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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Pediu-se que não se atirasse ao pianista...

Hugo Gomes, 21.03.24

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Tal como a investigação que segue o mote da narrativa, a obra é feita de trilhos e entrelaçados, referências atrás de pistas, dando brindes a ruelas sem saída; é um filme de várias 'piscadelas', aromatizadas na cadência de “Chega de Saudade” (canção precursora interpretada por Jobim e escrita pelo poeta Vinicius de Moraes) e enriquecida com depoimentos de peso (Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e João Donato), uma espécie de “Rossio pela Betesga a dentro”, ou melhor, a tentativa de enfiar o “Cristo Redentor no Beco das Cancelas”. Novamente unindo esforços com Javier Mariscal, Fernando Trueba revisita a animação e a música aí conjugadas (recordando “Chico & Rita”, em 2010, no calor do bolero), lançando-se na sua versão “Searching for the Sugar Man”, a demanda por um artista perdido - Francisco Tenório Júnior - pianista talentoso de samba-jazz brasileiro, colaborador do movimento/género bossa-nova, o macguffin que misteriosamente desapareceu em Buenos Aires [18 de Março de 1976], após sair do seu hotel na esperança de uma sanduíche, conforme está descrito no meu recado; acredita-se que a regime ditatorial argentina o tenha apanhado, e a tragédia é, como se sabe, iminente. 

Portanto, Trueba e Mariscal ancoram-se no seu protagonista detetivesco, Jeff Harris, jornalista musical nova-iorquino aventurado nesta encruzilhada pela música exótica, caído de paraquedas nesta particular história do talentoso pianista misterioso. Aqui, damos de ‘caras’ com a primeira piscadela: a voz de Harris está a cargo do ator e entusiasta do jazz Jeff Goldblum, que fora, por mais duas vezes, jornalista musical, seja em “Between the Lines” (Joan Micklin Silver, 1977), e posteriormente no spin-off não oficializado dessa personagem excêntrica em “The Big Chill” (Lawrence Kasdan, 1983). Entendendo tratar-se de um prolongamento dessa mesma personagem, obviamente mais madura, com nuances trazidas de Kasdan, mas mantendo o seu ativismo e iniciativa. 

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Depois, evidentemente, surge-nos o título - “They Shot the Piano Player” - que não foge ao espectro de um dos filmes mais subvalorizados, e, porém, mais influentes na carreira de François Truffaut - “Tirez sur le pianiste” (“Shoot the Piano Player”, 1960) - com o pianista Charles Aznavour envolvido em embrulhadas que lhe podem custar a vida, numa obra de improvisos e experimentações que tentou redefinir o tom de uma vaga cinematográfica que tão bem conhecemos, e que, devido ao fracasso financeiro, obrigou Truffaut a reger-se a filmes mais narrativamente clássicos, deixando a subversão da fórmula para os seus camaradas do igual eixo artístico. Esta referência não é somente um júbilo, é uma ponte invisível e contextual, que interliga o Brasil com a França, de um lado a música poética e melosa dessa comunidade artística, e do outro, o cinema Nouvelle Vague, de Godard a Truffaut, sublinhando este último e a sua trilogia romântica (“Les Quatre Cents Coups”, “‘Pianiste” e “Jules and Jim”) como inspirações, modelos ou apenas atmosferas importadas. Eram tempos de descobertas, revisões ou resgates criativos, tempos de “mãos à obra”, de florescimentos e fluidez entre artes, um Renascimento desconstrutivo, agressivo e, sobretudo, ditado nas suas classes. 

They Shot the Piano Player” pode muito bem ser um documentário ficcional (apenas desapontado pelo seu grafismo pobre) sobre música brasileira com dedos apontados a uma só personalidade e, consequentemente, trazendo na canção um subtexto político, mas é no embalo dessas melodias que nos chega, com saudade é verdade, um memorando para com esses tempos. De resto, pensamos nós, o que aconteceu? Simples, “abateram o pianista”.

Cantar para os espíritos reunir ...

Hugo Gomes, 20.03.24

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(...) talvez tenha sido o que mais me emocionou, que vocês, tu João e tu Renée, tenham deixado para trás o antropológico, tenham deixado para trás o etnográfico,entregando-nos a condição humana, deixando-nos simplesmente perante a vida, que é observada, que é olhada e também amada.

Paz Encina, “Passagens” / Edições Batalha Centro de Cinema

 

Aproveitando a deixa da realizadora paraguaia de “Eami”, assumidamente amiga deste casal-cineasta, lanço-me naquilo que tanto me fascinou neste “A Flor do Buriti”, e que já havia sido sugerido em “Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos”: o convite e completa submersão num mundo que não é o nosso, sem estranhezas e sem pedagogias de qualquer espécie. Assim, começamos pela noite escura, envolvida numa fogueira sob cânticos ancestrais. Há um chamamento, ou talvez premonição, perto daquela intimista festividade: uma grávida na angústia das suas dores, natural como é assim dito para acalmar a “pobre criatura”. Mais afastado desse círculo, um bando de crianças depara-se com um animal estranho no seu território: um bovino, o símbolo de uma civilização, como os seus integrantes adoram apelidar em prol de uma superioridade modernista, que estes Krahôs pouco ou nada desejam conhecer. Uma praga, ou antes uma espécie invasora anexada a outra com iguais fins. Com este prelúdio, damos de cara à espectralidade que nos aguarda sossegadamente.

A Flor do Buriti”, que conta com a escrita de um dos membros da comunidade indígena (Henrique Ihjãc Krahô), e filmado em 16mm, assume a urgência de um arquivo memorialista, dando palco a estes protagonistas na partilha das suas interações, das suas dores, tragédias com que vivem, ou no medo que os habita. Talvez seja longe do seu costume, mas difícil testemunhamos um sorriso nas suas faces, soam-nos, não “criaturas” tristes, mas indivíduos conformados com a sua fatídica existência no mundo moderno, ora indesejável nestas lides do progresso e das políticas daquele Brasil que declara posse das suas vidas.

E é nessa existência que Salaviza e Messora encaminham invisivelmente, é o tratado do indígena, não uma extração de recordações e de passados que mereciam estar confinados nas profundezas, é o seu simbolismo, como o mundo parece-lhes ou como a fauna e a flora lhes encaram. Resistência e resiliência, transcendências e onirismos terrenos, como os Krahôs acreditam que os seus sonhos são apenas pedestridades da sua alma e como a morte, esse fim, não é mais que uma passagem. Os espíritos permanecem com eles, comunicam e deixam-se ser comunicados, dançam e cantam, a noite torna possível essa tradução, rompendo dimensões e barreiras impostas pela sobrenaturalidade, esse ditame ocidentalizado que coloca numa caixa tudo o que desconhece.

