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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um beijo húmido na improvável sororidade

Hugo Gomes, 21.03.25

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A proximidade com que o espectador ocidental se envolve nesta história de hormônios e crushs faz com que “Girls Will Be Girls”, a primeira longa-metragem de ficção de Shuchi Talati, seja vista como mais um típico coming-of-age proustiano de uma jovem de 16 anos, aluna exemplar, que cede às tentações do seu corpo, disciplinado por um sistema educacional e familiar que o corpo, disciplinado pelo sistema, seja educacional ou familiar o dispõe, responde. Os estímulos estão lá, desde os beijos praticados nas costas da mão, seja nos estudos atentos aos órgãos reprodutores ilustrados em manuais ou outras ‘didactices’ de forma a explorar as possibilidades desse vasto universo da sexualidade, ou pelas escapadelas longe dos olhares alheios. 

"Girls will be Girls" anseia por ser um produto bem-comportado, rígido na sua própria doutrinação, mas nas entrelinhas deparamos, tal como a protagonista, num filme com desejo de romper as suas amarras, da assertividade da sua aprendizagem enquanto "promissora jovem", e da repreensão sexual. É no fundo um foge-e-esconde amoroso, com secretismos românticos, ou sexo entre a descoberta e a clandestinidade, sobre uma figura reflexiva da sua sociedade ultra-controlador e disciplinar numa gradual emancipação, e para essa via requer-se uma cumplice, aliás a anterior antagonista, a mãe (Kani Kusruti, "All we Imaginas as Light"), enfiada acidentalmente numa espécie de triangulo amoroso imaginário, ou quem sabe, o desejo de um Lolita inversa como pílula de uma juventude igualmente negada. 

Distanciadas por gerações, interligadas pela sua oposição criada por essa linha que as descompõe enquanto mulheres exemplares, encontramos, sim, em "Girls will be Girls" um filme feminista, no sentido em que elas despertam da sua sonolência social e entendem que para progredir frente às adversidades prometedoramente incólumes a união [sororidade] é a solução, mas até lá é uma dança pelo crescimento, pela revelação dos corpos, sentimentos, da lasciva condição o qual nos mantêm humanos. E por essa sensibilidade, o filme desliga de qualquer indicio de panfletarismo, daqueles hoje injectados no proclamado "cinema feminista", detendo nem um esforço de subtilidade. 

A urgência dos tempos, quase distópicos de retrocesso, talvez comprometa a mais ensaios desse tipo, denúncias de imediatismo e de clarividências fáceis, mas no cinema, ler para além do óbvio é também um exercício necessário para o espectador. Para que este não se torne um mero exemplar binário e polarizado, e sim o espectador crítico. "Girls will be Girls" triunfa pela sua disposição de ser codificado e de ser sentido como uma experiência coletiva e por vezes longínqua do nosso ser.

Os Melhores Filmes de 2024, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 23.12.24

… era uma vez, um episódio verídico …

Cheguei ao trabalho e, durante o render do turno, notei que o meu colega manejava no computador da empresa um ficheiro Excel enquanto, na sua secretária, ecoava o som de diálogos em português do Brasil entrelaçados com motores enfurecidos de carros de Fórmula 1. "Isso é a nova série do Ayrton Senna?", perguntei. "É sim!", a naturalidade da resposta me levou à seguinte e precisa pergunta, "e porque é que não a vês?". "Hã, eu já conheço a história, não é preciso vê-la." A resposta fez-me barafustar sobre o sucedido. As imagens tornaram-se banais, sem significado, portanto para quê defender a democratização das mesmas, as tais plataformas de streaming a rodos, se depois não são vistas nem apreciadas devidamente?

Elaborar tops, convém, não é só juntar um dezena de filmes que nos “tocaram no coração”, é também atribuir a essa totalidade um statement, - e tendo em conta os tempos e a sua gradual aceleração (cada vez mais), esta ofensiva contra a vulgarização imagética, ao sacrilégio do gosto do espectador (merece ser subvertido, sair do seu próprio umbiguismo), contra as esquadrias e as mensagens / storytelling como unilateralidade das produções audiovisuais -, um ato político. Por isso, não vos vou mentir, existir algo politizado aqui, uma marcha contra a inevitabilidade de um lufa lufa social. 

