, escolher as takes e sincronizá-las. Então, fui ouvir uma lata grande cheia de rolinhos com marcas de sincronismo, para depois fazer uma fita em continuidade com as marcas.

Correu muito bem! Conclusão: passado algum tempo, o César me convidou para montar “Flor do Mar”. Entretanto, tive uma filha e, a certa altura, não aguentei estar separada dela. Uma parte do filme foi montada pelo José Nascimento, e eu ficava inquieta por causa do bebê, já que estava fora de Lisboa. Enfim, o César era muito quentinho, e às vezes não me deixava desatinar. Ele achava que estavam a sacanear, e pronto, acabávamos a falar dessas coisas sem fim.

No 11º Olhares do Mediterrâneo a revolução do dia-a-dia faz-se no feminino ... e com Cinema!

Hugo Gomes, 27.10.24

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A Mulher que Morreu de Pé (Rosa Coutinho Cabral, 2024)

Falemos de Cinema, mas também de Mulheres, e da dissociação entre ambos. É com este mote que o Olhares do Mediterrâneo se apresenta, com uma programação forte em filmes e eventos paralelos que discutem o género, as possibilidades e a importância de desvendar um cinema pensado, feito e concretizado por mulheres. Ao ultrapassar a marca de uma década, agora com a sua 11ª edição, o Festival Internacional convida-nos novamente a percorrer as margens do Mar Mediterrâneo, explorando culturas e perspetivas audazes que culminam na arte que tanto valorizamos. Este ano, a Palestina surge não apenas como horizonte, mas como algo tangível através das imagens, já que este olhar traz consigo atualidade, urgência e subversão.

O Olhares do Mediterrâneo arranca no próximo dia 31 de outubro, transformando o habitual “Dia das Bruxas” numa celebração do feminino e da sua cinematografia. O evento prolonga-se até 7 de novembro com várias atividades e exibições em novos espaços, como o Cinema São Jorge, a Cinemateca Portuguesa, o Goethe-Institut e a Casa Comum.

Silvia Di Marco, co-diretora do festival, foi desafiada pelo Cinematograficamente Falando … a descortinar as novidades, a programação de mais um ano e a essência desta importante montra cinematográfica. 

O tema desta edição, "Revoluções Quotidianas", é uma escolha particularmente simbólica no ano em que se comemoram os 50 anos da Revolução de Abril. Pode explicar como se deu a escolha deste tema e de que forma ele se reflecte na selecção dos filmes?

Este ano escolher o tema da “revolução” era incontornável para nós, porque os valores de Abril de democracia e igualdade fazem parte do ADN do Olhares do Mediterrâneo - Women's Film Festival, assim como a ideia de que o quotidiano das mulheres que se empenham pela igualdade tem uma forte carga revolucionária: querer que as nossas vozes sejam ouvidas e não sejam apagadas, que as nossas histórias sejam contadas nos nossos termos e não por outros, é uma revolução que fazemos todos os dias e o Festival é uma forma de ampliar e concentrar a força destas revoluções quotidianas. 

Aliás, não é a primeira vez que trazemos a Revolução ao festival. Em 2021, por exemplo, acolhemos a estreia do documentário “Elas também estiveram lá” de Joana Craveiro. Na programação deste ano uma ideia mais subtil de revolução norteou o programa, exactamente para captar esta ideia de quotidianidade do gesto revolucionário, que é o gesto de quem não se conforma ao status quo, seja qual for. Por exemplo, na primeira sessão de curtas-metragens, a 31 de outubro, apresentamos cinco filmes que questionam o corpo de mulheres e crianças, como ele é vivido e socializado. No documentário “The Desert Rocker”, da argelina-canadiana Sara Nacer, damos a conhecer ao público a vida de Hasna El Becharia, a mulher que transformou a música Gnawa, tradicionalmente tocada exclusivamente por homens. 

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Remember my Name (Elena Molina, 2023)

No filme de encerramento da parte competitiva do festival, “The Girls Are Alright”, da espanhola Itsaso Arana, revela-se o potencial revolucionário de um ensaio de uma peça de teatro numa casa de campo, onde quatro actrizes e uma encenadora usam da palavra no gesto extremamente “feminino” de partilhar vivências  e tecer mundos possíveis em longas conversas imprevisíveis.

O Festival dá especial destaque ao cinema palestiniano, com a secção "Olhares da Palestina". O que motivou a escolha da Palestina como país convidado desta edição e qual a importância de dar visibilidade a estas cineastas, principalmente nos tempos incertos que o Médio Oriente vive hoje?

O Festival chama-se Olhares do Mediterrâneo e é impossível olhar ao e do Mediterrâneo sem ver o que acontece na sua costa oriental. Por isso, sempre nos posicionámos de forma clara relativamente à chamada questão palestiniana. Sem nunca deixar de reconhecer e defender o direito dos judeus a viver em segurança em qualquer lugar do mundo, incluindo Israel, consideramos que a opressão do povo palestiniano é inaceitável e tem de acabar já. 

Os horrores de 7 de outubro de 2023, que o governo de Israel utilizou como carta branca para o genocídio em Gaza, é a razão principal que nos levou a decidir que este ano devíamos ter uma restrospectiva sobre as realizadoras palestinianas. É uma forma de homenagear a vida e o trabalho destas mulheres e ao mesmo tempo oferecer ao público uma oportunidade de descobrir uma cinematografia e uma história amplamente desconhecidas e criar oportunidades de debate. Os filmes que apresentamos são essencialmente filmes da diáspora. Porquê? O que obrigou e obriga estas mulheres a viver fora da Palestina? Muitos deles falam de memória e arquivos perdidos. Que memórias são estas? Porque os arquivos, assim como as pessoas, sofreram uma diáspora ou foram destruídos? Acreditamos que no momento actual é essencial conhecer o trabalho das realizadoras palestinianas para reconhecer a sua humanidade e estamos convencidas de que estes filmes oferecem também  uma oportunidade única para ajudar a compreender como se chegou ao ponto em que estamos no Médio Oriente.

A programação inclui uma forte componente de filmes sobre migrações, colonialismo e racismo. Como é que o cinema pode contribuir para aumentar a consciência sobre estas questões sociais e políticas?

Dando a ver e “sentir”, através do documentário, da ficção, do cinema experimental, as múltiplas facetas das migrações, o colonialismo e o racismo. Apresentando narrativas diferentes daquelas que são habituais. Criando oportunidade de debate e encontro. Despoletar curiosidade, pensamento crítico, mas também empatia. O cinema tem esta capacidade incrível de transmitir conhecimento objectivo e ao mesmo tempo mexer nas nossas emoções, dois elementos essenciais para fomentar a consciencialização sobre questões sociais e políticas.

Com um total de 67 filmes de 28 países, como foi o processo de curadoria para garantir uma diversidade geográfica e temática, especialmente num festival dedicado a realizadoras da região do Mediterrâneo?

Muito trabalho e uma equipa dedicada! A maioria dos filmes são seleccionados a partir de uma chamada. Este ano recebemos cerca de 530 filmes, entre longas e curtas-metragens através desta chamada. Cada um foi visto e avaliado por pelo menos duas pessoas. Além destes, avaliamos mais cerca de 50 filmes que procurámos activamente, vendo quais passaram nos festivais mais importantes e os catálogos de várias distribuidoras independentes. Para os “Olhares da Palestina” contactámos vários arquivos e a selecção foi feita em colaboração com a equipa da Cinemateca Portuguesa.

Este ano, o festival traz várias estreias nacionais e até uma estreia mundial com o filme português "A Mulher que Morreu de Pé", de Rosa Coutinho Cabral, envolto da influência e pensamento da escritora Natália Correia. Gostaria que me falasse dessa estreia e a sua importância num festival como este?

Foi um achado! Nós estávamos já a fechar a programação e a Rosa Coutinho Cabral estava ainda a acabar de montar a versão definitiva do filme quando nos contactou. Pensámos logo que era uma oportunidade imperdível: homenagear a Natália Correia no Festival no ano do 50º aniversário de 25 de Abril tem algo de especial para nós. "A Mulher que Morreu de Pé" é um documentário-ensaio visual fascinante e a sua estreia no Festival será também uma oportunidade para pensar no legado da Natália como pensadora e artista revolucionária, que viveu e pensou de forma autónoma todas as questões, artísticas e políticas, inclusive na sua relação com o feminismo da altura. 

