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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Próxima paragem: Estónia e arredores, com Porto no coração do 7º BEAST IFF

Hugo Gomes, 25.09.24

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Dark Paradise (Triin Ruumet, 2023)

Depois da Eslováquia, o “comboio” BEAST IFF embarca na Estónia, novamente com uma mostra rica de cinema proveniente daquelas andanças e ares, sem nunca olhar a meio às suas periferias. É o Cinema do Leste novamente a encher o Porto, a partir de hoje (25 de setembro) até ao próximo dia 29, com projeções no Batalha Centro de Cinema, Cinema Trindade, Cinema Passos Manuel, e eventos paralelos, conversas, exposições e DJ sets, na Livraria Térmita e no OKNA

A abertura traz ao grande ecrã três curtas-metragens que definem, e bem, o tom desta sétima edição, com destaque para “Sauna Day” (estreado no último Festival de Cannes), de Anna Hints (que o circuito nacional a reconhecerá de uma outra sauna confessional - “Smoke Sauna Sisterhood”) e Tushar Prakash, um olhar a uma sauna masculina com invocação quase xamânica. Além do filme de Hints / Prakash, a sessão inaugural contará ainda com “Heiki on the Other Side” (2022), de Katariina Aule, comédia negra com o submundo pós-vida à mistura, e “Miisufy” (que teve estreia no último Sundance), de Liisi Grünberg, animação sobre a dualidade real / virtual com inspirações reconhecíveis ao fenómeno Tamagotchi, reforçam a oferta rica e variada deste ano. Os realizadores de “Sauna Day”, a realizadora Katariina Aule e a produtora de “Miisufy” (Aurelia Aasa) estarão presentes na sessão.

Contudo, o Cinematograficamente Falando … dará voz a quem esteve realmente por trás deste evento, desta seleção e desta perspectiva que encherá o Porto nos próximos quatro dias, Radu Sticlea e Teresa Vieira, os diretores artísticos e programadores, repetiram o convite de responder e de desvendar os cantos e recantos desta sétima celebração do BEAST. O comboio não pára!

Com a Estónia enquanto país-homenageado desta edição, pergunto quais foram os critérios usados na selecção dos filmes e eventos que melhor representam o panorama cinematográfico contemporâneo e histórico do país?

O trabalho de desenho de programação advém de uma combinação de factores. Desde logo com os materiais a que o festival tem acesso, graças ao apoio dos nossos parceiros institucionais (como o Instituto de Cinema da Estónia e do Centro de Arte Contemporânea da Estónia, por exemplo). Materiais que advêm de pedidos já de si direcionados pela equipa curatorial do festival. 

O BEAST tem, no seu core, uma atenção para com trabalhos com assinatura de pessoas dentro do amplo espectro da identidade de género (que se traduz numa preocupação de criar uma programação com diversidade de género), uma atenção para trabalhos tanto do presente como do passado, uma atenção para com trabalhos de escola, uma atenção para com obras de videoarte, entre outras. A partir desta base, a equipa permite-se à descoberta: muitas vezes desconhecendo o caminho, este surge através de um longo e profundo trabalho de investigação. 

O programa emerge como resultado das aspirações iniciais da equipa, revelando-se como o fruto da inspiração que surgiu a partir de todos os filmes com os quais entrou em contacto. Assim, temos este ano uma secção de país de foco diversa: de curtas a longas-metragens; de documentários a ficção; de anúncios televisivos a videoarte.

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Sauna Days (Anna Hints & Tushar Prakash, 2024)

Este ano, a competição oficial conta com uma variedade de géneros e formatos, desde ficção até animação. Como garantem um equilíbrio entre a inovação artística e a acessibilidade ao público nas selecções de "Experimental East" e "AnimaEast"? 

Desde a sua primeira edição que o BEAST conta com as secções competitivas East Wave, East Doc e Experimental East. A secção competitiva AnimaEast foi introduzida o ano passado e mantém-se nesta nova edição. Uma adição que consideramos dar o espaço justo ao universo do cinema de animação num festival dedicado a regiões de forte impacto nesse contexto cinematográfico. 

Os filmes de cada uma destas secções são escolhidos pelos respectivos comités de selecção, que contam com especialistas em cada uma das áreas e com pessoas de diferentes nacionalidades - e isto aplica-se igualmente no caso da competição de animação e experimental. Os critérios de selecção têm diversos parâmetros e aquilo que ressalta é a alta qualidade e a relevância política dos trabalhos que procuramos trazer junto do público. Um público que vemos, desde sempre, tanto com interesse em entrar em contacto com narrativas e formas mais normativas, como com espaços de maior expansão das possibilidades da forma do cinema (que não se fechará nunca numa só caixa - e aqui estaremos, em conjunto com o público, sempre curioses e ansioses por navegar em todas as suas possibilidades).

A secção "Visegrad Film Hub" apresenta um conjunto diversificado de filmes de diferentes origens e temas. De que forma os programas como "LAPILLI" e "Fairy Garden" contribuem para a discussão sobre a memória e identidade da Europa Central e de Leste?

A selecção do documentário húngaro “Fairy Garden" foi feita em conjunto com o HU Verzio Film Festival, um dos festivais com os quais o BEAST colabora no contexto do programa Visegrad Film Hub. Este documentário de Gergő Somogyvári, vencedor do prémio do público da última edição do HU Verzio, encaixa na linha de programação do BEAST de representação queer. Este filme mostra-nos a (tanto dura como bela) realidade de vida de Fanni, uma jovem mulher trans e Laci, um homem de 60 anos sem-abrigo. Vivem juntos num lugar longe do centro de Budapeste. E nesse lugar, que surgiu devido à opressão social, à violência, cria-se uma casa de apoio mútuo, de trabalho para construção de uma realidade melhor para ambos. Uma família cria-se neste contexto: e a beleza surge dos gestos de ternura e amor que observamos e acompanhamos. Neste filme temos um equilíbrio entre o negativo e o positivo: mostrando os potenciais de salvação através de comunidade, de família escolhida, não deixando de lado todas as questões problemáticas da sociedade que essa mesma comunidade (ainda) tem que enfrentar. Questões presentes na região da Europa Central e de Leste mas também em Portugal e no resto do mundo. 

Lapilli” é a mais recente longa-metragem de Paula Ďurinová. Um filme-ensaio de homenagem à vida dos seus avós, tal como um filme que cria espaço para a realizadora lidar com os diferentes estágios de luto. Uma observação cuidada, uma abordagem sensível (como um sussurrar cinemático-geológico) que retrata, através do processo individual e único, algo universal. Ďurinová é uma de várias vozes de grande força no contexto cinematográfico da Eslováquia, e consideramos que este filme é um diamante que deve ser partilhado com o público no Porto

Com iniciativas como o CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, vemos uma abordagem histórica e social ao cinema. Como consideram que estas narrativas dialogam com a actualidade sociopolítica, e qual o impacto que esperam gerar no público português? 

CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL abre uma conversa sobre a riqueza da troca cultural — como as interações diversas entre a Europa de Leste e as nações africanas deram origem a alguns dos movimentos criativos mais profundos. Num mundo muitas vezes dividido pelo racismo e discriminação, percebemos que a 'alteridade' não é algo a temer, mas algo essencial para o nosso crescimento e compreensão de quem somos. Com este programa, esperamos mostrar ao público português que, do outro lado da exclusão, está uma força vibrante e poderosa, alimentada pela diversidade. É ao abraçar essas diferenças que construímos as coisas mais impactantes e significativas, uma filosofia que está no coração do nosso festival e de muitos membros da nossa equipa.

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Queer Fighters of Ukraine (Alex King & Angelika Ustymenko, 2023)

A inclusão do primeiro festival de cinema queer da Ucrânia na secção "Queer Ukraine: Sunny Bunny" (que teve primeira edição no ano passado) merece destaque nesta programação. Que papel esperam que o BEAST desempenhe na promoção de cinema queer no contexto de um festival focado na Europa de Leste?

A ligação entre o BEAST e a Ucrânia tem acontecido ao longo de várias edições de diferentes formas, fora do contexto da secção competitiva do festival. Já tendo sido o País de Foco do festival, e com alguns programas especiais fora de competição, desde 2023 que temos uma colaboração com o Sunny Bunny (que teve nesse ano a sua primeira edição). Consideramos que, tendo em conta o contexto actual do país, torna-se ainda mais urgente criar um espaço para as vozes, as visões cinematográficas da Ucrânia - e, em particular, de narrativas sobre e vidas da comunidade queer.

