Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Malditos domingos! O que fazer com vocês e com as vossas criaturas?

Hugo Gomes, 20.07.24

una-sterminata-domenica.jpg

Arthur Mersault, a emblemática personagem do romance de Albert Camus - “O Estrangeiro” - constantemente declarava a sua irritação, ou melhor, ódio, pelo domingo. A somente existência provocava a sua celeuma, uma quase maldição, que coincidindo com a sua natureza algo passiva, “abraçava” no tormento da sua inevitabilidade. 

Simpatizo com essas dores, até porque os domingos me tornam igualmente numa pessoa inconsolável, um sintoma quase patológico, e previsivelmente ao deparar com um filme que se apropria do pior cenário possível - um domingo eterno. Mas calma, não é nenhum “Groundhog Day”, nem uma variante dessas narrativas de dias em loop, pudera, porque imaginar a convivềncia de um domingo para o resto das nossas eternidades seria um pesadelo, autêntico e desesperante. É sim, uma primeira obra com o apadrinhamento de Wim Wenders sobre três jovens que vivem à luz da sua inconsequência, o domingo permanece como o dia sem programa, longo a sua deambulação ou improviso. 

Una sterminata domenica” é o seu título, Alain Parroni o seu realizador - e estranhem-se, um dos três argumentistas - deste, do qual é descrito, um choque geracional e confronto rural e citadino, com Roma, a cidade eterna, ali ao lado, e o campo decadente do outro, sem bucolismos é verdade, só ruína, física como moral. É uma daquelas histórias de juventudes traídas, defraudadas pelo destino e portanto longe da empatia, só que com isso posso eu bem, de jovens longe das nossas sensibilidades o cinema é pleno. Os zero em comportamentos da vida deram-nos saltos formais e de linguagem cinematograficamente incríveis [“400 Coups”, de François Truffaut, a “Kids”, de Larry Clark, é só escolher], ou até despertaram em nós um certo sabor proustiano, seja o ‘gozo’ do último dia de aulas [“Dazed and Confused”, de Richard Linklater], seja da fuga enquanto sonho húmido a tresandar pelo lascivo [“American Honey”, de Andrea Arnold] e depois existe o vazio, não a demonstração do vazio nessas existências (Harmony Korine sabe fazer isso bem e de bom grado), mas o vácuo seja estético, narrativo ou até naquilo que “Una sterminata domenica” fornece de mão cheia, “maliquices” carregadas de hiperatividade videoclippeira, ou … visto os tempos serem outros, a linguagem despojada do caseirismo que as redes sociais nos trouxe com afinco nesta sociedade em serviência.

Depois a fornalha: estes jovens sem alma, encarregados de estabelecerem-se enquanto figuras-choque, funcionais vítimas de um futuro incerto, de um passado besta e de um presente recheado de decepções em todos os seus esporos, mas também são elas, as personagens fúteis onde a sua futilidade não é de todo uma crítica construtiva (o filme não tem esse miolo), mas um factor do seu embelezamento. Vencedor da secção Horizontes do Festival de Veneza, Alain Parroni demonstra que sabe filmar o céu num determinado plano picado, mas que não sabe de todo o que fazer com esta juventude de meio tostão. É o recorrer ao realismo simulacro, com um efeito encantatório que o envenena, e esquecer do seu cenário, do seu contexto sócio-político, ou outro elemento que não traria esta “viagem” em vão.  

Tal como os domingos, meios-dias de um raio que têm um efeito doentio sobre mim, este filme parece condensar algumas dessas propriedades com vigor. 

Donald Sutherland (1935-2024)

Hugo Gomes, 20.06.24

MV5BZjQ5YTNhYmQtNTQ5Mi00MTNlLWE5ODItNjM4MTJmNzUzOD

Il Casanova di Federico Fellini (Federico Fellini, 1976)

in-invasion-of-the-body-snatchers-1978-donald-suth

Invasion of the Body Snatchers (Philip Kaufman, 1978)

deathscene_dontlooknow.jpg

Don't Look Now (Nicolas Roeg, 1973)

MSDJFKK_EC023.webp

JFK (Oliver Stone, 1991)

MV5BMmUwODk1ZDctMGM4MC00NDI0LWI4MGQtNmU2Y2Y2YjI4ZW

The Hunger Games: Mockingjay – Part 2 (Francis Lawrence, 2015)

unnamed.jpg

Eye of the Needle (Richard Marquand, 1981)

Donald-Sutherland-and-Jane-Fonda-in-Klute-1971.jpg

Klute (Alan J. Pakula, 1971)

donald-sutherland-MASH.webp

M*A*S*H (Robert Altman, 1970)

MV5BZDU4ZmRmMDEtNGUwNi00N2EzLWIzYTAtYzIyZmEyN2YwMj

Revolution (Hugh Hudson, 1985)

MV5BODBiNzExZWUtNjM2ZS00YWNhLTgyZTMtZGVmZDU0NGUyNDStart the Revolution Without Me (Bud Yorkin, 1970)

brown_6.jpg

The Day of the Locust (John Schlesinger, 1975)

space-cowboys-review.webp

Space Cowboys (Clint Eastwood, 2000)

MV5BMWY0OGJjN2MtODcxMS00MGM4LWJmYzYtNzRhNmQwNGIwNz

Backdraft (Ron Howard, 1991)

johnny_got_his_gun_imprint_2.jpg

Johnny Got His Gun (Dalton Trumbo, 1971)