 

#10) The Teachers’ Lounge

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Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma.” Ler crítica

 

#09) Bowling Saturne

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“Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.” Ler crítica

 

#08) Evil Does Not Exist

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Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.” Ler crítica

 

#07) Megalopolis

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Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.” Ler crítica

 

#06) La Chimera

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“Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão!” Ler crítica

 

#05) Ryuichi Sakamoto / Opus

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“De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala.” Ler crítica

 

#04) Joker: Folie à Deux

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“(...) é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.” Ler crítica

 

#03) All we Imagine as Light

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“Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.” Ler critica

 

#02) Fallen Leaves

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“Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.” Ler crítica

 

#01) C'est pas moi

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““C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?” Ler crítica

 

Menções honrosas: Via Norte, Trap, Rapito, A Flor do Buriti, Le procès Goldman, Manga d´Terra

Ontem, hoje e amanhã em Bombaim

Hugo Gomes, 18.12.24

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Um médico aspirante a poeta anota os seus versos do quotidiano num pequeno bloco e entrega-os à enfermeira Prabha (Kani Kusruti), num gesto de enamoramento e igualmente em busca de aprovação — talvez por confiar na sua experiência calejada nesse meio de subsistência e saturação. Antes disso, porém, reclama das dificuldades da “tão frustrante” língua Hindi, no qual está a aprender: “Kal significa tanto o passado como o futuro.” “Não arranjes desculpas. Como irás melhorar sem trabalho árduo?”, admoesta a enfermeira, demonstrando o seu entendimento sobre a importância do esforço, enquanto seguem direito para a estação de comboio, numa noite chuvosa, fim de respectivos turnos. A casa será a paragem culminar, o breve descanso antes de um novo ritual citadino que os espera amanhã [futuro], e aí, o “kal” confunde-se com estas vivências: o ontem nada é que apenas um prolongamento do amanhã, e vice-versa.

A realizadora Payal Kapadia mostra-nos, desde cedo, ao que viemos. Após a dissipação dos créditos iniciais, passamos pelas germinadas sementes documentais sobradas de “A Night of Knowing Nothing” (a sua primeira longa-metragem, 2021): entre as castas de trabalhadores, pela nocturnidade transformada em mera produção, e pelos olhares extenuados, esmagados pelo cansaço, daquela gente automatizada a existir e a preencher os seus lugares designados. É uma “alcagoita” do real, uma não-ficção — ou melhor, o tal poema do quotidiano que mais tarde será partilhado. Kapadia transforma este momento no seu “Hiroshima Mon Amour”, em que o documentário se rende à ficção, e o drama destas vidas emerge, partindo do plano geral para o individual. Prabha é o indivíduo em foco: uma mulher sem marido, que ainda assim vive com a ausência dele. Divide casa com outra enfermeira, mais jovem, uma hindu apaixonada por um muçulmano — um romance de contornos shakesperianos naquele contexto político-social. Ambas pertencem aos invisíveis desta Bombaim (Mumbai) sobrelotada: os peões destes dias que se fundem nas noites, e das noites que se dissolvem nos dias. Nada é destacável, apenas uma massa temporal uniforme, contínua, sem intervalos.

All We Imagine as Light” proclama essa luz na omnipresente escuridão — um escape, talvez, que possa resgatar estas personagens de uma cidade que, claramente (palavra escolhida a dedo), não lhes pertence. Num bairro em construção, pode ler-se num enorme placard publicitário, adornado por uma família protótipo de sorrisos perfeitos e pele esbranquiçada (em contraste com o marcado tom acastanhado dos remediados), em letras gordas: “A classe é um privilégio, reservado aos privilegiados.” Uma e duas pedradas são lançadas na sua direcção, num gesto de resistência tão instantâneo quanto inconsequente, protagonizado por estas “inferiorizadas e pouco privilegiadas classes”. Portanto, abandona-se os arranha-céus construídos “para substituir Deus”, e estamos em terreno balnear, numa pequena aldeia costeira envolta em histórias e fantasmas, onde caras esculpidas marcam as paredes das grutas vizinhas. Há um bar de praia que serve de miradouro, onde se contempla essa “luz invisível” no horizonte, para lá de onde o Índico toca.