No geral, BEAST tem tido uma forte presença de filmes queer na sua programação, além de muites des elementes da equipa fazerem também parte da comunidade. Desde o ano passado que decidimos formalizar essa atenção curatorial permanente com a criação de uma secção: How To Care for Cosmos. Um título inspirado no livro-diário de Derek Jarman, “Modern Nature”. Consideramos de extrema importância ter este espaço, e tentamos representar tanto filmes de países cujo contexto relativamente aos direitos e vivências da comunidade LGBTQIA+ não sejam positivos, como também os movimentos progressivos que acontecem na região da Europa Central e de Leste, que permitem um avanço para uma realidade mais igualitária. Uma junção de inquietação com esperança: tentando cuidar do presente para criar um futuro melhor. 

No ano passado, por exemplo, dedicámos um espaço a filmes queer da Eslováquia: país onde duas pessoas queer foram assassinadas a tiro. Uma tentativa de gesto de homenagem às suas vidas e de lançamento de um alerta para com as atitudes homofóbicas, transfóbicas que ainda acontecem em regiões de nossa proximidade. Este ano, por exemplo, temos a presença da Polónia: um país que, durante 8 anos, esteve sob um regime de direita que impediu o avanço dos direitos LGBTQIA+ e que instigou uma narrativa anti-”propaganda LGBTQIA+”. Com a saída desse governo do poder, quisemos criar um espaço que aponte para um futuro que esperamos melhor: “Such Feeling”, um filme de gestos de intimidade, que nos mostra como o apoio dentro da comunidade permitiu a sobrevivência de muites nesse contexto sócio-político. Um filme de lutas fora do ramo da violência (no extremo oposto): uma luta de arte política, de corpos e identidades reivindicativas, que esperamos que, nos próximos anos, alcancem os merecidos e devidos direitos.

A presença destes filmes e destas narrativas é fulcral para um maior entendimento do espectro de situações um pouco por toda a Europa. O BEAST é e quer-se manter como um espaço para a exibição de filmes sobre - e com - essas realidades, para a criação de um diálogo entre os diferentes pontos da Europa, incluindo Portugal.

O que poderá dizer sobre os convidados desta edição? 

Este ano, o festival conta com uma vasta e forte presença de realizadores, produtores e curadores da Estónia (País de Foco): Anna Hints, Tushar Prakash, Katariina Aule, Aurelia Aasa marcam presença na cerimónia de abertura e apresentam os filmes que dão início à 7ª edição do festival. Além disso, vamos contar com a presença de Lyza Jarvis da EKA, que irá apresentar os filmes selecionados para a Carte Blanche da escola de animação de Tallinn. Junta-se também a Marika Agu - gestora de arquivos do CCA, com quem o BEAST colaborou para a criação do programa de videoarte -, que irá apresentar o CCA, além de fazer parte do Júri deste ano.

O júri é constituído por Tadeusz Strączek (Polónia), Heleen Gorritsen (Alemanha), Jakub Spevák (Eslováquia), Eugen Jebeleanu (Roménia) e Juliana Julieta (Portugal). Do contexto da secção Visegrad, contamos com a presença das curadoras do programa CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, Monika Talarczyk e Magda Lipska, que farão uma apresentação deste que é um dos programas de grande destaque do festival. Contamos também com a presença de dois realizadores de realizadores de longas-metragens presentes nesta secção: Paula Ďurinová (“Lapilli”) e Gergo Somogyvari (“Fairy Garden”). No contexto da talk de Festival Makers do contexto Visegrad, teremos um momento de encontro, conversa e partilha com Eniko Gyuresko, Ewa Szablowska e Szymon Stemplewski, que partilharam as suas experiências na direcção ou direcção artística de festivais. São alguns dos destaques deste ano.

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Fairy Garden (Gergő Somogyvári, 2023)

A programação desta edição parece privilegiar não apenas o cinema, mas também as intersecções com outras artes, como a instalação imersiva de Štefan Oliš. Qual é a visão por trás da incorporação destas vertentes e que contributo esperam que tragam ao festival como um todo? 

Este ano, estamos a focar na integração do cinema com outras formas de arte para enriquecer a experiência do festival. Teremos elementos interativos por todo o festival, começando no nosso ponto de informação OKNA. A nossa colaboração com a TRAKT, liderada por Štefan Oliš, uma organização da Eslováquia que se especializa em media interativos e programas educativos para jovens, já dura há vários anos. Os visitantes podem contar com características interativas, como instalações sonoras e arte em vídeo, em vários locais. O nosso objetivo é criar um ambiente mais envolvente que estimule a participação e a interação com a arte apresentada.

Com uma sétima edição, para onde o festival irá, ou que fronteiras falta transpassar ou deseja fazê-lo, numa oitava edição? Por outras palavras, que ambições tem o BEAST?

“Para onde Vamos?” é o mote do festival deste ano. Algo que se relaciona inevitavelmente com um questionamento interno, de tentativa de entendimento do caminho pelo qual o festival quererá atravessar e para onde quererá chegar. Teremos mudanças já para o próximo ano - ainda por anunciar. E esperamos que o público nos siga nos novos passos que o festival irá tomar. 

Mas o mote deste ano não se prende somente com isso: é um reflexo de uma inquietação generalizada. Não é possível definir o futuro, mas queremos fazer parte de um trabalho comunitário - na área da cultura, na área do cinema -, contínuo, de criação de propostas que possam encaminhar para um mundo melhor, para um futuro possível. Ambições de utopia, que esperamos que nos levem a um lugar o mais próximo possível dela - é assim que todes caminhamos na vida. O cinema tem um grande papel nesse sentido: e queremos que o nosso trabalho se mantenha relevante no sentido de melhorar o estado das coisas.

Arranca o 6º BEAST IFF, da Eslovénia cinematográfica a finais (nada) felizes: "uma procura por novas fórmulas, por novos destinos e por novos caminhos"

Hugo Gomes, 26.09.23

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I Miss Sonja Henie (Karpo Godina, 1971)

A Eslovénia torna-se assim no centro geocultural desta sexta edição do BEAST IFF, o Festival Internacional de Cinema que acontecerá já no dia 27 de setembro, estendendo-se até ao primeiro dia de outubro em vários pontos da cidade do Porto. Este ano, para além do país homenageado e do melhor cinema do leste o qual tem dedicado com coração, poderemos contar (e continuar a contar) com um enorme foco feminino - com especial destaque para argumentista e figurinista Ester Krumbachová, uma das parceiras da “mãe” Věra Chytilová nos seus devaneios que lançaram a nova vaga checoslovaca para o holofote do mundo - e uma forte aposta no cinema queer originário das Balcãs. Sem esquecer Karpo Godina, um dos nomes maiores do cinema esloveno, que marcará presença numa retropectiva à sua figura.

É "no happy ever after" a inundar a cidade invicta nestes cinco dias, mas apesar do slogan pessimista, o BEAST IFF promete ser um festival "feliz", porque Cinema haverá, logo a felicidade é garantida. Só que esta felicidade está nas longitudes longínquas das utopias e dos "we are the worlds" hollywoodescos. Mas deixemos de descrições baratas e passemos aos nossos diretores e programadores - Radu Sticlea e Teresa Vieira - que, respondendo ao convite do Cinematograficamente Falando …, desvendam a rota desta edição.

Ao chegar a uma sexta edição do festival, e olhando em modo retrospectivo, quais os objetivos atingidos e o que poderá ainda atingir?

Radu Sticlea: Acredito que com cada edição conseguimos curar com sucesso um programa que não só mostra o trabalho de realizadores de renome, mas também dá destaque a talentos emergentes. Esta abordagem permitiu-nos nutrir e promover a próxima geração de realizadores da Europa de Leste, enquanto nos estabelecemos como uma plataforma única.

Como festival, a nossa missão é a seguinte: construir uma plataforma dinâmica para colaborar e fazer networking entre Portugal e a Europa Central e de Leste, enquanto simultaneamente desafiamos e desfazemos estereótipos associados à região. Nós acreditamos que um programa reflexivo e provocante não é só um testemunho da nossa dedicação para os talentos cinematográficos, mas também é uma oportunidade para expor a diversidade e densidade criativa do cinema da Europa de Leste. Ao abraçar conteúdos provocativos e quebrar barreiras, temos como objetivo incentivar conexões significativas e contribuir para uma compreensão mais extensa desta paisagem cinematográfica vibrante.

