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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Daniele Luchetti: "cresci com um cinema em que era preciso discutir para completar a experiência."

Hugo Gomes, 16.03.25

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Daniele Luchetti retoma as páginas de Starnone e, através de “Confidenza”, resolve tratar o espectador não como passageiro, mas como cúmplice de uma estratégia de suspense, hoje quase obsoleta pela fome desvairada do público por respostas exactas. Por isso mesmo, encontra-se nessa sugestão a sua ponta de inovação. Thriller que revolve um casal que, para manter a confiança mútua, decide segredar o seu mais escabroso segredo. O resultado é um constante jogo de bluff e suspeita, num clima adensado pela banda sonora de Thom Yorke [Radiohead] — e, dessa feita, um sucesso de bilheteira em solo italiano. Por cá, antes da sua revelação em Roterdão de 2024, fechou a 17ª Festa do Cinema Italiano e, quase um ano depois, chega às salas com um desafio aos espectadores portugueses: estarão aptos a sentir uma narrativa, ao invés de apenas conhecê-la?

O Cinematograficamente Falando … trocou umas breves palavras com o realizador sobre os pontos fulcrais desta sua obra, com o ator Elio Germano ao leme deste vertigo.

O que o fascinou neste livro de Domenico Starnone para proceder à sua adaptação?

O romance de Starnone atraiu-me muito por duas razões: uma é o conteúdo existencial, ou seja, a representação de um “homem assustado”, podemos definir assim, e a segunda, por outro lado, foi a proposta de invenção no que requer construir toda a narração em torno de um dito e no não-dito. Foram elementos que depois tive de transpor e transformar num filme. Evidentemente, que não tinha a ferramenta da escrita para poder entrar nos pensamentos da personagem, por isso tive de encontrar uma forma de construir essa tensão, de criar um interesse cinematográfico e igualmente libertar o filme de uma quotidianidade da escrita que era interessante em papel, mas que poderia não funcionar numa transposição direta para o cinema. Desta forma tive que encontrar um estilo, uma chave, e o encontrei sob o registo de thriller. Com isto tudo, devo garantir que o filme e o livro se assemelham pouco.

Mas é a terceira vez que adapta um livro deste autor, recordo “La Scuola” (1995) e “Lacci” (2020). O que tem este escritor de especial que o faz querer adaptar as suas histórias?

Certamente, sempre que leio um livro dele, parece-me que construiu um pedaço da minha biografia. Evidentemente, temos traços de personalidade em comum, uma formação cultural semelhante, mesmo que ele tenha vinte anos a mais do que eu. No entanto, há algo mais profundo, que são os grandes temas das nossas gerações, e, por isso, tenho a sensação que ele me poupa o trabalho de investigar a mim mesmo. Ao investigar a si próprio, no fundo, estou a fazê-lo sobre mim.

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Daniele Luchetti

No filme, nem no livro existe essa revelação do segredo oculto. Não desejo, como muitos jornalistas o fizeram em variadas entrevistas, questionar o que realmente se tratava esse segredo guardado a sete chaves, mas se, durante o processo de escrita e de rodagem deste filme, havia uma ideia, sugerida que fosse, do que seria, e assim construir um filme envolto dessa ideia?

Sim, digamos que passei um ano e meio de escrita em torno dessa questão. A verdade é que foi Francesco Piccolo [co-argumentista] quem me fez manter-me firme na ideia de ser fiel ao conceito do livro, que é o mesmo do filme – criar esse buraco negro. É claro que coloquei algo de meu dentro disso. Por exemplo, não revelei certas coisas aos atores, ao invés disso pedi-lhes que cada um encontrasse, por si só, um ponto de vergonha, um ponto de escândalo no presente. Acredito que eu e os atores estávamos envolvidos nesse elemento do segredo, mas cada um tinha algo diferente em mente.

Porque, na verdade, os atores gostam de fazer um filme sobre ambiguidade, mas querem certezas para poder trabalhar. Querem saber: "O que estou a dizer? O que estou a pensar? O que estou a comunicar ao outro?" Foi aí que pedi a cada um que trouxesse o seu próprio segredo. Não queria um filme que desse um significado fechado, mas um filme que produzisse significado. Não um filme com uma mensagem única, mas um que gerasse possíveis mensagens. Como se fosse um objeto, uma máquina que, dependendo de como a giramos, produz um som ou outro.

Confesso que quando via o seu filme, e não conhecendo o romance original, desejava no meu íntimo que o segredo não fosse revelado, e assim concretizou-se a fantasia. Interpreto que essa vontade de permanecer oculta a confissão serve quase de forma combativa à audiência atual, aquela habituada a plot twists, ao tudo explicado, e, por sua vez, às produções que alimentam esse conformismo. “Confidenza” é a preservação do bom cinema sem resposta?