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Nesta cisão dicotómica entre “cidade / campo”, desacelera-se a rotina, a massificação, o capitalismo sufocante que nos obriga a produzir, produzir, produzir — transformando estes corpos numa massa uniforme, desprovida de identidade para além da casta que os acorrenta. “All We Imagine as Light” emerge do documentário, transita para o realismo social subtilmente denunciador e, por fim, chega à praia, trazendo consigo promessas de misticismo, de um realismo mágico até, uma antítese à martirologia imposta pela modernização. Kapadia realiza tudo isto com mestria, paixão e delicadeza, tornando o travelling, mais uma vez, num acto político — sem nunca sacrificar o subtexto. Sentimos porque estamos com o filme, não apenas porque o vemos com o punho erguido, mas através de um observacionalismo frustrante, que nos envolve e nos interpela.

O resultado é este: A Índia de Kapadia detém várias Índias no seu interior; conhece-as bem, declara-se à realidade que a envolve, mesmo que o sonho seja bollywoodesco. E é aqui que entramos naquela subtil sequência, a saída dos “operários”, com as enfermeiras numa sala de cinema, os olhos fixos na tela, e o rosto lacrimejante e emotivo de Kusruti a centralizar o desejo de uma fantasia. É um plano que, no fundo, é mais que rotineiro no cinema corrente, especialmente entre aqueles que glutinamente procuram discursar sobre cinema. Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.

Globos de Ouro e Cinema de Ouro

Hugo Gomes, 10.12.24

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Os Globos de Ouro continuam a tentar ultrapassar a linha da sua própria insignificância desde o "trambolhão" de 2019. Os nomeados deste ano seguem, como esperado, a linha editorial ditada pelos lobbies e pelas fervorosas campanhas de For Your Consideration (FYC), com uns quantos mistérios pelo meio para confundir até os mais atentos. Zendaya como Melhor Atriz? Mas esta gente droga-se!?

Contudo, se houver justiça neste mundo, Payal Kapadia levaria o prémio de realização sem espinhas. Um fenómeno este “All We Imagine as Light”, um filme que não inventa a roda mas a faz girar com um miraculoso afinco!

Estreia dia 19 de dezembro nos cinemas portugueses.

O silêncio da crítica no templo do cinema

Hugo Gomes, 25.07.22

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Jalsaghar / The Music Room (Satyajit Ray, 1958)
 
"Escrever (inscrever) manifesta o saber-ler porque, na realidade, ler já é escrever (sem inscrição). A leitura é uma escrita que não deixa rasto: escrita plenamente interior ou apenas sussurrada. Só por essa razão – e não por qualquer reverência suspeita – se deve fazer silêncio num museu: alguém, ao nosso lado, pode estar a escrever interiormente." 
 
(Tomás Maia in Incandescência - Cézanne e a Pintura. Lisboa: Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar/ Sistema solar/ Documenta, 2015, p. 48)
 
 

 

*Da autoria de Pedro Florêncio, cineasta e professor de História de Cinema na licenciatura em Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa

Memórias de um cinéfilo encartado

Hugo Gomes, 11.07.22

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Julie Newmar em McKeenna's Gold (J. Lee Thompson, 1969)

Convida-me o meu amigo e colega destas andanças Hugo Gomes para ser um dos magnificent fifteen ou um dos dirty fifteen, como quiserem, a comemorar os quinze anos de existência do seu espaço de crítica, e reflexão sobre estas coisas do cinema, o que me deixa bastante comovido.

A ideia é falar um pouco sobre cinefilia mas, habituado a ter de escrever para algo de específico, um filme que se vê por aí, um festival a que se vai, ou uma entrevista que se fez, a ausência de um tema mais específico coloca-me na posição daqueles escritores que, face à página em branco, se deparam com um bloqueio criativo.

