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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Quem quer vendar os cineastas de intervenção?

Hugo Gomes, 29.01.25

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Mohammad Rasoulof, O cineasta político iraniano? Hipocrisia, tendo em conta que o Irão fervilha nessa corrente de cineastas em inversão aos interesses do Estado. São vozes, maioritariamente silenciadas, que, para contornar a censura e as consequências agravosas, estabelecem pacto com a alegoria e a subtextualidade. Contudo, cada vez mais assertivos na mensagem. O Ocidente alimenta-se dessa fúria, emoldurando-os numa vaga de cinema iraniano difundido por festivais e escolas. Rasoulof lidera, sempre a pisar nos calos do sistema, essa provocação, esse ativismo urgente de punho mais do que cerrado e peito aberto às balas, conduzindo um cinema que não mata, mas, parafraseando o saudoso Raul Solnado, desmoraliza e muito a escadaria do Poder.

Talvez o crescente interesse sobre o realizador e a sua ascensão nesse estatuto de cineasta de intervenção se deva sobretudo ao anterior invicto Jafar Panahi, agora encostado ao meio rural, saboreando as suas parábolas de reinante obscuridade (“3 Faces”, “No Bears”). Porém, nessa linha, devemos salientar o nome de Ali Ahmadzadeh — cujo "Critical Zone" abocanhou o prémio principal de Locarno em 2023 —, e já apontado como um avançado na quebra de tabus estabelecidos.

Entre os filmes do momento, absorvido pela atenção ocidental, "The Seed of the Sacred Fig" insere-se na sua alegoria familiar. Laureado com o Prémio Especial do Júri em Cannes, enraíza-se no terreno fértil da indignação coletiva, solo nutrido pelos protestos desencadeados após a trágica morte de Mahsa Amini, em 2022 — jovem arrancada à vida pelas mãos da Polícia dos Costumes, numa punição que refletia o peso insuportável das normas do "hijab". Imagens amadoras e clandestinas dessa indignação intercalam a narrativa, induzindo um senso de zeitgeist que arrasta tanto espectadores como personagens para a atuação do contexto político-social.

Enquanto isso, no seio de uma família — não uma qualquer, mas a de um juiz do Tribunal Revolucionário de Teerão, recentemente promovido —, Iman (Misagh Zare) vê-se encurralado por um acontecimento “banal” e perturbador: o desaparecimento da sua arma — símbolo inequívoco do poder estatal — dentro de casa. Essa ausência, sombra corrosiva, ameaça não apenas a reputação profissional, mas também a estabilidade do lar. Na tentativa de resgatar o objeto perdido, Iman torna-se uma figura inquisidora, tensionando a relação com a esposa (Soheila Golestani) e as filhas (Mahsa Rostami e Setareh Maleki), estas últimas profundamente envolvidas no turbilhão das revoltas.

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É na pele da esposa que o filme adquire intenção. Não persuadir uma verdade, mas usar o seu estatuto de cônjuge, mãe e doméstica como ponto de partida para a alegoria, equiparável à Caverna de Platão. O primeiro choque com a realidade humana dá-se na sua descrença, plena confiança nos meios comunicacionais — a televisão, aqui instrumento propagandista estatal, alterador da verdade — e na função do marido, que vindo dele apenas e somente a “verdade inquestionável”. Neste papel de estabilizadora doméstica, insurge-se contra verdades e mentiras: manter a paz dentro das quatro paredes, mas a que custo? O filme avança através desse questionamento, dessa resistência, culminando na entrega e combate à Ordem estabelecida. Iman converte-se no catalisador bruto da ordem e da tradição opressora, e a arma, o macguffin simbólico, concentra o peso de um Poder destituído e a procura da sua restituição, num conflito silencioso desembocado num último ato de completa anarquia familiar. Mulheres unidas para derrotar a essência de uma ordem patriarcal encarnada num pai que se revela tirânico.

Esse jogo de tensões, elástico prestes a romper, culmina numa extraordinária potência imagética. As imagens, meticulosamente arquitetadas, transcendem o literal, insuflando um imaginário revolucionário que ecoa muito além da tela. A arma, a poeira, a mão hirta do defunto / derrotado — assim dito para evitar revelações excessivas — constroem uma gramática visual que é, simultaneamente, um statement e um grito abafado, e igualmente libertador. Uma observação de um regime sustentado não apenas pelos pilares do patriarcado, mas pelos véus densos de um fundamentalismo que tudo encobre.