Estou absolutamente de acordo consigo. O cinema americano e a televisão comercial acostumaram-nos sempre a fechar todas as pontas, como se o público precisasse de alguém que o pegasse pela mão e o ajudasse a chegar a uma conclusão. Mas cresci com um cinema em que, depois do filme, era preciso discutir para completar a experiência.

E há outro elemento: ao longo da minha vida, vi inúmeros filmes em que se anunciava uma grande revelação. Adorava esperar por essa revelação, mas detestava ouvi-la, porque nunca estava à altura das expectativas, por isso, tentei encontrar um modo de eliminar esse problema.

E como conjuga a banda sonora de Thom Yorke na atmosfera do seu filme?

Quando ele leu o guião, revelou-me que sentiu um desconforto durante em toda a sua leitura, como se em cada relação houvesse algo errado, em cada cena de diálogo houvesse algo profundamente desajustado, desequilibrado. Então, fez a sonoridade de forma "errada" para o filme, para evitar que o público se sentisse num estado contínuo de desequilíbrio. E foi por isso que lhe pedi principalmente para trabalhar nos subtextos, na tensão, nas ‘coisas não ditas’, mas de forma sistemática. Sim, a comunicação é que seja vocacional.

Há um desconforto subliminar ao longo deste filme e do protagonista, principalmente na sua relação, enquanto professor de uma aluna, que mais tarde será um casal. Refiro isto porque encontrei inúmeras entrevistas no âmbito deste filme, em que se falou muito de masculinidade tóxica e feminicídio. Perante essas questões que lhe lançaram, pergunto se pensou nestes temas enquanto fazia este filme?

Tenho uma visão, obviamente, democrática, de esquerda, progressista, etc. Porém, também é verdade que essa redefinição da relação homem-mulher não é tão fácil quanto se pensa. Porque, deixando de lado os episódios extremos, como a violência, etc. – essas são reações criminosas, ações criminosas – o problema está exatamente no quotidiano. Ou seja, o problema no quotidiano é para quem vive numa situação democrática, num casal que deveria ser libertado, mas que, pessoalmente, não consegue libertar-se de certos comportamentos automáticos.

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Por exemplo, não aceitar a igualdade num casal, não aceitar a inversão de papéis, não aceitá-la psicologicamente, não nos atos práticos. A inversão a ser feita é psicológica, psíquica, e isso é complicado, porque temos centenas, senão milhares, de anos de literatura, de construção do imaginário, de construção de arquétipos, de construção de... provavelmente das nossas conexões neurológicas, que são culturais, mas que também se tornaram naturais. Inverter tudo isso de uma só vez não é nada fácil.

Desde que “Mio fratello è figlio unico” (2007) estreou, os seus filmes sempre chegaram aos cinemas do nosso país, e posso garantir que existe uma certa cinefilia bastante fascinada pelo seu cinema. Contudo, na altura de fazer uma retrospetiva do cinema italiano atual, sinto que Luchetti é deixado um pouco de lado dos holofotes, e talvez associe isso ao próprio estado do cinema italiano. Portanto lhe pergunto, como vê a indústria atual e como acha que a indústria italiana o vê a si?

Sou exatamente como o resto da indústria. Estamos desorientados porque é um momento de transição bastante importante. Grande parte dos filmes que antigamente seriam adequados para o cinema, hoje também o são para as plataformas, e isso obriga-nos a mudar algo. Muitos dos meus colegas, os da minha idade, entram e saem, fazem um filme para o cinema, um filme para as plataformas, uma série de televisão. E nós ainda estamos a tentar entender esse vaivém, e sobretudo essas mudanças de produção.

Acredito que a narrativa clássica, que antes era feita para o cinema, hoje pode ser feita com bastante satisfação para as plataformas, enquanto no cinema deve haver espaço para algum tipo de experimentação. Devemos reservar para a sala de cinema não o produto clássico, mas o produto de ponta, aquele que busca inovar. Essa é a minha ideia, e a minha tentativa de cinema de hoje em dia.

"Boas meninas" querem-se puras ... ou endiabradas? Sexualidades em jogo com coro associado.

Hugo Gomes, 08.03.25

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Depois da animação “Granny's Sexual Life” (que por cá estreou no BEAST), a realizadora Urška Djukić atravessa outras sexualidades, nesta demanda encobertas e prontamente reveladas tendo como antagonista a disciplina imposta num grupo coral de pré-adolescentes - "Little Trouble Girls" (co-produção entre a Eslovénia, Croácia, Itália e Sérvia). 

No seio destas meninas em revelações hormonais, seguimos atentamente Lucia (Jara Sofija Ostan), que com os seus 16 anos, em comparação com as suas colegas, parece-se atrasar no seu desenvolvimento. Contudo, no “campo de férias”, onde o coro e o treino prescrevem dia-a-dia, encanta-se pelos desejos que espontaneamente lhe surgem, seja através de um trolha de tronco nu, seja pela sua amiga de peitos mais arrebitados que a delícia com certas e determinadas tentações. Pormenor importante nesta sua jornada coming-to-age é o cenário de um convento de freiras cuja madre superior, perante a sua experiência devota a Deus, a tenta encaminhar para um outro trilho. Na consciência de Anjo e Diabo, Lucia terá que escolher entre a cedência aos quentes delírios ou à educação repressiva obtida até então. 