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A Flor do Buriti” bebe dessa naturalidade à sobrenaturalidade, o que já estava indiciado na obra anterior, mas leva-nos mais agreste, mais familiarizado (e pudera). Porém, há um contágio, um resquício nessa civilizacionalidade no percurso destes “índios”. Perante as “portas escancaradas” deixadas pelo Governo de Bolsonaro, o par que se destacou, partindo em direção a Brasília, percorrendo um Brasil contaminado pelos cantos e sermões evangélicos (prova viva de colonização) ou da mentalidade de vaqueiro e tudo o que isso acarreta, manifestando-se por um lugar desapropriado, desfeito, desvinculado, são indígenas de tribos várias, que de punho erguido, solicitam um estatuto deveras naquele país multicultural.

Neste último ato, como havia acontecido no “Chuva’” ("Krahô? Não. O teu nome de Branco?", como nunca esquecer aquele golpe de realismo sob comentário social), Salaviza e Messora lançam “farpas”, consolidam a sua experiência e cometem o seu ativismo possível, o seu gesto político, perfeitamente sincronizado com o zeitgeist e com as vontades desses seus protagonistas, é o retiro da realidade que nos impôs, a realidade dos “Krahô”.

Após a fuga, o tal movimento de protesto, as heroínas no palanque prometendo mundo e fundos numa luta, sem questão, desigual, voltemos ao “mato dos Krahôs”, aos seus rituais, à sua oralidade contada, partilhada envolto de cicatrizes e calos, e deixemos enraizar entre eles. O filme leva-nos a isso, a permanecer com eles, sem com isso nos tornarmos iguais, e por sua vez, sem nunca ceder a um olhar de estranheza, “estrangeiro” acrescentamos àquela comunidade. Não se trata do “selvagem conquistado”, mas antes disso do “espectador amestrado”. Uma viagem para além do terreno, do político, de uma dimensão que nós desconhecemos com força. O olhar dos Krahôs!

 

Um índio preservado em pleno corpo físico

Em todo sólido, todo gás e todo líquido

Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro

Em sombra, em luz, em som magnífico

Caetano Veloso

António-Pedro Vasconcelos (1939 - 2024): o senhor do grande público em Portugal

Hugo Gomes, 06.03.24

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Sinto que será uma figura sobre a qual iremos debater nos próximos tempos com uma maior exatidão e menos reação, mas fora isso, para o bem e para o mal, António-Pedro Vasconcelos fazia parte deste círculo reduzido e conflituoso que é o Cinema Português. Muitas vezes expressei o quanto gostava de ouvi-lo falar sobre cinema, mesmo que discordasse inteiramente da sua visão e, claro, da sua maneira de fazer filmes. No entanto, é neste diálogo que a cinefilia parece ter se perdido, na passarela de egos, na falta de escuta do outro e na defesa da pluralidade de pensamentos.

Quanto aos filmes, é triste que a sua despedida tenha sido com o telenovelesco "Km 224", mas há alguns momentos na sua cinematografia que guardo com carinho (deixo de lado os seus trabalhos de consagração, “Oxalá” e “Um Lugar do Morto”), nem que seja pelo desempenho mais do que feliz de Nicolau Breyner em "Os Imortais", personagem que se tornou num meme vivo - "Está tudo preso, meus cabrões". Ou, como sempre defendi, pelo lado B do cinema americano que "Call Girl" proporcionou. "Deus não existe, porque se existisse era um incompetente", dizia Joaquim De Almeida à sua protegée e isco humano Soraia Chaves "disposta a tudo", ou do malconceituado "A Bela e o Paparazzo", comédia romântica que piscava o olho a um legado iconográfico hollywoodiano. Não que tenha sido a oitava maravilha do cinema português, mas entre isto e os muitos atentados que se praticam em nome do "cinema para o grande público", até ficamos bem servidos com os singelos e até humildes "contos de coração partido" narrados por Nuno Markl.

Houve um tempo em que Paulo Branco jogava poker em "Perdidos por Cem", filme de referências e brindes, ou o encanto do Porto ao som de Rui Veloso em "Jaime", e não podemos esquecer "Amor Impossível", um romance jovial autodestrutivo que chegou a (re)conquistar alguns céticos. Ficamos então sem António-Pedro Vasconcelos, despedimo-nos de um homem cuja visão do seu cinema o relegava a uma certa marginalidade.

A geometria do Mito ...

Hugo Gomes, 03.03.24

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Na véspera da sua exibição no Festival de Roterdão, os jornalistas portugueses, dirigindo-se ao visionamento de imprensa de “Diálogos Depois do Fim” no Cinema Nimas, foram recebidos pela produtora Ana Pinhão Moura que os elucidou sobre um aspecto peculiar da obra. Inicialmente produzida como uma série televisiva composta por 19 episódios, este filme foi concebido e realizado através da "colagem" de 6 "diálogos". No entanto, em Roterdão, o "filme" seria diferente daquilo a que os profissionais de imprensa iriam assistir, tal como indicou a produtora, essa versão seria de uma montagem diferente, uma compilação de episódios previamente selecionados pela comitiva de seleção do festival holandês. 

Assim, "Diálogos Depois do Fim" estabeleceu-se como um filme fragmentado, composto por partes que são construídas pela iniciativa do curador/espectador, nunca detendo uma estrutura original, mas mantendo a sua essência - a adaptação de "Diálogos com Leucó", a obra predileta do escritor neorrealista italiano Cesare Pavese (1908 - 1950), integrado na sua visão de desapropriação do mito grego e igualmente a sua subjugação à natureza mitológica (“O mito é (...) o esquema de um facto acontecido de uma vez para sempre, e retira o seu valor desta unicidade absoluta que o leva para fora do tempo e o consagra como revelação”, citando o próprio).