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A realizadora Farah Nabulsi durante a rodagem de "The Teacher" (2023) / Foto.: Omar Al Salem

O filme de abertura, "The Teacher", de Farah Nabulsi, aborda a complexa questão da violência na Cisjordânia. Que impacto espera que este filme tenha no público português, especialmente no contexto de um festival dedicado às revoluções quotidianas e no vivenciado zeitgeist?

Trata-se de um filme que, a nosso ver, mostra a situação atual na Cisjordânia de forma honesta e equilibrada, tomando claramente uma posição, mas sem desumanizar o outro lado, e questionando a violência como forma de luta. Gostaríamos que o filme oferecesse ao público português a oportunidade de conhecer uma realidade que muitos desconhecem e que atingisse o objectivo da sua realizadora, a britânica-palestiniana Farah Nabulsi, de levar os espectadores numa viagem intensa e emocional dentro das vidas dos protagonistas do filme, que faça reflectir sobre as escolhas e decisões que as personagens tomam e a realidade cruel em que essas decisões são tomadas.

Além das exibições, o festival oferece uma programação rica em workshops e debates. Pode destacar quais as iniciativas paralelas que considera significativas nesta edição?

Sem dúvida os debates sobre colonialismo. São dois, o primeiro na sexta-feira, 1 de Novembro, pelas 16h, à seguir à projecção do documentário “Maria India - Genealogia de Migração e Colonização”, moderado pela jornalista Joana Gorjão Henriques. O segundo, no domingo 3 de Novembro, pelas 18h, intitulado “Colonialismo/Decolonialismo e as Suas Representações”, no seguimento de uma sessão de quatro curtas-metragens que tocam de forma diversa este tema. Em Portugal é impossível pensar a revolução sem pensar no passado colonial do país, portanto estes debates são particularmente importantes. 

Incontornável também o “Debate Travessias” deste ano, cujo tema será a migração de menores não acompanhados e contará com a presença da realizadora do documentário “Remember My Name”, a espanhola Elena Molina. Entre os workshops assinalamos “Género, Autoconhecimento e Empatia”, a 31 de Outubro, com Laura Falésia e André Tecedeiro, da associação Flecha, o workshop Gender Stereotypes and Sexism in Films”, sábado, dia 2 de Novembro de manhã, organizado no âmbito do projecto “Olhares do Mediterrâneo with Eurimages For Equality” e, numa nota mais leve, a Oficina de Cantos do Mediterrâneo, no mesmo dia à tarde, que o ano passado teve grande sucesso.

Sendo o mais antigo festival de cinema no feminino em Portugal, quais foram as principais mudanças que notou no panorama do cinema realizado por mulheres ao longo dos últimos 11 anos? E para onde o Olhares irá “olhar” nas futuras edições?

Há cada vez mais filmes realizados por mulheres e a sua visibilidade vai aumentando, o que nos anima muito. Ao mesmo tempo, as mulheres continuam a ter problemas de acesso aos financiamentos mais substanciais, que tipicamente servem para poder realizar longas-metragens de ficção. O que é muito interessante é que aumenta a capacidade e a vontade das cineastas de se organizar ou criar redes para melhorar e reforçar as suas condições de trabalho, como é o caso da MUTIM - Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento aqui em Portugal

Relativamente aos filmes que apresentamos no Festival, continuamos a notar que os que entram através da chamada para filmes variam muito consoante os anos e o zeitgeist do momento, mas há temas, nomeadamente os que dizem respeito às relações humanas e familiares nas suas múltiplas vertentes e manifestações que continuam a ser recorrentes, confirmando a necessidade das realizadoras de explorar o quotidiano e o privado como elementos fundadores do colectivo e do político. 

Nos próximos anos continuaremos a olhar com muito cuidado para tudo o que acontece, cinematograficamente falando, mas não só, à volta do Mediterrâneo, especialmente ao Sul e ao Leste, mas não excluímos a possibilidade de alargar as nossas fronteiras a outros horizontes. Estamos a criar redes com vários festivais de cinema feito por mulheres e esperamos que em breve isto nos permita criar novas actividades, como, por exemplo, residências artísticas.

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Toda a programação e informação aqui

Joana Ribeiro em "Os Papéis do Inglês": "há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador."

Hugo Gomes, 25.10.24

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Os Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

Sul de Angola, deserto de Namibe, na demanda por uns papéis, um macguffin, um tesouro incógnito que ditos e suspeitas o rodeiam, por entre aquele território enigmático, de horizontes infinitos e de gente ligada a um tempo fora, Ruy (João Pedro Vaz), um poeta, um escritor, um cineasta, homem de artes e de palavras em geral, revela-se numa figura quase quixotesca e enxuta na demanda dessa preciosa papelada e nos mistérios acarretados nele. 

Neste novo filme de Sérgio Graciano - “Os Papéis do Inglês” - a obra de Ruy Duarte de Carvalho (1941 - 2010) revela-se em matéria maleável para a ficção e à autognose, à aventura pouco convencional, e à reflexão de uma terra e das suas assinaturas, e, sobretudo, do seu lugar no Mundo, seja em África ou nos escritos. O escritor deu carta branca para o produtor Paulo Branco adaptar a sua trilogia “Os Filhos de Próspero”, e o resultado é uma homenagem, ora sentida, ora exótica, ora trovada e entendida no seu consciente. No seu seio, outros se juntam à busca pelos registos em parte incerta, seja o fiel David Caracol, ou mais tarde, um retornado angustiado Miguel Borges, acompanhado pela juventude em forma de Carolina Amaral e de Joana Ribeiro, aqui como Camila, arqueóloga com fascínio pela poesia de Carvalho, e que, através das suas lentes, ‘penetra’ nesta África desconhecida, do berço da Humanidade até às longitudes mais distantes da civilização.

O Cinematograficamente Falando… conversou com a atriz, no Cinema Nimas momentos antes da antestreia nacional de “Os Papéis do Inglês”, numa breve passagem pelo seu papel e pela sua colaboração constante com as produções de Paulo Branco e de novos projetos que chegarão a nós num ápice. Fiquemos assim na companhia de Camila, a jovem aventureira…

Começo pelo início: a sua chegada a “Os Papéis do Inglês” …

A chegada a este filme aconteceu durante um almoço com o Paulo Branco, onde ele me falou deste projeto, que era completamente desconhecido para mim, pois até então não estava familiarizada com a obra de Ruy Duarte de Carvalho. Confesso que o interesse surgiu não só pela evidente ligação à obra de vida de Ruy, o qual teria a oportunidade de o “descobrir”, como também pela personagem da Camila, que interpreto. Em criança, o meu primeiro sonho era ser astronauta, mas também havia um desejo em mim de ser arqueóloga. Assim, ao surgir a oportunidade de interpretar uma personagem ligada a essa área, mesmo sem muita arqueologia durante as filmagens, pareceu-me uma experiência interessante e fez todo o sentido.

Depois do dito “Sim” ao projeto, chegou a ler a obra de Ruy Duarte de Carvalho?

Li pois … Li a trilogia “Os Filhos de Próspero”, que como se bem sabe, serve de inspiração para este projeto, e também “Vou lá visitar Pastores”, pois a minha personagem referencia esse livro e, na época em que o filme decorre, tinha acabado de o ler, por isso fiz o mesmo. Troquei depois várias ideias com o João Pedro Vaz sobre o escritor e a sua obra, uma vez que ele realizou uma pesquisa intensa e profunda sobre o autor para o seu papel.

E como trabalhou, ou preparou, esta Camila?

Esta personagem foi principalmente construída com base na leitura dos livros. Tivemos ensaios, todos na Leopardo [Filmes, produtora de Paulo Branco], e grande parte do trabalho veio da relação que desenvolvi com a Carolina Amaral. Já conhecia a Carolina, mas não éramos amigas, e neste projeto ficámos muito próximas. Foi realmente isso: a conexão com os outros atores, o que estava no guião e na leitura da obra do Ruy.

os-papeis-do-ingles (1).jpegOs Papéis do Inglês (Sérgio Graciano, 2024)

E tendo esse espírito aventureiro, como foi essa ida a Angola?