Sexo como emancipação, identidade e até insurreição de um sistema fabricado, Djukić faz destas “meninas de coro” uma representação hiperbolica da sociedade ultra-sexualizada em contraste com outra ultra-puritanista, um ying yang sem equilibrios, ou até um “8 ao 80” em bom português, sem negociações. Mas a grande proeza de “Little Troubled Girls” é a capacidade de repescar perante momentos proustianos, uma bandeja de sensorialidades, não é só o visto que cultiva  a mente de Lucia, é também os cheiros, o toque, e, hereticamente, as imagens-sacra, recordando o igual fascínio fascínio decretado por João Pedro Rodrigues durante o “Ornitólogo”, pontuando a sua detida imagética sexual, por vezes enxuta e opressiva, mas totalmente sugerida a outros territórios carnais. A dubiedade com que a realizadora embrulha esta adolescência vivaz é também ela uma arma sem evidentes posicionamentos. 

Um filme dedicado e delicado, sem ser-se demasiado arrojado, sem ser-se demasiado introvertido, na medida certa.  

Filme visualizado no âmbito da secção Perspectives da Berlinale 2025

Irmãos, projectos a meias ...

Hugo Gomes, 01.03.25

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Auguste e Louis Lumière, os pais do cinematografo

- La Sortie de l'usine Lumière à Lyon (1895)

- L'arrivée d'un train à La Ciotat (1896)

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Jean-Marie e Arnaud Larrieu, realizadores

- Tralala (2021)

- Roman de Jim (2024)

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David e Nathan Zellner, realizadores

- Damsel (2018)

- Sasquatch Sunset (2024)

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Runje, Runme e Runde Shaw, produtores de Hong Kong, fundadores do Shaw Bros

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Harry, Albert, Sam e Jack Warner, fundadores da Warner Bros

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Josh e Benny Safdie, realizadores

- Good Time (2017)

- Uncut Gems (2019)

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Jen e Sylvia Soska, realizadoras

- American Mary (2012)

- Rabid (2019)

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Ethan e Joel Coen, realizador e argumentistas

- True Grit (2010)

- Inside Llewyn Davis (2013)

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Anthony e Joe Russo, produtores e realizadores

- Avengers: Endgame (2019)

- The Gray Man (2022)

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Jean-Pierre e Luc Dardenne, realizadores, uns dos bastiões do cinema realista francês

- Rosetta (1999)

- L'enfant (2005)

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Vittorio e Paolo Taviani, realizadores

- Padre Padrone (1977)

- Cesare deve morire (2012)

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Oxide e Danny Pang, realizadores e editores

- The Eye (2002)

- Re-cycle (2006)

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Tony e Ridley Scott, realizadores e produtores

- Produtores de "The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford" (Andrew Dominik, 2007)

- Produtores de "Stoker" (Chan-wook Park, 2013)

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Mário e Pedro Patrocínio, realizadores, diretores de fotografia e fundadores da produtora Bros

- Complexo - Univeso Paralelo (2011)

- I Love Kuduro (2014)

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Lina e Maira Fridman, realizadoras e produtoras

- Calendário (2020)

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Lana e Lilly Wachowski, produtoras e realizadoras

- The Matrix (1999)

- Speed Racer (2008)

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Paul e Chris Weitz, realizadores

- Down to Earth (2001)

- About a Boy (2002)

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Bobby e Peter Farrelly, realizadores e argumentistas

- There’s Something About Mary (1998)

- Me, Myself & Irene (2000)

Corpo de Celeste e sem Alma de Sorrentino

Hugo Gomes, 20.02.25

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O que gosta numa mulher? 

As costas, o resto é pornografia

Seguindo as suas artimanhas visio-sonoras, Paolo Sorrentino mapeia o corpo escultural de Celeste Dalla Porta como se fosse a geografia de uma cidade — precisamente a sua cidade-berço, à beira-mar. O mar, esse, inevitável primeiro contacto com a vida e também com a morte, condensando-se na tragédia desta jovem mulher, de frases prontas, mas cujos seus silêncios a deter uma outra dimensão.

Parthenope, nome que partilha com o antigo batismo de Nápoles, é um símbolo desse povo, sobre o qual recai a incumbência de carregar uma tristeza entranhada e corrosiva — um quê de existencialismo, outro de bovarismo, sem certezas absolutas, talvez na busca de um tempo perdido. Aquele em que a sua carruagem, oferenda de um oligarca que a "moça" apadrinhou, representava o seu idealizado mundo, luminoso e, sobretudo, belo. A beleza — a sua arte, a sua estratégia, o seu mistério, a sua tão proclamada "grande beleza" — numa tentativa de “matar dois coelhos numa cajadada só”: a demanda pelo que a vida ainda guarda a sete chaves e a réplica estética com que Sorrentino cita e recita o seu próprio êxito.