Ordinary-People-Donald-Sutherland.jpg

Ordinary People (Robert Redford, 1980)

videoscreenshot-filexws0jcdcfjph-vidcloud-16112.we

Novecento (Bernardo Bertolucci, 1976)

Sandro Veronesi, de "Colibri" a "Comandante": "escrever não é sobre controlo"

Hugo Gomes, 14.06.24

cinegarimpo.com.br-comandante-79246-comandante---a

Comandante (Edoardo De Angelis, 2023)

Un italiano vero”, o realizador Edoardo De Angelis avança neste episódio ambientado da Segunda Guerra Mundial, no seio do turbilhão geopolítico em águas internacionais com a história de Salvador Todaro, capitão do submarino Cappellini, que após uma investida a um navio belga, acabou por resgatar os 26 tripulantes do mesmo, da morte certa. Por que o fez? A “Lei do Mar”, pregada por Todaro, seguida pela exaltação dos valores italianos, foram a resposta.

Comandante” (que estreia agora nas salas portuguesas) promete ser um filme de guerra à sua moda antiga, de submarinos e tripulantes restringidos ao Oceano e ao cerco do couraçado. De nossa mente chegam-nos clássicos do subgénero como “Das Boot” ou “K-19”, mas o que encontramos verdadeiramente é uma obra com forte vertente ecuménica, humanista, para relembrar da nossa solidariedade e a sua “cegueira” perante facções, ideologias e divergências.

A escrita pertence a Sandro Veronesi, romancista popular e agraciado com os mais diversos elogios, cujas obras encontram uma nova existência na grande tela, seja personificadas por Nanni Moretti numa espera sem hesitações em “Caos Calmo” (Antonello Grimaldi, 2008), seja com Pierfrancesco Favino - que além deste “Comandante” - foi peça pessoal no filme “Il Colibrì” (Francesca Archibugi, 2022), a adaptação do trabalho mais famoso do escritor.

Durante uma das suas passagens por Portugal, mais concretamente durante a Festa do Cinema Italiano, na apresentação do filme, Sandro Veronesi partilhou connosco a sua experiência em argumentos cinematográficos e na escrita, como processo criativo e extensão da sua identidade.

É sabido que estudou arquitectura antes de se iniciar nas lides da escrita. Porquê a decisão? Será que perdemos um bom arquitecto para ganharmos um excelente escritor?

Nunca me considerei um arquitecto. Estudei arquitetura porque a encarei como um campo maravilhoso, e para isso fui para Florença, uma cidade que nos leciona arquitetura apenas caminhando pelas suas ruas. É um lugar onde tudo comunica arquitetura, especialmente no famoso centro da cidade. Embora os meus estudos tenham sido abrangentes e gratificantes, nunca me imaginei como um arquiteto.

Depois de concluí-los e obter o diploma, fugi de Florença para Roma, onde tinha amigos que, como eu, eram jovens e sonhavam em tornar-se poetas ou escritores. Eu também sonhava em tornar-me num, seja poeta ou escritor, imediatamente mudei de rumo e evitei qualquer oportunidade de trabalhar num estúdio de arquitectura ou em empregos relacionados. Depois de terminar os meus estudos, comecei do zero.

Claro que esta decisão foi tomada com o acordo dos meus pais, pois eu não tinha dinheiro, encontrei alguns pequenos trabalhos em Roma para ganhar algum, mas não era suficiente para me sustentar. O meu pai apoiou-me durante mais de um ano, até que finalmente encontrei um editor para o meu primeiro romance. A partir desse momento, a minha vida como escritor começou.

Eu estava incerto, na minha mente pensava: "Ok, deixa-me tentar. É melhor do que ficar em Florença e escrever apenas aos fins de semana. Deixa-me realmente dar uma oportunidade. Se falhar, sempre posso voltar e começar finalmente como arquiteto."

1893589.png

Sandro Veronesi / Foto.: Matilde Fieschi

E esse risco foi bem-sucedido …

Sim, porque levei isso muito a sério. Mantive a ideia mais para deixar os meus pais confortáveis com o facto de que não viveria como um boémio, mas na realidade estava realmente a pensar em viver como um. Se o fracasso fosse explícito, tudo bem, teria algo para fazer. Eu sabia como me desenrascar num estúdio de arquitetura.

Numa das suas entrevistas sobre o seu livro "Il Colibrì", mencionou que a história começou com uma imagem forte na sua mente, e tentou encontrar significado a essa imagem. Frequentemente ouço que existem dois tipos de pessoas neste Mundo: aquelas cujos pensamentos traduzem em imagens e aquelas que as palavras são os seus pensamentos. No seu caso, parece que a sua formação em arquitectura o influencia a pensar em imagens. Esse pensamento visual serve como ponto de partida para o seu processo criativo na escrita?

A questão não é sobre pensar, porque sou mais guiado por imagens. Não estou a atuar; simplesmente deixo-me levar por essas imagens durante semanas, meses ou até anos. Não sei por que motivo tenho essas imagens ou sequências estruturadas na minha mente. Nunca escolhi pensar nelas; simplesmente acompanham-me, por vezes, tento descobrir onde e o porquê destas imagens formarem este mundo que carrego comigo, mas não as controlo.