Sobre a Eslovénia, o país-homenageado, o que poderá dizer sobre a sua cinematografia e como resumi-la para o seu Focus. Que impressões os espectadores terão com esta viagem?

Teresa Vieira: Todos os anos, o BEAST dedica-se à criação de uma programação focada no panorama cinematográfico de um país, apresentando trabalhos de realizadores de renome e realizadores emergentes, num leque de diferentes temporalidades (das marcas do passado, ao presente e apontando para um futuro). Este ano, a escolha do Foco na Eslovénia surgiu por diversas razões. Desde logo, por sentirmos uma falta de representatividade do país - ou um certo desconhecimento da sua cinematografia - no panorama nacional, procurando criar um espaço para uma mostra mais aprofundada de produções passadas e presentes. A tal adicionado o facto de ser o primeiro país pós-comunista a legalizar a adopção e o casamento entre casais do mesmo sexo, o que se liga à nossa atenção para com as questões queer na Europa Central e de Leste

Em termos de programação específica, decidimos alterar o modelo de selecção para a cerimónia de abertura (que, ao longo da história do festival, se concretizava com a exibição de uma longa-metragem do País em Foco), seleccionando três curtas-metragens de três realizadoras da Eslovénia. Consideramos esse gesto representativo do festival de diversas formas: o formato de curta, sobre o qual trabalhamos um pouco por toda a programação, como forma de lançamento do mote para esta 6ª edição; e a escolha de três obras realizadas por mulheres, que traduz a nossa atenção para com questões de género na programação. 

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Věra Chytilová e Ester Krumbachová

Aquilo que o público poderá esperar, após esse ponto de partida, é uma viagem por diferentes pontos: uma retrospectiva de curtas metragens dos anos 60 e 70 de Karpo Godina, realizador de renome (aqui num ponto de passado estabelecido e fortemente marcado na história do cinema); duas sessões de trabalhos de duas escolas de cinema (criando uma mostra dos futuros nomes da cena cinematográfica, dando também um espaço para estas produções circularem noutros territórios e contactar com outros públicos); uma sessão especial de LGBT_SLO_1984, parte do programa queer do festival, para um maior entendimento dos movimentos artísticos, activistas e históricos associados à evolução dos direitos LGBTQIA+ do país; uma retrospectiva de video-art, um formato que foi (e ainda é) marcante da cena artística do país, e que consideramos fundamental para um maior entendimento das abordagens artísticas e cinematográficas da Eslovénia, procurando ao mesmo tempo enfatizar o nosso ângulo de criação de espaço para “outros formatos”, por vezes afastados das salas; um cine-concerto de “No Reino Do Chifre De Ouro” (“In the Kingdom of the Goldhorn”, 1931), com o artista sonoro Ivo São Bento, em que exibiremos a primeira longa-metragem realizada na Eslovénia acompanhado por um trabalho musical e sonoro original e exclusivo para este evento.

Procuramos, no fundo, apresentar uma seleção diversificada de múltiplas formas - e despertar todos os sentidos do público pelo caminho.

Em BEAST IFF existe uma “apetite”, chamaremos assim, em se focar num cinema feito por e para mulheres, descortinando nomes emergentes como a de Tereza Nvotová [“Nightsiren”] ou de heroínas como Ester Krumbachová, colaboradora de Věra Chytilová, ambas representadas nesta edição. Gostaria que me abordasse esta abordagem, se é algo coincidente ou uma convicção político-social-artística do festival?

TV: A resposta poderá passar pelas duas partes: surge de uma convicção político-social-artística e aconteceu igualmente (de forma não coincidente mas) natural - sendo que tal advém, desde logo, por exemplo, de escolhas em pré-criação de programação. A nossa atenção para com questões de representação de género está presente, em primeiro lugar, na constituição da equipa do festival: procuramos ter um grupo de vozes diversas, o que de forma natural influencia os resultados nas escolhas curatoriais e na programação. 

Não tendo uma maioria de programação cis masculina, implica que, regra geral, a questão (necessária, urgente, fundamental) que tem de ser muitas vezes apresentada e reforçada noutros contextos - e firmada constantemente -, de atenção para com a representação de género, se tornou quase “redundante” no nosso processo colectivo de trabalho. No sentido em que, enquanto pessoas que não fazem parte de uma categoria de “privilégio”, tal implica inevitavelmente um posicionamento individual e colectivo - um olhar - que carrega em si estas questões de forma contínua - é a nossa vida, a nossa luta, a nossa história. Faz parte de nós e a programação reflecte isso mesmo. 

Relativamente a elementos de secções não-competitivas, o caso do programa de retrospectiva de video-art da Eslovénia poderá ser ilustrativo: após a selecção de grande parte das obras que vão ser agora exibidas ao público, foi possível observar que o programa, de si, já representava uma maioria feminina. Assim, foi mantida a programação exatamente como estava após essa análise. Em relação a outros programas temáticos (fora de competição e do Foco Eslovénia), dar destaque a Ester Krumbachová é dar uma atenção para o trabalho criado por uma mulher mas também para uma pessoa cuja função não recaiu somente na realização. É igualmente um posicionamento do festival de que é necessário criar e fortalecer espaços de foco em áreas além da realização e produção: o caso da Ester, multi-facetada e fundamental set designer, costume designer, guionista da New Wave Checa, é uma forma de demonstrar essa vontade.

Uma questão pertinente, visto que o festival foca este ano numa mostra de cinema Queer (ou simplesmente de temática LGBTQIA+), o qual decorrerá em simultâneo com o Festival Queer Lisboa e posteriormente com a extensão no Porto. Existe diálogo entre os dois festivais, ou há um sentimento de concorrência?

TV: O BEAST tem dedicado ao longo de diversas edições um espaço para programação de cinema queer. Este ano, o festival decidiu criar um título para essa secção: “How to Care for Cosmos”. Um título que surgiu, entre outras coisas, de inspiração a partir de “Modern Nature”, de Derek Jarman. Uma ideia de um jardim que tem de ser cultivado, com flores que representam o “tudo”, o “universo” - o “nós e es outres”. É um programa que procura o cuidado, a atenção para com questões que consideramos urgentes, de forma a procurar um futuro melhor para todes. 

Este foco transparece uma identidade queer que não é somente uma secção: faz parte do ADN do festival, composto maioritariamente por pessoas da comunidade LGBTQIA+. O programa desta secção, este ano, resulta em grande parte de colaborações com dois festivais de cinema queer da Europa de Leste: Sunny Bunny (Ucrânia) e FFi (Eslováquia). O Sunny Bunny é o primeiro festival de cinema queer da Ucrânia e teve este ano a sua primeira edição. Exibir estas curtas-metragens ucranianas neste momento é também um statement do BEAST, que tem reforçado o seu foco - já existente em edições passadas - no cinema ucraniano durante este período de guerra, com uma vontade explícita de dar voz aos cineastas do país - e, este ano em particular, à comunidade queer. A colaboração com o FFi resulta de uma preocupação para com a situação sócio-política do país: em 2022, duas pessoas da comunidade LGBTQIA+ foram assassinadas à frente de um bar (safe space para pessoas queer). 

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Before Curfew (Angelika Ustymenko, 2023)

Mostrar curtas-metragens da Eslováquia é também uma forma de demonstrar o nosso apoio para com a comunidade do país, e uma procura para um alerta de movimentos de ódio que ainda (ou desde sempre) acontecem na Europa. Os programas que serão apresentados foram criados colaborativamente: uma selecção que uniu diversos olhares de diferentes pontos geográficos - todos a partir de perspectivas de indivíduos queer.

Esta resposta passou, primeiro, por uma mostra do gesto programático desta secção: colaboração, diálogo e trocas. Não foi por acaso: serve de ponte para aquilo que poderá ser dito em relação ao Queer Lisboa e a sua extensão no Porto. Não só não existe qualquer concorrência entre festivais, como almejamos que existam cada vez mais e mais espaços para vozes, visões e identidades queer - algo que consideramos crucial. Felizmente, nos tempos que correm, é possível ver cada vez mais a presença de cinema queer em programações não dedicadas exclusivamente ao cinema queer

No entanto, a existência do Queer Lisboa/Porto, que têm notoriamente das identidades mais firmadas e estabelecidas no panorama de festivais nacionais, é algo que consideramos absolutamente fundamental, insubstituível e de um valor imenso. A sua linha de programação denota preocupações partilhadas - desde logo, por exemplo, exibindo filmes que relatam as questões da Guerra na Ucrânia - , também com produções de países como a Roménia, o Kosovo, mas também de múltiplas regiões além-Europa (filmes da Nigéria, do Brasil, da Colômbia, entre tantos outros). Partilha de preocupações, um olhar atento para com as questões da comunidade LGBTQIA+ e uma selecção de excelência a nível de qualidade de produção cinematográfica são ingredientes para a receita perfeita para aquilo que diremos de seguida, em jeito de conclusão.