A "pilhagem", diria Pedro Mexia sempre que tivesse oportunidade de destilar o seu ódio sorrentiniano, muitos o seguirão nesse fel, sem dúvida, mas aqui não há saque aos tesouros alheios, apenas a exibição das velhas pratas da casa. Sorrentino conhece a lição de cor: os tons fellinianos, o circo montado, a alienação burguesa levada ao extremo. Não desbrava caminho nem sobe um degrau, apenas recolhe os restos da juventude de que tanto se queixa ter perdido.

Nápoles, sim, o canto onde Celeste "Diva" Portadiva ou divina, como quiserem — se entrega ao mistério, à fantasia e, sobretudo, ao líbido implantado nos homens ressabiados. Um simples toque traz consequências — a mão de Deus ou a fatalidade da ardência que desperta nos outros. E é dessa pulsão que nasce um enredo desfigurado, desorientado, cansado no seu misticismo pasoliniano de terceira rodagem.

Sorrentino é capaz de notas mais altas. Fala aqui um dos poucos defensores de “La Grande Bellezza" neste meio, até porque de Fellini se conhece e se vê retratado num distanciamento possível, mas em “Parthenope”, mesmo que por vias de sketches, concentra-se numa exatidão identificável: "Para onde vão as conversas das noites de bebedeira?", chora Gary Oldman, e choramos também nós ao perceber que o tempo não retrocede, não se entrega de mansinho, não nos estende a mão para uma segunda oportunidade — seja qual for — e que o ideal que projetamos de nós mesmos nunca se cumpre.

Cairá quem quiser. Talvez porque Sorrentino seja um homem de desejos masculinos e frustrações à medida, e porque aqueles que partilham essas inquietações se reveem nas suas dores, mesmo quando debitadas por uma protagonista — donna com título inquirido e olhos tristes a condizer. Um exibicionista ensaio com vida lá dentro — a vida maquilhada de Sorrentino —, mesmo que o velcro seja de uma pobreza franciscana perante a aristocracia das suas imagens. E já agora, Nápoles… viva Nápoles!

Os Melhores Filmes de 2024, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 23.12.24

… era uma vez, um episódio verídico …

Cheguei ao trabalho e, durante o render do turno, notei que o meu colega manejava no computador da empresa um ficheiro Excel enquanto, na sua secretária, ecoava o som de diálogos em português do Brasil entrelaçados com motores enfurecidos de carros de Fórmula 1. "Isso é a nova série do Ayrton Senna?", perguntei. "É sim!", a naturalidade da resposta me levou à seguinte e precisa pergunta, "e porque é que não a vês?". "Hã, eu já conheço a história, não é preciso vê-la." A resposta fez-me barafustar sobre o sucedido. As imagens tornaram-se banais, sem significado, portanto para quê defender a democratização das mesmas, as tais plataformas de streaming a rodos, se depois não são vistas nem apreciadas devidamente?

Elaborar tops, convém, não é só juntar um dezena de filmes que nos “tocaram no coração”, é também atribuir a essa totalidade um statement, - e tendo em conta os tempos e a sua gradual aceleração (cada vez mais), esta ofensiva contra a vulgarização imagética, ao sacrilégio do gosto do espectador (merece ser subvertido, sair do seu próprio umbiguismo), contra as esquadrias e as mensagens / storytelling como unilateralidade das produções audiovisuais -, um ato político. Por isso, não vos vou mentir, existir algo politizado aqui, uma marcha contra a inevitabilidade de um lufa lufa social. 

 

#10) The Teachers’ Lounge

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Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma.” Ler crítica

 

#09) Bowling Saturne

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“Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.” Ler crítica

 

#08) Evil Does Not Exist

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Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.” Ler crítica

 

#07) Megalopolis

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Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.” Ler crítica

 

#06) La Chimera

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“Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão!” Ler crítica

 

#05) Ryuichi Sakamoto / Opus

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“De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala.” Ler crítica

 

#04) Joker: Folie à Deux

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“(...) é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.” Ler crítica

 

#03) All we Imagine as Light

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“Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.” Ler critica

 

#02) Fallen Leaves

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“Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.” Ler crítica

 

#01) C'est pas moi

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““C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?” Ler crítica

 

Menções honrosas: Via Norte, Trap, Rapito, A Flor do Buriti, Le procès Goldman, Manga d´Terra

"Disco Boy", falando com Giacomo Abbruzzese: "a alternativa a escapar do horror é 'dançar com o inimigo.'"