No fim de contas, um thriller sem suavizações politizadas, um megafone que brada bem alto a sua mensagem, com direção ao Mundo, aproveitando a sua globalidade enquanto ainda pode, e nessa linguagem, como digamos universal, o cinema, as imagens, a suas causas-efeitos. O Ocidente aplaude, premeia, Rasoulof arriscou o pescoço... mais uma vez, no seu gesto mais gritante desde o clandestino "Manuscript Don’t Burn" (por cá, apenas exibido no encerramento de uma edição do Doclisboa). A sua estirpe como realizador da revolução ainda está por vir, mas, por agora (e ainda), é apenas um fazedor de cinema como ato de resistência.

Táxi!!

Hugo Gomes, 25.11.23

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Like Someone in Love (Abbas Kiarostami, 2012)

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Total Recall (Paul Verhoeven, 1990)

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Night on Earth (Jim Jarmusch, 1991)

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The Fifth Element (Luc Besson, 1997)

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Colateral (Michael Mann, 2004)

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They All Laughed (Peter Bogdanovich, 1981)

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Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976)

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Taxi (Gérard Pirés, 1998)

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Taxi (Jafar Panahi, 2017)

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No Táxi do Jack (Susana Nobre, 2021)

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Scrooged (Richard Donner, 1988)

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A Taxi Driver (Jang Hoon, 2017)

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The Day After (Hong Sang-soo, 2017)

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It Must be Heaven (Elia Suleiman, 2019)

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The Bone Collector (Phillip Noyce, 1999)

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2046 (Wong Kar-Wai, 2004)

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Happy Together (Wong Kar-Wai, 1997)

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In the Mood for Love (Wong Kar-Wai, 2000)

Cresce e aparece! Close-Up recorda infâncias e adolescências na sua 8ª edição

Hugo Gomes, 12.10.23

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O tema pode ser "Infância e Adolescência", mas, ao contrário do que indica, o Close-Up está bem "crescido" nesta 8ª edição. A decorrer de 14 a 21 de outubro na Casa de Artes de Famalicão, o Observatório de Cinema apresenta-nos mais uma galeria cinematográfica que orbita em torno desse território familiar, expandindo-se para eventos e diálogos, novamente pontuados com convidados de honra para enriquecer as sessões, concertos, leituras e sobretudo, amor pelas imagens, digamos, e à boa maneira, um amor bem "adolescente". Sobre a programação, ninguém melhor do que o programador, Vítor Ribeiro, para nos falar dela. Através deste convite do Cinematograficamente Falando ... chega-nos um teaser para este tão esperado "coming-of-age".

Gosto de pensar no Close-Up como algo animado, com vida própria, aproveitando os seus temas, títulos digamos assim, que fortalecem essa imaginada existência. Depois da viagem, o Observatório de Cinema assentou, constituiu família e agora recomeça sob o mote da Infância e Adolescência. Gostaria que me falasse do tema e de que forma enquadra-se na mostra deste anos, e já agora, sem querer revelar os ‘segredos’, como funciona a escolha destes temas, se esta narrativa é só da minha parte ou existe mesmo intenção de dar vida própria ao Close-Up?

Sim, a tua abordagem é correcta: há uma tendência dos motes se entrelaçarem com os anteriores, como se fossem sequelas de um filme que começamos a rodar em Outubro de 2016. O tema Infância e Juventude esteve no Close-up desde a primeira edição, inicialmente como secção. O cinema ao longo da sua história sempre integrou esta temática e permitiu apresentar olhares complexos sobre um dos períodos mais desafiantes da nossa existência, em que em simultâneo nos desafiamos na conquista da autonomia, enquanto assistimos à transformação do nosso corpo e das tensões que isso provoca com o contexto familiar e social. Curiosamente, nos últimos anos estrearam vários filmes de autores que trabalham esta temática, em que destacamos Jonas Carpignano, do qual exibiremos “A Chiara, o que permite uma boa mescla com filmes de autores importantes da história do cinema que revelaram habilidades particulares a lidar com a infância e juventude, como Abbas Kiarostami ou Maurice Pialat.    