O Queer Lisboa e o Queer Porto são festivais que respeitamos, que admiramos, com quem claramente partilhamos (para além das datas de calendário entre Queer Lisboa e BEAST) uma simpatia imensa e com quem obviamente gostaríamos de um dia colaborar (se elus nos quiserem também ;) ).

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

TV: Um dos destaques inevitáveis da programação é a retrospectiva de Karpo Godina, realizador que marcará presença no festival. As obras produzidas entre os anos 60 e 70 por esta figura incontornável da história do cinema são uma magnífica amostra da originalidade, frescura e a abordagem satírico-politizada (com uns óptimos travos musicais e de humor à mistura) que marcam o espólio deste cineasta e um pouco do seu trajecto inicial no universo cinematográfica - essa descoberta que podemos ter dos primeiros passos que o realizador deu nessa sua própria (e única) viagem.

Destaque igualmente para o programa “Post Porn - Radical Visibility”. Criado em colaboração com o Post Pxrn Film Festival Warsaw, surge como resultado de uma curadoria conjunta entre os festivais, de apresentação de uma selecção de curtas-metragens polacas de post porn. O encontro com os diretores deste festival, que estarão presentes na sessão, será uma excelente oportunidade para conhecer melhor o “post-pxrn” mas também a relevância da produção destas - e outras obras -  no contexto sócio-político e artístico particular da Polónia.

Em relação ao programa queer, não só destacamos todas as sessões — Sunny Bunny, FFi e LGBT_SLO_1984 — como também consideramos importante mencionar a Queer Talk que decorrerá durante o festival, onde será possível participar numa conversa com todos os directores desses festivais, aos quais se juntará Romas Zabarauskas, cineasta lituano reconhecido pelo seu trabalho no cinema queer, convidado do evento de indústria do BEAST.

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In the Kingdom of the Goldhorn (Janko Ravnik, 1931)

Por fim, destaque para o regresso da secção CINE-GEOGRAFIA SOCIALISTA | ÁFRICA - EUROPA DE LESTE. Este ano, com um programa em que será exibido um documentário de Traian Cocoș e Răzvan Marchiș “Viagem... longe da África” (1972-194), seguido de uma talk com Iolanda Vasile. Este programa, que conta com o apoio do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, através do projecto EDU-AM, e do Instituto Cultural Romeno, criará espaço para uma conversa que terá como ponto de partida a investigação de Iolanda Vasile sobre as ligações que a República Socialista da Roménia teve com vários países do continente africano entre os anos 1965- 1989. Será discutido como os câmbios educacionais, principalmente no cinema, mas também em outras áreas, contribuíram para as transições políticas no continente Africano colocando as bases do processo de transição pós-colonial.

O festival contará com a presença de realizadores das diversas secções, para além de convidades de indústria que estarão presentes durante esta edição.

Muito deste cinema do leste que aposta enquanto tema do evento é normalmente ignorado pela distribuição comercial nacional. Existe um preconceito para com estes filmes, ou entendimento (provavelmente pelo senso comum adquirido pelo experimentalismo de muitas destas cinematografias) como pouco acessíveis a públicos maiores.

RS: Nós reconhecemos o panorama evolutivo do consumo de cinema português. O público português está a demonstrar um interesse cada vez maior pelo cinema de nicho, incluindo as particularidades únicas e cativantes da Europa de Leste. Esta mudança na preferência do público é encorajadora e sinaliza um desejo crescente por experiências cinematográficas diversificadas, para além dos filmes comerciais mainstream.

Além disso, observamos uma tendência positiva no sector da distribuição. Os distribuidores estão a começar a reconhecer a mudança dos gostos do público português e estão mais abertos a atribuir espaço a conteúdos de nicho, incluindo filmes da Europa de Leste. Esta abordagem progressiva reflete um reconhecimento amplo do valor cultural e do significado artístico destes filmes.

Enquanto festival, esforçamo-nos ativamente para estar na vanguarda desta onda de transformação. O nosso objetivo é tornarmo-nos num ponto de encontro fundamental para os profissionais da indústria, incluindo cineastas, produtores e distribuidores, tanto de Portugal como da Europa de Leste. Acreditamos que a promoção de ligações entre estas duas regiões pode levar a oportunidades interessantes de colaboração e co-produção.

Sobre um eventual crescimento do festival, alguma vez colocou-se em cima da mesa extensões das vossas mostras? Ambições para o futuro?

TV: O festival tem realizado extensões ao longo dos anos, vendo esses momentos como forma de reforçar a presença do festival mas acima de tudo de criar a possibilidade de expansão de visibilidade de obras de cineastas. O BEAST, estabelecido, nutrido e com raízes no Porto (onde se pretende manter) já realizou mostras em espaços em Lisboa, como no Cinema City Alvalade e na Galeria Zé dos Bois (neste último caso, em colaboração com o Cineclube Aparição, com uma mostra de cinema ucraniano - o país de foco em 2021 - e os filmes vencedores da competição desse ano).

Em relação ao próprio festival, apostamos na criação de uma plataforma de networking e colaboração — East, Match, Go! —, que terá este ano a primeira edição. Um evento de Indústria que procura aproximar — e fomentar ligações — entre profissionais de Portugal (com ênfase no Porto) e profissionais da Europa Central e do Leste.

Nesse sentido de aproximação de Portugal a esta região da Europa, o festival tem realizado a curadoria de programas de cinema português. Nomeadamente, o exemplo mais recente, foi a criação de um programa de curtas-metragens queer portuguesas, que chegaram a diversos festivais da Europa Central e de Leste (como o BRNO 16, o Sunny Bunny, entre outros).

O objectivo do BEAST — como o de todos os festivais — será sempre o de crescer, mas também de amadurecer e de se fortalecer de forma consciente e atenta àquilo que o rodeia, tendo sempre presente a atenção para com a forma através da qual tal evolução poderá ser sustentável e adequada para a manutenção da qualidade e dos valores do festival. Para o futuro é possível dizer que pretendemos criar uma ligação cada vez mais forte com festivais e mostras com quem partilhamos ideais - e ideias -, num gesto de manter activa e em funcionamento a nossa perspectiva de que, através da colaboração, será possível crescermos — equilibradamente — em conjunto.

no happy ever after”, o tema desta 6ª edição, é um reflexo de uma procura por novas fórmulas, por novos destinos, por novos caminhos. É nesse percurso, de construção, de análise, de escuta e aprendizagem, em que queremos — e precisamos de — estar.

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Toda a programação poderá ser consultada aqui

Dance with my self

Hugo Gomes, 04.02.23

A liberdade de um filme é medido pelo tempo que é dado às personagens para poderem dançar sozinhas. Ou parafraseando uma das obras menores de Ken Loach ["Jimmy's Hall"] - “We need to take control of our lives again. Work for need, not for greed. And not just to survive like a dog, but to live. And to celebrate. And to dance, to sing, as free human beings.”.

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Spider-Man 3 (Sam Raimi, 2007)

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Babylon (Damien Chazelle, 2022)

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La vie d'Adèle / Blue is the Warmest Color (Abdellatif Kechiche, 2013)

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Saturday Night Fever (John Badham, 1977)

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Frances Ha (Noah Baumbach, 2012)

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Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994)

Ya no estoy aquí (Fernando Frias, 2019)

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Bergman Island (Mia Hanse-Love, 2021)

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Grigris (Mahamat-Saleh Haroun, 2013)

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L'événement / The Happening (Audrey Diwan, 2021)

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Kickboxer ( Mark DiSalle & David Worth, 1989)

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Jimmy's Hall (Ken Loach, 2014)

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Cold War (Pawel Pawlikowski, 2018)

"Somos todos o Senhor do Adeus". Um ciclo em memória de João Manuel Serra no Alvalade Cineclube

Hugo Gomes, 21.09.22

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O Alvalade Cineclube demonstra-se motivado em recuperar a cinefilia lisboeta, se não o seu espectro, e uma das bem-sucedidas tentativas foi com a iniciativa Salão Lisboa, em que foram projetadas 4 diferentes produções portuguesas em recintos próximos a antigos cinemas da capital. Porém, o trabalho para com esta memória, não tão longínqua, não para por aqui. 