Foi incrível! Angola foi espectacular e até então foi uma das viagens de trabalho de que mais gostei. É um lugar muito especial, mas também já tinha uma carga, um significado para mim, porque o meu avô esteve em Angola e o meu pai também passou lá muito tempo. Sempre tive o desejo de visitar o país e essa oportunidade surgiu no ano seguinte ao falecimento do meu avô, o que tornou a experiência ainda mais especial. Foi muito emocionante visitar um sítio de que ele falava tanto e de que tanto gostava.

O deserto do Namibe é o mais antigo do mundo, e sente-se uma carga energética única quando se está lá. Num dos locais onde filmámos, havia um monte de pedras à entrada, onde, segundo se dizia, era preciso adicionar uma antes de entrar, e se isso não acontecesse não conseguiriamos sair do deserto. Ao longo da rodagem, senti essa energia e a importância do lugar.

Há uma frase muito bonita de Ruy Duarte de Carvalho em “Vou lá visitar Pastores", que me acompanhou durante as filmagens. Vou lê-la, porque já não a sei de cor, embora a tenha decorado na altura, pois era uma fala minha. Entretanto, outros projetos surgiram e fui esquecendo. A frase é:

Para nós, o deserto faz falta quando estás noutro lugar. Quando estás lá, vocês não dá-se nem conta; mas quando não estás, sentes-lhe a falta. Mas não é de te exaltar o deserto que tu precisas, nem é isso que te faz correr para lá. É estar lá só, e estar antes onde talvez ele possa ver-te, o deserto, e não tu a ele.

Esta frase acompanhou-me muito ao longo da rodagem. O especial que é estar no deserto, porque há momentos em que somos só nós e o deserto. Isso pode ser assustador, mas também é libertador.

Um sentimento de estar sozinha num deserto?

Sim, mas gosto desse sentimento e aceito-o, porque ali tudo é imenso, tudo é grandioso. A vista perde-se, e houve momentos e situações em que realmente se sentiu a imensidade do deserto e daquilo que estávamos a ver. Havia, por exemplo, um campo que me fez lembrar o filme do Terrence Malick com o Sam Shepard.

“Days of Heaven”?

Sim, exatamente, “Days of Heaven”. Com aquele cenário! Houve um momento em que tive que tirar fotografias e tudo, porque aquilo foi mesmo incrível. Lembro-me de ver o Mário Castanheira, o nosso diretor de fotografia, a filmar o Miguel Borges, o João Pedro Vaz, o Sérgio Graciano, e todos os outros ao redor. Aquilo fez-me mesmo recordar esse mesmo filme, que adorei ver, aliás, aqui no Cinema Nimas.

Houve também várias paisagens que me fizeram lembrar momentos de filmes que adoro. É isso que é tão bonito nos filmes: trazem-nos paisagens e imaginários que ainda não vimos, mas que, quem sabe, um dia poderemos ver. Adorei essa parte de filmar em Angola.

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Days of Heaven (Terrence Malick, 1978)

Esse recorda-me … aliás, farei uma ponte a um outro filme que participou - “Diálogos Depois do Fim” - adaptação de "Diálogos com Leucó" de Cesare Pavese, que foi filmado nos Açores. Recordo semelhante sentimento, a de isolamento, ou de estar em estado remoto, na Ilha do Pico.

Sim, porque acho que, quando estamos num lugar tão imenso e cheio de história, há momentos em que, ao olhar para o horizonte, não vemos ninguém. Atrás de mim estava toda a equipa e o elenco, mas se me virasse para determinado lado, não havia uma única pessoa por quilómetros. Isso é incrível; adoro essa sensação de estar completamente sozinha e, de repente, ao virar-me, perceber que há toda uma gente atrás.

Mencionei “Diálogos Depois do Fim” nem de propósito. Tal como nesse filme de Tiago Guedes, como este de Sérgio Graciano, contracena maioritariamente com o ator Miguel Borges. Está encontrada dupla? 

Pois é [risos]. Olha, foi uma surpresa maravilhosa. O Miguel Borges é um ator que admiro muito, e não é de agora, já há bastante tempo, e tem sido incrível poder trabalhar em diferentes projetos e vê-lo em ação. Gosto muito dele, do Miguel, mesmo muito. Tenho um carinho enorme por ele. Nos “Diálogos”, mais para o final, tivemos um trabalho mais próximo e direto. Neste projeto, não tanto, mas estivemos juntos em Angola durante um mês, mas já tem sido constante a colaboração.

Miguel Borges é um dos atores recorrentes nas produções de Paulo Branco, assim como a Joana. “A uma Hora Incerta” (Carlos Saboga, 2015), também da sua produção, foi o seu inaugural papel no cinema. Desde então, tem sido uma presença habitual neste rol de filmes, incluindo os “projetos-órfãos”, curiosamente, como “O Homem que Matou D. Quixote” (inicialmente de Paulo Branco). Gostaria que me falasse um pouco sobre esta parceria.

Sim, o Paulo foi o primeiro produtor a dar-me uma oportunidade no cinema. Quando fazia televisão, ainda havia uma visão algo pejorativa sobre isso no cinema português. O Paulo foi o primeiro produtor português a apostar em mim e a acreditar no meu trabalho. Gosto muito dele; acho que é um produtor imenso. Quando estou com ele, o nosso diálogo sobre cinema é espectacular, e adoro ouvi-lo falar sobre cinema, das histórias sobre das dificuldades que já enfrentou para conseguir produzir filmes, ou seja, do seu universo.

Enquanto o Paulo quiser trabalhar comigo e eu puder, cá estarei. Até agora, todos os projetos para os quais o Paulo me convidou foram possíveis, e foram também projetos dos quais gostei muito de fazer. O futuro é incerto, mas espero que esta parceria continue.

Pelo que percebo é que, hoje em dia, estando bastante presente na televisão, está a ser muito difícil conciliar com outros projetos paralelos.

Não. Por acaso tenho tido sorte, tenho conseguido conciliar os projetos, mesmo agora que estou a trabalhar numa novela. Este ano, por exemplo, tinha uma série da Bando À Parte, em Guimarães, e em breve vou filmar em Manteigas com o Mário Patrocínio, num projeto produzido pela APM, em novembro, e tem sido possível conciliar tudo com a novela, o que é ótimo, porque nada me dá mais ansiedade do que perder um projeto por causa de outro. Tenho tido muita sorte nesse aspecto, e até agora não houve nada que tivesse perdido por conflito de agenda. Aliás, houve um, produzido pelo Paulo … é verdade, que não consegui porque estava em Londres, mas isso já envolveu outras questões. Foi na altura do Covid, e tornou-se muito complicado gerir essa situação.

Nessa altura, mais concretamente em 2020, integrou o European Shooting Stars. Gostaria que me falasse sobre as “portas” que a participação desse programa abriu. 

Parece que foi há tanto tempo [risos]. A maior porta que se abriu para mim foi, sem dúvida, conhecer outros atores europeus na mesma situação e poder trocar experiências e sonhos. Conheci pessoas com quem ainda hoje mantenho contacto, como o Bartosz Bielenia [Corpus Christi”], que é um ator incrível. No ano passado, ele veio a Portugal e chegou a ficar em minha casa - ele vive na Polónia, tenho família por lá, por isso, quando lá for, provavelmente também o irei visitar - fez um espectáculo com o Albano Jerónimo e a Iris Cayatte [“O Carro Falante”, de Agnieszka Polska], na Culturgest. Mas o que realmente me marcou foram estas amizades que permanecem e a partilha de experiências.

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Diálogos Depois do Fim (Tiago Guedes, 2023)

Foi também nos Shooting Stars que soube que tinha conseguido o papel na série “Das Boot", e isso foi, em parte, graças ao evento, pois os produtores estavam lá e viram-me. Claro que isso ajudou. Na altura, recebi também convites para outros castings. Depois veio o Covid, mas foi por causa dos Shooting Stars que consegui a minha agência nos Estados Unidos, a Gersh. Comecei a ter reuniões logo a seguir ao evento, e foi esse network que, ainda hoje, continua a ser importante para mim.

O que poderia-me dizer sobre esses novos projetos?

O de Manteigas… Não sei o que posso partilhar sobre ele. A minha personagem é uma mulher que viveu a vida toda lá, nunca saiu de lá, e vai ter um reencontro com alguém com quem esteve envolvida há alguns anos. As coisas não correram bem entre eles, e o filme explora esse reencontro – pelo menos, essa é a parte da minha história que será retratada.