Para mim, escrever não é sobre controlo, posso influenciar, embora não completamente, o estilo e a linguagem, escolhendo cada palavra com cuidado. Mas o que escrevo é decidido pelo próprio processo de escrita. Enquanto escrevo, memórias, ideias e invenções surgem enquanto digito, se parar de digitar para refletir, não consigo encontrar o que necessito. Sei que, enquanto digito, compondo uma frase e tentando melhorá-la, algo pode acontecer que revele por que aquela imagem está ali e onde ela pode encaminhar a minha história. Nunca é predefinido. O que posso controlar é a composição, costumo brincar, embora para mim seja uma verdade, que não entendo como os meus colegas escritores conseguem escrever um romance sem ter estudado arquitetura. [risos]

Estudar arquitetura ensinou-me muito sobre composição e a relação entre o homem e o espaço. Para mim, escrever um romance é exatamente isso: composição e a relação entre as pessoas e o espaço, e é nisso que foco a minha atenção, porque acredito que posso controlar uma parte significativa do processo. Mas porque ter estas ideias? É melhor não aprofundar muito nisso, pois seria mais apropriado para uma terapia psicanalítica. [risos]

O que é importante para mim é a confiança de que, ao trabalhar numa frase ou numa página, durante o esforço de escrever um romance, terei a revelação das próximas páginas e capítulos. Sempre foi assim para mim. Inicialmente, foi uma surpresa, mas agora sei: não se pode chamar isto de método porque nada é controlado. Mas existe uma confiança de que, ao fazer o que faço de melhor, torno-me mais sensível ou capaz de captar todos os elementos, sejam eles internos ou externos a mim, que são importantes para expressar o que quero dizer.

Não sei exatamente o que é até ao final do meu processo de escrita.

Em relação àquela imagem poderosa que inicialmente o impressionou, como se sente ao ver a adaptação cinematográfica, como em "Il Colibrì"? Alguma vez pensa: "Isso não foi o que imaginei," ou tem reações semelhantes? Tem algum controlo criativo sobre esses filmes?

Prefiro não me envolver nas adaptações cinematográficas dos meus romances porque acredito que é melhor manter as linguagens separadas. Sou responsável pela forma literária da história e não desejo influenciar o processo de argumento, aqueles que trabalham no filme devem ter completa liberdade para interpretar e adaptar a história como bem achar, sabendo que não podem capturar todos os detalhes que um romance detém na sua totalidade. Por vezes, encontro elementos no filme que não são meus — eles emergem do mundo interior do realizador - nessas situações, reconheço-os como a contribuição do realizador para o seu próprio filme, respeitando as suas experiências e sensibilidades únicas.

Encontrar essas divergências pode ser como encontrar subitamente no exterior estando ainda no seu próprio país — um reconhecimento de algo não originalmente concebido ou escrito durante o processo de criação do romance. No entanto, aprecio quando cineastas trazem as suas próprias ideias, imagens e interpretações para a minha imaginação, que a “contaminam”, que as tornam suas. Nas adaptações para o cinema, assim como nas outras formas de arte, há um diálogo respeitoso entre a obra original e a sua tradução cinematográfica.

MV5BZWU4YmYyMDYtMGU1ZC00MTIwLTkyY2EtOWY1OTQxMjRlZD

La forza del passato (Piergiorgio Gay, 2001)

Os cineastas possuem todo o direito de introduzir mudanças, e entendo que alterar a linguagem e a expressão no filme inevitavelmente envolve perdas e ganhos. Essa transformação é natural, é semelhante a um pintor retratar uma personagem de um romance — inevitavelmente infundindo a pintura com a sua própria perspectiva e inspiração.

Quando se trata de avaliar as adaptações cinematográficas dos meus romances, foco no impacto emocional, na interpretação, na cinematografia — todas as qualidades específicas que fazem de um filme uma obra distinta em relação ao romance. Inicialmente, fiquei chocado com a adaptação do meu primeiro romance - "La forza del passato" [de Piergiorgio Gay] - especialmente ao ver Bruno Ganz incorporar as minhas palavras no palco principal do Festival de Cinema de Veneza em 2001. Foi uma experiência desconcertante, especialmente enquanto jovem escritor.

Desde então, aprendi a abordar as adaptações cinematográficas com objetividade, tentando vê-las como obras independentes, ao invés de reflexos diretos da minha criação original. Posso gostar ou não de uma adaptação cinematográfica, e se me decepcionar, posso hesitar em expressá-lo ao realizador — talvez esteja a ser demasiado crítico. No entanto, tive experiências principalmente positivas com as adaptações porque, fundamentalmente, tenho um sincero apreço pelo cinema.

Em "Comandante", teve mais influência criativa no filme porque esteve envolvido na escrita do argumento. Como foi a experiência de escrever um argumento em comparação com escrever um romance para si?

Para mim, é simples. Escrever argumentos não é onde a minha criatividade prospera; não é o meu papel principal, e muitas vezes, sinto-me como um outsider nesse processo. A verdadeira fonte de energia inventiva sempre foram os outros, não eu mesmo, isso tornou-se evidente nas versões iniciais dos argumentos. No entanto, as circunstâncias mudaram durante o confinamento e a pandemia de COVID-19, tornando impossível prosseguir com as filmagens. Então, decidi escrever um romance em vez disso.

Ao escrever o romance, encontrei inúmeras ideias, imagens e invenções. Eventos históricos exigiram diálogos e narrativas inventivas, especialmente sobre o que ocorreu a cinquenta metros abaixo do nível do mar — detalhes que precisavam ser inventados. Escrever o romance gerou inúmeras ideias para versões subsequentes dos argumentos. Esse processo iterativo envolveu a transição do guião para o romance e vice-versa várias vezes. Encontrei-me muito mais envolvido criativamente na elaboração do aspecto literário do que nas fases iniciais do argumento. No entanto, escrevê-los não é a minha especialidade; apenas concebi cinco argumentos em quarenta anos — não é o meu foco.