Um novo ciclo surge-nos, desta vez recordando uma das figuras mais emblemáticas da “cidade cinéfila” - João Manuel Serra, ou carinhosamente O Senhor do Adeus - que nos deixou em 2010, sem antes nos mostrar como se deve combater a solidão. A arma? Filmes e tertúlias, assim como um gesto de esperança, o aceno propriamente dito, a todos que seguissem de passagem. 

E é sob essa homenagem que o Alvalade Cineclube parte, da última obra-prima de Francis Ford Coppola - “Tetro” (2009) - para outros hipotéticos “filmes prediletos”, estreados após o seu desaparecimento mas que a programação acredita na existência de suposto amor sentido por parte de João Manuel Serra se tivesse tido a oportunidade de uma “deslumbrar”. O tributo prossegue com “About Endlessness" (Roy Andersson, 2020), “In Transit” (Christian Petzold, 2018), “The Best Years” (Gabriele Muccino, 2020), Cold War” (Paweł Pawlikowski, 2018), “Thelma” (Joachim Trier, 2017)

Para o Cinematograficamente Falando …, mais uma vez, a programadora Inês Bernardo falou-nos sobre o ciclo que arranca já neste dia 22 de setembro, e sobretudo, sobre a figura homenageada em grande ecrã. 

Numa tentativa de resgatar a aura cinéfila de Lisboa, visto que a iniciativa Salão Lisboa incumbia em devolver cinema aos antigos cinemas da cidade, chegou a vez da invocação de um espírito tão querido na nossa comunidade. Quem era verdadeiramente o “Senhor do Adeus”? E o porquê da sua influência na nossa memória lisboeta?

Na verdade, o Senhor do Adeus – ou Senhor do Olá, como ele preferia ser chamado – era o João Manuel Serra, um cinéfilo luminoso com quem todos nós cruzávamos no Saldanha ou no Restelo, a dizer olá a quem passava. Ao contrário do que muitos julgavam, João Manuel Serra era oriundo de uma família abastada e foi um homem com uma vida recheada de viagens e arte. Teve o seu primeiro emprego aos 73 anos, a comentar filmes para o Canal Q e povoa ainda o imaginário de muitos que ainda passam no Saldanha e olham à volta, procurando um sinal do seu adeus. Era um cinéfilo feliz, que amava o cinema enquanto prática semanal, como quem vai ao café. E depois escrevia sobre isso. Claro que não nos lembramos disto (porque muitos não sabem) mas lembramo-nos sim da personagem que nos acenava, a todos, de sorriso genuíno, sem segundas intenções, como se a vida fosse simples. Talvez a memória venha daí, dessa invulgaridade. Terá sido o Senhor do Adeus a última grande personagem do imaginário da cidade? Temos o cinema para discutir isso. 

Este ciclo parte de um filme que aclamou [“Tetro” de Francis Ford Coppola] para se seguir numa hipotética escolha de filmes que chegaram depois da sua existência. Quais os riscos que esta seleção traz à sua memória e como procedeu esta mesma escolha? Conseguiram decifrar o gosto de João Manuel Serra através deste ciclo?

Felizmente - através do carinhoso e cuidado trabalho do Filipe Melo e do Tiago Carvalho - as opiniões do João Manuel Serra estão registadas em blog e em livro e podemos, através desses relatos, saber o que ele pensava sobre os filmes mas também sobre muitos outros assuntos. Os filmes eram um pretexto para falar também da sua vida, do que gostava e do que o emocionava. Sim, pensamos que conseguimos uma seleção interessante que o próprio gostaria. Partimos de um filme que ele viu e criticou – “Tetro” – e passamos por filmes que abordam temas que o fascinavam: a segunda guerra mundial – que ele se preocupava muito que caísse no esquecimento – a elegância que ele via nos italianos, o suspense ou terror. Claro que é sempre arriscado programar a pensar em alguém que não está, mas é um desafio, ao mesmo tempo. Era muito mais seguro mostrar apenas filmes sobre os quais ele escreveu, mas pareceu-nos redutor. É muito mais interessante perguntar: como veria João Manuel Serra estes filmes hoje (a partir do que sabemos dele)?

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Tetro (Francis Ford Coppola, 2009)

Pergunto se os seus companheiros nas “peregrinações” ao Cinema - Filipe Melo e Tiago Carvalho - auxiliaram, ou contribuíram, de alguma forma, para o ciclo?

Sim, tivemos um diálogo próximo com o Filipe e o Tiago para a criação deste ciclo. Desde logo, foram eles os grandes companheiros do João Manuel Serra aos domingos, quando entravam no Cinema Monumental e escolhiam os filmes. O importante neste ritual não seriam tanto os filmes em si mas a conversa e o convívio entre eles, que se lhes seguia.

Uma questão envolvendo o universo do “Senhor do Adeus”, e tendo em conta que o blog se encontra ainda ativo (porém, sem atividade para além da sua existência), existe alguma possibilidade de recuperação dos seus textos para memória futura? Ou quem sabe, conceber um novo “ciclo” a partir dessas crónicas?

Recuperamos os textos para este ciclo e o Filipe e o Tiago já fizeram um trabalho muito  importante na fixação destes textos em livro. 

O que este ciclo poderá trazer às novas gerações de cinéfilos, principalmente para  aqueles que foram alheios da sua presença?

Resgatar a memória do Senhor do Adeus é, precisamente, pensar nas “novas gerações de cinéfilos”. Por vezes existe a noção que os mais jovens são desinteressados e vivem no seu próprio contexto, mas a nossa experiência no cineclube diz-nos que são dos espectadores mais curiosos e sensíveis, que verdadeiramente aceitam o jogo de descobrir uma personagem que lhes é estranha. Ainda por cima este não era um cinéfilo qualquer. Não era um crítico, ou especialista, ou profissional do meio. Era uma pessoa como todos nós, que tinha a generosidade de nos acenar desde a sua solidão e história. E acenava-nos olá e não adeus. E gostava de histórias bem contadas, de suspense, da beleza e do estilo, da preservação da memória. Conhecer estes filmes pelo olhar do João Serra é uma oportunidade única para todos, nova ou velha geração. Somos todos o Senhor do Adeus.

Os Melhores Filmes de 2018, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 02.01.19

Depois de uma colheita minimamente dececionante [2017], seguimos para um lote frutado e recheado de cinema diversificado, de temáticas de difícil digestão e até estéticas que primam pelo classicismo e o progressismo. Assim sendo, 2018 foi propicio às trevas que habitam no coração dos homens, aos amores escaldantes nas diversas “juventudes” e até mesmo à Disney como imagem do novo “sonho americano”. Este foi o ano em 10 filmes ...

 

#10) Jusqu'à la Garde

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“Uma histórias de “monstros” que se confundem como figuras paternais durante uma batalha campal. A separação, a custódia e a disputa pelo prémio em forma de primogénito leva-nos a um suposto drama de contornos realistas que transforma-se, à velocidade de um estalar de dedos, num tremendo thriller psicológico. É como se The Shining (o de Kubrick e não os escritos de Stephen King) fosse transportado para a sua “pele” mais mundana. Que rica primeira longa-metragem do ator Xavier Legrand.

 

#09) ROMA

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“Um filme de detalhes e de ecrãs dentro de ecrãs (e assim sucessivamente) que persiste na vitalidade cénica com que Alfonso Cuáron deseja ser reconhecido. É um choque de classes e de géneros, que ao invés de contrair uma pobreza desencantada como muitos que anseiam filmar a precariedade, encontra no seu rigor estético uma beleza formal de quem deseja salvar estas personagens de um certo vampirismo miserabilista.”

 

#08) The Project Florida

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“Um anti-filme da Disney filmado às portas do tão omnipresente “parque encantado”, com as personagens marginalizadas por esses “autênticos” contos de fadas a obter os seus respetivos holofotes. O realizador Sean Baker parte para o naturalismo deste mesmo leque que goza da sua pitoresca paisagem de motéis e lojas XXL, um reino fantástico aos olhos das crianças que anseiam perder na Terra do Nunca para se afastarem da irresponsabilidade dos adultos. A juntar à equação, um Willem Dafoe que se camufla com este ambiente de náufragos.”