No próximo ano, tenho um filme chamado “Augusta & Kátia”, realizado e escrito por Lud Mônaco e produzido pela Promenade, que será rodado a meio do ano, creio eu. É um filme sobre duas amigas e a forma como lidam com questões sociais, económicas e profissionais num país que não é o delas. É uma abordagem mais virada para a comédia, e tenho gostado bastante dessa diferença entre drama e comédia. 

A comédia é difícil, sem dúvida, mas tenho-me divertido muito. Acho que o filme “Sonhar com Leões”, que fiz com o Paolo Marinou-Blanco pela Promenade, também foi uma experiência nesse sentido. Foi a minha primeira experiência em comédia, e estava apavorada, porque achei que seria possível.

Mas, no final, adorei e diverti-me imenso. Pouco depois, fiz o casting para “Augusta & Kátia”, que também é uma comédia. Pensei: “Isto é demais, não vou conseguir.” Mas fiquei com o papel! Se calhar, tenho mais jeito para a comédia do que pensava. Quem sabe?

Ri-te, Ri-te ... A 3ª edição do HaHaArt Film Festival arranca com comédia para subverter expectativas

Hugo Gomes, 24.10.24

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Hundred of Beavers (Mike Cheslik, 2022)

É rir à portuguesa, sem necessidade de restringirmos ao alarve, até porque, segundo o pŕoprio director, Manuel Oliveira, o HaHaArt Film Festival chegou para subverter o esperado. Nesta sua terceira edição, o festival promete ultrapassar a gag e superar o seu formato; com uma masterclass, uma retrospectiva [Close Up], duas secções inaugurais que colidem com a Competição e com as sessões especiais. Temos Junta Yamaguchi a abrir as festividades [“River”, 2023] e um exército de castores e outros animais peludos para fechá-lo [“Hundreds of Beavers”, 2022], no meio há um Joker longe do selo DC e de Todd Phillips [“The People’s Joker”, 2022] e ainda André Ruivo, da sua ilustração à sua imaginação cinematograǵfica. Em HaHaArt Film Festival, a gargalhada tem prestígio. 

O Cinematograficamente Falando … conversou com Manuel Oliveira sobre o terceiro ano desta montra cinematográfica para que Pombal seja a capital nacional do cómico durante quatro dias [24 - 28 de outubro].

Com uma terceira edição, o que poderia dizer sobre o processo de “aprendizagem” e de aprimoração do HaHaArt Film Festival?

Acima de tudo, tem sido uma oportunidade para todos os envolvidos, de mergulhar num género de um modo que talvez tenha ultrapassado até as nossas próprias expectativas. Este foco num cinema específico parece limitador, mas na verdade abriu de tal maneira os horizontes dentro da equipa, que se tornou no principal motor motivacional por detrás do festival e da ambição de crescer. A criação de novas secções – como a exibição de uma retrospectiva, a promoção de uma masterclass, a exibição de longas-metragens – e a expansão de outras – como a secção infantil – é um grande passo para uma organização que se mantém com os mesmos recursos dos últimos dois anos. Acima de tudo, estamos a otimizar e a fazer o máximo que conseguimos com os recursos que temos! Tem sido um processo muito gratificante e sentimos que há muito espaço para crescer e melhorar.

A mesa redonda sobre a comédia como agente subversivo parece ser um dos pontos altos da edição deste ano. Como vê a importância de debates como este no contexto de um festival de comédia? Acha que a comédia é suficientemente reconhecida pelo seu poder subversivo, social e, tendo em conta os tempos incertos de hoje, político? Por outras palavras, podemos considerar o HaHaArt Film Festival um festival de filmes políticos?

Nem todo o cinema de comédia é reconhecido pelo seu poder subversivo ou de impacto social e cultural. Muitas vezes, o maior dos preconceitos sobre o cinema deste género surge daí mesmo: da familiaridade e da perpetuação de determinadas ideias para obter reações fáceis. Nesse sentido, o HaHaArt Film Festival é um festival de filmes políticos, sim, porque tentamos mostrar o outro lado do género. Consideramos que todos os filmes em competição – ou pelo menos quase todos – são, de um modo ou outro, subversivos, mesmo aqueles que entram em determinados moldes com menos resistência. Isto deve-se também à importância que damos, no processo de programação, a deixar claro que, para o HaHaArt Film Festival, a comédia no cinema é muito mais do que fazer rir; é uma visão narrativa e um modo de abordar o público. E isto também é, conscientemente, um gesto político e subversivo.

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Uma das curtas em competição: "O Procedimento" (Chico Noras, 2024)

Este ano, o HaHaArt Film Festival aposta numa programação que desafia as convenções da comédia, ao incluir filmes como "River" de Junta Yamaguchi [abertura] e "Hundreds of Beavers" [encerramento]. Gostaria que me falasse sobre essas escolhas e melhor, o que se pode considerar filme de abertura e de encerramento num festival como este?

Acima de tudo, estas escolhas são importantes para a identidade do festival. O HaHaArt Film Festival é jovem, está na sua terceira edição. Escolher filmes para abertura e encerramento nesta altura do campeonato é, para nós, uma maneira de transmitir ao público essa ideia. Especialmente tratando-se de sessões de longas-metragens, que até este ano tínhamos tido apenas uma. Tanto o “River” como o “Hundreds of Beavers” são filmes que definem muito bem o HaHaArt Film Festival: abordagens arrojadas que subvertem expectativas sobre o género, mas que ao mesmo tempo trazem uma familiaridade dentro dos seus moldes. Pensamos que, em conjunto com a exibição do “The People’s Joker”, formam uma trindade muito caleidoscópica, mas que, no final do dia, ilustram muito bem a nossa identidade.

A comédia é frequentemente subvalorizada em termos de reconhecimento artístico. De que forma o HaHaArt Film Festival pretende desafiar essa perceção e elevar a comédia ao mesmo patamar de outros géneros cinematográficos?

Acima de tudo, mostrando o que há dentro do género que demonstra isso mesmo. Quando se trata de cinema de género, seja ele qual for, é fácil abordá-lo como conservador ou limitado pelas suas lógicas internas. O cinema de comédia sofre com essa visão, à qual ainda se acrescenta a perceção de que a comédia é a irmã mais feia da tragédia. Um preconceito cultivado desde há muito na cultura ocidental e que coloca o género em desvantagem. O que ambicionamos é mudar expectativas e expandir olhares, ao abrir portas à abrangência do género e à multiplicidade de abordagens do cinema de comédia contemporâneo, seja através do debate ou dos filmes que escolhermos exibir, como é o caso da já referida tríade que apresentamos fora de competição. Acreditamos que, ao ultrapassar alguns preconceitos sobre o cinema de comédia – que achamos ser mais um produto do contexto sociocultural do que propriamente das características do género –, podemos ver o que, na sua universalidade e particularidade, há de verdadeiramente artístico e pertinente.

A inclusão de uma retrospectiva dedicada a André Ruivo, possivelmente mais conhecido como ilustrador do que cineasta, através da secção Close Up, sugere uma aposta em nomes menos convencionais do género cinematográfico. O que considera que a obra de Ruivo traz ao festival e ao público em termos de inovação e natureza da comédia dita cinematograficamente canónica?

Primeiro, traz um destaque a um tipo de cinema – o de animação – que tentamos sempre incluir no debate em torno do cinema de comédia. Depois, a relação da obra do André Ruivo com a ilustração e o cartoon satírico permite pegar no que há de particular no cinema de comédia e expandir para outras disciplinas. No caso dos seus filmes, consideramos que existe neles a representação da “portugalidade” de um modo muito divertido e dinâmico, algo que acontece com a sua ilustração, mas que nos filmes ganha outras dimensões, tendo em conta os jogos de diálogo, as metamorfoses, os timings e outras particularidades cinematográficas.

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The People's Joker (Vera Drew, 2022)

O festival tem como um dos seus objetivos criar e desenvolver o espírito crítico do público em relação ao género de comédia. Que impacto espera que este evento tenha na perceção dos espectadores sobre o género e na adubação de uma apreciação mais profunda da comédia?

Gostamos de acreditar que qualquer amante de cinema que venha a uma das sessões do HaHaArt Film Festival sai de lá com um sentimento de entusiasmo. Primeiro, pela tal quebra com a perceção do que é cinema de comédia. Segundo, entusiasmo por ter experienciado, como se espera de um festival de cinema, uma amostra do melhor que o cinema contemporâneo tem para oferecer. E esperamos que essa experiência os siga até casa e permaneça com eles no momento de escolher e pensar o cinema de comédia.