O que fazer? As horas estão a passar e o Hugo, e muito bem, vai começar a mandar-me emails ou mensagens telefónicas a recordar que era esta a data prevista para a publicação do meu texto. Como nunca falhei uma data para entregar seja que trabalho for, aqui estou eu face ao computador, pressionado pelo tempo e pela honra.

Terei eu alguma coisa de interessante para transmitir a quem me vai ler? Por onde devo começar? Quem me conhece sabe que estou nos antípodas dos chamados “estudos fílmicos”, que no entanto aprecio ler. E aprecio a paciência de quem os escreve, apesar de, por vezes, ter de ir ao dicionário procurar palavras que seguramente fariam o Samuel Fuller pegar na pistola ou o Howard Hawks arrancar algumas páginas do guião. Por isso, por aí não me levam.

Também não dou para o peditório do “antes é que era bom”. Não me vejo como um dos velhos dos marretas, a dizer mal de tudo o que se vê nos cinemas. É verdades que, apesar de 40 filmes vistos em Cannes, se temos tempo para ir aos Cannes Classics saímos de lá com a sensação que o melhor filme do festival de 2022 foi um Satyajit Ray! O cinema mudou, não há dúvida, é impossível encontrar hoje obras como as de Renoir ou Ozu, Ford ou Visconti, Hawks ou Antonioni. Mas há por vezes filmes que nos dão a garantia de que o cinema está vivo. Dos que ainda estarão por aí, “A Lei de Teerão” ("Just 6.5") é um deles, “Recreio” ("Une Monde") é outro. Vêm do Irão e da Bélgica. Vão ver.

Mas estou a fugir ao tema, e à minha obrigação para quem me irá ler. Se tiverem tempo e paciência para tal. Talvez o mais interessante seja recordar um pouco o percurso de alguém – desculpem, mas sou eu – que começou “apenas” por adorar ir ao cinema e, aos poucos, por metade de sorte, metade de perseverança, acabou por fazer a sua vida no cinema, a trabalhar na Cinemateca, a escrever sobre filmes, a ir a festivais, entrevistar milhares e milhares de atores e realizadores, escrever livros e até produzir filmes – um deles chegou há dias à Netflix, é verdade, vão lá procurar.

Vamos então ver como é que era no meu tempo, sem nostalgias nem egocentrismos. Serve também, espero, como memória futura.

 

Os primeiros passos (filmes)

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The Devils (Ken Russell, 1971)

Não será muito original, mas a primeira memória de ver filmes em grande ecrã é de uns Charlots na sala de espetáculos da Voz do Operário, onde fiz a instrução primária, na primeira metade da década de 1960. Lembro-me também da então obrigatória ida familiar – incluindo a criada de servir, a minha mãe era muito doente – ao Tivoli, ver o “Música no Coração” ("The Sound of Music"). Ou da emoção que era ir ao Monumental, na Páscoa, ver o “Ben-Hur”, naquele ecrã que nunca mais acabava (qual IMAX qual carapuça, o velho Monumental é que era).

Ainda era cedo para uma vocação cinéfila, mas a minha irmã, doze anos mais velha, deu uma ajuda. Já me tinha “mostrado” muita música, naquele gira-discos que parecia uma mala e onde ouvia as 45 rotações dos Beatles e muita música francesa – a Teresa foi das pessoas que consegui arranjar um exemplar do “Je t’Aime Mon Non Plus”, do Serge Gainsbourg e da Jane Birkin, proibidíssimo antes do 25 de Abril de 1974.

Foi a minha irmã também que me começou a convidar para ir ao cinema, uma vez por semana, quando não eram filmes “Para Maiores de 17”, a maioria durante o período da malfadada Censura. Mas lá ia eu com ela e as amigas dela ver filmes que me abriam os olhos para outras realidades. Nunca o disse a ninguém, mas para um garoto de 10 ou 12 anos, no Portugal cinzento da ditadura, ver uma índia atirar-se à água nua, numa sequência de “O Ouro de Mackenna” ("McKeena's Gold"), do J. Lee Thompson foi uma emoção inesquecível. Mais tarde, já em liberdade, foi com a Teresa que vi, pela primeira vez, a “Laranja Mecânica” ("A Clockwork Orange"). Que revelação!