 

#07) Hereditary

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“O terror é hereditário. Está no sangue daqueles que são marcados desde a nascença e que não conseguem escapar aos desígnios do género. Ari Aster é um desses “amaldiçoados”, pelo que consegue nesta sua primeira longa-metragem executar um dos ensaios mais estetizados, sinistros e atmosféricos que este território tem para nos oferecer nos seus mais recentes anos. E não é todos os dias que evidenciamos uma Toni Collette explosiva que (literalmente) sobe as paredes.”

 

#06) Shoplifters

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“A subtileza quase melosa é a arma furtiva para que as personagens se submetam aos ditos experimentos … e o espectador também. Depois seguimos na pista de outros “lugares-comuns” do cinema de Koreeda, entre as quais a inclusão social que já se encontrava presente no seu primordial Maboroshi (1995) ou as constantes críticas ao sistema judicial e prisional nipónico visto e revisto em Air Doll (Boneca Insuflável, 2009) e The Third Murder (O Terceiro Assassinato, 2017). Elementos para racionalizar e sobretudo sentir com a sensibilidade de alguém que sobressaiu do formato reportagem e documental, evidenciando com isso o detalhe da tendência observacional de Koreeda pelo seu redor e do invisível.”

 

#05) Happy End

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“Meticulosamente, Haneke vai construído o seu ambiente, uma atmosfera de iminente catástrofe. Sentimos isso, essa faca aguçada que nos ameaça. Somente ameaça. E é então que chegamos às festas; a primeira ao som de um angelical violino e um discurso de boas-vindas pela nossa Isabelle Huppert; somos convidados a um cruzar de olhares, a um clima de suspeita, ao nascer de um "monstro", a relações proibidas secretamente vividas no ar, às conversas soltas que nos confundem mais e mais. Saímos a meio, e partimos para outro festejo. O caos já é elevado, as consequências são fatais, fazemos corar as implantações de Luis Buñuel, os burgueses "estão em maus lençóis".”

 

#04) Cold War

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“Se Ida era considerado um filme frívolo, Cold War vai além da sua designação; é a extração do calor no gélido panorama. Apaixonamo-nos por estes atores (Joanna Kulig, Tomasz Kot), amamos esta dupla, o simbolismo friccionado nesta relação, a química que nos aquece em frios planos.”

 

#03) Der Hauptmann

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“Não se trata de hora marcada com a raiz do mal, a farda não descreve o nazismo fechado a conceito implantado (mesmo que fascínio entre uniformes e alemães seja algo mais interiorizado e já citado no Cinema, a ter em conta O Último dos Homens, de F.W. Murnau). Sim, as divisas de capitão funcionam como o mais recente acordo do demónio Mefistófeles, oriundo do romance de Goethe. A sua escapatória e, ao mesmo tempo, a agendada descida aos infernos existencialistas, o animalesco da sua própria vivência.”

 

#02) Call Me By Your Name

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“Não se trata de um “somente” filme queer, mas sim de um amor de verão adjacente a um certo bucolismo, jovial e proustiano que se atenta nos desempenhos naturalistas dos seus atores (um promissor Timothée Chalamet e um sedutor Armie Hammer). Apesar de centrar nas paixonetas de um adolescente na descoberta da sua sexualidade, é um joguete maduro por parte de um realizador versátil, que por sua vez procura o seu próprio gesto autoral. Uma obra que não merece de todo ser desprezada.”

 

#01) First Reformed

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“Enquanto que Taxi Driver resumia aos grunhos e ao seu ativismo algo anárquico, esta nova chance de Paul Schrader remete-nos ao ativismo dos sábios. Impulsores divergentes, causas percorridas em iguais pisadas. É na descrença que a verdadeira fé é atingida, poderemos contar com isto num filme religioso, mas a crença não se baseia em teologias fundamentalistas, First Reformed olha para o mundo deixado por Taxi Driver, e o atualiza, refletindo-o numa dolorosa agonia. É a política, sob as agendas anti-trumpistas, fervorosamente renegando outras politizadas tarefas, como o ambientalismo a fugir dos panfletismos Al Gore (possivelmente, e em certa parte, o mais sóbrio dos filmes ecológicos).”

 

Menções honrosas: The Phantom Tread, The Other Side of the Wind, The Isle of Dogs, Girl, A Simple Favor

Depois da Guerra Fria, continua a Guerra Fria ...

Hugo Gomes, 21.05.18

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As paixões cercam os tempos negros descritos nesta “fábula” a preto-e-branco. Pawel Pawlikowski, o consagrado realizador de Ida, esse melancólico caminhar nas memórias bélicas e dos horrores em vão, vindos de um país vítima/agressor, uma fonte a ser extraída em “Cold War”. Afirmamos que permanece aqui uma espécie de legado, a ida e vinda de um filme que insere-se e confunde por entre as fatídicas recordações de tempos de amor e ódio, de um conflito visto por entre palas, porque o romance, esse amor platónico que poderia servir como salvação (assim ecoam canções de esperança), resulta num mártir, uma silenciosa perda da sua inocência vendida.

Esta Polónia não se fica pela reconstituição, é um país imaginário que se transforma por entre épocas, e se distancia dos seus protagonistas, porém, sob um falso efeito de segurança (até porque os demónios nunca abandonam as paixões a abater). Nessa mesma nação enfatizada por experimentos sociopolíticos, nasce uma improvável aliança, recolhida através de um ato propagandista de uma identidade em vias de extinção. “Cold War'' começa com um dos desses experimentos, a música a servir mais que um consolo, a perpetuar a História enraizada por entre melodias.

Uma equipa contratada pelo Estado lança-se nessa coletânea de sons e vozes angelicais, uma inicial datação das tradições remotas, as réstias de um país “desaparecido”, para se comprometer numa união de esforços na balada de uma só ideia. Esse socialismo imposto servirá como a aresta picotada desse país que vos falo, e, mais, a expressão antagónica que ameaça o romance prescrito nesta experiência. Assim, nasce esse contexto romântico-dramático que seguiremos ano após ano. A distância, a aproximação, o encontro, a trégua e o choque. O mundo não os quer harmoniosos, por outras evidências, o mundo não os quer juntos.

Entendemos os toques shakespearianos, aliás a tragédia acompanha o percurso sem discrição. Pawlikowski apresenta-nos um amor “impossível” (nada de novo!) mas é na sua inserção que encontramos uma memória. Como a invocada em Ida, em “Cold War” somos remetidos à Guerra nunca vista, porque as atenções estão metaforizadas no bélico dos sentidos. O realizador consegue centrar o classicismo da sua formação e instalá-la nesta conjugação de elementos. Há amor, não através dos elos evidentes das personagens, mas por estas personagens. Pawlikowski deixa claro esse sentimento, até aos últimos minutos, em que desvia o olhar de destinos funestos até à chegada dos créditos finais.

Se “Ida” era considerado um filme frívolo, “Cold War” vai além da sua designação; é a extração do calor no gélido panorama. Apaixonamo-nos por estes atores (Joanna Kulig, Tomasz Kot), amamos esta dupla, o simbolismo friccionado nesta relação, a química que nos aquece em frios planos. Há muito tempo que não se via um romance platónico desta dimensão no grande ecrã, assim como não se presenciava uma dança tão orgânica desde que Luchino Visconti respirava. Sim, é um filme com o seu quê de saudosismo pelo já feito, mas bem empregue neste retrato romantizado de uma guerra sem fim. Até porque finais felizes não existem. Estamos simplesmente “condenamos” a não vivê-los.

“Fiel ao espírito independente”: as novidades do 14º Indielisboa, segundo Mafalda Melo

Hugo Gomes, 02.05.17

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Mais um ano, mais uma edição do Indielisboa. Para sermos mais exatos, o festival lisboeta com especial dedicação ao cinema alternativo e independente vai para o 14º ano de existência. A melhor forma de celebrá-lo é apresentar-nos outra rica seleção, desde as habituais retrospectivas, novidades, experiências e uma das maiores competições de filmes nacionais da História do evento. São seis longas-metragens, desde nomes prontos para saírem do anonimato até o regresso de veteranos, tais como Jorge Cramez, que segundo Mafalda Melo, uma das programadoras do festival, “é uma infelicidade não filmar mais”.

 

Quem disse que não havia Cinema Português?