É difícil falar de Infância no Cinema sem sequer mencionar o trabalho de Abbas Kiarostami, evidentemente o santo padroeiro do “Close-Up”, na programação o escolhido para representar essa filmografia é “Onde Fica a Casa do Meu Amigo” (“Where Is the Friend’s House?”, 1987). Sabendo que Kiarostami tem vasta obra sobre infância, crescimentos e até mesmo escolaridades, como recaiu a escolha deste determinado filme?

Onde Fica a Casa do Meu Amigo” é um filme muito importante dentro deste tema e também quando se olha para a obra de Kiarostami. Por um lado, não é possível fazer uma genealogia de um cinema sobre a infância sem incluir este filme, sem pensarmos nesta criança, em Ahmed, e na sua jornada para cumprir a missão de devolver o caderno do amigo. Uma criança que conquista a autonomia a pulso, que percorre uma larga distância num território difícil, analogia também de um regime político opressivo, o do Irão. É também o filme que abre a Trilogia do Terramoto, que permitiu a Kiarostami começar a desenhar a estrada da sua filmografia com a descoberta do seu cinema na Europa, premiado com o Leopardo de Ouro em Locarno

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História Trágica com Final Feliz (Regina Pessoa, 2005)

Reparei que esta edição seja provavelmente das que menos acompanha a “espuma dos dias” em relação aos filmes, temos este ano uma programação que reúne, não só Kiarostami de ‘87, mas como também John Cassavetes, Glauber Rocha, Maurice Pialat e a obra-prima de Vittorio de Sica [“Ladri di Biciclette”].  

O programa do Close-up procura sempre o cruzamento entre cinema do presente e história do cinema, na concepção de que o desenho de uma programação pode acrescentar importância e singularidade a cada um desses filmes, que assim conversam uns com os outros. Se há algo que define o cinema é a sua capacidade de incutir memórias, de as transmitir entre gerações. Procuramos aproveitar um crescente e positivo movimento na distribuição, na disponibilidade de títulos da história do cinema com obras restauradas digitalizadas. E procuramos retirar peso à ideia de história do cinema, e fazê-la chegar aos vários públicos, incluindo a população escolar, na exibição de “Ladrões de Bicicletas”, que para além de se constituir como um objeto incontornável do neorrealismo, é também uma narrativa sem tempo, uma história universal, a relação entre um pai e um filho. Quando juntamos Cassavetes a Glauber Rocha, procuramos um diálogo possível, estabelecido numa barra temporal, mas também num discurso e num conjunto de ascendências comuns a estes dois cineastas. 

O que me pode dizer sobre os convidados deste ano, e do foco da animação portuguesa (especialmente a retrospectiva a Regina Pessoa) neste Close-Up.

Na secção Fantasia Lusitana procuramos distinguir um cineasta ou uma corrente singular do cinema português. Num ano em que se assinala o centenário da animação portuguesa, Regina Pessoa foi a escolha imediata para esta edição. O percurso premiadíssimo dos seus filmes não é suficiente para definir a importância de uma obra dentro do cinema de animação, que estabelecerá por certo uma influência nas próximas gerações. Regina Pessoa convoca para o seu trabalho um conjunto de temas, arriscaria obsessões, que a tornam uma artista única e que deve ser vista também fora dos festivais de animação e por vários públicos, incluindo o escolar e quem está a aprender a trabalhar com imagens, animadas ou outras. 

Este ano temos Paul Schrader e terror à portuguesa, mas em leitura. Pergunto desta forma, cinicamente ingênuo, o Cinema também se lê?

Os livros começaram a aparecer naturalmente no programa do Close-up, quando criamos a rubrica Café Kiarostami, que permite desenhar tangentes com a sala de cinema, através de outras disciplinas. Os livros sobre cinema são um contributo indispensável para uma relação privilegiada com o cinema, no âmbito da crítica ou da estética. Os exemplos desta edição ajudam a esclarecer as nossas motivações. O livro do Paul Schrader – “O Estilo Transcendental no Cinema”– auxilia a relação com um dos autores importantes do cinema americano, primeiro como guionista e cronistas dos anos setenta, para depois se impor como realizador, um autor que mantém a sua relevância no presente. O caso da edição de “O Quarto Perdido do Motelx", ajuda a descobrir filmes e autores do cinema português, com várias vozes que nos orientam nesse labirinto. 