Tenho dificuldade em contribuir plenamente com a minha sensibilidade quando me é solicitado escrever algo desprovido de estilo, o foco não está na eloquência, pois uma escrita funcional é suficiente para a equipa de filmagem: o filme em si será o verdadeiro empreendimento. Como mencionei antes, as ideias vêm a mim enquanto procuro encontrar beleza na minha escrita. Focar na forma permite-me capturar a essência. Por outro lado, acho desafiador libertar a minha criatividade totalmente na escrita de argumentos. Isso, para mim, destaca a diferença fundamental; não sou um argumentista.

Escritores excepcionalmente hábeis tanto na escrita de romances quanto na de argumentos atestarão o contraste acentuado nos processos. Escrever argumentos exige pensamento rápido e distanciamento, afastando-se da influência pessoal, no final das contas, os espectadores são indiferentes ao argumentista ao assistir a um filme — eles envolvem-se com o produto final, não com o seu criador. Em contraste, os leitores escrutinam e avaliam todos os aspetos de um livro, colocando uma pressão imensa sobre o escritor.

3259.jpg

Comandante (Edoardo De Angelis, 2023)

Paradoxalmente, essa pressão aprimora o meu processo criativo. Ela encoraja-me a explorar novas ideias livremente, sem o peso do julgamento que acompanha a escrita de romances. Essa sensação foi palpável não apenas em "Comandante", mas também nos meus outros projetos cinematográficos. Embora tenha contribuído, muitas vezes senti-me dispensável, Edoardo De Angelis poderia facilmente assumir as responsabilidades de argumentista após o romance, mas as minhas ideias mostraram-se inestimáveis na formação das versões subsequentes dos argumentos.

Porquê esta história concretamente?

Esta história é emblemática para a Itália, especialmente durante o verão crítico de 2018. Foi um período político tumultuado marcado por ações do governo e políticas ministeriais que propagaram uma narrativa prejudicial. Esta narrativa sugeriu permitir que migrantes perecessem no Mar Mediterrâneo na sua jornada da África para a Sicília. Esta representação não reflete quem realmente somos. Como italianos, somos melhores do que isso.

Como deixa transparecer no filme: “os Nazis os deixariam no fundo” …

No filme, esse tema é enfatizado, refletindo uma realidade histórica. Naquela época, nós, italianos, éramos retratados por palavras e ações verdadeiramente deploráveis. Eu e os meus amigos — escritores e realizadores — buscávamos maneiras de expressar veementemente a nossa indignação. Criei um grupo no Signal (não no WhatsApp), mas numa plataforma similar, para explorar ações além de meros protestos, mais próximas das nossas profissões como escritores e cineastas.

Edoardo encontrou um artigo no jornal diário italiano Avvenire, publicação da Conferência Episcopal Italiana. O artigo narrava um discurso de um almirante da Guarda Costeira italiana durante o 121º aniversário da fundação. A mensagem foi contundente: ele reconhecia seu dever de obedecer às ordens, mas lembrava às autoridades de suas responsabilidades morais. Naquele momento, as ordens haviam mudado, instruindo a não realizar resgates além das águas territoriais, deixando efetivamente aqueles no mar à deriva.

As palavras do almirante ressoaram profundamente connosco, o seu lembrete da história de Salvatore Todaro — brevemente mencionada no discurso — tocou uma corda sensível. Edoardo entrou em contato com o jornalista que escreveu o artigo, um firme defensor das missões de resgate no mar mesmo diante de ameaças da máfia da Líbia. Decidimos seguir adiante com essa história.

Escrever um romance foi mais fácil do que fazer um filme, dado o significativo custo deste último. Foram necessários cinco anos para que o filme se concretizasse, enfrentando desafios como a COVID-19 e dúvidas pessoais sobre sua viabilidade. Tragédias, como a do último inverno, com a perda de 90 vidas nas águas ao sul da Itália devido à falta de intervenção, destacaram a urgência de nosso projeto.

O exemplo de Salvatore Todaro durante a guerra destacou a primazia do direito marítimo e da solidariedade no mar acima de tudo. É a única garantia que leva as pessoas a se lançarem ao mar. O contraste com a retórica vergonhosa de certos funcionários do governo, negando resgates e ajuda no mar, foi gritante. O exemplo de Todaro foi claro e puro, nos compelindo a trazer essa narrativa à luz.

Após cinco anos de incerteza, finalmente concluímos o filme. A história que ele conta é clara — não é uma história de guerra, mas de homens no mar, defendendo a lei do mar e o imperativo de ajudar aqueles que precisam.

il-colibri-film.webp

Il Colibrì (2022)

Com “Il Colibrì” e agora “Comandante”, ficamos com a sensação que o ator Pierfrancesco Favino é a face das adaptações cinematográficas dos seus romances. Já está a preparar o seu próprio papel? [risos]

Atualmente, estou a finalizar um novo romance em que a personagem principal tem 12 anos [risos]. Brinquei com ele, dizendo: "Prepara-te, porque desta vez será difícil voltar aos 12 anos - vai trabalhar muito, vai." [risos] Mas estou realmente emocionado porque ele é um ator verdadeiramente fantástico. Já o conhecia antes, mas foi só depois de "Il Colibrì" que descobri verdadeiramente a sua abordagem.

Uma vez ele apontou para mim: "Nunca descreves diretamente a aparência da personagem principal. Tudo acontece com ele, mas nunca é revelado o rosto dele." Pelo que respondi: "Não, porque não é necessário para mim. Não quero perder tempo a descrever aparências." Ele perguntou: "Mas como eu vou retratá-lo então?" Disse diretamente: "Isso é contigo. Não esperes que eu faça isso."