Com a crescente internacionalização do festival, como é que o HaHaArt Film Festival se posiciona em relação a outros festivais de comédia, tanto a nível nacional como internacional? O que o distingue e como vê o seu futuro no panorama dos festivais de cinema?

Até ver, somos o único festival que se foca neste género em Portugal. Na Europa e no mundo, há alguns que seguimos atentamente e com os quais temos feito contacto. Colectivamente, os objetivos entre nós são semelhantes. Claro que cada um tem a sua identidade própria. O que distingue o HaHaArt Film Festival é o rigor com que internamente tentamos definir e separar o que é o cinema de comédia e o que é a comédia no cinema. O que também nos distingue é o facto de sermos um festival de cinema em Pombal, fugindo aos grandes centros urbanos. Estamos numa fase em que estamos a tentar envolver a comunidade local, através do CCP – Cineclube de Pombal, que é o organizador principal deste evento. Isto faz do HaHaArt Film Festival um festival com um ambiente familiar e sem hierarquias, onde todos falam com todos, num espírito de cinefilia.

Ao longo das edições, a comédia tem-se afirmado como um género essencial, mas muitas vezes marginalizado, ou decretado como uma futilidade para “tempos sérios” que a nossa contemporaneidade parece assumir. Quais são os desafios mais significativos que enfrentam na programação de filmes de comédia e como esperam que o HaHaArt Film Festival possa contribuir para a renovação do interesse no género?

Os tempos são sérios, como acabam por ser sempre. Voltando ao tema da nossa mesa redonda deste ano, penso que a subversão, desafio e questionamento são claros no cinema de comédia. A ideia de brincar com coisas sérias, muito na moda, exprime-se de várias formas no cinema que tentamos promover. E aqui falamos, evidentemente, da comédia negra ou da comédia política. Por outro lado, desafia ainda a “seriedade” das expectativas sobre a arte e o género, acabando por ser também subversivo de uma forma auto reflexiva. 

Os maiores desafios são a construção de públicos, tendo em conta a localização do festival e os seus recursos, e a desconstrução dos tais preconceitos que achamos discriminatórios no género. Temos a certeza, no entanto, de que o que não faltam por aí são excelentes filmes de comédia à espera de serem descobertos ou redescobertos, e é em dá-los a conhecer que está a maior contribuição do HaHaArt Film Festival.

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Toda a programação e informação sobre o festival aqui

Tribeca, um Web Summit que se fez passar por Festival

Hugo Gomes, 21.10.24

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Foto.: Ana Baião 

À porta do Doclisboa, discutia-se uma entrevista com Paula Astorga, a nova diretora do Festival de Documentário, ao site C7nema, na qual se destacava o evento como o [sublinhe-se] Festival de Cinema, em oposição ao Tribeca, a acontecer ali ao “lado”, e partilhando datas: “uma centelha, algo efémero e pouco transcendente”. Revoltado com tal afirmação, o meu “cúmplice” de "crimes" e de filmes, apelava à coexistência desses dois mundos nesta nossa conversa, coisa com a qual não pude deixar de concordar, embora não resistisse a criticar aquilo que se pretende vender como o nosso Tribeca.

Tribeca, o festival nova-iorquino, é uma "coisa", a extensão lisboeta na costa do Beato é outra bem diferente, um sintoma do que, lamentavelmente, parece ser o nosso desporto nacional: exaltar o provincianismo. Sob a bênção do presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, e da SIC / OPTO, com um “vaqueiro de prata” para exibir às visitas, o Tribeca Lisboa foi tudo menos um festival dedicado ao cinema. Aliás, de Cinema tinha pouco ou nada, e o que tinha parecia querer esconder debaixo do tapete como se fosse um embaraço. Talvez seja por isso que a palavra "Cinema" surgiu em terceiro lugar no cartaz, depois de "Cultura Pop" e "Talks". Porque, na verdade, este Tribeca importado chega-nos como um empreendedorismo quais-turistico, e apertos de mão e negócios com o seu quê de solarengo alfacinha, uma condição confirmada pela atenção mediática - com Robert De Niro, Chazz Palminteri, Griffith Dune, Patty Jenkins e Whoopi Goldberg a dividir o palco com as caras conhecidas da nossa praça, mas, mais uma vez, com pouco ou nada de cinema para partilhar com os nossos.

Infelizmente, mesmo nessa troca de fluídos, fizemos "figuras tristes". Sem cinema, o festival transformou-se no modelo que os portugueses tão bem conhecem: o da Web Summit, o estilo FIL, de passes caros e promessa de estrelas de Hollywood (poucas, diga-se) a circularem pelos corredores deste negócio metropolitano. A De Niro, a sua presença foi tudo menos cinematográfica, sendo a política, Trump e a sua oposição feroz a encher manchetes e reels promocionais. Do outro lado, a nossa oferta: o "cinema português", representado por César Mourão e séries-pilotos como montra. Alguém consegue explicar aos nossos como também à estrela o que é realmente cinema português, aquela com uma linguagem universal e não citações de fórmulas ou hibridez televisiva, ao invés de o aproximar da produção mista da SIC e a “gang do audiovisual” desejam fortalecer.

Como bem apontou o crítico Vasco Câmara, do jornal Público, bastava alguém sussurrar ao ouvido de De Niro com a dica de que na "terra natal" do Tribeca, em Nova Iorque, estava a decorrer um ciclo de cinema português no MoMA - “The Ongoing Revolution of Portuguese Cinema - que celebra a universalidade e contemporaneidade da nossa produção. Pedro Costa, Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues, Fernando Lopes, Manuel Mozos, Teresa Villaverde, entre outros, filmes tão nossos que o "grande público português" despreza, mas, em vez disso, apresentamos protótipos baratos de enésimas produções hollywoodianas, De Niro e a sua trupe produzem uns quantos “Podia Ter Esperado por Agosto” com uma perna às costas. Como bem disse João Botelho: "patetice por patetice preferem os americanos, que são patetas grandes".

No final, é oferecido um galo de Barcelos, anuncia-se a edição de 2025, e pronto, fica arrumada esta Comic-Con dos CEOs do audiovisual [aqui um fica de um testemunho deste "festa cinematográfica" no site Tribuna do Cinema]. E o triste é saber que temos as condições e as estruturas para acolher um festival internacional à escala de Cannes, Veneza ou até Locarno, o que nos falta é a mentalidade, como também a vontade, para o concretizar.

Entretanto, o Doclisboa prossegue, e é, quer se goste, quer não, um festival de cinema. O outro... nem carne nem peixe. Uma terra de unicórnios …

Consolidar um legado: Doclisboa arranca com nova direção e para novos rumos

Hugo Gomes, 17.10.24

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Entre as novidades desta 22ª edição do Doclisboa, a maior de todas é claramente a presença da mexicana Paula Astorga, ex-produtora e ex-diretora da Cinemateca do México a assumir a liderança do festival neste 2024, cheio de riscos, despedidas e comitivas de boas-vindas a frescos olhares e autores e os habitués. O Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa recorda o crítico e programador Augusto M. Seabra, voz e corpo da secção de Riscos, uma das mais badaladas da história do evento, e que semeou os rumos que vingariam no formato, a homenagem é sentida e garantida, e até mesmo Astorga, não o conhecendo pessoalmente, dirige-lhe com uma respeitosa vénia ao seu legado. 

Paul Leduc (1942-2020), o cineasta mexicano e experimental nas diferentes vias cinematograficas, que tem uma das raras retrospectivas fora do México, e o brilho dos olhos na diretora ao referir a sua obra é por si só uma conquista, os habituais cantos da casa; Heart Beat, da Terra à Lua, Competição Nacional e Internacional, Verdes Anos e Harmony Korine com o bizarro “Agro Dr1ft”, o futuro do cinema? Enquanto oportunidade única. 

Paula Astorga recebeu o Cinematograficamente Falando … no “quartel general “ do festival na Culturgest, numa longa conversa sobre filmes, secções, autores e beleza cinematográfica. As seguintes vinhetas são extractos desse mesmo encontro, para alimentar o apetite nestes próximos 10 dias de janelas para o Mundo. Aquele que é de facto um dos mais importantes festivais de cinema da nossa praça.  