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Where Is the Friend’s House? (Abbas Kiarostami, 1987)

40 Anos de Sétima Legião … Comemoração, ou urgência de reavivar a banda de sucesso, hoje, digamos, muito discreta?

Um dos destaques de cada edição do Close-up são os cruzamentos artísticos, principalmente entre cinema e música, que conduziu em anos anteriores a respostas a encomendas da Casa das Artes que resultaram em filmes-concerto em estreia por Sensible Soccers, Dead Combo, The Legendary Tigerman, Mão Morta ou Orquestra Jazz de Matosinhos. É uma forma, também, de dialogar com a história do cinema, que foi o que proporcionou esta relação com a Sétima Legião, com quem queríamos há muito colaborar. Esta apresentação da Sétima Legião abrirá com a música em diálogo com “Um Tesoiro” (1958), uma curta-metragem de António Campos, um autor com quem a Sétima Legião encontrou fortes afinidades temáticas neste trabalho conjunto. O concerto que se seguirá, celebrará de forma viva quarenta anos de canções, de uma das bandas que melhor preenche o património das nossas memórias.  

Tendo em conta o percurso do Close-Up, para o ano estará a viver os primeiros romances?

Daria um bom mote. Mas para o episódio 9 ainda não o definimos, até porque ainda estamos a pensar nas réplicas do episódio 8, três momentos de programação (Janeiro, Março e Maio) onde voltaremos ao tema Infância e Juventude, e às obras de John Cassavetes e Glauber Rocha. O mote de cada edição, além dessa preocupação de se relacionar com as edições anteriores, depende em grande medida dos filmes e dos autores que queremos mostrar e associar. Como um bom treinador, que define a sua equipa não tanto através da obsessão de cumprir uma táctica ou um sistema, mas antes na preocupação de colocar em campo os melhores jogadores.

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Ver toda a programação aqui

Vozes do Irão passado ecoa no Irão de hoje

Hugo Gomes, 23.08.23

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Ebrahim Golestan (1922 - 2023)

Kiarostami, Panahi, Farahi, Rasoulof, entre outros, os “monumentos” do cinema iraniano hoje citados vezes sem conta, não nasceram ontem, nem caíram do céu, integram, sim, um legado construído tijolo a tijolo, reflexo a reflexo. Hoje, aos 100 anos, Ebrahim Golestan, um dos pais dessa modernidade soada em estado de resiliência desde o seu ínicio, despediu do mundo, deixando uma obra que captou a transformação de um Irão, que por mais reformas “sofridas”, viria a culminar naquilo a atualidade nos presenteia (basta ir à notícias e entender do que falo). Resistência, palavra de ordem ou punho erguido, a opção de luta, mas nele, o segue o pensamento-base que Golestan (assim conhecido) incutiu nos seus dramas familiares ou nas curtas-documentais sobre mudanças agrárias ou petróleo em plena combustão. Parte da sua obra foi vista na Cinemateca no início deste ano, em forma de “capturar” a atualidade de revoluções (ou supostas promessas de revolução). Deste lado, com este texto ingrato (diria até despreparado) recomendo o filme que espiritualmente povoa nestas palavras - “The Brick and the Mirror” - um jogo de éticas e moralidades, com responsabilidades que “reflectem” (novamente invocado) um Irão de amanhã.

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The Brick and the Mirror (1964)

"Empty Nets": à caça da enguia

Hugo Gomes, 27.07.23

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Não são apenas jovens inconscientes, mas jovens precários, deambulando pelo mal-amparo social, resultado de políticas, muitas delas conservadoras, que nada acrescentam ou acompanham na vida das gerações futuras, com ambições de emancipação. Poderia ser a história do dia-a-dia em qualquer região do mundo ocidental e industrializado; basta ligar o noticiário ou abrir o jornal do quiosque para nos depararmos com a enchente de notícias e relatos de jovens sem a capacidade de auto-sustentabilidade, sem um emprego que corresponda às suas habilitações ou a uma crise habitacional que agrava essa tão esperada 'saída da casa dos pais'.

Neste caso, vamos ao Irão; por momentos, fazemos "festinhas" ao fervor social que lá habita, renegando o cinema-denúncia feroz que nos é encaminhado - Panahi, Rasoulof - nada disso, a "politiquice" está enraizada, ou quem sabe, mais universalizada. Aqui, a questão é de foro moral, de integridade perante as adversidades do seu meio. Nesse território, tem sido Asghar Farhadi a dançar por entre os holofotes da ribalta; por sua vez, o estreante Behrooz Karamizade vagueia pelos dilemas de um jovem forçado a seguir vias ilícitas para conquistar o seu horizonte (e casar com a sua ‘rapariga dos sonhos’), antes disso, sendo enganado pelos seus próprios ideais, convicções que o trapaceiam ao invés de o beneficiar à luz do seu meio social.