Depois de algum tempo, ele disse: "Encontrei inspiração em você." Ele especificamente quis usar óculos. Não era uma imitação; ele usou a minha figura como modelo para moldar a sua personagem. Ele explicou que enquanto afirmo não ser Marco Carrera nem um Colibri, já que não dei mais especificações, ele decidiu me incorporar através dos óculos.

Através dessa experiência, entendi melhor o seu processo. Ele pega algo objetivo do exterior e transforma-o numa personagem completamente nova, começando a partir desse ponto. Em "Comandante", houve muitas pistas externas, como um ombro quebrado, para ajudar um ator a encontrar a sua personagem. No entanto, em "Il Colibrì", foi diferente. Ele simplesmente voltou-se para mim e disse: "Você será a minha inspiração."

Alice Rohrwacher debate sobre as suas 'quimeras': "o patriarcado é uma escolha histórica, não uma condição natural do ser humano"

Hugo Gomes, 06.06.24

la-chimera-josh-oconnor-alice-rohrwacher_jpg_1600x

Alice Rohrwacher e Josh O'Connor durante a rodagem de "La Chimera" (2023)

A estreia de “La Chimera” no Indielisboa serviu de pretexto para a cineasta Alice Rohrwacher revisitar Lisboa, cidade na qual, tal como confidenciou após expor o seu português algo enferrujado mas mesmo assim surpreendentemente bem falado, havia vivido alguns anos e até aos dias de hoje detinha uma faustosa admiração. 

Nesta quarta longa-metragem, a solo deve-se salientar, a realizadora quis fazer um retrato sobre a Itália e a sua relação com o passado, e para isso, o desmonta num olhar estrangeiro, aqui sob o corpo de Arthur, interpretado pelo ascendente Josh O’Connor, maltrapilho e errante, homem de ligações tortuosas com os variados tempos do país. É através das suas apelidadas “quimeras”, transes ou pressentimentos na ordem do sobrenatural, que o protagonista assume-se como cão farejador de túmulos etruscos, descobertos, violados e de artefactos vendidos. Ele faz parte dos “tombarolis”, os saqueadores de túmulos, que sem se aperceberem despertarão vozes do além, maldições ou espíritos interrompidos do seu eterno descanso.

La Chimera”, tal como as obras anteriores de Rohrwacher, é um filme malabarista quanto ao passado, presente e futuro, onde cada peão neste jogo vivente encontra-se refém à sua ilusão, à sua época e à sua Itália.

Como surgiu a ideia para “La Chimera” (“A Quimera”)?

Eu não sei. [risos] Não tenho uma ideia concreta. Só sei que todas as ideias vêm de longe, são como músicas que estão na cabeça, que andam comigo. Na verdade, o que aconteceu é que cresci numa região onde, nos anos 80 e 90, houve a “febre” pela busca de tesouros. Foi um fenómeno social proeminente na altura, mais ou menos como agora em Lisboa, com a compra de casas no bairro de Alfama. [risos]

Acho que isso tem muito a ver com a ideia de vender e comprar coisas que têm uma aura. Nos anos 80, com o mundo materialista, os ricos, que tinham poder de aquisição, queriam comprar a alma. E foi a primeira vez que a alma estava no mercado, e de certa forma, também o passado, algo que tem uma força própria. Estava a comparar, mas acredito mesmo que é o mesmo desejo que se tem agora de comprar uma casa na Alfama, na velha Lisboa, porque é a sensação de comprar não só um imóvel, como também de comprar uma história. Então, quando há uma demanda, há uma oferta, e esta era dada pelos tombarolis.

Os tombarolis começaram a buscar objetos antigos para vender porque havia uma procura por eles, uma necessidade, um mercado. O que eu queria fazer era explorar essa ideia, fazer um filme que não os retratasse como vilões, nem herois, mas como parte do mercado. E nesse mercado, eles eram a engrenagem do mecanismo. Mesmo que se considerem predadores da “arte perdida”, na verdade, eram como hamsters às voltas na sua roda. São os pobres tombarolis! Para mim, era importante contar isso.

Os tombarolis são apenas uma maneira evidente de vender algo sagrado vindo do passado que já não consideramos mais sagrado. Todas as vezes que tentamos fazer isso, somos totalmente tombarolis.

Vou usar essa ideia do sagrado ... Esta demanda dos tombaroli é figuradamente um retrato da Itália atual, onde nada é mais sagrado. Mesmo o passado, o qual estamos praticamente a violar sepulturas para resgatar esses itens e vendê-los sob a forma de outras ideias …

O filme decorre nos anos 80, e talvez seja muito impactante vir a Lisboa agora, porque esse processo está um pouco mais atrasado aqui. Mas, na Itália, isso já aconteceu. Conheço essa transformação, esse processo. Acho que já somos filhos desse processo. A alma já foi consumida pelo comércio e agora, como uma flor, acredito que o invisível vai-se aflorando, que vai regressar.

descarregar.jpg

La Chimera (2023)

Só que, neste momento, a Itália, a nível político, está a atravessar um genocídio cultural total que começou com Berlusconi e agora estamos a colher os seus efeitos. Mas, o que temos que fazer é acreditar na Humanidade, na inteligência das pessoas, e talvez... esperemos que sim! Este é o ponto principal, porque se pensarmos sempre no mal, acabará por atrair o mal. Devo pensar de forma positiva, acreditar que, embora às vezes me digam, ao apresentar um projeto, que "este filme não tem público", deva opor de que haja “um público que não tem filme”.