GS400377_post-scaled.jpgPaula Astorga

A Tocha … depois de Seabra

Esta não é a primeira vez que dirijo um Festival, e no fundo, adoro o conceito de Festival de Cinema que são espaços necessários que articula, cada vez mais pertinentes e integrados naquilo que encaramos como o ecossistema da vida dos filmes. 

Para mim receber o Doclisboa foi com grande prazer, porque é um festival de uma identidade bastante definida. São 22 edições e é um momento maravilhoso, porque ainda é um evento jovem mas com este número de edições já requer uma certa responsabilidade, um jovem adulto que sabe o que é e o que deseja ser. Um festival com uma audiência construída e claramente sabe o que quer dizer. 

Nestes 22 anos, o Doclisboa atravessou e testemunhou imensas mudanças, seja da indústria, de uma pandemia que vivenciamos recentemente, ou geracional. Nisto vemos um festival que pede renovação frente às abordagens frescas incentivadas pelas redes sociais, com as plataformas e com o surgimento de novas linguagens cinematográficas, sempre mantendo o rigor da programação que sempre nos habituou. É isso que significa ser um festival adulto.

Um festival que proponha Cinema, que fale-nos de política, do social, do Mundo em nosso redor, mas que não tenha medo do poético, que crê na beleza, no cinema enquanto arte. Isso são pontos intocáveis no Doclisboa

Portanto, receber o legado deste festival é também uma grande responsabilidade, e como tal devo manter e proteger os seus valores. A minha chegada deu-se com a despedida de Augusto M. Seabra, uma  voz predominante neste festival e fundador da secção Riscos, o qual sem essa secção não haveria Doclisboa. Nunca tive a oportunidade de conhecê-lo, mas parece-me que o seu pensamento crítico e a sua aposta nas equipas de programação tornaram esta despedida muito contundente para as estruturas do festival.  

Como tal, chego numa altura em que se solicitava novos rumos, novas ideias sem nunca perder a sua personalidade tão vincada. O meu papel é consolidar a ideia de um legado. 

Reed.-Insurgent-Mexico.jpgReed, México insurgente (Paul Leduc, 1970)

Paul Leduc, "nuevas miradas"

Quando estávamos a discutir a retrospetiva deste ano, pareceu-me evidente, e em certa parte um statment politico e não só, apresentar um cineasta mexicano. Mas mais do que ser mexicano, Paul Leduc a condizer com esta nova ideia de festival, porque não só experimentou os mais diferentes cantos, quer documentais, quer ficcionais - e até animação ["Los Animales", 1994]! - como também era um homem de esquerda, bastante político, sem nunca descartar o seu lado artístico. 

Foi autor de um dos primeiros retratos da artista plástica mais importante do México com "Frida, naturaleza viva" (1984), demonstrou as revoluções sócio-culturais, o seu latino-americanismo, o seu pensamento político e artístico, a geografia e a etnografia como foi o caso de "Etnocidio. Notas sobre la región del Mezquital" (1976), em que segue para território indígena. Em "Historias prohibidas de Pulgarcito" (1980), aborda a guerra civil de São Salvador sob o olhar do poeta Roque Dalton e do seu homónimo livro, ou por outro lado, na ficção, adaptaria os contos do escritor brasileiro Rubem Fonseca com "Cobrador: In God We Trust" (2007), com o ator Peter Fonda, que estreou no Festival de Veneza

O meu papel seria traduzir o que transmitia o Doclisboa, quer no seu pensamento político, papel social, estético, um festival que celebra autores e memórias, por exemplo, há uns anos tivemos uma retrospectiva do colombiano Luis Ospina o qual consolidava todas essas ideias, Leduc não estava longe disso, aliás dialogava com todos esses pontos. A Cinemateca após ter recebido a proposta deste ciclo - um dos mais completos do autor e e a primeira a ser realizada na Europa, com cópias restauradas - reagiram com bastante agrado. 

Posso garantir que é um ciclo alucinante, Paul Leduc era um autor ecléctico e prolífico no contexto completamente adverso para o cinema mexicano. Julgo que não haveria espaço melhor para honrar a sua memória do que o Doclisboa.

66fb0c5b85b6e.jpgSempre (Luciana Fina, 2024)

Competições, diálogo ao invés de concorrência … a cinematografia portuguesa como parte do Mundo

Em relação à Competição Internacional posso, antes de mais, revelar a minha surpresa e gratidão com a equipa de programação e artístico do Doclisboa. Este anos contamos com Cíntia Gil e Justin Jaeckle enquanto programadores associados, mas a Competição Internacional passou por todo nós, e foi uma seleção difícil de ser consolidada, porque o festival tem um sentido muito particular de encontrar quais os filmes que integrar o espírito do nosso espaço, fugimos do temático e do manipulador, e construímos pontes com a beleza, com as possibilidades de Cinema. 

Quando olho para esta selecção vejo isso, um cinema contemporâneo que persegue os horrores, os cantos tenebrosos, mas que mesmo assim encontra beleza na maneira de transmitir as suas histórias, mesmo sob cargas dolorosas, e o nosso ponto era ter uma linha de filmes que celebram, mais que tudo, o Cinema e com alguns autores não estranhos por este festival. Esforçamos para entregar aos espectadores uma seleção que dialoga entre eles, que vale a pena descobrir. 

Em relação à Nacional, enquanto mexicana os meus anteriores contactos com o cinema português foram em curadorias minhas, digo minha mas obviamente tive uma equipa de programadores associado, a retrospectiva de Miguel Gomes na Cinemateca Nacional ou o ciclo de Pedro Costa quando dirigia Festival Internacional de Cinema Contemporâneo da Cidade do México, distribui o "Tabu" de Miguel Gomes com a minha empresa e mais tarde o seu "Mil e uma Noites". Mas o meu relacionamento com o cinema português, o qual ia entendendo através dos grandes importados, tem um lado mais íntimo que para mim foi um prazer em descobrir. Na Competição Nacional temos seis co-produções, o que para mim é um sinal importante, porque demonstra um cinema que está a relacionar com o restante Mundo, e que está pactuando com uma visão global.

Já fora da Competição, gostaria de referir "Sempre" de Luciana Fina [Filme de abertura] e a minha experiência enquanto mexicana. O que é a História de Portugal Contemporânea a ser recontada de uma maneira que me faz querer saber mais. Vejo uma sociedade com os problemas do Mundo, os feminismos, as revoluções, os ideais, e vindo de uma país latino-americano como o México, essas imagens é como experienciar um parte da minha própria História, mas como não é realmente é aí que alimenta a minha curiosidade a partir da própria ideia do cinema numa investigação que quanto a mim, é impecável. E no ato consolidador para com novas visões, revisitando a sua História, apropriando-as e contextualizando-as, portanto, as suas memórias recentes, é algo que vibra com a razão do Mundo e que tem uma coerência maravilhosa. 

MV5BNTViYTI5YjEtOTgzMS00YjM1LTllNWEtMTg4M2EzNzYyMDAgro Dr1ft (Harmony Korine, 2023)

“Agro Dr1ft”, Harmony Korine (ar)riscado …

Esse é o futuro! Sim, tem uma linguagem videogame, é a desconstrução do código da violência nesta contemporaneidade e sem filtros, e falando em nome do Doclisboa, estamos inteiramente satisfeitos com a possibilidade de o projetarmos em sala de cinema. “Agro Dr1ft” é toda uma experiência visual, evidentemente, não necessariamente gratuita, porque infiltra-se em ti e a tela grande é literalmente uma oportunidade para o experienciar. Acredito que é uma obra que conflui, digamos, de todas as distorções da ideia da pós-verdade, da pós-violência, dos tratamentos e da intervenção da imagem até à última consequência. Além do mais, o Doclisboa tem uma relação com o cinema de Harmony Korine, portanto, seria imprudente deixar escapar esta secção especial.

Doclisboa arranca hoje (17/10), prosseguindo até dia 27, na Culturgest, Cinema São Jorge, Cinema Ideal e Cinemateca, a programação completa poderá ser consultada aqui

Fogo que arde e se vê ...

Hugo Gomes, 13.10.24

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Karyna Gomes

Puxando da memória, afirmo sem receios que não deverá existir cineasta português com um percurso tão reconhecível e definido como o de Pedro Costa, e, tomando “As Filhas do Fogo” como objeto de estudo, é “de caras” (o emprego não é ao acaso) que a sua rota artística delineia um circuito plenamente percorrido e interagindo com rostos familiares, presenças assombrosas e fantasmas que persistem como elos entre o passado, o presente e o futuro ali inquinado. 

Nesta projeção de multi-plataforma, tão bem aconchegado está o espectador para com o seu cinema, cuja entrada é instantânea a um triplo split screen. Cada uma dessas telas é representada, ou melhor, protagonizada, por uma diferente mulher, de vocalidades partilháveis, por vezes uníssonas, unidas em prol de uma só cantoria. Esta união, tanto sonora como espectral, contrasta não só para com as delimitações de cada tela, como também com a alegoria da sua separação, cujo "responsável" é o círculo de fogo oriundo da fúria terrestre, de magma colerético, e de erupções enquanto ameaças de castigo divino, encorpado no digno ponto final: na reciclagem das filmagens de Orlando Ribeiro – “A Erupção do Vulcão da Ilha do Fogo”, de 1951, que atribuiu um contexto não apenas cénico, mas também intemporal. 

Estas mesmas imagens serviram de prelúdio a “Casa de Lava (1994), considerado por muitos o fracassado filme de Costa e igualmente o trunfo de Áses, fruto de uma reinvenção cabo-verdiana de “I Walked with a Zombie” (1943), do "mais que tudo" realizador Jacques Tourneur. A partir desse momento, a sua carreira nunca mais foi a mesma (e a experiência seguinte, “Ossos”, remexeu nesse inquieto “bicho-carpinteiro” do cineasta). Assim, este encontro cíclico de signos, de sinais de fogo e de fumo, de figuras e índices autorais, revelam um universo seu, apenas envelopado e deixado ao deus-dará para que o espectador espreite, curiosamente, e esgueirar-se sem medos.

As Filhas do Fogo”, um exercício operático – gerado pelo sopro da Passacaille de Biagio Marini (op. 22, 1655), e fortalecido por uma adaptação letrista de uma canção de embalar ucraniana – é essa súbita estranheza que nos embate e, logo após, nos abandona sem resistência, embalados. O olhar pleno de Elizabeth Pinard percorre “invisivelmente” um cenário misto de cinzas e brasas; a queda de Alice Costa inscreve corporalmente outras silhuetas (Ingrid Bergman em “Stromboli”, Inês de Medeiros em “Casa da Lava”); e, finalmente, as retinas atormentadas de Karyna Gomes, espreitando sorrateiramente, como se tal a protegesse de algo, vizinhas, coabitadas neste trecho musical, cantarolando para memórias e embutidos espíritos, daqueles que só o cinema, e o de Costa perfeitamente o sabe, invocam como extensão do nosso quotidiano. 

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Elizabeth Pinard

Mais do que atrizes, pelo menos não seguindo o senso comum da definição, performistas (mais enquadrado), trazem à vida as três mulheres, divas de ópera por cerca de oito minutos [musicado pelos Musicos do Tejo], que ditam a sala de cinema, convertendo-a nos seus respectivos palcos e fronteiras (o espectador toma a decisão, tal como todos o múltiplos split screens, de escolher o seu plano, a sua história, a sua mulher). Costa deu-lhes a oportunidade de, temporariamente, se despedirem das suas velhas carnes, associando-se a uma cantoria entre os mortos e os vivos na mente.

Mentor de um cinema sem classificação ou repreensão, o realizador cria um canto de ossadas e tenros tendões que levantam um “monstro” cinematográfico, a que chamamos a sua filmografia. Já em “As Filhas do Fogo”, interagimos com apenas uma costela dessa "criatura fantasmagórica", que, como se sabe, anatomicamente escuda o corpo dessa filmografia. É uma entrada, um atalho, digamos, para uma essência desse universo (palavra tão banalizada hoje em dia no cinema), cheio de contraditórios, curvas e contracurvas e regressões sem saudosismos ou nostalgia. Cinema em movimento, a do Pedro Costa.

Arranca o 9º Close-Up, contemplando o passado com mira para o futuro da cinefilia

Hugo Gomes, 11.10.24

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Celebramos a 9ª edição do Close-Up, desta vez com “películas” apontadas para o horizonte, o futuro para sermos precisos, ao encontro de uma Memória cinematográfica. Com arranque já no próximo dia 12 de Outubro, o Observatório de Cinema apresentará a sua mostra cinematográfica, uma compilação de filmes, temas e convidados com debate no presente para referir o futuro da cinefilia, com a Casa de Artes de Famalicão e o Teatro e o Teatro Narciso Ferreira como abrigos dessa resistência cultural. 

Como tem sido tradição, o Cinematograficamente Falando … conversou com o programador Vítor Ribeiro sobre o que nos espera este novo ano sob vista atenta do Close-Up.

Com a Infância enquanto tema anterior, seguimos em direção ao Futuro, às suas Memórias propriamente ditas. Se o Close-Up tivesse uma “bola de cristal” e tendo em conta esta programação, que Futuro terá o Cinema e a sua cinefilia?

Se a tarefa de antecipar o futuro não é coisa fácil, quando se trata do cinema a bola de cristal é ainda de maior dificuldade de acesso, atendendo às convulsões debitadas ao longo da sua história de mais de 100 anos. O que continuaremos a fazer é privilegiar a construção de programas que dialoguem com o público em espaço público, na promoção do cinema e dos seus autores. E a continuar a trabalhar, junto das gerações mais jovens, para proporcionar as condições para cimentar um território para os espectadores do futuro.

O Close-Up estende a sua proposta para além de uma mostra de filmes, temos cine-concertos, exposição (“Imagens da Nova Hollywood”) e outras atividades. O que nos pode dizer sobre elas, e a riqueza que assentam na programação do Close-Up.

O Close-up integra a programação de um Teatro Municipal, a Casa das Artes de Famalicão, espaço que privilegia a criação artísticas, nas diversas disciplinas: a música, o teatro, a dança e o cinema. Desde a sua primeira edição, que o programa do Close-up procurou articular o cinema com as outras artes, especialmente com a música, muitas vezes com a apresentação de cine-concertos em estreia, resultado de um processo de criação patrocinado pelo Teatro Municipal e os seus objectivos. 

Nesta edição,  o encontro das imagens com as outras linguagens terá: a apresentação em estreia do cine-concerto “O Cão Andaluz” de Luis Buñuel por Surma; a projecção de duas curtas de Charlie Chaplin, em formato lúdico, em concerto promenade, Orquestra da Costa Atlântica; o reencontro do piano de Joana Gama com as electrónicas de Luís Fernandes, fomentado pelas imagens de Eduardo Brito; e finalmente Glimmer, um espectáculo de cruzamento que extravasa a ideia de cine-concerto, ao juntar uma coreografia de Rui Horta à música dos Micro Audio Waves, com imagens a pontuar uma projecção do futuro.

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Sorcerer (William Friedkin, 1977)

Em “Histórias do Cinema”, temos um quarteto de filmes de William Friedkin, realizador incontornável que nos deixou ano passado. Poderia-me falar sobre esta seleção de filmes, da sua importância e que cenário pretende trazer sobre a memória do cineasta?

São quarto dos filmes mais importante de Friedkin e todos produzidos na década de 1970, período efervescente da Nova Hollywood, que aproveitou a crise e o consequente colapso dos estúdios de Hollywood, e as profundas transformações sociais e culturais da América, para fazer chegar ao poder de um conjunto de novos autores, que asseguraram uma notável marca autoral, que foi também um reflexo das turbulências políticas de uma época, como a guerra traumática do Vietname ou o escândalo Watergate. Estes quatro filmes – “The French Connection”, “The Exorcist”, “Sorcerer” e “Cruising” – demonstram a clara importância de Friedkin na época e na memória gerada nas décadas seguintes e serão para alguns espectadores uma porta de entrada para a obra do cineasta, enquanto outros os reencontrarão em sala, depois de talvez se terem cruzado com uma parte deles em dvd ou numa sessão televisiva.   

Gostaria que me falasse sobre os convidados, sobre a ternura de construir uma família “Close-Up” através de caras recorrentes nas várias edições, e obviamente sobre os “novos” oradores.