Portanto, o também estreante Hamid Reza Abbasi, o lesado Amir - um talentoso nadador que faz uso da sua arte ao participar num comércio negro de caviar (iguaria para ocidentais, sempre a ocidentalidade como a erva-rato dos nossos dias) - encontra-se em tal situação como uma restrição de um avariado "elevador social" e de doutrinas religiosas diluídas nesta sua comunidade. Subsistindo nestas tarefas à margem da dignidade ou da lúdica caça de enguias como um escapismo pecaminoso para pescadores presos no seu status social (o ópio dos miseráveis). Enquanto linguagem, é a universalidade que muitos poderão identificar-se com a jornada descendente do jovem com integridade sem partilhar tais características culturais; fora isso, resume-se a um filme de pretensões mal resolvidas para com os seus induzidos traumas, cuja miopia do protagonista nos leva a uma trama ego-central, onde o restante biótopo povoa em jeito de "por favor”.

Ou seja, “Empty Nets” faz uso das suas próprias redes em busca de peixe graúdo, mas apenas consegue “pescar” miúdo devido à sua inexperiência, seja formal, temática ou sintática. O percurso talvez seja longo, e nada disso impedirá Karamizade de crescer, amadurecer num futuro próximo; porém, no momento, pode-se supor que é grande num registo que o leva ao rascunho e não mais do que isso. Como também é o seu território, o Irão como laboratório do cinema-denúncia mordaz que o jovem realizador não parece fazer jus aos requisitos.

Hitler por um dia ...

Hugo Gomes, 12.09.22

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Encaremos a hipotética “Terceira Guerra Mundial” como uma fantasia post-it, relembrando a facilidade com que a História se repete e de que maneira as utopias não são mais que meras ilusões ditadas por otimistas delirantes. O título desta sexta longa-metragem do iraniano Houman Seyyedi emana esse lado fantasmagórico, um cenário pós-apocalíptico apenas residido numa cultura de medo, cuja possibilidade está a um mero passo da Humanidade e ao mesmo tempo soa-nos longínquos perante os avisos da Memória (a “Terceira Guerra Mundial” é um grito de quem está à beira de precipício, ora salta, ora cede ao medo de cair). Ou seja, não encontramos aqui nada de bélico ou de conflito global que nos incute essa apontada miragem, o que extraímos é a percepção e através de tal uma metamorfose gradual de um protagonista embarcado no desespero do seu meio, “imperativamente” conduzido a um papel crucial numa encenação histórica. 

Desta forma seguimos Shakib (Mohsen Tanabandeh, que vimos bem representado em “A Hero” de Farhadi), um homem oscilando entre precaridades e sonhos inúteis, que consegue um trabalho enquanto figurante numa produção sobre o Holocausto. Shakib torna-se, por momentos, num judeu “faz-de-conta”, condenado a percorrer uma pista de horrores de arame farpado e câmaras de gás, tudo em nome da ficção, observado atentamente por “cruzes suasticas” e um lider de expressões rochosas. Contudo, o “vento mudou de curso”. Devido a um acidente, o protagonista de tal filme - o “Hitler requisitado” - é obrigado a afastar-se, deixando a produção à mercê de uma nova e rápida contratação. Entretanto, o realizador nota em Shakib algo, possivelmente as expressões faciais necessárias para o seu retrato histórico, “resgatando-o” da mera “plebe” da figuração e o posicionando a um destacável holofote. Shakib terá assim que vestir a pele do “impostor”, jogando-se no body double deste igualmente hipotético símbolo do Mal. Com isto vai metamorfoseando, subtilmente, graças à encarnação imposta. E quando a vida do mesmo, literalmente, a persegue, encurralando-o num alarmismo emocional. A ficção funciona como um exemplo a seguir e a realidade é nos invocada sob um selo de “déjà vu”, e tal, consolida-se num final imperdoável. 