Foi sobre esse signo lusitano que arrancou a nossa conversa com a programadora, que afirma, devidamente, que é sob a língua portuguesa que a 14ª edição terá o seu pontapé de saída. Sim, “Colo”, o novo filme de Teresa Villaverde, presente na competição do passado Festival de Berlim, terá a honra de abrir mais um certame, criando um paralelismo com a tão rica Competição Nacional: “É um ano feliz, aquele que sempre poderemos abrir com um filme português

Mas voltando ao ponto de Cramez (“Amor, Amor”), o retorno do realizador ao formato da longa após dez anos de “Capacete Dourado”,  é “uma confirmação do seu talento”, que se assume como forte candidato da Competição Nacional e Internacional, no qual também figura. E isto sem  desprezat o potencial dos outros cinco candidatos ao Prémio de Melhor Filme Português: “Coração Negro”, de Rosa Coutinho Cabral, “uma ficção dura, de certa forma ingénua e verdadeira”, o regresso de André Valentim Almeida ao trabalho “sob a forma de filme ensaio” em “Dia 32”, a aventura de Miguel Clara Vasconcelos na ficção em Encontro Silencioso, que remete-nos ao delicado tema das praxes universitárias, “Fade into Nothing” de Pedro Maia, “um excelente road movie” protagonizado por The Legendary Tiger Man, e, por fim, “Luz Obscura”, onde Susana de Sousa Dias persiste no “registo documental em tempos da PIDE”.

Em relação à competição de curtas-metragens, Mafalda Melo destaca algumas experiências neste formato, entre as quais o nosso “Urso de Ouro”, “Cidade Pequena”, de Diogo Costa Amarante, assim como Salomé Lamas (“Ubi Sunt”), José Filipe Costa (“O Caso J”), Leonor Noivo (“Tudo O que Imagino”) e André Gil Mata (“Num Globo de Neve”). Ou seja, apesar de serem filmes de “minutos”, nada impede que sejam “impróprios” para grandes nomes da nossa cinematografia e “uma seleção bastante consistente”.

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Tudo o que Imagino (Leonor Noivo, 2017)

 

A Emancipação dos Heróis

Para Mafalda Melo, o que une os dois Heróis Independentes deste ano é o seu espírito marginal: “Quando falamos de Cineastas Independentes, quer do Paul Vecchiali como do Jem Cohen, não pelas mesmas razões, nem pelas opostas, são dois cineastas verdadeiramente independentes.

Jem Cohen é provavelmente o mais fundamentalista a receber este título de “Herói”. O nova-iorquino “quando começou a filmar, há cerca de 30 anos, precisou só da sua câmara e ter ideias para fazer filmes. Foi assim que ele trabalhou e continua a trabalhar.” Uma carreira diversificada, que vai desde o documental à música, ao ensaio até à pura experiência que não limita a sua cinematografia, com orçamentos “baixíssimos” até a micro-equipas, um verdadeiro “sentido de independência”. O Indielisboa irá dedicar-lhe um extenso ciclo, incluindo o seu mais recente filme, “Birth of a Nation”, uma visita a Washington no dia da tomada de posse de Donald Trump: “um filme onde encontramos aquilo que sempre encontrámos na sua filmografia, uma ligação emocional às coisas, aos espaços e aos sítios. Um gesto político, silencioso, mas igualmente agressivo”.

No caso de Vecchiali, “a sua independência garantiu-lhe um lugar à margem das manifestações artísticas da sua época.”. Longe da nouvelle vague, por exemplo, o outro Herói foi ator, realizador, produtor, um homem voluntariamente marginalizado dos eventuais contextos cinematográficos que foram, no entanto, surgindo. Como produtor, Vecchiali mantinha-se fiel ao “espírito do realizador e da obra”. Tal fidelidade resultou na sua produtora, a Diagonale, onde os realizadores usufruíram da mais intensa liberdade criativa, tendo apenas como condição respeitar o “orçamento imposto”.

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Paul Vecchialli

 

Uma Família Cinematográfica

Os métodos de liberdade concebidos por Paul Vecchiali fortaleceram a ideia de “família cinematográfica”, um círculo partilhado pelo Indielisboa que aposta sobretudo na crescente carreira de muitos dos seus cineastas. Melo sublinhou com curiosidade, o regresso constante de muitos autores premiados, como por exemplo das secções de curtas, ao festival com novos projetos entre mãos. É a família, esse revisitar, que alimenta a ideia de que um festival é sobretudo mais que uma mera mostra de filmes, um circuito de criadores e suas criações.

Nesse sentido, o 14º Indielisboa conta com três realizadores anteriormente premiados nas secções de curtas, “com filmes seguríssimos que só apenas confirmam os seus já evidenciados talentos”. Quanto a outros convidados, Mafalda Melo destaca a presença dos dois Heróis Independentes, dos realizadores das duas grandes Competições (Nacional e Internacional) que terão todo o agrado de apresentar as suas respectivas obras e ainda Vitaly Mansky, um dos documentaristas russos mais aclamados.

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Viejo Calavera (Kiro Russo, 2016)

 

Mantendo-se Internacionalmente Competitivos

São 12 primeiras, segundas e terceiras obras que concorrerão pelo cobiçado prémio. Uma seleção rica, quer em temas, nacionalidades e estilos. A programadora refere novamente Cramez, um português a merecer destaque numa Competição que esteve várias edições fora do alcance do nosso cinema, e ainda as provas de Kiro Russo (“Viejo Calavera”), Song Chuan (“Ciao Ciao”), Eduardo Williams (“El Auge Del Humano”) e a produção brasileira “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans. “Todos estes filmes são descobertas e têm em conta”, acrescentou.

A destacar ainda a união de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, dois investigadores da Sensory Ethnography Lab, de Harvard, que conduziram em 2013 o grande vencedor do Indielisboa, “Leviathan”, agora remexendo no onirismo do letrista nova-iorquino Dion McGregor.

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Free Birds (Ben Wheatley, 2016)

 

O Inferno continua no Indie

Mafalda Melo foi desafiada a falar da crescente secção Boca do Inferno, dedicado ao cinema de género e de temáticas ainda mais alternativas, sem mencionar a sensação de “Grave” (“Raw”), o filme de canibalismo de Julia Ducournau, que vai mantendo um registo de desmaios, vómitos e saídas repentinas por parte dos espectadores, por onde passou.

Respondendo ao desafio, a programadora falou, incontornavelmente, de “Free Fire”, o mais recente trabalho de Ben Wheatley (“Kill List”, “Sightseers”), “uma espécie de Cães Danados da nova geração”. Brie Larson, Cillian Murphy e Armie Hammer são os protagonistas. Mas foi em “I Am Not a Serial Killer” que se sentiu um maior fascínio: “Um pequeno grande filme sobre um jovem de tendências homicidas que descobre que Christopher Lloyd, o Doc do “Regresso ao Futuro”, é um verdadeiro monstro. Uma obra geek, mas de um humor negro inacreditável.

O russo “Zoology”, “outro pequeno grande filme, sobre uma mulher que descobre que lhe está a crescer uma cauda, não colocará ninguém desapontado”. Estas entre outras “experiências bastante distintas” que alimentaram esta cada vez mais procurada secção.

 

Director’s Cut: entre Zulawski e Herzog

Dois eventos esperados para cinéfilos são a exibição do filme “maldito” de Andrzej Zulawski,On The Silver Globe”, e “Fitzcarraldo”, de Werner Herzog. Em relação a Zulawski, “estamos muito satisfeitos por fazer parceria com a White Noise, como resultado iremos exibir uma recente cópia restaurada” de um filme incompleto devido à decisão da época do Ministério da Cultura polaco de vir a comprometer questões politicas e morais.

Quanto a “Fitzcarraldo”, a sua projeção foi motivada por outra projeção, a da curta de Spiros Stathoupoulos, “Killing Klaus Kinski”, que durante a rodagem do tão megalómano filme, propôs a Herzog o assassinato do ator Kinski de forma a restabelecer a paz.    

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On The Silver Globe (Andrzej Zulawski, 1988)

 

Redescobrir o Português subestimado

Ainda no Director 's Cut, está agendado um encontro com Manuel Guimarães, o cineasta que tentou incutir o neorrealismo no cardápio cinematográfico português, mas que hoje tornou-se numa figura esquecida e constantemente subestimada. O Indielisboa passará O Crime de Aldeia Velha, uma história sobre inquisições e superstições, que dialogará com o filme de Leonor Areal, “Nasci com a Trovoada”, um olhar atento à figura e os motivos que o levarão a tão triste destino – a falta de reconhecimento.

 

Indiemusic ao Luar!