Hugo Gomes, 28.10.24

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Apresentado na edição de 2023 do Festival de Berlim, “Disco Boy” é uma história de identidades desejadas em conflito bélico ou colérico, que une Paris com a Delta de Niger, com a música assumida enquanto força utópica para personas antípodas. Seguimos Alexey (Franz Rogowski), migrante bielorusso que atravessa fronteiras e margens com o objetivo de se juntar à Legião Estrangeira Francesa, o plano é servir a essa tropa com a identidade francesa em vista como maior das recompensas, do outro lado um combatente nigeriano, Jomo (Morr Ndiaye), projecta-se numa outra vida, longe do seu alcance. 

A primeira longa-metragem do italiano Giacomo Abbruzzese, “Disco Boy” é uma produção de multi-esforços europeus como forma a preservar a sua ambição e visão original, uma valsa com a morte e com a vida, com o mesmo ritmo e bailado. Tendo estreado em Portugal no FEST de Espinho, o filme chegou às salas nacionais, prometendo o embate de ideias e o incentivo de uma nova força, a “dança com o inimigo”. Mas quem é verdadeiramente o inimigo?

Conversamos com o realizador sobre o projeto, e as custas dessa visão e como “Disco Boy” se comporta perante a nossa sociedade.  

Sei que algumas destas perguntas já foram feitas desde a estreia do filme no Festival de Berlim de 2023, porém, sabendo que este filme foi feito ao longo de 10 anos, gostaria de questionar o que aconteceu durante esse período? O que mudou desde a ideia inicial até ao filme que temos agora?

Na verdade, o cerne do filme não mudou muito. Desde o início, era sempre sobre Alexey, um bielorrusso ilegalmente chega à França com o intuito de se juntar à Legião Estrangeira. Depois havia esta outra linha narrativa— a história de Jomo, que envolvia um grupo de revolucionários ou ecoterroristas, dependendo da perspetiva. No Delta do Níger, essas duas histórias entrelaçavam-se. O conceito central e até a estrutura permaneceram os mesmos. Lembro-me de fazer uma exibição privada na Berlinale, onde um amigo meu, um argumentista do Reino Unido, esteve presente. Ele disse: “É incrível—li o esboço para este projeto há dez anos, e continua a ser esse filme!

Mas, ao mesmo tempo, escrevi 25 versões diferentes do guião. Por um lado, isto era sobre adaptar a ambição e o alcance do projeto para encaixar num orçamento viável. Trabalhei em tudo—nos diálogos, as personagens, na transição de uma cena para a outra—em busca de uma precisa atmosfera e desenvolvendo o filme ao longo do processo. Artisticamente, esta transformação não teria demorado dez anos em circunstâncias diferentes, especialmente se o financiamento para ele tivesse sido mais acessível.

Nas condições de hoje, um projeto como este poderia ter levado cinco anos. Mas o processo foi demorado porque, embora tentássemos torná-lo viável, continuava a ser um filme com, pelo menos, um orçamento de 3 milhões de euros. No cinema independente atual, continuavam a dizer-me: “Já não fazemos filmes assim. É impossível ter este orçamento para uma longa-metragem de estreia, a menos que haja uma grande estrela associada.” Queria trabalhar com o [Franz] Rogowski, que, naquela altura, ainda não era uma estrela …

Mas hoje, é uma das caras mais presentes do cinema europeu!

Absolutamente. Agora o é, mas naquela altura, o Rogowski não era um nome que pudesse ajudar a angariar o orçamento—bem pelo contrário. Alguns até hesitaram por causa dele. Tive de defender a minha escolha de Rogowski às redes de televisão ou a alguns produtores, que estavam a pressionar por nomes mais sonantes, mas sabia que ele era a melhor escolha. Esta decisão foi, principalmente, uma escolha artística.

Depois, havia a dura realidade de assegurar financiamento, que envolvia a aplicação constante, a troca de produtores e a navegação por contratempos. Em determinado momento, estava a trabalhar com um produtor que disse: “Acho que conseguimos angariar um máximo de 1,5 milhões de euros, mas vais precisar de cortar todas as cenas africanas e manter um elenco francês.” Para mim, isso mataria a essência do filme. Então, arrisquei e disse-lhe que, sob essas condições, não poderia prosseguir. Exortei-o a vender o projeto, e, eventualmente, novos produtores, mais jovens até, entraram a bordo. Como eu, eles tinham tido sucesso no formato da curta-metragem, e seriam a primeira vez que iriam abordar uma longa-metragem. Tinham uma postura fresca e colaborativa, o que foi revigorante.

Incrivelmente, em poucos meses, duplicámos o orçamento. Muitos que inicialmente disseram que “não” acabariam para o “sim”. Acho que, no final, isso fez toda a diferença.

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É impressionante que esta seja a sua primeira longa-metragem, porque é um filme bastante ambicioso para um primeiro projeto desse formato.

Acredito que as minhas curtas-metragens já eram bastante ambiciosas. As histórias que queria contar eram complexas e longe de serem simples. Sabia que precisava de criar esta narrativa de cowboy e encontrar um orçamento mínimo para capturar a essência que pretendia. No final, estou satisfeito com o que conseguimos alcançar.

No cinema, é preciso adaptar-se sempre às circunstâncias e às realidades que enfrentamos; não se pode dar ao luxo de ser rígido na sua visão. Considerando as condições desafiadoras que tivemos—especialmente o facto de termos apenas 32 dias para filmar, o que é muito apertado para um filme—estou contente com o resultado. Conseguimos criar algo que ressoa com a visão que tinha em mente. Acredito que é fiel à alma e à experiência que ansiava transmitir.

De onde veio este interesse na Legião Estrangeira?

A ideia central para o personagem de Alexey surgiu de forma inesperada. Estava numa discoteca na Apúlia [sul de Itália], a minha região natal, quando conheci um dançarino que tinha sido soldado. Fiquei intrigado com a forma como a mesma pessoa podia encarnar estes dois mundos opostos. Comecei a ver pontos de comunicação entre eles, como um sentido de coreografia, disciplina e uma força comum que culminam numa confrontação física.

No entanto, esta pessoa era italiana, e não queria retratar o exército italiano; era algo que não me interessava enquanto ponto de partida. De imediato, pensei na Legião Estrangeira Francesa, mais icónica e com uma tela mais ampla para explorar temas como a migração, a burocracia e o colonialismo. Estes temas tornaram-se uma perspetiva significativa para mim, especialmente porque vivi em Paris nos últimos 15 anos. Isso frequentemente me fazia questionar, como italiano em França, que perspetiva única poderia trazer à história que um realizador francês talvez não conseguisse.

A Legião Estrangeira pareceu-me interessante até porque existem relativamente poucos filmes sobre ela, especialmente considerando a sua importância para as forças armadas francesas, assim como o cinema americano explora frequentemente os seus Marines.

Assim de repente recordo o da Claire Denis (“Beau Travail”, 1999) e um com o Jean-Claude VanDamme (“Legionnaire”, 1998) …

Sim, são dois exemplos. Embora existam alguns bons filmes e alguns maus, realmente não há muitos que se concentrem na questão central que pretendia explorar: o facto de que um estrangeiro deve dar cinco anos da sua vida para obter um passaporte. Muitas das pessoas que se juntam à Legião Estrangeira são indocumentadas, à procura de uma segunda oportunidade na vida. Claro, também há nacionais franceses e europeus com documentos que escolhem alistar-se, mas a grande maioria são aqueles que vão lá pela promessa de um estatuto legal.

Fiquei fascinado pela dura realidade de sacrificar esses anos pela esperança de um futuro melhor. O filme é estruturado para refletir esta ideia de sacrifício. Também queria criar um filme de guerra que, pela primeira vez, permitisse ao 'outro' existir não meramente como uma vítima ou um antagonista por alguns breves momentos, mas como um personagem de uma história densa e complexa.

Nesta era de propaganda de guerra total, o mundo está proliferando com narrativas que frequentemente negam a possibilidade de entender as perspectivas dos outros. Todos acreditam na sua própria justiça, o que perpetua o conflito. O cinema oferece uma oportunidade única de ver o mundo pelos olhos de outra pessoa—alguém muito diferente de nós, seja em termos de género, estilo de vida ou etnia. Este é um dos aspectos mágicos do filme: permite-nos entrar numa outra perspetiva, o que acredito ser crucial para transmitir complexidade.

É por isso que a estrutura deste filme é tão importante. No início, somos apresentados a uma perspetiva; depois, cerca de um terço do caminho, começamos a ver as coisas do ponto de vista de Alexey. Quando a luta começa, o espectador fica incerto sobre a quem apoiar. Em muitas obras, há um protagonista claro, e é incentivado a alinhar-se com ele, mesmo que a sua moralidade seja questionável. Mas neste filme, testemunhamos o contexto mais amplo do conflito, percebendo que nenhum dos lados é totalmente monstruoso ou justificado.

Tanto Alexey quanto Jomo, o ecoterrorista, não são simplesmente vítimas das circunstâncias; são indivíduos que sonham em melhorar as suas vidas. Para eles, o único caminho para essa melhoria envolve envolver-se na violência. Alexey sente-se compelido a alistar-se para garantir um passaporte europeu, lutando por interesses que não são os seus. Ele torna-se um mercenário, mas mesmo assim tem camadas de complexidade.

Da mesma forma, Jomo, que vemos de uma perspetiva diferente, é rotulado como ecoterrorista. Mas novamente, há profundidade no seu personagem. Hoje em dia, quando falamos em matar um terrorista, muitas vezes usamos eufemismos como “neutralizar”, o que desumaniza ainda mais o indivíduo. Esta linguagem remove a sua humanidade e nega-lhes a oportunidade de serem vistos como pessoas reais com as suas próprias histórias.

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Giacomo Abbruzzese

O que está a dizer é que a designação “terrorista” existe enquanto propaganda governamental? É um conceito político?