Neste filme, também como nos outros dois anteriores - "Le meraviglie" (“As Maravilhas”) e "Lazzaro Felice" (“Feliz como Lázaro”) - há quase uma mistura temporal entre o passado, o presente e o futuro, envolvidos numa certa ilusão. Por exemplo, em "Lazzaro Felice", há uma personagem, a marquesa [interpretada por Nicoletta Braschi], que vivia num passado forçosamente estagnado, no seu latifúndio, e usava tudo à sua volta para sustentar essa ilusão, com medo de confrontar uma realidade corrente que verdadeiramente não corresponde.

Sim. Como a conversa entre Flora [personagem de Isabella Rossellini] e a arte, que permanece na ilusão. Os filmes são muito conectados, embora muito diferentes, mas são, de qualquer forma, partes da mesma tapeçaria.

Há uma conexão profunda: o que fazemos com o nosso passado? Podemos destruí-lo, como fazem os tombarollis, ou podemos gelificar o passado, congelá-lo, como faz também Flora, que deseja que o passado não seja passado, porque quer pensar na sua filha amada como ainda estivesse viva.

Também existe uma outra perspectiva, que é a da Itália [personagem de Carol Duarte]. O passado como algo que pode ser reabilitado, transformado, as ‘coisas’ abandonadas - como a estação que aparece no filme - podem converter numa outra ‘coisa’, uma casa, por exemplo. Ainda é possível imaginar outras soluções que não sejam nem a destruição, nem o bloqueio... e nem a santificação do passado.

Acho muito curioso que tenha escolhido dois atores que não são italianos, o Josh O'Connor, que é britânico, e a Carol Duarte, que é brasileira. Porquê esta opção? Ouvi dizer que quando descobriu o Josh O'Connor, reescreveu o personagem especialmente para ele.

Reescrevi o personagem porque, inicialmente, ele era muito mais velho, porque é uma personagem em que tudo nele é sem esperança, e normalmente associamos a juventude à esperança. Quando encontrei o Josh compreendi que é um ator sem idade, e que Arthur funcionaria como alguém jovem e mesmo assim, mantendo nada esperançoso. É uma pessoa incrível, com o qual queria muito trabalhar, agora, já não consigo imaginar o filme sem ele.

Quanto à Carol Duarte, a personagem não precisava ser estrangeira, mas o problema é que a única pessoa no mundo que poderia fazer esse papel é a Carol. Confesso que não queria uma brasileira, mas ela, com a sua própria identidade e nacionalidade, tornou-se perfeita. Procurei italianos, franceses, enfim, de todas as nacionalidades, essa era uma questão que não me importava, porque Itália é como uma uma clochard do cosmo. Pode vir da lua, não importa. Podia vir do meu país ou de outro, não importa. Foi com a Carol que deparei-me com essa feminilidade de clochard do cosmo que procurava. 

Quando encontrei-me com ela via Skype, foi amor à primeira vista. De repente, soube que só ela poderia fazer a personagem, e julgo que compreendi isso antes dela. É uma personagem muito difícil de compreender, porque, inicialmente, é quase como uma aranha, depois vira flor. Tem uma transformação muito forte e, sobretudo, é uma pessoa icónica. Mas quando se lê no papel, uma mãe de dois filhos o qual esconde os filhos e que não tem tecto, morando provisoriamente … e meio clandestinamente na casa de uma senhora e age como se precisasse de lições de canto, soa trágico. No princípio, ela imaginou uma pessoa trágica e não, essa personagem é cómica. Então, fomos descobrindo essa personagem e chamamos a Itália de nossa filha.

Voltando à decisão de Josh O’Connor, o facto de ser estrangeiro serviria para que o prisma sobre esta Itália fosse de fora, a de um estrangeiro?

Estipulei que o Arthur teria que ser estrangeiro. Porque foram os estrangeiros, no princípio, tanto para o bem quanto para o mal - mas sobretudo para o bem - aqueles que mudaram o olhar dos italianos sobre a sua própria História e das suas ruínas. Todo o processo arqueológico, por exemplo, na Itália como na Grécia, começou por via da chegada de muitos estrangeiros que olhavam com uma perspectiva diferente a estes países e à sua arqueologia. Eles viam algo que as pessoas sempre tinham diante dos olhos, mas que não davam importância. Então, o estrangeiro é fundamental na descoberta dos nossos tesouros.

La-chimera-e1709146257301-941x576.jpeg

La Chimera (2023)

E acho que isso continua até hoje. Quem somos sem estrangeiros? Nada, apenas pessoas sentadas sobre um tesouro, olhando sem realmente ver. Naturalmente, os tombarolis aproveitaram essa mudança de olhar sobre a própria História, mas os estrangeiros foram importantes na história arqueológica da Itália, trazendo uma perspectiva positiva. Foram eles que iniciaram o desejo de descobrir o passado. Como tal queria prestar uma homenagem a todos esses jovens de Inglaterra, da Alemanha, do Grand Tour, que entretanto chegavam à Itália. Queria que a personagem fosse oriunda do Norte da Europa, para representar isso.

A sua figura tem algo de cómico também, quase digno de slapstick, é esguio, de pernas longas, de andar desajeitado, parece quase Buster Keaton ou um Jacques Tati equivocado ...

Sim, também é uma pessoa muito trágica, porque está fechada no seu sofrimento, mas tem uma pequena evolução de demonstrar um lado cómico do heroi trágico.