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A “Solução Final” de uma guerra que ainda não chegou nem saberemos se irá chegar. Serão as “histórias do papão” a fazer caso? Mas esta guerra, seja terceira, primeira ou derradeira, nasce dentro de nós, neste caso, o protagonista que vai crescendo até se tornar num protótipo de um megalómano ditador. Dá vontade de estampar aquela frase atribuída (ou falsamente atribuída) a Edmund Burke, hoje vulgarizada em tempos de redes sociais e de cumplicidades nas palavras de outros - “O Mal impera porque porque os homens de bem nada o fazem para impedir” - neste caso o “Mal” nasce pela ausência de empatia ao próximo e pelo próximo, assim como o distanciamento económico-social, ingredientes que semeiam “monstros”, incompreendidos ou não, revanchistas para com as injustiças a que foram sujeitas anos a fios. 

Sentimos compaixão por Shakib? Não, até porque Houman Seyyedi estabelece uma distância entre o espectador e este protagonista em descida infernal ao seu desconhecido interior, um homem de medos, de hesitações, delator, mentiroso, demasiado ambíguo para merecer a nossa confiança. Encontramo-nos na sua presença, mas nunca na sua companhia. Mohsen Tanabandeh trabalha esse Shakib numa atuação underacting, fortalecendo esse repelente de intimidade, um “homem-bomba” prestes a explodir. Ou será uma ameaça? Como a “Terceira Guerra” é nos dias de hoje. Um medo criado para impedir “explosões”. E quanto a nós, que ditamos internamente a mesma “cantiga”, cultivando esse receio de algo global como uma atração às nossas próprias guerras, iminentes conflitos prestes a desencadear. “World War III” é esse estudo de personagem, posicionando o indivíduo na sociedade sem nunca o interpretar e reinterpretar. 

Vindo do Irão, onde comumente são denúncias políticas, ora embelezadas em metáforas, ora escancaradas na mensagem óbvia, surge-nos uma tragédia pessoal e sobretudo global. Seyyedi deve ter apertado a mão de Asghar Farhadi quanto ao território moral a explorar e a incitar (o mencionado “A Hero” joga pelos mesmos dilemas se formos a ver bem), mas vai mais longe do que a somente provocação.

 

*Filme vencedor da secção Orizzonti da 79ª edição do Festival de Veneza

Para Farhadi, heróico é questionar a moral

Hugo Gomes, 05.03.22

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Penso que se o seu objeto fílmico é sobre as pessoas e as sociedades a que correspondem – por detrás do aspeto político – até temos que abordar a moralidade. Não quero ser um cineasta político, porque não dialogo diretamente com a política, até porque não é essa a minha função enquanto realizador. Já sobre a moralidade, isso sim, é do meu respeito. Procuro algo que me diga que isto é certo ou é moralmente errado. Não sabemos como o calcular, por isso é que os meus filmes são acerca de dilemas. Como o caso de “o filho tem razão”, mas questionamos o porquê dessa razão e assim passamos ao campo moral das coisas. Mas eu não embarco nos filmes como incentivo para criar situações morais, apenas descrevo-os e deixo o espectador ir em direção ao território-moral.” [Ler a minha entrevista aqui].

Asghar Farhadi deseja e demonstra separar-se do rótulo de "cineasta iraniano”, o tipo de cineasta que a curiosidade ocidental vê com “bons olhos”, aquele que se comporta como ativista anti-sistema e de denúncia político-social, diversas vezes sofrendo com as consequências desses seus atos fílmicos (ver os casos de Mohammad Rasoulof e Jafar Panahi). Não com isto afirmando que o Ocidente não olhe com “carinho” para Farhadi, aliás, a moralidade é também política e acima de tudo um desafio à nossa consciência ditada pelos costumes do Velho Mundo ou da cultura judaico-cristã. Essa mesma declaração de um cinema moral e que provoca as convenções da mesma, estabeleceu-se como bandeira produtiva do realizador, que ocasionalmente “sai da sua toca” para elaborar exercícios europeus (“Todos lo Saben”, “Le Passé”) com enfoque nas veias teatrais que o próprio refere como sua génese.