Especialmente em conflitos geopolíticos, os rótulos que atribuímos aos lados opostos podem ser drasticamente diferentes. Por exemplo, os russos podem ver os ucranianos como terroristas, enquanto os ucranianos podem rotular os russos como terroristas. A situação é ainda mais pronunciada no conflito Israel-Palestina, onde a terminologia muda dependendo da perspetiva.

É surpreendente como classificamos ações como terrorismo para um grupo, mas não para outro. Esta disparidade muitas vezes se resume ao valor que atribuímos às vidas; algumas vidas são vistas como mais valiosas do que outras. Isso, para mim, é inaceitável. Cada vida tem o mesmo valor, e por trás de cada morte há uma história única que merece ser ouvida. Se realmente entendêssemos as histórias do 'outro', poderíamos reduzir o conflito e a divisão.

No entanto, se continuarmos a focar apenas nas narrativas que ressoam connosco—particularmente no mundo ocidental— a nossa capacidade de empatizar com os outros diminuirá. Corremos o risco de reduzir as pessoas a meros números, em vez de reconhecer a sua humanidade. Este problema existe em ambos os lados de qualquer conflito.

Gostaria de mencionar Israel-Palestina visto que antes de virar cineasta foi fotógrafo do conflito por muitos anos. Essa sua experiência influenciou a visão para deste filme?

Absolutamente. Nunca teria concebido a ideia para este filme sem as minhas experiências em Israel e na Palestina. Mudou fundamentalmente a minha vida. Reformulou a minha perspetiva sobre o mundo, a política e até mesmo a realização de filmes. Aprofundou a minha compreensão do que queria expressar e despertou uma curiosidade em sair das zonas de conforto sobre como os medias e os políticos representam as questões. Não há respostas fáceis.

Como artistas, jornalistas e cidadãos, temos a responsabilidade de nos esforçar para compreender as realidades em que vivemos. As situações terríveis que enfrentamos muitas vezes decorrem da nossa incapacidade de desafiar as narrativas que ditam como as coisas devem ser. Dizem-nos que não temos escolha senão estar em guerra ou alocar mais fundos para a defesa. Mas isso não é apenas o que temos; é o mundo que estamos ativamente a construir. É ingênuo pensar em nós mesmos como os bons e os outros como os vilões.

Durante o meu tempo na região, fui profundamente impactado pelo nível de humanidade e complexidade do outro lado, algo que considero ausente na cobertura dos meios de comunicação ocidental mainstream sobre a Palestina. Embora haja escritores e artistas dessa área a ganhar reconhecimento, muitas vezes conhecemos todos os detalhes sobre figuras políticas, mas permanecemos ignorantes em relação às vozes de civis e artistas. Isso cria um efeito desumanizador. Se mostrássemos mais artistas e as suas perspetivas, entenderíamos que existe sensibilidade e complexidade nessa narrativa além da mera propaganda.

Esta complexidade é uma razão significativa pela qual queria criar um filme como este. O cinema opera no reino do imaginário, e pretendia construir uma narrativa de guerra que chegasse através de uma lente diferente—não apenas pela crueldade das imagens gráficas, que somos inundados em todo o lado. Queria abordá-lo de forma diferente.

Por exemplo, na luta entre Jomo e Alexey, o som desempenha um papel crucial, criando uma profundidade emocional que contrasta com a imagética. As imagens em si evocam uma sensação de dança e conexão entre os dois, formando um vórtice que puxa o filme para uma experiência mais psicadélica e xamânica na sua segunda metade. Isso cria uma espécie de buraco negro que muda a direção do filme, convidando os espectadores a explorar uma compreensão diferente do conflito.

Algo que interpreto no seu filme é que nenhum destes personagens quer estar onde inicialmente está. Alexey, um bielorusso que atravessa fronteiras, junta-se à Legião Estrangeira para mudar de identidade. Jomo na Nigéria, quando perguntam sobre os seus desejos, ele responde com a fantasia de ter nascido em um outro lugar. Então, nenhuma destas personagens quer ser quem são. Somos pessoas insatisfeitas neste mundo. Nascemos cronicamente insatisfeitas com as nossas identidades.

Não sei, mas é interessante aquilo que dizes. Não vi o filme exatamente dessa forma porque, para mim, por exemplo, o Jomo é alguém que não se move. Ele está a projetar-se de alguma forma, o que é normal nas pessoas, mas na verdade a sua escolha o faz ficar. A irmã dele quer partir, mas ele quer ficar. O Alexei quer ir embora, é o seu desejo. Isso é normal para um ser humano projetar-se com esperança. É por isso que estamos num momento muito, digamos, trágico para a Humanidade, é muito complicado para nós projetarmos um futuro melhor. Algumas pessoas aceitam ter uma vida muito complicada e difícil porque têm esperança para os seus filhos. Aceitam o seu fado: "Vou trabalhar arduamente porque, pelo menos para os meus filhos, vai ser melhor."