O que separa o trágico e o cómico é a perspetiva?

Sim, a questão de perspectiva está presente em todos os meus filmes.

Quanto aos etruscos: elemento que se revelou muito presente na sua obra. Já "As Maravilhas" tínhamos a personagem do pai que referia quando podia o espírito dos etruscos. E em “A Quimera” esse povo, apesar de serem “arqueologicamente violados”, são mencionados como uma alternativa histórica de Itália. Há uma sequência em que uma personagem quebra a quarta parede para provocar o espectador, afirmando que se os etruscos estivessem mais tempo em Itália do que os romanos, seriam uma sociedade diferente, uma sociedade não-patriarcal.

Então, em "As Maravilhas", contei como as pessoas, nos anos 90, começaram a vender a ideia dos etruscos, até o “ar” deles vendiam … uma ideia bizarra. Isso ainda não aconteceu em Portugal, de momento ainda vendem casas, mas quem sabe, pode ser que daqui uns tempos façam perfumes - "ar de Alfama" - e vendem desalmadamente.

Em "As Maravilhas", falo sobre quando, depois de vender os objetos, só restava vender a ideia. Mas "A Quimera" é sobre os objetos, é anterior. É o momento em que se descobrem os artefactos, e de que o mundo é materialista, não comercial a ideias. Não sei se os etruscos eram matriarcais. Não sou arqueóloga. É claro que uma das ideias sobre os etruscos é sobre uma sociedade, pelo menos segundo o que nos contam os romanos, onde na aristocracia, homens e mulheres estavam no mesmo nível. Mas não sabemos a realidade. Só podemos saber através do que os romanos escreveram: "Incrível, vamos ao jantar na casa dos etruscos e as mulheres estão lá falando como pessoas normais." Eles estavam muito assustados com essa normalidade, com as mulheres sentadas à mesa com os homens a falar sobre os seus domínios, não como prostitutas, mas como senhoras. Para os romanos, isso era um pouco desestabilizador.

Mas o que pretendia com essa ideia era lembrar que o patriarcado, por exemplo, é uma escolha histórica, não uma condição natural do ser humano. Houve um momento em que escolhemos esse percurso, essa direção, e isso é um facto.

Gostaria que me falasse sobre a contribuição de Pietro Marcello [realizador de “Martin Eden”] em “La Chimera”?

O Pietro Marcello escreveu o sujeito comigo, no sentido que fizemos a pesquisa juntos, entrevistando tombarolis, porque ele também vem de uma região, Caserta, perto de Nápoles, onde havia um grande mercado de objetos arqueológicos. Não eram etruscos, mas de outras populações. Depois, decidimos que seria muito complicado abordar várias regiões, porque de manhã é Grécia, amanhã na Itália e por aí fora ... Cada região tem o seu passado para vender. Para mim, era mais fácil concentrar-me na minha região, no passado da minha região e também nessa população que admiro muito. E quanto ao Pietro, somos muito amigos.

E trabalharam juntos no documentário “Futura” (2021).

Sim, trabalhamos juntos e sempre discutindo. Acho que, para mim, é muito importante colaborar, não só com o Pietro, mas também com Jonas Carpignano, Francesco Munzi, e toda uma nova geração de realizadores. Talvez porque o cinema está mais frágil, e a luta não é entre nós.

Precisamos estar unidos, porque a batalha é para salvar as salas de cinema. Talvez uma geração mais velha tenha experimentado um cinema mais forte, com mais contrastes entre autores. Agora, pelo menos na Itália, sinto-me muito próxima de outros cineastas, e não só na Itália, como também do Miguel Gomes aqui em Portugal. Sinto-me muito feliz em partilhar ideias, em colaborar, se possível. De facto, quis incluir o Pietro no argumento, porque começámos a pesquisar juntos.

Acho que é muito importante para as pessoas verem que os realizadores podem colaborar uns com os outros. Antigamente, Fellini trabalhou com Rossellini, e eles trabalhavam juntos. O argumento de "Le notti di Cabiria" foi escrito pelo Pasolini... Eles estavam todos muito conectados e se ajudavam mutuamente. Às vezes, escreviam guiões sem saber quem seria o realizador. Achavam: "Você vai fazer ou faço eu." E depois, passou um tempo na Itália onde tudo era muito "este é o meu, este é o meu", com grandes contrastes.

La-Chimera-Review-Movie-Film-Six.webp

Isabella Rossellini em "La Chimera" (2023)

Foi bom referir-se a uma nova vaga italiana, que apesar da frescura artística e um proeminente olhar para o futuro, possuem evidentes  traços com o passado cinematográfico italiano. Não querendo impor influências, mas consigo identificar o realismo mágico e folclórico do Ermanno Olmi no seu cinema. 

Ah, sim!

Julgo que tem uma grande admiração pelo Olmi, certo?

Sim, sim, tenho muita admiração por Olmi, como também pelo Rossellini

Faz uma vénia indireta em trabalhar com Isabella Rossellini … [risos]

O cinema de poesias, neste momento dá-nos maior  liberdade política que o cinema de narração, o de prosa.

Digo isto porque sinto que houve uma ruptura no cinema italiano em termos geracionais. Recordo há uns anos de uma polémica trazida por Gabriele Muccino, que a culpa dessa quebra de legado foi de Pasolini, que houve a quebra da cultura e um “culto ao autor”. Mas sinto que na vossa geração há esse vínculo com o passado, trazer uma herança para a frente.

A herança não é só fazer o seu filme, mas o método de fazer o filme também.

Aproveitando a deixa, tem novos projetos?