Acho no entanto que a grande vocação cinéfila se deu no quartel de Santa Margarida, perto de Abrantes. O meu pai era militar e, depois de mandado três vezes para África, para uma guerra de que quase nunca falava, foi colocado em Santa Margarida, que era uma espécie de cidade, com piscina para os filhos dos oficiais como eu, campo de futebol, igreja (onde acho que nunca entrei), sala de jogos e… cinema!

Cinco vezes por semana, três vezes completamente grátis e duas vezes a 5 escudos o bilhete, por lá vi, nos verões de 73 e 74, dezenas e dezenas de filmes. Sobretudo séries B e Z, filmes de terror, westerns, peplums, filmes de guerra, policiais, comédias. Bons e maus, mas sempre bons, mesmo os maus, para quem ia lá para se divertir. Em cópias já completamente estilhaçadas, cheias de riscos, com cortes aqui e ali, fotogramas a queimar-se à nossa frente… Que saudades de ver um filme com riscos…

E foi ali que comecei a dar notas aos filmes que via, de 0 a 20, a fazer fichas individuais e a escrever duas ou três linhas sobre o que tinha visto. Tinha 14 ou 15 anos, era tudo seguramente muito ingénuo e recordo-me, sem qualquer tipo de vergonha, que durante muito tempo o filme que teve uma classificação mais alta foi “Os Diabos” ("The Devils"), do Ken Russell. Que impressão danada (perceberam o segundo sentido?) me fez aquele filme com o Oliver Reed e a Vanessa Redgrave.

 

Do fanzine à primeira revista

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Deep Throat / La vera gola profonda (Gerald Damiano, 1972)

Cheguei à faculdade em 1976 ou 1977. Por exclusão de partes (estava fora de questão medicina, direito ou engenharia) fui ter a Economia. Nunca tive problemas com números, o curso tinha prestígio e naqueles anos do PREC estudava-se Marx. Mas, enquanto a maior parte dos colegas só falava mesmo dos estudos ou de política, eu só falava de cinema e um colega de outra turma, o Rui Carrola, só falava também de cinema.

Devo abrir aqui um parêntesis para explicar como era ir ao cinema em Lisboa no final dos anos de 1970. Não havia nenhum multiplex. O primeiro foi o Alfa Triplex, à saída do Areeiro. Mas havia tantas, tantas salas. Comecemos pela Baixa. Havia o Eden, onde ia sempre para o 3º Balcão (sim, havia) onde os bilhetes eram mais baratos e as cadeiras de pau. Na rua do Coliseu havia o Politeama, sempre com filmes populares. Na Rua dos Condes havia o Odeon, já em decadência e não esquecer o Olympia, onde vi alguns excelentes pornos do Gerard Damiano. E, é claro, o grande Condes, com aqueles cartazes gigantes na fachada.

Depois subia-se a avenida e havia o São Jorge de um lado (ainda só com uma sala) e o Tivoli do outro. Também não esquecer o Capitólio, no Parque Mayer, especializado em filmes hard-core e onde vi o “Garganta Funda” ("Deep Throat"). Melhor do que uma grande percentagem dos filmes “normais” que vi na vida!

Passando para a Fontes Pereira de Melo, tínhamos o Mundial e no Saldanha o imenso Monumental, com uma pequena sala estúdio, o Satélite. Ali perto havia o Cinebolso e o Cine 222, mais longe o Estúdio 444, o Apolo 70, com a programação do Lauro António, que também escolhia filmes para o Caleidoscópio, no Campo Grande, tão longe do metro mas onde fui ver “As Noites de Cabíria” ("Le notti di Cabiria") do Fellini e os “Jogos Perigosos” ("Wild Game Crossing"), do Fassbinder.

Num outro lado da cidade, começando pela Rua da Palma, podíamos ver filmes no Roxy e no Pathé, na Alameda erguia-se outra tela gigantesca, a do Império, onde vi o “Lawrence da Arábia” ("Lawrence of Arabia"). E lá em cima existia ainda o Estúdio onde, aos 14 anos, vi o primeiro Bergman, aliciado seguramente pelo título, “A Força do Sexo Fraco” ("All Thee Women"). Mais “burgueses” eram o Star e o Londres, com aquelas cadeiras que desciam de que nunca gostei, mas onde estreavam todos os Bergman, os Fellinis, os Viscontis… Depois era o Roma, o ABCine e o Alvalade.