Em resumo, é um exercício performativo digno de instalação, onde 39 atores e uma pequena equipa, liderada por Tiago Guedes ("Os Restos do Vento", "Coisa Ruim", "A Herdade"), aventuram-se no arquipélago açoriano para encenar os diálogos totalizados (19 dos 27 originalmente presentes no livro) e extrair as figuras mitológicas e mortais fantásticas de Pavese, em conflito de ideias, orbitadas pelos fascínios declarados pelo autor. Desde a existência à dicotomia entre a morte e a vida, da violência à paz, da utopia à distopia, estas conversas imaginadas com o mar no horizonte e a selvajaria intactamente indomável servem de palco para a teatralidade encontrada.

Embora Straub e Huillet tenham feito destas inspirações muitos dos seus campos elísios, nas mãos do oscilante realizador Guedes, entendemos como uma variação mais digna do seu processo do que da sua própria conclusão. "Diálogos Depois do Fim" é um filme transmutável, sem um lar ao qual possa chamar seu, encaminhado como um gesto produtivo em vez de uma obra finalizada. Os Açores contribuem com o ambiente nesta móvel residência artística, e a sua conjuntura para com o desconhecido apela constantemente à imaginação e crença do espectador. O resto tenta permanecer relevante depois do fim. Não sabemos se resultará com a sua arte ...

Dois cinéfilos, um diretor de fotografia e Mário Soares entram num snack-bar ...

Hugo Gomes, 21.02.24

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"Soares é Fixe" (2024)

"Cumpliciamo-nos com a ideia de que o cinema português é dividido por duas grandes trincheiras: a de autor e a comercial, vulgo popular. O que me incomoda com tudo isto é: por que razão esses filmes que apelam às massas são visualmente ‘feios'?” 

Num jantar de puro acaso, numa sexta-feira, tendo um snack-bar/cervejaria à moda franchisada como escolha rápida, dois amigos reencontram-se, a conversa entre ambos vai ao encontro das suas experiências nos últimas dias, com paragens intermitentes no Cinema, o coração de tudo, o pensamento de todos. Entre imperiais, “lambretas” e "príncipes" (termo pelo qual o empregado foi questionado, para garantir que não fosse pedido por engano algo que não satisfizesse a sede por cevada a temperaturas polares), um cachorro do outro , uma francesinha de um lado com batatas fritas à parte- "Se quiseres, podes tirar batatas?" "Não, deixa estar, obrigado" - expondo-se em certo momento esta preocupação, uma discussão retórica, que vale o que vale. 

"E mais, se de um lado tens Acácio de Almeida, Rui Poças, João Ribeiro, Jorge Quintela..."

"Não te esqueças do Leonardo Simões."

"Como poderia esquecer? Já agora, adiciono a Leonor Teles... Mas do outro lado, na vertente 'popular', não tens ninguém que realmente se destaque; é como se esses filmes fossem tão homogéneos, televisivamente falando, e por isso, tão 'feios', nada cinematográficos." 

"E isto vem a propósito de..." 

"Vi 'Soares é Fixe', e para além dos seus defeitos... que não são poucos, um dos aspectos que me incomodou foi a sua fotografia. Não vi cuidado na luz, nem sequer coerência estética ao longo do filme, para além de uma falta de profundidade. Soou-me tudo tão enevoado. Não sei, talvez esteja a ser mesquinho. Procurei nos créditos, Miguel Manso, colaborador frequente do universo de Sérgio Graciano. Ele até pode ser 'bom', percebes? Mas não vejo qualidade neste tipo de trabalhos, o que havia demonstrado e acabou por o fazer neste, foi um tom que não o separa da qualidade televisiva. Facilmente olha-se para "Soares é Fixe" e encontramos uma sensação de conforto num pequeno ecrã

Aqui seria importante contextualizar o dia. Esta saída improvável ocorreu após uma sessão categorizada como warm-up [“Janela para o Arquivo”], aperitivo para a próxima edição do CINENOVA: Festival Interuniversitário de Cinema, na FCSH [Faculdade de Ciências Sociais Humanas, em Lisboa]. Uma sessão integrada por três filmes-escolas, oriundos de ante-câmaras para personalidades como hoje reconhecemos como a realizadora Susana Nobre ou o músico Manuel Fúria, a primeira numa aproximação performativa de um drag-queen [“Transformistas”, 1995 - 1996], o segundo mostrando uma aptidão para distopias numa Lisboa imaginada [“Os Bons Alunos”, 2004 / “Arquivo Geral”, 2006]. A partir daí, discutiu-se o processo, e mais do que isso, as equipas improvisadas e as alianças aí forjadas. Contextualizo porque é aí que o 'parceiro do crime' argumenta: 

"Como pudeste ver na sessão, muitas dessas alianças nascem dos tempos de escola, e para além disso, podem ser cumplicidades criadas ao longo da carreira. Orson Welles dizia que preferia trabalhar com amigos do que com os melhores atores da contemporaneidade, e o mesmo se deve aplicar a este aspeto. Uma questão de comparsas." 

"Sim, tens razão. Porém, estamos a falar de indústria, coloco aspas para não vender uma mentira. E será que nessa indústria, um produtor ou algo do género, não tem uma indicação ou requisito dos melhores no mercado? Por exemplo, nenhuma dessas produções contrata um Rui Poças?"

"Talvez o Poças prefira outros voos?" 

"Sim, e belos voos, o 'Zama' da Lucrecia [Martel] é um postal vivo. Aquela cena nas pampas com palmeiras ao fundo e uma cavalgada lenta tornou-se no papel de parede do computador." 

"Sim, concordo, parece um postal. E o João Ribeiro com o Ivo M. Ferreira?"

"Falas do 'Cartas da Guerra'?" 

"Sim, esse." 

"Não é bem cinema comercial dentro dos padrões convencionais." 

"Possivelmente... mas pronto, o que quero dizer é que este é um meio tão pequeno, os projetos são poucos e, no caso dos diretores de fotografia que mencionaste, possivelmente preferem trabalhar com o seu conforto ou, como integram um cinema que facilmente se estende a território internacional, são mais facilmente contratados por produções estrangeiras. O país é pequeno para a ambição de muitos."

"Faz lembrar o Eduardo Serra.

"Aí está! Fernando Lopes... belíssimo 'Delfim', a sensualidade de Alexandre Lencastre ali captada numa espécie de veludo estético... Luís Filipe Rocha, José Fonseca e Costa e depois, Carlos Saura, Patrice Leconte, Winterbottom e umas voltas em Hollywood." 

"Esteve por detrás de um dos Harry Potter, o do Cuarón, um dos mais interessantes do ponto de vista visual. Sabes, tenho um amigo que diz que ter um bom diretor de fotografia é meio caminho andado." 

"Talvez, conseguirias imaginar o duo do Canijo sem Leonor Teles? Mas mudemos de assunto, como foi o 'Soares é Fixe'?" 

"Há um senso de oportunismo neste filme, além do seu tom puramente televisivo. Já anunciaram uma segunda parte, sobre o Álvaro Cunhal." 

"É uma tentativa de fazer filme político em Portugal?" 

"É demasiado apolítico para isso, apenas descreve as turbulentas eleições de 1986, Mário Soares contra Freitas do Amaral, em termos simbólicos esquerda contra direita, de uma forma esquemática, quase como um fraco manual de História." 

"Para ser cinema político, tem de posicionar-se mais, claramente."

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"Soares é Fixe" (2024)

"Exato! Não se posiciona em nada, não digo explicar quem foi o Mário Soares a quem nasceu ontem, mas sim acreditar no filme e na sua consciência. Em vez disso, limita-se a apresentar factos e episódios, sem grande esforço para construir um cenário sociopolítico da época em que pudéssemos acreditar. É o mesmo problema que teve em 'Salgueiro Maia: O Implicado', apesar de este ter tentado ser um biopic nos termos mais convencionais e com a intenção de ser explorado como uma série televisiva. Aliás, Graciano tem demasiados vícios da sua carreira em televisão." 

"Não sei como continuas a acompanhar, eu desisti no 'Linhas de Sangue'..." 

"O 'Assim Assim' não era mau, tinha ideias e, acima de tudo, humildade, e no 'Njinga, Rainha de Angola', há uma sequência tão antoniana que me apeteceu perdoar o filme pelos seus pecados originais... agora, 'Linhas de Sangue' é outra história... Vejo, porque faz parte, quer se goste ou não do Cinema Português e da sua história, como também tenho o perverso desejo de ser apanhado de surpresa um dia destes." 

"Achas que ele te vai surpreender de alguma forma?" 

"Tu próprio já usaste o caso Todd Phillips como exemplo, dizendo que é um realizador pouco interessante e, no entanto, certo dia pariu um 'Joker'. E dou-te o exemplo de Richard Kelly, 'Donnie Darko' foi um ‘one hit wonder’, por que não acreditar no oposto?" 

"Sim, mas..." 

"'Soares é Fixe' é um desperdício de oportunidade, é um facto. Tenho fé de que, num futuro próximo, Sérgio Graciano nos dará um bom filme. Quem sabe se será 'Os Papéis do Inglês'..." 

"Esse é o que terá produção do Paulo Branco?" 

"Sim, esse."

A noite prolongou-se com mais um par de cervejas até se perceber que só restava estas duas almas no estabelecimento, para além dos seus funcionários que lançavam olhares reprovadores - “quando é que pensam ir embora, estes” - devem ter pensado enquanto rogavam ‘pragas’. Uma espreitadela no relógio. A mínimos minutos para a meia-noite, a indireta de que deveriam seguir para as suas respectivas casas.. Algumas últimas notas sobre o quotidiano, planos futuros e promessas para uma próxima vez. Uber solicitado. A chegada ao ponto de recolher acompanhado com a devida despedida. “Deixa o ‘Soares é Fixe’ de lado, não vale a pena escrever sobre ele.” disse à medida que abria a porta do Tesla preto que o aguardava. “Olhe que não, olhe que não”, respondeu acenando o amigo.

Um talentoso senhor português em Londres

Hugo Gomes, 07.02.24

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Rodrigo Areias [em entrevista à Agenda Cultural Lisboa] desafia os espectadores a discordarem do título da sua nova longa-metragem - “O Pior Homem de Londres” - que aborda o chantagista, trapaceiro e manipulador negociador de arte, Charles Augustus Howell (1840 - 1890), figura digna de uma Londres vitoriana à luz de Arthur Conan Doyle (aliás é sabido que o escritor inspirou nele para compor um dos arqui-inimigos de Sherlock Holmes, e o filme mantém a sua presença como easter egg para os mais atentos). Aqui, interpretado por Albano Jerónimo em generosas doses de pomposidade, estabelece-se como um dos responsáveis pela difusão e influência do grupo de Pré-Rafaelitas, autores e artistas que na ordem de discordar da estética corrente e acadêmica, regressam às bases românticas e góticas, procurando nelas uma espécie “honestidade artística”. Dessa colheita surgiram personalidades como John Everett Millais e Dante Gabriel Rossetti, este último como estrutura óssea do drama de época aqui imposto, e cujos espíritos estabelecem pontes entre as ambições de Howell e a sua sensibilidade artística, deveras ambíguo devido à natureza da sua personagem-central.

Areias, produtor prolífico (“O Barão”, “Listen), une-se a Paulo Branco para trazer esta história sob uma perspectiva portuguesa, visto que o infame Howell tinha umas quantas “costelas lusitanas”, e tal como o manifesto artístico serviente como cenário, “O Pior Homem de Londres” anseia a regressão, instalar-se no belo conforto do “filme de época”, e para tal abre-se o armário de um vistoso guarda-roupa, até à criatividade, sem falhas, de converter Viana do Castelo numa Londres “faz-de-conta”, ou pela fotografia de Jorge Quintela, a declaração artística Pré-Rafaelitas, aliando-se à câmara irrequieta e igualmente dócil com que cada travelling por salões afora é "pincelado". É um filme com o seu "quês" de oliveriano com injecção generosas de naturalismo, ou do romantismo com que Visconti se encantou nos seus exercícios “de época”, ou, com influências de Branco, a prolongação da “portugalidade do tempo da outra senhora” de Raúl Ruiz.

Contudo, com rasgos ali e acolá, a sua narrativa devidamente esquemática (assinado por Eduardo Brito, o mesmo autor na conversão da obra-prima de Bessa-Luís ao reinado do cinema) expressa um travão a qualquer criatividade fora das quatro linhas, sentimos preso à convencionalidade em um jogo que tem tanto de televisivo (sentimos alojados a um espírito à la BBC) e de uma passividade que nunca exalta devidamente a figura de Howell (apesar de Albano Jerónimo estar em grande forma, como também está Victoria Guerra na sua representação de Elizabeth Siddal, uma das principais musas do movimento Pré-Rafaelitas). E como falou-se em “território televisivo”, e pelo andar da carruagem das nossas produções cinematográficas, não seria de estranhar a passagem de “O Pior Homem de Londres” como série, expandida e adequadamente recortada ao pequeno ecrã.