Mas é no Irão que os labirínticos dilemas tomam posição, chocando culturas (a Oeste ou a Este) e em certa forma colocando-as à luz da mesma lente. Ora, “A Separation” (2011), um divórcio à moda iraniana que alberga um joguete de consciências, conquistando Berlim e posteriormente o Òscar, atribuiu ao cineasta o seu passaporte de “world cinema” (designação de cinema internacional que chega e popularidade nos EUA). Passados cinco anos, a estatueta volta a “escorregar-lhe” para as mãos com “The Salesman”, uma combinação necessária do universo dramatúrgico de Farhadi (com base na peça “Death of a Salesman” de Arthur Miller) com o tal “território-moral” a diluir as duas dimensões numa concebível ao espectador-testemunha-júri. Depois da pausa em terras espanholas com “Todos lo Saben” (com resultados não tão satisfatórios assim), “A Hero” traça ainda mais a fundo essa referida veia de repto, elaborando o trilho de um recluso que orquestra um plano para atingir automaticamente a liberdade por mérito próprio. Asghar Farhadi não esconde o jogo, a personagem é imoral e o seu ato é de má índole, mas é o percurso trazido pelo mesmo, por vezes embatendo em conflitos “kafkianos”, que o espectador é incentivado à mais custosa das questões: “podemos ter empatia para quem empatia não possui?

Através deste “regalo”, somos induzidos a um confronto entre razões e uma proposta de desconstrução arquitetónica (cada com a sua perspetiva) à definição de “herói”, o indivíduo máximo da moralidade na sociedade. O retorno ao Irão é propício a esses dilemas, uma sociedade “estranha” aos olhos ocidentais opera como uma distopia possível sobre as mais variadas questões morais e éticas. Como tal, “A Hero” é uma “caixinha” de tópicos para um debate pós-sessão, e Farhadi feliz para que isso aconteça.

Os Melhores Filmes de 2020, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 31.12.20

Nem sequer vou debruçar sobre o ano 2020 (essa data em que cada um de nós possui uma história particular para contar, possivelmente com desilusões e adversidades no meio) mas, como chegou aquela altura que se torna quase imperativo nomear 10 filmes (com estreia comercial no nosso pais) para os já habituais pódios, eis que, por fim, meto as mãos à obra. E mesmo sob adiamentos, cancelamentos, migrações para streamings, eis um cinema ainda rico de emoções, temáticas e estilos que, por momentos, fizeram-nos esquecer os 'coronavírus' e o mundo de avesso. Aqui, neste leque, o conflito israelita-palestino contínua presente, o Brasil demonstra a sua resistência e urgência, as mulheres tornam-se protagonistas das mais ricas narrativas do ano e a Reboleira é palco de uma das maiores evasões do cinema português. Eis que segue os meus 10 filmes de 2020:

 

#10) The Invisible Man

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“Se haverá sequela, universo partilhado ou "spin-offs" de qualquer natureza ainda é cedo para prever, mas, por enquanto, Leigh Whannell conseguiu um filme que vive por si só e, ao contrário do seu “monstro”, não tenciona mesmo passar despercebido. E com isso temos aqui uma entusiasta surpresa do cinema de género entregue por um grande estúdio de Hollywood.” Ler aqui

 

#09) There is No Evil

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Tido como um dos ditos realizadores iranianos “proibidos”, Mohammad Rasoulof comprometeu a sua carreia a denunciar, o que o levou (e leva) a inúmeras sentenças e consequências em território nacional. Com There is No Evil, vencedor do Urso de Ouro no último Festival de Berlim, prova, além da sua habilidade de “whitlesblower”, uma capacidade narrativa e de extrema sensibilidade (sem maniqueísmos propagandistas). Através do tema da pena de morte, ainda em uso no Irão, Rasoulof expõe quatro histórias sobre contactos diretos e indiretos para com essa questão político-social. Um relato que vai desde as vítimas até carrascos, decisões a dilemas, paz e tormento, passando por um primeiro ato de pulsações arendteanas [“A Banalidade do Mal”] até a um montanhoso e intacto limbo para acarretar culpas e humanismos. Sim, é um filme de tema a demonstrar que é mais do que somente o seu mesmo, é Cinema com causas e efeitos.  