Era nestas salas, e em outras que agora seguramente me esqueço, que estavam sempre em cartaz três ou quatro dezenas de filmes diferentes. E havia público para todas… Ver 500 filmes por ano não era difícil, até porque entretanto apareceram as sessões do Palácio Foz e havia o Instituto Alemão, onde vi centenas de filmes, desde os grandes clássicos do Expressionismo até às obra completas dos nomes grandes do Novo Cinema Alemão – o meu preferido foi sempre o Werner Herzog, que muito mais tarde tive a honra de entrevistar.

Voltemos à bobine anterior. Eu só falava de cinema, o Rui só falava de cinema. E foi assim que decidimos levar cinema ao ISE. Descobrimos que o IPC (nome que o ICA tinha à época) emprestava cópias de filmes portugueses, que a Direcção-Geral de Acção Cultural emprestava máquina e projecionistas e decidimos avançar. Fizemos uma “espera” ao Lauro António no Vává, demos com ele à primeira, acompanhado pela Maria Eduarda Reis Colares, grávida do Frederico Coroado, e ele lá nos conseguiu que o Tenente-Coronel da Lusomundo alugasse umas cópias a preços baixos. NO IPC, e à revelia da direção, arranjavam-nos resmas de papel e stencils (vão procurar ao Google, faz-vos muito bem, que eu não estou aqui para ensinar tudo) e escrevíamos um fanzine de quatro páginas, o Cine-ISE, que vendíamos a vinte e cinco tostões na cantina, para arranjar dinheiro para as cópias. Exibimos, entre muitos outros, “As Horas de Maria” e o “Lágrimas e Suspiros” ("Cries and Whispers") e convidámos o João Lopes e o Camacho Costa para apresentarem um filme do Jerry Lewis, de que eram fãs.

O esquema estava bem feito. As distribuidoras tinham os armazéns na zona da Avenida da Liberdade e nós, miúdos e simpáticos, convencemos os projecionistas e irem buscar os filmes antes da projeção e depois passarem por lá a devolvê-los. Até que um dia nos disseram que tinham outro compromisso, desmontaram a tenda e deixaram-nos com seis bobines em caixas de metal com vários quilos cada, para devolver ainda nesse dia, para não pagar outro de aluguer. A solução foi meter-nos no elétrico com as bobines e ir devolvê-las nós próprios. Hoje transporta-se um filme numa “pen” ou manda-se pela internet…

No ano seguinte, passei a pertencer à direção da Associação de Estudantes e o fanzine transformou-se em revista. O momento mais memorável foi a entrevista em casa do Lauro António, sobre o “Manhã Submersa”, com o Lauro a convencer o Vergílio Ferreira a aparecer. Está publicado, vão à procura, a Cinemateca tem cópia…

 

A Gulbenkian e o primeiro livro

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Céline et Julie Vont en Bateau / Celine and Julie Go Boating (Jacques Rivette, 1974)

Depois de um lendário Ciclo Rossellini, que ainda não apanhei, com o próprio na sala a apresentar o “Roma, Cidade Aberta”, apesar da proibição da PIDE, o Bénard programou dois ciclos em simultâneo, Mizoguchi e Rivette. Eu tinha 18 anos e optei por não ir aos Mizoguchi (que felizmente recuperei mais tarde) e vi todos os Rivette.Céline et Julie Vont en Bateau”, que experiência, e que apaixonado estava na altura pela Bulle Ogier