Takes Roterdão 2024: na balada das 'vidas passadas'

Hugo Gomes, 05.02.24

The Ballad of Suzanne Césaire

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Se o espectador nada conhece sobre Suzanne Roussi-Césaire (1915 - 1966), escritora e precursora do movimento afro-surrealista e pan-tropicalista, isso não se converte em impedimento algum para o exercício trazido deste “The Ballad of Suzanne Césaire”, primeira longa-metragem de Madeleine Hunt-Ehrlich, e tal é evidente no momento em que Zita Hanrot - a atriz encabeçada para a interpretá-la (num filme dentro de um filme, e vice-versa) -, após a leitura de alguns dos seus escritos se dirige ao público, quebrando a quarta parede, constatando: “estamos a tentar fazer um filme de uma artista que não deseja ser recordada”. 

Portanto, o filme parte do suposto que nada se conhece sobre Césaire e que a própria Césaire nada se revê nessa pedagogia, prosseguindo então à ‘balada’ propriamente dita, ao gesto da rodagem de um filme sobre a escritora, biopic a apontar a convencionalidade, e a forma como essa convencionalidade é distorcida num constante “salto ao eixo”, ora entramos na ficção, ora entramos no exercício meta. Porém, o meta pouco ou nada tem de meta sem ser a auto-conscientização do exercício em si, o filme apregoa num ensaio atrás de ensaio, citações e espiritualidades sublinhados ao ato de desconstrução, que em Césaire aprontava num anti-colonialismo, aqui na intenção de quebrar fronteira entre as mais diferentes realidade. 

The Ballad of Suzanne Césaire” é um biopic contra todas as biopics, garantindo o lugar da sua personalidade a léguas da banalização que o cinema em massa pressupõe, e fora isso, a sua riqueza lírica embalada nas imagens que tanto tem de obscuras como nostalgicamente confortantes, ou da escuridão que também albergaria espíritos de outras épocas, exorcizadas através de danças milenares. Conhecer ou não conhecer Suzanne Césaire não é a questão, a questão é manter o seu legado vivo em frame

Tiger Competition

 

Praia Formosa

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Olhar para o passado, como quem olha para o presente. “Praia Formosa”, co-produção luso-brasileira, é a continuação do trabalho da realizadora Julia De Simone sobre a génese do Rio de Janeiro, invocando os fantasmas aí “enterrados” na sua cidade portuária. 

Adução ao seu passado colonialista, e acima de tudo um descortinar dessa História intencionalmente apagada e “desculpada” em nome do Progresso, projetada ao futuro que se reflete num espelho de uma nação que pouco ou nada de interesse tem pela seu próprio percurso, e tal nota-se pelas ruínas substituídas pela arquitetura moderna, a paisagem que metamorfoseia até se tornar naquilo que hoje conhecemos e identificamos como Rio de Janeiro, seja fílmico, seja de postal turístico. Através dessa intenção, “Praia Formosa” saboreia a esquizofrenia do seu ambiente, representado numa diluição de narrativas guiadas por épocas distanciadas temporalmente, unidas apenas pela demanda de uma personagem que de passado como de futuro se diluem na sua própria deambulação, a vivente de um esclavagismo que faz “turismo” pelas ruínas daquele cenário forçado. 

Julia De Simone explora as raízes afro-culturais da sua cidade, e para isso empresta-se à sua heroína, Muanza (Lucília Raimundo, “Um Animal Amarelo”), para a encaminhar e ser encaminhada. É um retrato sobre os temas que hoje perduram na discussão da realidade brasileira, que leva-nos à sua polarização, de um lado um encobrimento e “branqueamento”, afigurado na cidade em constante construção, e do outro os “vingadores” pelas memórias de outrem, resgatadas dos escombros. A discussão é complexa, vasta, o qual não se resume a meia dúzia de linhas e muito menos a um filme de 90 minutos, porém, “Praia Formosa”, esse descolar das vertentes documentais de Simone (o filme insere-se numa trilogia composta por curtas documentais, “O Porto” e “Rapacidade”), é encorajado pelo seu exercício de pseudo-época, sem condescendência nem paternalismo, ou agressividades quanto ao seu discurso. 

Relembrar vidas passadas como quem deseja homenageá-las e não vingá-las, entendendo-as como matéria performativa e dramatúrgica. Quanto ao retrato da cidade, reflexo esse que tem contagiado um novo cinema brasileiro, quase arqueológico e museológico (o gesto leva-me ao exercício de invisibilidade / visibilidade de “Todos os Mortos”, assinado pela dupla Marco Dutra e Caetano Gotardo), que funciona como arquivo que o Brasil carece, e muito. 

Tiger Competition

 

O Filme Feliz :) 

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A boa disposição de “O Filme Feliz :)” aufere-lhe um manto de especialidade enquanto atravessa territórios comuns principalmente associados ao cinema português recente. Gonçalo [Almeida] e os seus amigos rumam à casa do seu falecido avô e nela deparam-se com as memórias e , pelo meio, alguns fantasmas que por lá se foram “encalhando”, só que essa jornada de descoberta (e de auto-descoberta) parte de um tom milagreiro, uma benção que lhe transfere uma transcendência e igualmente júbilo com que se relaciona com a morte e outros nefastos afazeres. 

Duarte Coimbra (“Amor, Avenidas Novas”) cita de tudo, esses lugares comuns do cinema familiar e memorialista da nossa praça (embrulhado numa linguagem de artesanato tão característico dos autores da desconstrução - Miguel Gomes e João Nicolau, para exemplificar), desde fotografias a filmes-achados, e por outras, sobressaindo entre bandas improvisadas e um pontuado “Menino da Lágrima” lá pendurado, “O Filme Feliz :)” tem tanto de kitsch como de modernaço, triste como de alegre, vivaço como de fúnebre, e nesse último aspecto, Luís Miguel Cintra, decadente (nada podemos fazer para contornar essa inevitável da vida) que nos surge como um “fantasma do natal passado”, de olhar encantado e continuamente triste, presença que enriquece e transfere ao trabalho de Coimbra uma espécie de legado a preservar. 

Portugalidades, juventudes, a mesma “sopa” … porém, vénia feita, um filme bem disposto sobre memórias que deixamos e das memórias que procuramos. 