 

#08) Les Miserábles

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“Mais do que tudo, o realizador Ladj Ly prova o seu conhecimento, a sua vivência e a sua humanidade. A sua sede por um cinema de sangue na guelra, imparcial e, ao mesmo tempo, que denuncia sem ser ideologicamente agressivo ou ter alicerces nas tendências do "cinema verité" [cinema-verdade].” Ler aqui

 

#07) Corpus Christi

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““Corpus Christi” revela-se encantado com esses métodos de redenção, na farsa que impõe e prolonga, com frieza técnica e o desempenho visceral do seu protagonista, Bartosz Bielenia, o qual, como Cristo, “abraça” o seu estatuto de mártir em cada missa. Com um olhar atento à imagem do seu Salvador, segundos antes de dar início à sua leitura religiosa para com os demais, (...)  poderia ser um "running gag", mas é uma reflexão da nossa capacidade de superar adversidades, cinicamente ligada ao estatuto que ansiamos ter neste mundo.” Ler aqui

 

#06) O Fim do Mundo

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“O Fim do Mundo” “captura” um universo em extinção e o encara como a sua propriedade, preservado em âmbar, neste caso em filme com as promessas da sua “eternidade”. Uma coprodução luso-suíça que envergonha muitos da sua espécie e da sua nacionalidade pela forma como bravamente utiliza o “know-how”, pavimento de sugestões, fora-de-campos e o “desenrasque” (palavra tão portuguesa) para nunca perder a credibilidade deste quadrante de violência em cada esquina.” Ler aqui

 

#05) Portrait de la Jeune Fille en Feu

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Jean-Claude Brisseau deixou-nos somente há poucas semanas, mas é um facto que sentimos aqui uma réstia da sua vida no convívio espectral que Portrait de la jeune fille en feu estabelece entre a carnalidade dos corpos das atrizes até às premonições de um fim próximo: “Porque que é que os amantes sempre pensam que estão a inventar o romance?“. Não se fica pela coincidência o nome da realizadora com o filme Celine de Brisseau, ou do referido contrato com as entidades extranaturais, mas também a exploração do prazer feminino, embrulhado sob uma definição de romance platónico, que já por si é um dos temas cada vez mais tabus para direções masculinas.” Ler aqui [texto escrito durante a sua estreia no Festival de Cannes]. 

 

#04) It Must be Heaven

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“Portanto, em “It Must Be Heaven” somos deixados à geopolítica e com isso à globalização da sua mensagem, partindo para Paris até Nova Iorque, reconhecendo as metrópoles como um novo exotismo. Elia Suleiman filma-se a si próprio perante uma narrativa episódica, nada de igualmente novo na sua filmografia, porém, a sua costura autoral é gradualmente entorpecida perante um jogo de vontade. Saindo de Nazaré com um medo transluzente no seu olhar, deixando para trás os limoeiros que observa da sua varanda, as mulheres beduínas que carregam iogurtes pelo olival a dentro e os sacerdotes enfurecidos perante os rituais interrompidos (desta vez sem intervenção divina), e encarando um “Novo Mundo” com quem sente na pele a (desacreditada) Guerra sem fim (até mesmo o seu recorrente “I put a spell on you” entra na festa como uma recordação agridoce).” Ler aqui

 

#03) A Vida Invisível 

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“Este talvez seja, possivelmente, um dos filmes brasileiros mais belos dos últimos anos, que entra em diálogo com o mais belo produzido desta década – Elena, de Petra Costa. Ambos tornam-se cúmplices à melancólica derrota do desejo, o reencontro de um amor que só poucos perceberão a sua dimensão e que é disposto como uma busca à eternidade. A união que se desmaterializa como uma fantasia perante a ausência.” Ler aqui

 

#02) About Endlessness

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““Da Eternidade” nada restará (nem mesmo as ideologias com que abraçamos, aqui de maneira pictórica numa recriação do quadro “O Fim de Hitler”, de Kukryniksy), a futilidade da nossa sociedade que depende do transporte diário que encaminha milhões para as suas respetivas habitações como o seu mais consagrado Deus, marcando oposição a toda aquela matéria que supostamente constitui a alma. A nossa existência é ridícula, e até mesmo mesquinha, e Roy Andersson bem o sabe.” Ler aqui

 

#01) Martin Eden

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“Martin Eden” é, para todos os efeitos, um filme de coração-artista: tumultuoso e inquietante numa sufocante ânsia em criar a todo o custo. É assim a personagem (figura refém do desempenho anárquico e igualmente magistral de Luca Marinelli), é assim a obra que busca livremente os sopros do homónimo trabalho literário de Jack London (de cariz autobiográfico) para proclamarem como seus numa Itália abstrata e enevoada quanto à perceção de século XX.” Ler aqui

 

Menções honrosas - Small Axe: Lovers Rock, Mosquito, Uncut Gems, Da 5 Bloods, Soul