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A crise ambiental, a insegurança social, a divisão cada vez mais agravada entre classes está a aumentar cada vez mais, tudo isso faz com que a sociedade esteja a atomizar-se. O sociedade deveria ser antes era um pacto entre pessoas que decidem não se matar umas às outras e respeitar-se mutuamente, pois concordamos que, se ficarmos juntos, somos mais fortes. Esta seria a maneira como tudo funcionaria. 

Só que, como disse, a sociedade está a atomizar-se devido à avareza de alguns ou devido a um sistema impraticável e infuncional, sem promessas de proteção e trabalho para todos, criamos uma sociedade onde corremos o risco de, digamos, um outsider que chega e destroi tudo. Só que o outsider vem de dentro da sociedade. O problema é a sociedade. Por exemplo, penso no que aconteceu no Bataclan, Paris.

Não acredito que os problemas que enfrentamos sejam externos à sociedade francesa. As questões manifestam-se dentro da própria sociedade. Se algo trágico ocorre em Paris, há razões subjacentes específicas a esse contexto. Não vejo estes eventos como uma simples oposição entre “nós” e “eles”. Muitos dos indivíduos envolvidos nasceram e cresceram na França, fazendo parte do próprio tecido social. Quando uma sociedade deixa de funcionar de forma coesa, cria uma disfunção que pode, em última análise, destruir-nos a todos. Esta cegueira é perigosa, e é por isso que devemos reavaliar constantemente como coexistimos.

Voltando à nossa discussão anterior, esforço-me por criar personagens que possuem desejos; eles não se veem como vítimas. Querem melhorar as suas vidas e avançar. No entanto, esse desejo pode levá-los a situações perigosas. Por exemplo, tanto Jomo quanto Alexey entram numa espiral que pode levar à sua destruição.

Ainda assim, há um vislumbre de esperança no final deste filme, mesmo que seja retratado de uma forma sonhadora e utópica. Culmina numa afirmação poética: a alternativa a escapar do horror é 'dançar com o inimigo.' Acho essa frase— dançar com o inimigo —particularmente poderosa.

Só uma última pergunta. Gostaria que me falasse sobre a sua colaboração com a diretora de fotografia Hélène Louvart, e como surgiu a ideia desta atmosfera onírica para “Disco Boy”?

Hélène foi a minha primeira escolha. Entrei em contato com ela há quase dez anos. Leu o argumento e como era fã das minhas curtas aceitou de imediato. Ao longo da minha luta para conseguir financiamento, ela esteve sempre ao meu lado, como uma presença orientadora. Chegou um momento em que finalmente consegui o orçamento e comecei a planear a rodagem, apenas para ser desviado pelo COVID.

Hélène tem uma agenda tão ocupada quanto a do Presidente da República; todos querem trabalhar com ela. É muito requisitada por muitos realizadores de nome que estão a fazer os seus primeiros filmes, e eu, desde o início que era um admirador do seu trabalho. O que mais admiro enela é a sua disposição para correr riscos— não se esquiva de projetos desafiantes nem se acomoda numa zona de conforto. O seu profissionalismo, paixão e compromisso para com a sua arte são inspirações.

Infelizmente, perdi-a temporariamente quando a programação do meu filme foi adiada. Quando finalmente estive pronto para reiniciar, ela já estava reservada. Senti-me à deriva durante esse período, pois tinha opções limitadas devido à pandemia.

Enquanto continuei a fazer casting e a explorar outros diretores de fotografia, Hélène permaneceu como uma presença solidária. Conversávamos muitas vezes à noite; ajudava-me a encontrar soluções para o filme, mesmo enquanto trabalhava em outros projetos. Embora não fôssemos extremamente próximos ainda, ela realmente se importava com o filme, e senti profundamente esse seu apoio.

Então, em modo serendipidade, tive uma sorte quando o outro filme que devia fazer foi adiado devido à saída de um ator principal do projeto. Isso aconteceu apenas seis a oito meses antes da nossa filmagem programada, e como ainda não tinha encontrado um DOP com o qual estivesse satisfeito. Felizmente, Hélène ficou novamente disponível, o que foi uma sorte.

Quando finalmente colaboramos, a experiência foi incrivelmente orgânica. Sou alguém que está muito envolvido nos aspectos visuais do meu trabalho, como se pode verificar nas minhas anteriores curtas. Com Hélène, a comunicação fluiu sem esforço. Ela é aberta e respeitosa; se discorda de uma linha de diálogo, expressa as suas preocupações de forma ponderada.

As filmagens em si foram uma experiência extenuante. Ao longo de 32 dias, perdi sete quilos devido ao imenso stress. Não posso entrar em todos os detalhes, mas foi incrivelmente desafiador. No entanto, ter alguém como Hélène ao meu lado fez uma diferença significativa. Ver ela às seis da manhã trouxe-me conforto, e partilhávamos uma visão comum sobre o que queríamos alcançar.

Foi uma colaboração linda; acredito verdadeiramente que estamos perante uma rainha na sua arte.

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