Secção: Short & Mid-length

 

On Plains of Larger River & Woodlands

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Português residente na Tasmânia, Miguel de Jesus afasta-se lentamente do bestiário animal de “Ultimate Bliss”, filme-curta epistolar sobre relações humanas onde esse factor encontrava-se visualmente ausente e no seu lugar o Reino Animal detendo as imagens como suas. 

Em “On Plains of Larger River & Woodlands” arrancamos com a rapina e sequencialmente o wallaby albino, mas é na partilha do primeiro que notamos precocemente um fragmento humano, sinal antecedente a essa eventual cedência, atalho para o território doméstico, mais concretamente um quarto, íntimo e convidativo, onde duas amigas partilham as suas experiências e vivências. De Jesus desejou trazer a este filme uma ideia de “exotismo” desconstruído, primeiro porque o discurso entre elas rodeia-se de situações nada vulgares que em outros olhares apelariam à indignação ao choque ou ao embaraço, e segundo, aí novamente, a animalidade que se confunde com essa humanidade, até ela se tornar, imagéticamente, simbiótica. 

Trazendo consigo um intimismo partilhável e com desejo de partilhar, esta curta também partilha (prometo não abusar mais do verbo) o lado epistolar de “Ultimate Bliss”, não exposto no discurso-narrado, mas disfarçado na sua concepção. Segundo o realizador, o filme foi montado à distância, e cuja correspondência fílmica se revela numa alegoria às milhas que geograficamente separam Tasmânia e Portugal, porém, é desta maneira o Cinema a assumir no mais dedicado dos sistemas de correios. 

Secção: Short & Mid-length

"Não é um filme sobre carros, é um filme com carros", Paulo Carneiro guia-nos pela "Via Norte"

Hugo Gomes, 22.01.24

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"Périphérique Nord" (2022)

À segunda longa-metragem e ao segundo encontro, Paulo Carneiro mantém-se motivado em presentear-nos com o seu cinema, a sua ideia, a sua concepção, para a qual não existe pessoa melhor para a explicar do que ele próprio. Mas voltando ao filme, depois da sua autodescoberta em "Bostofrio", segue para a Suíça ao encontro de uma comunidade lusa de emigrantes, cujo carro é a respetiva catedral, um altar à sua identidade, ao seu jeito memorialista de "ser português". O realizador frisa constantemente para que não nos deixemos levar ao engano; "Via Norte" ("Périphérique Nord") não é um "filme sobre carros", é um "filme com carros", no qual as viaturas são atalhos ao que realmente mais importa no cinema de Carneiro, que é aproximar pessoas.

Numa nova conversa, com novos temas, mas rodando os anteriormente mencionados tópicos, Paulo Carneiro disponibilizou o seu tempo para nos falar de "Via Norte", do cinema "que lhe dá na telha", sobre emigração e identidade portuguesa, e do seu próximo filme, "A Savana e a Montanha".

Avanço com a questão-base, como surgiu a ideia para a sua segunda longa-metragem?

Geralmente, a temática dos meus filmes – refiro-me "os meus filmes" porque, bem, estou a concluir outro, neste momento - é fruto de processos muito orgânicos. Ou seja, não ando à procura de ideias; elas vão surgindo porque alguém menciona algo, e a partir daí encontro algo muito pessoal nelas. Aqui, na verdade, faz parte de um imaginário infantil. Na aldeia dos meus pais, a minha mãe na Beira Baixa e o meu pai em Trás-os-Montes, em Bostofrio, onde realizei o meu primeiro filme, em criança, via a chegada dos emigrantes, acompanhados pelos os seus grandes carros. Ficava ali especado, a observá-los, porque talvez eles me transmitissem algo. Este fascínio também era responsabilidade do meu pai, visto que sempre gostou de carros; já trocou imensas vezes e dedicou bastante tempo a isso. Também partilho essa paixão.

Na verdade, havia muito julgamento por parte das pessoas que permaneceram na aldeia em relação aos emigrantes. Mas para mim, emigrar é um ato de coragem e há sempre críticas por parte daqueles que ficaram em relação a eles, que chegavam com grandes carros, alguns modificados e outros não, mas geralmente tinham sempre os veículos a brilhar. Isso intrigava-me, porque eu verdadeiramente apreciava ficar ali como quem visita um museu para ver uma pintura ou uma escultura, ou algo do género. E, de certa maneira, refletindo sobre isso.

Ou seja, é uma coisa imaginária da minha infância que continua presente em mim, e até recordo que, na altura em que “Bostofrio” estreou, várias pessoas comentaram comigo sobre isso, questionando o que se faz depois de realizar um filme na aldeia, meio autobiográfico e assim por diante.

Eu digo: olha, vai-se para a cidade e faz-se um filme à noite, e brinca-se com esta ideia da cultura pop, mas tentando e tentando, sempre indo para um dispositivo formal muito clássico. E, na verdade, é um bocado isso. 

Para mim, era também tentar glorificar a ideia de emigração. Tenho dois tios emigrados, fui viver para a Suíça durante uns tempos para fazer este filme. Pronto. Mas isso é uma situação forçada. Mas efetivamente dou muito valor à emigração porque tenho noção das dificuldades e de várias pessoas que conheço que trabalham no estrangeiro, das dificuldades que é a tua adaptação a uma nova cultura. E é, não me parece nada que faça sentido julgar esta coisa da exibição do carro. Porquê? Porque o carro para mim é como para eles, pelo que percebi no processo deste filme, aquela imagem do caracol que anda com a “casa às costas”, neste o carro é a “casa deles”. Estás a ver que é um símbolo de sucesso? E qual é o problema de se gostar de carro e gostar de exibir um carro? Eu acho que não tem problema nenhum.

A minha leitura do teu cinema, desde "Bostofrio", onde foste à procura de uma memória do teu avô e acabaste sempre por (re)descobrir-te a ti próprio, a tua própria identidade. E aqui também vais buscar um pouco dessa identidade, mas desta vez a identidade portuguesa, através desta conversa com o dono daqueles carros, fala muito, sobretudo, sobre a sua própria identidade espelhada nos respetivos veículos.

Pois, eu acho que é isso! O Kaurismäki também diz isso! Ele diz que o carro é o dono. É uma continuação do dono. Acho que carros que tento mostrar no filme, são fruto da relação dessas pessoas. Elas tentam incutir nas viaturas, modificam à sua maneira, ou seja, a forma como tratam os carros é o espelho delas próprias. Alguém disse que os carros de hoje em dia não têm personalidade, por isso prefere o seu um carro antigo porque reflete a sua personalidade.