Depois, em 1977, o Ciclo de Cinema Americano dos Anos 30. Bilheteira aberta para o primeiro bloco, chegada à Gulbenkian ainda de manhã, fila imensa. Fiquei atrás do cineclubista e crítico de cinema Manuel Machado da Luz, que me contou tantas histórias, por exemplo como o Marcello Caetano foi em pessoa à sessão da censura da “Laranja Mecânica” e decretou desde logo a proibição absoluta do filme. Mas a fila não andava muito depressa e nesse dia começava o Ciclo Polanski no Palácio Foz e no primeiro dia era logo o “Faca na Água” ("Knife in the Water"), que nunca tinha visto. Assim, pedi ao Manuel Machado da Luz para me guardar o lugar, fui de metro para os Restauradores, comprei o meu bilhete na abertura da bilheteira e voltei de metro para a Gulbenkian, onde ainda não tinha chegado a minha vez. Alguém faria osso hoje? Acho que sim! A paixão pelo cinema continua…

Dois anos mais tarde, ciclo dos anos 40. Eu e o Manuel João chegámos às seis da manhã e fomos os primeiros. Começámos a jogar às cartas e um polícia veio logo ter connosco. “Passem para cá as cartas”, como se estivéssemos a jogar à batota. Mas só queríamos ter a certeza de arranjar bilhetes para os filmes do Ford, do Hitchcock, do Minnelli… Por essa altura, o Bénard já nos conhecia bem. Mesmo quando havia sessões esgotadas e nós não tínhamos bilhete, lá nos fazia entrar. Eu e o Manuel João fazíamos parte de um grupo cinéfilo, que incluía o Armando Bordalo, o Hernan Christie, o Manuel Cintra Ferreira e o Mário Jorge Torres. Eu fiquei responsável pelo tráfico das “folhas”. Quem não ia a uma sessão sabia que eu lhes arranjava, porque tirava sempre cinco ou seis de cada…

Por esse conhecimento do nosso grupo, a Gulbenkian deu-me, a mim e ao Manuel João, um subsídio para lançar um livro de recolha de listas de melhores filmes e melhores realizadores, algo que nunca tinha sido feito em Portugal. Sem recurso a internet nem mesmo fax, apenas com contactos pessoais e telefónicos, recolhemos 52 listas e editámos, em fevereiro de 1982, o livro “Melhores Filmes, Melhores Cineastas”. Às veze ainda aparece aí nos alfarrabistas…

 

De hobby a profissão

Costumo dizer que sou tão velhinho que ainda pedi emprego ao Félix Ribeiro, para entrar na Cinemateca. Foi já o Luís de Pina diretor, que em conhecia dos ciclos do São Luiz, outra sala onde se via cinema alternativo – tive por exemplo a honra de conhecer a Marguerite Duras, que me autografou o meu exemplar dos Yeux Vertes dos Cahiers du Cinéma escrito por ela – foi o Luís de Pina, dizia eu, que me levou para a Cinemateca, onde estou há quase 40 anos. Dizia eu, nos dias antes de entrar, que iam ser sete ou oito horas por dia de relação física com o objeto amado…

Três anos depois, liga-me o José de Matos-Cruz, a saber como é que eu estava de tempo. Pensei que era para esse dia. Mas não, era para ir escrever para o semanário O Jornal. Foi ai que tive então a minha primeira experiência profissional de jornalismo de cinema, a escrever sobre os filmes que passavam nas televisões.

O resto já sabem. Já escrevi para dezenas de publicações, dirigi algumas, fui a imensos festivais, fui júri por esse mundo fora, entrevistei mais de quatro mil pessoas, escrevi sobre milhares e milhares de filmes, dei aulas de história de cinema e história de cinema português, escrevi livros. Durante muito tempo dizia que fazia tudo no cinema, menos fazer filmes. Agora, dou comigo a produzir filmes, a levá-los a festivais, a receber prémios, a exibi-los em televisões. Mas, como digo sempre, filmes podem ser vistos em qualquer altura, o mais importante são as amizades que se fizeram ao longo destes anos todos. Se não fosse assim, não estava aqui a aborrecê-los com a história da minha vida cinéfila. Espero que a leitura seja minimamente inspiradora.

 

*Texto da autoria de João Antunes, cinéfilo, trabalhador do cinema, jornalista nas horas vagas.