Uma das secções mais habituais do Indielisboa terá um novo fôlego. O Indiemusic abrirá em paralelo com a reabertura do Cineteatro Capitólio/Teatro Raul Solnado. Serão sessões ao ar livre com muito cinema e música como cocktail. A mostra terá início no dia 5, com a projeção de “Tony Conrad: Completely in the Present”, o documentário que olha o legado incontornável do “padrinho” dos Velvet Underground.

 

Um festival a crescer!

Ao longo de 14 anos, o Indielisboa tem se tornado um festival cada vez mais “acarinhado por parte do público”, o que corresponde a mais espectadores, mais seções. Mas para Mafalda Melo, o “Indie não se fechou, mas sim expandiu fronteiras e ao mesmo tempo manteve-se fiel ao seu espírito independente. Conseguimos ao longo destes anos uma mostra esperada dentro deste circuito, uma plataforma para a descoberta. E é isso que temos mantido, esta evolução gradual ao longo dos anos, o dever de apresentar cineastas e filmes que as pessoas desconhecem.”

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Tony Conrad: Completely in the Present (Tyler Hubby, 2016)

 

O Indielisboa acontecerá no Cinema São Jorge, Cinema Ideal, Cinemateca Portuguesa Museu do Cinema, Cineteatro Capitólio e a Culturgest, a partir do dia 3, prolongando-se até ao dia 14 de maio.

Anne Fontaine: "As violações são ainda consideradas uma arma de guerra"

Hugo Gomes, 06.11.16

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Anne Fontaine na rodagem de "les Innocentes" (2016)

As atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial geram, por si, mil e umas histórias de horrores, intrigas passadas que poderão reflectir no nosso presente e futuro. Anne Fontaine, uma das mais populares realizadoras francesas, falou-nos do seu mais recente olhar a esse período de medo, em particular a uma história que envolve freiras, violações e tropas invasoras, um episódio ocorrido em pleno século XX, que mais parece ter saído das Idade das Trevas, “Les Innocentes”.

A realizadora de êxitos como “Coco Avant Chanel” e o “Mon pire cauchemar” conversou com o Cinematograficamente Falando … sobre os ecos desta história passada no presente que vivemos, sobre a sua carreira e o gosto de filmar sem desfecho à vista.

Como descobriu ou de onde surgiu esta história?

É uma história baseada em factos reais, sobre uma médica francesa que no seu diário relatou a situação vivida por estas freiras polacas, restringidas ao seu convento, grávidas, frutos de violações por parte das tropas soviéticas. Esta mesma história chegou a mim através de alguns produtores franceses que encontraram-na e pensaram logo em mim para transcrevê-la para o grande ecrã. Depois de ter aceitado, arranquei numa investigação histórica, aprofundei o tema desta história, uma aventura humana forte, intensa, sobre a fé, a esperança e a maternidade. Temas complexos que me fizeram crer ser capaz de transformá-lo num filme dramaticamente forte e emocional.

Encontramos em "Les Innocentes", um breve resumo às “agressões” vividas pela Polónia durante a Segunda Guerra Mundial, visto que foi dos países mais fustigados desse período?

A Polónia foi completamente invadida e devastada durante a Guerra. Foi um país esquecido, este episódio de violações com freiras aconteceu em mais do que uma região na Polónia, muitas delas sucederam durante as invasões alemãs, e aí, muitas foram mortas. Foram ocorrências que muita da nova geração polaca não acreditava que tivesse acontecido, e alarmantemente não há muito tempo. Este tipo de situações ainda hoje acontece, graças ao fanatismo que se vive em muitos países, muitos deles vivendo as suas próprias guerras. As violações são ainda consideradas uma arma de guerra muito usada nestes mesmos países.

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"Les Innocentes" (2016)

Ou seja, realizou esta história a pensar na actualidade?

De que maneira podemos comportar, falar, se acreditamos em Deus ou não. Como se pode fazer uma ação comuna numa situação de “bullying” como esta? Quando fui ao Vaticano, mostrar o filme, uma pessoa muito próxima do Papa dirigiu-me considerando que este era um filme aterrador para a Igreja. Ver este tipo de situações, que aconteceram, no ecrã e ter o conhecimento de que este tipo de violência encontra-se presente nos nossos dias. Mais de milhares de monges e freiras estavam em choque, não só porque o filme fala deles, obviamente, mas por esta ocorrência ter marcado espaço na Polónia e ainda hoje existir em diferentes regiões. Eles estavam a chorar no final do visionamento.

Mas apesar disso, este é um filme que de certa forma rebela contra as estruturas hierárquicas religiosas.

Foi a transgressão de uma Ordem que permitiu a ajuda neste filme, sim. Num convento como aquele, não se poderia fazer algo sem primeiro consultar a Madre Superior. Felizmente, esta freira sob esta arriscada decisão vai mudar o destino das outras devotas através de um acto de desobediência. “Les Innocentes” é também um filme sobre a transgressão positiva, ao viver ou deparar com situações como esta, deve-se sobretudo desobedecer, e agir da forma humanamente mais correta.

Tendo em conta que a Festa do Cinema Francês dedicou-lhe este ano uma retrospectiva da sua carreira, tal evento não a faz pensar sobre a sua obra e vida profissional?

Sinceramente, não penso nada em relação a retrospectivas. Neste momento, só me interessa o meu novo filme. Até porque, estava a terminar há uma semana atrás o meu mais recente filme, o qual estava a rodar aqui, em Portugal. Por isso, não tenho a tendência de pensar muito na minha carreira. Também tive uma retrospectiva da minha obra no Vietname, o que foi estranho para mim, porque na altura era a única mulher realizadora naquele país. Agora, uma retrospectiva em Portugal … é engraçado, mas não sei o que quer dizer!

Trabalho com a fragilidade, apesar da minha experiência, não trabalho pelo seguro. Procuro constantemente novas histórias, novos temas com que possa transportá-los para o grande ecrã. Muitos vem ter comigo e confrontam-me “mas tu já tens mais de 15 filmes e em tão pouco tempo“. Para fazer um filme, como deve calcular, ocupa muito tempo. Por isso, para mim, se o significado destas retrospectivas é dizerem-me que tenho que pensar, ou repensar, na minha carreira, simplesmente não acredito. Eu não funciono assim, nem é isso que sinto.

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Anne Fontaine na rodagem de "les Innocentes" (2016)

Começou a sua carreira como atriz, mas afinal de onde surgiu essa paixão de “passar” para o outro lado da câmara? Ser a realizadora que é hoje?

Não fui uma boa atriz, por isso não fiquei muito tempo nas atuações [risos]. Julgo que é a experiência de viver através da mente de outra pessoa, da face de outra pessoa, sentimentos que não podemos expressar nós próprios. É aproveitar a nossa imaginação, mais do que na vida real, que por vezes não é tão intensa assim. A realização é como tentar capturar e trabalhar a alma humana, o mistério dos Homens, o que escondem, o que está por detrás. É algo interessante e antropológico também, trabalhar com as complexidades humanas no grande ecrã. Estas mesmas não “vivem” num papel, por isso cabe a nós, realizadores, dar-lhes vida. São estes os motivos que me fazem ligar a esta, o qual não considero um mero trabalho, mas sim, maneira de viver.

A sua carreira é variada em filmes e géneros. Como é que escolhe o próximo género a trabalhar?

Sou instintiva, eu faço um filme contra o meu anterior, ou seja, passo para um verdadeiramente negro e depois vou trabalhar num filme mais “light“. Obviamente, que escolho cuidadosamente os meus filmes, tento comprometer-me a uma ambiguidade sexual de pessoas que estão perante situações ou sentimentos que não conseguem controlar. O que gosto mesmo é de nunca fazer o mesmo filme ou estilo que já tivesse experimentado. Gosto de descobrir diferentes formas de como fazer um filme. Quando vemos o “Coco Chanel” ou “Adore”, apercebemos de interligações entre as obras, estão todos conectados, principalmente na maneira como eu trato as personagens. Mas claro, “Les Innocentes” é uma obra bastante distante de “Adore”, por exemplo, mas são todas histórias acerca de mulheres.

Em relação a esse novo filme que terminou de rodar em Portugal. O que pode dizer sobre ele?

O meu novo filme intitula-se de “Marvin”, uma semi-biografia que acompanhará um pequeno rapaz dos seus 12 aos 24, oriunda de uma família xenófoba e racista, que reinventa a sua vida de forma radical. A história deste rapaz, uma personagem moderna, termina em Portugal [risos].