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Paulo Carneiro

Acho que este é um filme com carros, mas que não é um filme sobre carros. Serve-se dos carros para falar de outras pessoas, das pessoas e de um amor e de um carinho. E de que forma a máquina pode transpor a personalidade da pessoa? Por vezes as pessoas confundem-se um bocado e ficam com medo de um filme sobre carros. Isso não interessa para nada. Costumo dizer, isto é um filme com carros, não é um filme sobre carros. Pode interessar até mesmo às pessoas que andam de bicicleta.

E tu fazes constantemente essa finta. Abordas as pessoas só para falar sobre o carro e eles acabam por falar sobre a sua própria experiência na Suíça e do que é ser português ou o conceito que têm da questão da imigração. Como sofrem? Quer na Suíça quer em Portugal, porque quando regressam, sentem que não são mais portugueses de alguma maneira, porque todo o ambiente faz com que eles sintam que não são de lá.

Exato, efetivamente, a grande proposta era fazer uma elegia a estas pessoas e criar um filme em que se visse o trabalho, mas que não se filmasse o trabalho, mas que se vê o trabalho no objeto do carro. Não estava interessado em fazer aquele cinema da emigração que fala do trabalho, no sentido de que se filma-o e as suas más condições, etc. Pretendia mostrar um lado diferente e fazer uma espécie de elogio a estas pessoas, uma homenagem até. Do que tenho ouvido, existem pessoas que se irritam com este pessoal que vinha, e que trazia o seu objeto de sucesso - o carro, o seu tesouro - e que fazem as pazes com elas, porque acho que também é um preconceito, é um estereótipo que se criou e que na verdade não é bem assim. E o filme também joga contra esse estereótipo.

Absolutamente, aliás, saliento que até existe uma palavra associada aos regressados, “avecs” penso eu, que é uma maneira de separá-los dos “portugueses que ficaram”. Separar os “contaminados”, culturalmente, dos “puros”.

Quando estás a ver o filme, não sentes um amor por aquelas pessoas e sentes que elas legitimam esse amor pelo carro? Porque o carro também é um objecto de integração. Os que têm carro se juntam num grupo com outras pessoas que têm carro, e assim formam uma comunidade.

A sensação que tenho é que os portugueses quando estão lá fora fortalecem os laços entre uns e outros, porque os que os une é a própria identidade.

Estas pessoas que o filme mostra, se juntam a outras pessoas com carros da mesma forma que cá nós juntamo-nos para ir ver futebol no café ou outro desporto. Na Suíça faz mais frio, e é um ambiente diferente, não se juntam num café, e até a cerveja custa entre 5 a 6 €. 

Mas é isso. Cada pessoa vê no filme o que quiser. No meu ponto de vista, é um filme que se aproxima das pessoas através de outras pessoas.

Mais próximo do final, antes da cena do mercado da Pontinha, que já te questiono, gostaria que me falasse daquela boleia do curdo, os “não-pátria”, os que têm identidade mas que não têm país. Até que ponto encaixas nesta ode identidade portuguesa, o qual têm o seu lugar, Portugal, com as dos curdos que são desprovidos de uma nação?

Comecei a falar com o Abu por mero acaso, não estava planeado integrar o filme. Ele elogiava muito as habilidades dos portugueses, especialmente no que diz respeito à modificação de carros, ou seja, no tuning. A sua entrada simplesmente aconteceu. O Ricardo Leal, diretor de som, que tinha ficado na Suíça, foi apresentar o “Bostofrio” em França, e foi aí que conheceu o Abu. Na altura das apresentações, quando vou falar com ele, e conta que é curdo. Já tinha pressentido qualquer coisa, porque praticamente toda a montagem do filme segue cronológicamente a ordem de que o filme é filmado, por isso é que nota-se a modificação da minha abordagem, como o tipo de perguntas que faço aos entrevistados. O filme é também o processo de construção do próprio filme.

Mas voltando ao Abu, parece que os imigrantes encontram-se numa espécie de limbo. É como disseste, têm uma pátria, mas mesmo assim sentem-se num limbo, sem pátria porque é difícil readaptar em cada regresso. O que o filme faz é criar ali um paralelo, claro que é um paralelo incomparável. Quer dizer, são situações muito diferentes. A nossa relação com a guerra é muito diferente, como a nossa relação com o território. E mais díspar nessa ideia de pátria, porque é o maior povo do mundo que não tem uma pátria. Para mim, o  importante ali, de certa forma, era mostrar esta relação com os carros. Não sei se se percebe no filme que esta relação com os carros e esta forma de integração através deles não são uma marca meramente portuguesa. 

Há também muitos albaneses que têm esta relação, kosovares, e o Abu, que é curdo iraquiano, se bem me engano. 

Chegou a ver o filme?

Nunca vi o filme. Fiquei, entretanto, sem o contacto dele no WhatsApp. Andei na Suíça à procura dele, visto que o filme estreou no Vision du Réel, fui à mercearia, ao trabalho, ao bairro dele e nada. Para mim, era importante mostrar as franjas da sociedade suíça, efetivamente do exterior, pessoas que foram para ali à procura de uma vida melhor, seja por que razão for - no caso dele era exílio político - e que tinha essa relação automobilística. Como também, de certa maneira, mostrar que a imigração portuguesa não era fechada e única. 

Nesse sentido, era importante ele estar lá. Todos nós gostamos de carros, mas nós não fechamos a porta a outras pessoas e comunidades. É esse espírito que pretendo criar ali, nessa viagem que prossigo. Ou a de um português que abre a garagem, e que nasça daí a possibilidade de um filme. É abrirmos as portas uns aos outros e não deixar o filme acabar e  eu acho que não acaba.

Por isso é que a conversa com o Abu dá-se por via de uma boleia, a possibilidade de sermos guiados …

Sim, a do cruzamento, ou seja, isso foi pensado … são detalhes. Esse é o único plano que está em movimento, porque está relacionado com a questão da viagem. Vamos acabar, mas estamos em movimento, porque queria que o dispositivo formal fosse diferente do resto. O início, que é visto como o começo da viagem, e depois, mais tarde, é a primeira vez que vês o dia, o filme maioritariamente passa-se todo durante a noite. E pronto, são formas de tentar sublinhar e destacar esses momentos.

Agora sim, podemos falar do último plano, a do Mercado da Pontinha, que neste preciso momento virou arquivo visto que aquele mercado não existe mais. No seu lugar está um parque de estacionamento.