Cada um com a sua infância, cada um com o seu Cinema

Hugo Gomes, 01.06.21

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Good Morning (Yasujiro Ozu, 1959)

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The Childhood of a Leader (Brady Corbet, 2015)

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Capernaum (Nadine Labaki, 2018)

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Wadjda (Haifaa Al-Mansour, 2012)

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Home Alone (Chris Columbus, 1990)

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The White Ribbon (Michael Haneke, 2009)

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Let the Right One in (Thomas Alfredson, 2008)

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Little Fugitive (Ray Ashley & Morris Engel, 1953)

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The Florida Project (Sean Baker, 2017)

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The Sixth Sense (M. Night Shyamalan, 1999)

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The 400 Blows / Les Quatre Cents Coups (François Truffaut, 1959)

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The Kid (Charlie Chaplin, 1921)

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The Last Emperor (Bernardo Bertolucci, 1987)

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Zero to Conduite / Zéro de conduite: Jeunes diables au collège (Jean Vigo, 1933)

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Bicycle Thieves / Ladri di Biciclette (Vittorio di Sica, 1948)

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Village of the Damned (John Carpenter, 1995)

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My Life as a Zucchini / Ma vie de Courgette (Claude Barras, 2016)

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The Boy with Green Hair (Joseph Losey, 1948)

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Aniki Bóbó (Manoel de Oliveira, 1942)

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The Shining (Stanley Kubrick, 1980)

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Cinema Paradiso / Nuovo Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988)

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Come and See (Elem Klimov, 1985)

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Pather Panchali (Satyajit Ray, 1955)

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E.T. the Extra-Terrestrial (Steven Spielberg, 1982)

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André Valente (Catarina Ruivo, 2004)

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Ivan's Childhood (Andrei Tarkovsky, 1962)

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Nana (Valérie Massadian, 2011)

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Pixote, a Lei do Mais Fraco (Hector Babenco, 1981)

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Poltergeist (Tobe Hooper, 1982)

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800 Balas (Álex de la Iglésia, 2002)

Quem quer ser um “bom” corrupto?

Hugo Gomes, 25.01.21

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Muito se falou deste “The White Tiger” comportar-se como um anti-”Slumdog Billionaire”, seja da apropriação do seu dispositivo narrativo (uma recontagem de uma história de ascensão) e através dele a dissipação do seu lado “naive” (o destino e a crença como pedras pedestais desse sucesso que o cinema crowd pleaser adora pregar). Não com isto afirmar que o filme de Ramin Bahrani (“99 Homes”, a mais recente versão de “Fahrenheit 451”) não tenha a sua dose industrial de ingenuidade, até porque é com base nela que lança a sua moral – a lição encaixada como apêndice na narrativa, acreditando piamente nessa doutrina de “cinzentismos” propagandistas.

Ora bem, esta adaptação do best-seller, promovido pela New York Times, de Aravind Adiga, publicado no “calor” da crise financeira / imobiliária de 2008, é um suposto retrato underdog no sistema de castas indiano. No seu ralé encontramos um jovem promissor, Balram (Adarsh Gourav), o qual lhe é negado esse mesmo “brilhante” futuro, e como consequência se vê determinado a servir. Sim, um mero criado que tudo fará para saciar as vontades e desejos dos seus “mestres”, uma corrente cuja única saída é a própria corrupção dos seus entranhados ideais. Ou seja, segundo este universo, aquilo que separa as classes baixas das altas é a sua disponibilidade para “sujar as mãos”, cometer crimes e sem qualquer arrependimento ou repercussão seguir continuamente pelos seus trilhos de progresso.

The White Tiger” constrói essa predatória fábula negra por vias de um tom messiânico (neste caso o “tigre branco”, o “animal que surge uma vez em cada geração”), confinando o complexo Robin dos Bosques como inibidor das culpas do seu protagonista nas suas duvidosas causas. A questão aqui não é a sua violência (manifestado em diferentes formas, direta ou indiretamente), mas o seu apelo, nunca tecendo pela sua complexidade, ou como em muitos casos fílmicos, pelo seu lado satírico ou alusivo.

Não existe nada de especial neste “tigre branco”, tudo se resume a genética (é albinismo que qualquer outra ‘coisa’) e não benções, o resto é demagogias perversas transvestidas de “filme social para massas”. Um visualmente competente e inequívoco.