Os convidados do Close-up, que apresentam as sessões, são escolhidos em função da intensidade demonstrada com os filmes programados, quer seja através de um texto que escreveram sobre eles, ou com uma ligação mais evidente, se forem os seus realizadores. Mas também há outros critérios, como a afinidade entre obras artísticas produzidas por quem foi escolhido para comentar e o autor desses filmes, por exemplo. Em cada edição pretende-se uma renovação desses convidados, mas olhando para as edições anteriores já houve repetentes, nas áreas da crítica, da investigação, ou de outras áreas artísticas, que evidenciam afinidades que os vários programas aclaram. 

Na edição deste ano, temos várias novidades: o escritor Alexandre Almeida, que acompanhará a tradutora Alda Rodrigues na apresentação de “Saint Omer”; o crítico e programador João Antunes, na apresentação de “Marinheiro das Montanhas”; o programador João Palhares, que cultiva afinidades com a nossa reverência a William Friedkin; mas também escolhas menos óbvias, como a do argumentista e produtor Edgar Medina para comentar “The French Connection”.

Quanto à masterclass da dupla João Pedro Rodrigues e Guerra da Mata?

A partir da estreia do seu mais recente filme, “Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois”, a dupla de cineastas desenhará um mapa de relações entre o seu trabalho e o movimento do cinema novo do cinema português, com o filme “Os Verdes Anos” de Paulo Rocha no centro.  Esta masterclass complementa a secção Fantasia Lusitana, que para lá de exibir “Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois e “Os Verdes Anos”, atribuiu uma carta branca aos cineastas, que escolheram duas longas: “Dina e Django” (1981) de Solveig Nordlund e “As Ruínas no Interior” (1976) de José Sá Caetano.

Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois (João Pedro Rodrigues & Guerra da Mata, 2022)

Voltando à pertinência do tema do Futuro, e em pergunta mais abstrata visto que o Close-Up lida com essa comunidade, questiono: podemos confiar na cinefilia para manter vivos e vitalícios eventos e propostas como estas?

Em parte, respondemos a esta questão na resposta à pergunta que abre esta entrevista. O Close-up, desde a sua génese que fez do cinema uma plataforma de diálogo com a comunidade, com as várias comunidades, desde a cinefilia devota do cinema de autor e da história do cinema, ao público escolar, mas também às famílias, e sempre atento na possibilidade de continuar a falar com públicos diversos, como o cinema sempre fez na sua história, como uma arte popular. Da nossa parte, esta possibilidade de colocar os filmes em diálogo uns com os outros, ao invés, por exemplo das competições, manter-se-á como o eixo principal das edições futuras, nesse diálogo continuado com o espectador, também privilegiado pela possibilidade de olhar para as mutações do cinema, da sua linguagem, e de o continuar a cruzar com as demais disciplinas.

Para o ano o Close-Up comemorá os seus 10 anos de existência, o que poderá “descortinar” sobre essa passagem e se está a pensar na próxima edição?

Sim, a meados de Outubro de 2025, o Close-up apresentará a sua 10.ª edição. Já temos uma ideia de mote orientador do programa, que se enreda com alguns dos anteriores, mas que será afinado pela pertinência dos autores e dos filmes que entendemos partilhar com os espectadores. Também já estão em marcha desafios para novas criações, à boleia do cinema, cruzamentos que no próximo futuro desenvolveremos e tornaremos públicos.

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Para mais informações sobre a programação, ver aqui

Um filme à escala de Ritcher

Hugo Gomes, 10.10.24

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Mais do que um filme de “cinema do meio”, descrito na crítica de cinema legitimada, como algo sem sabor de carne nem de peixe (não é “autoral”, nem “comercial”), é negar as potencialidades do cinema português prestar-se ao debate pós-visionamento. 

O Melhor dos Mundos”, de Rita Nunes, longe de ser o exercício mais cientificamente coerente, é um dos poucos que anseia despoletar um falatório entre os espectadores, enquanto induz uma “memória coletiva”, hoje inserida no ADN histórico-cultural de Lisboa, a do Terremoto de 1755 (Voltaire fez questão de remexer nessas feridas ainda abertas) e a eventualidade de um novo de iguais ou maiores proporções, e o constante medo da incerteza que paira nesta cidade em constante mudança. 

E Nunes não nos mente quanto à intenção, se por um lado no anterior “Linhas Tortas, conduzia por via de um tímido romance a reflexão ao papel das redes sociais na individualidade e identidades (sejam as sociais ou “avatarizadas”), aqui, com feitos de ficção-científica, bem contido de histrionismos é verdade, impõe o seguinte abalo; com sinais de forte possibilidade de um sismo, será ético evacuar uma cidade de milhões, tendo a consoante, e forte, de os cálculos falharem na previsão? É um jogo de consequências, de decisões e de determinações, que partem a meio um gabinete científico a horas envergonhadas da madrugada, entendendo-se como um conflito à la Dr. Strangelove”, só que o amor declarado e disparatado à bomba é substituído pelo desejo de uma nova transformação citadina, a da influência do desastre natural que nos assombra ser o marcador de uma nova era. 

Rita Nunes faz o pretendido sem ambições a mais do que causar impacto num futuro debate, mais do que “filme-catástrofe”, é o “e se fosse consigo” com astúcia, credibilidade discursiva e com um invejável “know how” em dirigir-se às audiência mesmo sob orçamentos limitados. Não o reduziremos a “cinema do meio”, e sim, a alternativa das alarvidades que o dito ‘comercial assumiu como consanguíneo da televisão e do escapismo cerebral.

Preto no Branco, uma questão de sobrevivência

Hugo Gomes, 07.10.24

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De olho no passado como quem olha para o presente: digamos que a História como revanchismo, como justiça social, num desejo íntimo de alterar o que o rumo prescreveu. Falar de colonialismos, esclavagismos e outras hierarquias artificializadas por estes sistemas sociais, são tópicos de faca acirrada, ora detém uma postura conservadorista e conservacionista a uma memória saudosista, e por sua vez protecionista a uma cânone vendido em mais do que terceira mão, por outro é a vingança e a desconstrução, o de questionar, o de olhar semicerrado ao feitos, enaltecer teor humanistas, “destruir” um cânone histórico em prol de uma expansão das vozes emudecidas. 

Com “Sobreviventes”, de José Barahona (“Estive em Lisboa e Lembrei de Você”), realizador-construtor de pontes transatlânticos luso-brasileiras, a História é uma partida, uma experiência de laboratório reforçado pela escrita de José Eduardo Agualusa, um “Deus das Moscas” que experimenta o reset social como prevalência das anteriorizadas hierarquias. Filme de cerco, portanto, de náufragos de um navio de negreiros, que dão à costa em parte incerta; um fidalgo idealista mas hipócrita, um capataz cruel, uma aristocrata e a sua filha com a arrogância própria do seu “sangue azulado”, um padre pecaminoso e um escravo com as habilidades exactas para sobreviver em ambientes inóspitos. Um grupo peculiar equacionado com a presença de um sabre, daí, é a sobrevivência e o oportunismo a fazer o resto, com uma gradual despedida às vidas passadas, aos status pré-definidos e cores de pele. É de exata investida que aquele terceiro ato do canhão de pólvora seca “Triangle of Sadness inscreveu, como as classes diluem em novos ambientes, redefinindo em novas hierarquias. 

Sobreviventes” joga essa partida de ressalto com interesse, questiona as suas ligações e por vários momentos ignora os revanchismos em prol de algo maior que todos nós - somos humanos, temos a apetência da maldade como forma de resiliência, seja qual for o grau de melanina. Mas como havia sublinhado - por vezes - o filme cai na esparradela de um olhar do nosso tempo, entre as quais uma equivalência entre um negro escravo, numa sociedade que o considera “subhumano”, para com uma mulher branca da aristocracia, presente num embate discursivo, representando a massa uniforme que muitas vozes atuais pretendem criar com todas as “boas causas”. Sabemos que não é, e muito menos fora assim, em pleno século XIX, a classe tem um teor acrescido sob o género, lutas diferentes, nada comparáveis, e vice-versa. 

Só que “Sobreviventes” salva-se das rasteiras deixadas por conseguir transmitir, e com isto dialogar verdadeiramente com a crueza e o pessimismo intrínseco da nossa modernidade que é o fracasso das utopias. Somos espécies condenadas a repetir os nossos erros, daí não haver salvação, apenas sobrevivência do socialmente mais forte.