Agora sim, mas ainda não se sabe o que vai ser realmente aquilo. Os carros ainda não estacionam lá. Tiraram a parte do telheiro, que era onde tinham aquelas mensagens do 25 de Abril, as fotografias do Alfredo Tropa … acho que também tinha as do Eduardo Gageiro, mas não tenho a certeza. Em suma, aquele mercado já não existe.

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"Périphérique Nord" (2022)

Mas sobre esse específico plano, e apesar de termos mencionado o Mercado da Pontinha, que desapareceu, julgo que o grande ponto era o quartel da Pontinha e todo aquele simbolismo do 25 de Abril trazido por esse espaço. E tendo um filme sobre emigração …

E viste bem! Não sei se sabes mas esse quartel virou quartel da GNR, logo também é matéria de arquivo. 

Achava que seria uma referência muito direta, portanto, pensei que não faria sentido incluí-lo no filme. Mas havia mais, mais dois planos, um à entrada do quartel, e outro sob toponímica e referência ao 25 de Abril. Então, pois, mas quer dizer, de certa forma, para te clarificar, no sentido de achar que é um piscar de olho nada direto, porque a imigração que retrato não é uma imigração com essa idade; já são as segundas e terceiras gerações. Mas de certa maneira, é um toque a essa emigração, porque foram os pais deles, um boost inicial da emigração, a partir da década de 50. Para a Suíça começou mais tarde, depois do 25 de Abril

Quero dizer, o meu filme é na Suíça, mas poderia ser no Luxemburgo ou em outro lugar. Ao falar deste filme ao José Vieira, ele dizia-me que não poderia diferenciar as emigrações, que a sua separação era uma mentira. “Imigração só há uma!” Os sentimentos são iguais para todos, sejam dos que vêm do Norte de África, seja da emigração portuguesa para França antes de 74, é igual para toda a gente, independentemente dos traumas de guerra ou não. Percebes aquilo que sentes na relação com o teu país, esta ‘coisa’ de não saber onde pertences.

Para mim, aquela cena é uma referência clara, mas não é uma espécie de libertação. O cinema que me interessa é um cinema que se serve de uma coisa para se expandir para outra. Por isso é que estou neste universo automobilístico, falo dos carros para falar de outros tópicos. Como “Bostofrio”, o qual vou na verdade para me encontrar, para o encontrar, para procurar ou para ir mais fundo na questão da doença da minha avó e fazer uma elegia à minha avó, uma homenagem ao meu pai. Esse é o cinema que me interessa. Se vou falar de uma história de amor, não vou filmar um casal de namorados. Não é isso que procuro no cinema.

Continuas focado na tua demanda pelo “cinema da rua”, o cinema “sangue na guelra”?

Penso que sim. Quando vires o meu próximo filme, vais perceber. É um cinema “bora, bora, ….”. É aquela máxima de todos os filmes que fazes são os filmes que tu viste e que cresceram contigo. Continuo a trabalhar da mesma maneira. Há coisas que posso pensar antes, mas não trabalho com storyboard, isso não me interessa, o que me interessa é chegar ali e perceber o que é. Interessa-me trabalhar com as pessoas que quero, e é essa ideia do “cinema de rua”. É um cinema que te vai dando estímulos atrás de estímulos, e suscitam um brilhantismo como aquele do último plano do “Via Norte”. 

Isso é a minha energia. Sou assim. Eu tenho essa energia e acho que isso é um cinema que me representa, a mim e à minha produtora, a Miguel [de Jesus]. Fazer um cinema espontâneo, que procura mostrar aquilo que somos - nós não procuramos ser aquilo que não somos. Se quiseres chamar isso de “cinema da rua”, penso que também poderá ser alcunhado de “cinema do subúrbio”, porque é uma forma de ver as ‘coisas’ de uma outra perspetiva. Isso se sente. 

Para mim é importante que as pessoas que eu filmo gostem e que consigam vê-lo. É importante para mim, e não é por isso que seja um filme que artisticamente tenha menos valor que outro filme. É trabalho do ritmo, o tempo das ‘coisas’, tudo tem um tempo. Aquela ideia do plano fixo ser entediante, é puramente mentira, porque as pessoas que fizeram o filme, que contribuíram nele ou foram filmadas, viram-o e não tiveram problemas com esses planos. Mas acho que já estamos a ter problemas com esse rótulo de ser um “filme de autor”, mas igualmente popular nas salas de cinema. “Ah, mas eu não tenho público para isto”. O público não é tipo a alta burguesia.

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"Périphérique Nord" (2022)

Continuarás com esse registo no “Savana”, o teu próximo filme? Já agora, fala-me desse projeto.

A Savana e a Montanha” é resumidamente um “filme de cowboys”. O montador de som lá do Uruguai diz que é um “western social”. Vou adotar essa perspetiva. [risos] 

Na verdade, foi um filme pedido. Foi filmado em Covas do Barroso, que está a cerca de cinco quilómetros de Bostofrio, de onde surgiu a especulação sobre a maior mina de lítio da Europa. O que saiu foi um documentário muito derrotista, e não era isso que pretendia.

Demorou três anos a ser filmado, mas como não gostei do resultado, e que vai contra o espírito daquelas pessoas - “A gente dos Trás-dos-Montes não é assim!” - decidi fazer outra ‘coisa’. “A Savana e a Montanha” é um filme de intervenção sem ser um filme de intervenção, que se assume na pele de um “filme de cowboys”, o qual mostra a organização do povo contra uma grande multinacional. O lado documental está preservado, com a ficção inspirada na própria vida das pessoas e cujos diálogos são escritos em colaboração com eles.

Também posso dizer que neste filme, eu não entro em cena. 

Na nossa última entrevista declaraste que não te vias a fazer ficção, porque a ideia de dirigir atores não era a tua vontade. 

Não são atores, são não-atores. Foi difícil, mas ao mesmo tempo já tínhamos uma relação de confiança com estas pessoas porque estávamos a filmar o documentário. A ficção foi uma maneira de mostrar a força deles, porque é inspirado nas suas histórias. São eles próprios a fazer deles mesmos. 

E já o meu o meu outro filme, o de Cabo Verde, é um filme de detetives … [risos]

Mas quanto ao lado western de “A Savana’”, não será algo à lá Ennio Morricone, nem nada dessas fantochadas, será uma ‘coisa’ desconstruída, filmado a 16mm e em película.