Eu queria muito, mas estamos numa altura um pouco trágica na Itália. O que é difícil avançar com qualquer ‘coisa’ em Cinema. O certo, é que trabalhei cinco anos numa antologia de fábulas. 

Algo à semelhança de Boccaccio ou até do “Il racconto dei racconti” [da autoria de Giambattista Basile], que fora adaptado por Matteo Garrone?

Não, nada de mundo fantástico, mais próximo ao real. 

Sabes que o Ítalo Calvino fez uma recolha regional de todos os contos de fadas italianos? São contos populares das diversas regiões italianas, também fez um trabalho bibliográfico, e atrás dele está o trabalho que fizemos.

Queria muito uma antologia de contos de fadas, também para crianças, para o público de amanhã, porque é importante saber o que vão consumir os nossos filhos. Não só o que a nossa geração consome, mas também a geração do futuro. Mas agora não sei se será o meu próximo projeto, porque produzir isso não está fácil. Veremos.

Como vê a indústria italiana nos dias de hoje?

Nós trabalhamos muito com dinheiro público, e isso, para mim, é algo muito bonito. Desde o começo, desde o meu primeiro filme, quando soube que havia dinheiro público para trabalhar, pensei na grande oportunidade e na responsabilidade de restituir algo à coletividade. Agora, o governo cortou a maioria dos apoios públicos.

É possível trabalhar com dinheiro privado, mas isso traz um problema ético, porque o setor privado precisa vender algo.

É um pouco como o último filme de Nanni Moretti, no momento em que ele tenta vender o filme à Netflix e eles exigem um “momento WTF”.

Depois, naturalmente, sei que sempre trabalho com produtores independentes que protegem o meu trabalho. Mesmo quando fiz "Le Pupille" (2022) com a Disney, tive muita liberdade; ninguém me disse o que tinha de fazer. Então, é possível trabalhar com grandes companhias privadas e ainda assim ser-se livre.

Mas, ao mesmo tempo, gosto da ideia de trabalhar com o Estado, com o Ministério da Cultura, de ter interesse cultural no que fazemos, e não apenas como uma imagem para vender ‘coisas’, ser-se antes um projeto cultural. 

Neste momento, o projeto cultural da Itália está um pouco encalhado.

Itália, como te vejo, como te descubro ...

Hugo Gomes, 04.06.24

Chang-La-Chimere.webp

Alice Rohrwacher é, em toda a sua essência, filha de Itália, e é dessa herança que tece a sua carreira sem um olhar defunto, sem um corte com os que antecederam, nem com indiferença a quem a procede. Itália, esse país, mais que isso, instituição, ideia, podendo experimentar como um mote para a reunião dos três tempos [passado, presente e futuro], estabelecendo no seu centro, um quarto, invisível, não estagnado, não morto, apenas vivo e confluido, uma alegoria. 

A partir da sua segunda obra - “Le meraviglie” (2014) - prosseguindo na felicidade do ignorante e quase mudo Lázaro (“Lazzaro felice, 2018) e agora com “La Chimera”, contemplamos um território à deriva nos diferentes estados-terrenos, personagens que equilibram entre os que viveram e os que viverão, na tristeza entranhada no olhar quase vítreo dos protagonistas (seja de Adriano Tardiolo, o nosso referido Lazaro, seja em Josh O’Connor, o Arthur aqui nos presenteado) e o passado, ora representado em memórias trovadas, ora enterrados em artefactos arqueológicos. Há diálogo neste constante trabalho de Rohrwacher ao longo dos seus filmes, e não apenas nos etruscos como alternativa da história italiana ou de marquesas iludidas e reféns da sua época, nos seus “castelos” em decadência, ou do contagiante realismo mágico com “pós” de Fellini a Pasolini

Não, esse tal diálogo (figuradamente falando) encontra-se naquela luz divina, carregada nas palmas da pequena Gelsomina (Maria Alexandra Lungu) em “Le meraviglie”, fingindo beber dela os seus dotes celestiais (curiosamente “Corpo Celeste” é o título da sua primeira longa-metragem), ou aqui, Arthur “salvo” por esse contacto atribuído a algo que ultrapassa a sua existência, o destino talvez. Mas afinal do que se trata “La Chimera”? Um estrangeiro tragicómico, que tem tanto de cavaleiro da demandas de Olmi (uma das paixões cinéfilas de Rohrwacher) como do slapstick desajeitado de Jacques Tati ou Buster Keaton, preso numa miserabilidade cómoda e que mesmo, errante ou simplesmente encalhado, subsiste como talentoso “tombaroli”, termo atribuído a salteadores de tumbas de etruscos, ou violadores de sepulturas como bem entenderem apelidar, que saqueiam os objetos fúnebres para depois vender no mercado. 

la-chimera-2-1600x900-c-default_custom-67943a67274

Arthur, de dom (ou maldição, conforme a perspetiva) subaproveitado, convive na companhia dos desesperados, dos trafulhas e dos espirituais, ele é uma Itália invadida e perdida, mas não é a Itália que Rohrwacher anseia como modelo. Essa, uma dádiva que partilha igual nome do país, aqui incorporada por Carol Duarte, atriz brasileira potente em “Vida Invisível” de Karim Ainouz [belíssimo filme devo destacar], outra estrangeira portanto, mas é na sua intenção para com os três ditos tempos que nos apoiamos. O desejo, a reabilitação, a transformação, o respeito pelo sagrado, pelo profano e pelo memorialismo, a Itália hoje renegada para se chegar a outras oposições. 

Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão