Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Nora Aunor (1953 - 2025)

Hugo Gomes, 14.05.25

MV5BYzQ4MGQ2ZjYtNjA4ZC00Yjc1LTlkNTMtYjZmMjg3MTcyMz

Thy Womb (2012), filme de Brillante Ma Mendoza, o último antes de cair por aí abaixo no miserabilismo ou nos dutertenismos, praticamente inédito em Portugal, salvo uma apresentação no IndieLisboa de 2013. Obra sobre fertilidades que respira como poucas; a vida, abundante, mesmo que apenas no vasto mar filipino, e Nora Aunor, parteira de ocasião, mulher de ventre seco, é a Gaia dessa harmonicidade.

Da sua expressividade à imponência da figura, nega o trágico da própria tragédia, altruísta, com o dever cravado em trazer vida a este mundo. Para além da naturalidade revelada nesse filme, voltaria a trabalhar com Mendoza no cataclismo porno-miséria de “Taklub” (2015).

Diz-se que era uma superestrela nas Filipinas, mas, pelo que vi em “Thy Womb”, foi uma deusa por instantes. Deixo a última minha vénia!

"Sunshine", uma vida interrompida em Manila. Falando com a realizadora Antoinette Jadaone.

Hugo Gomes, 22.02.25

Screen-Shot-2024-04-04-at-11.32.51-PM.png

O “Acontecimento” filipino! Uma jovem ginasta, batizada de Sunshine, descobre que está grávida, o que pode comprometer a sua ida às Olimpíadas e um futuro promissor. Para evitar esse impasse, percorre as ruas de Manila em busca de uma forma de interromper a gravidez, num país altamente rígido e sem intenção de debater o tema.

Apresentado no Festival de Berlim, na secção Generation, onde venceu o seu prémio máximo (o Urso de Cristal), “Sunshine” não é apenas mais um filme na extensa carreira de Antoinette Jadaone, veterana do audiovisual filipino, é também um retomo ao seu lado mais intimista, emergente e, talvez, autoral desde “Fan Girl” (2020), cujo retrato dos segredos obscuros de um ídolo lhe valeu elogios e atenção no Ocidente. Já em “Sunshine”, é a obscuridade ainda vivida num país que lhe aufere um registo de ativismo.

Em conversa com o Cinematograficamente Falando…, a realizadora falou sobre o projeto e a dificuldade de abordar esse cenário num país como as Filipinas.

Gostava de perguntar de onde surgiu a ideia para este filme, visto possuir uma longa carreira tanto no cinema, quer mainstream e mais autoral, como também na televisão. Portanto, como foi trabalhar este tema em particular no seu filme?

Durante a pandemia comecei a desenvolver este conceito. Estava a brincar com a ideia do que acontece dentro da mente de uma adolescente grávida, e a partir daí, mergulhei numa espécie de “toca do coelho” [rabbit hole]: vi documentários sobre o sucedido nas Filipinas, entrevistei raparigas que quiseram levar a gravidez até ao fim, outras que quiseram interrompê-la e também aquelas que recorreram a abortos ilegais no país. Além disso, falei com ativistas dos direitos das mulheres e até com grupos religiosos. Quis olhar para este tema em diferentes perspetivas antes de finalmente decidir avançar com o filme. Estamos a falar de um tema delicado ...

Exacto, até porque está referido no press kit que o aborto ainda é um tabu no cinema filipino. E na sociedade filipina?

Sim, muito. As Filipinas são um país profundamente católico. Veja, o divórcio ainda é ilegal. Apenas existem dois países no mundo onde o divórcio continua proibido: um é o Vaticano, o outro somos nós. A religião está intimamente ligada a tudo na nossa vida, especialmente a política. É por isso que temas como o divórcio, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aborto e os direitos das mulheres ainda são tão difíceis de discutir e precisam de ser amplificados. Não são assuntos facilmente abordados em qualquer contexto, muito menos no cinema filipino.

Este filme surge, creio, três anos depois da consagração de “L'Événement”, de Audrey Diwan (com base no livro de Annie Ernaux), no Festival de Veneza, filme também sobre o aborto que causou um certo frenesim e debate por esse mundo fora. Chegou a vê-lo? Inspirou-a de alguma forma a explorar esta realidade no seu filme?

Não, na verdade, ainda não vi esse filme, mas conheço-o. [risos] Existem muitos filmes que abordam o aborto em diferentes regiões do mundo, ainda que não seja um tema muito comum. No entanto, mesmo quando o aborto é tratado no cinema, nunca é da forma como ele é visto nas Filipinas. Aqui, o aborto é ilegal em todos os casos, mesmo quando está em risco a vida da mãe. Noutros países, há estados ou regiões que permitem a interrupção da gravidez dentro de determinados prazos ou circunstâncias, mas, nas Filipinas, é estritamente proibido em qualquer situação. Não há nada a fazer!

180225_mk_01842_RWD_1920.jpg

Antoinette Jadaone

Como funcionou o processo de casting? Posso garantir que a atriz principal é o coração trepidante do seu filme. Como a encontrou?

Sim, a Mariestella Racal [Maris Racal]! Ela, na verdade, não é ginasta como a protagonista. Nunca tinha praticado ginástica antes, mas é uma bailarina, muito flexível, movimenta-se graciosamente e dança muito bem. Queria uma atriz que já tivesse alguma preparação física, fosse flexível e que pudesse treinar para os movimentos de ginástica. Então, ela treinou com a equipa nacional das Filipinas, um dos treinadores da seleção nacional também foi seu treinador e coordenador para o filme.

Já tinha trabalhado com a Maris noutros projetos, numa série de comédia e também numa série dramática. Enquanto trabalhava com ela, percebi que, de certa forma, estava a prepará-la para um papel deste género, algo completamente diferente do que tinha anteriormente feito na sua carreira e fico muito feliz quando as pessoas que veem o filme me dizem que está incrível na pele de Sunshine, porque o papel foi realmente desafiante para ela!

E sobre as crianças que aparecem no filme…

Fizemos duas rondas de audições. Como sabe, é muito difícil selecionar crianças para um filme, por isso, foi um processo mais demorado. Tivemos um psicólogo infantil no set para orientar e explicar o sucedido, e depois fazer um acompanhamento após cada filmagem. Era essencial, porque o tema do filme é muito sensível, e não é algo que uma criança de oito anos compreenda facilmente, mas, na vida real, as crianças do filme são muito espertas, têm um grande sentido de sobrevivência e são muito perspicazes. Conseguimos falar abertamente sobre tudo, também com os pais delas, para garantir que estavam confortáveis com a situação.

O aborto é o núcleo do filme, mas durante a narrativa há sempre espaço para abordar outras questões, como o abuso infantil, juvenil, famílias disfuncionais e até a marginalização da comunidade queer. Como é que estes elementos se juntaram neste argumento?

São todos grupos marginalizados na sociedade. Não foi algo totalmente planeado no início da escrita, mas, ao desenvolver a história da Sunshine, era impossível ignorar o ambiente onde ela vive. E esse ambiente é Manila, que representa o que são as Filipinas atualmente. Como poderia uma adolescente grávida crescer nesta sociedade sem esbarrar noutras formas de marginalização? Era natural que outros aspetos da realidade social emergissem, como a infância em situações precárias e os desafios enfrentados pelas mulheres, tal como acontece com a Sunshine.

Gostava de falar sobre Manila. A cidade tem quase um papel próprio no filme. Enquanto espectador ocidental, vejo Manila retratada em muitos filmes filipinos, como os de Brillante Mendoza … posso referir desde já o seu “Ma’Rosa” (2016), por exemplo, que tal como o seu filme expõem a cidade de forma caótica, mas muito viva. Manila é, de facto, assim? Ou fruto da “magia do cinema”?

Sim, é caótica, mas também vibrante e cheia de cor. Desde o início, quis que Manila fosse uma personagem à parte no filme. É lá que a Sunshine encontra os medicamentos ilegais para abortar, mas também é onde faz amigos para a vida. Manila pode ser uma amiga para ela – às vezes leva-a a lugares perigosos, mas também a pessoas que a apoiam. Acho que é isso que define uma sociedade: há partes sombrias, mas também há esperança. O nosso objetivo, a nossa visão, é que estas crianças encontrem o caminho para os aspetos mais positivos da sociedade, em vez de ficarem presas às partes mais escuras.

SinegangPH_PRESS+RELEASE_Sunshine_PIC+1.jpeg

Queria falar sobre o final do filme, porque me pareceu bastante otimista. Não sei se, naquela situação, seria um desfecho realista, mas é como se fosse o "nascer do sol" para a Sunshine. Sentiu a necessidade de dar um final mais feliz à história? Foi uma escolha intencional em oposição ao que geralmente se retrata no cinema sobre este tema?

Sim, o final foi um tema recorrente nas nossas discussões – creio ter voltado a ele umas 10 ou 12 vezes em conversa com os produtores. O desfecho em si nunca mudou; o que variou foi a forma de o apresentar. Seria uma representação negativa ou uma visão mais positiva?

Pus-me no lugar de uma rapariga que, no futuro, possa ver este filme, alguém na mesma situação da Sunshine. Pensei no impacto dessa experiência e quis que encontrasse nas Filipinas uma imagem que a apoiasse, que lhe desse esperança, em vez de um futuro marcado apenas pelo desespero e uma sensação ainda maior de impotência.

Nas Filipinas, ao abordar estes temas, o desfecho tende a ser trágico – morte, destruição ou violência. A mensagem manteve-se, mas procurei uma perspetiva diferente, algo mais luminoso, mais "ensolarado", por assim dizer. Não sei se esse futuro se concretizará, mas em 2024 e 2025, quando fiz este filme, quis acreditar que era, pelo menos, uma possibilidade.

Este filme teve a sua estreia mundial em Toronto no ano passado, se não me engano. Agora estreia em Berlim. Já foi exibido nas Filipinas ou será para breve?

Ainda não estreou lá.

Certo. E como espera que seja a receção nas Filipinas? Imagino que vá gerar discussão e debate…

Isso é o mínimo que espero. Claro que queremos mudança, queremos uma sociedade melhor para estas crianças, mas tem de ser um passo de cada vez, um filme de cada vez. O nosso grande desejo é poder exibi-lo nas Filipinas, para que o filme possa "voltar para casa". Estamos otimistas, mas temos uma comissão de censura muito rigorosa no país. Ainda assim, espero que consigam ver para além do tema sensível e enxergar “Sunshine” pelo que realmente é: a história de uma rapariga a crescer, que deseja apenas um futuro brilhante para si.

Sente-se otimista em relação à sociedade filipina? Não apenas sobre este tema, mas também sobre os outros que aborda no filme?

Essa é uma questão político-social complexa. É muito difícil ser otimista hoje em dia, não só em relação às Filipinas, mas ao Mundo em geral. Ainda assim, acho que é sempre melhor ter esperança do que simplesmente ser pessimista. Acredito que a verdadeira esperança para o nosso país está na juventude, nas crianças. Já não sou jovem. [risos] Já fui como a Sunshine, já tive esse olhar para o mundo… E sim, o mundo está difícil, mas se o virmos através dos olhos da Sunshine, talvez as coisas não sejam assim tão más.

img_9325.webp

Agora, para terminar, uma pergunta um pouco banal … Tem novos projetos em mente? Já pensa num novo filme? Talvez sobre outro tabu nas Filipinas?

Na verdade, tenho um projeto que ficou perdido devido à pandemia. Chama-se “Boldstar” e chegou a fazer parte do Mercado de Coprodução da Berlinale em 2020, mas tive de o suspender para o desenvolver melhor e também para esperar pela atriz principal. Talvez seja esse o projeto que vou retomar depois de “Sunshine”. É engraçado, porque escrevi “Sunshine” depois de “Boldstar” – o plano era trabalhar nele, mas durante a pandemia acabei por mergulhar completamente neste tema e decidi avançar com “Sunshine”. Depois, quem sabe, posso finalmente retomar ao dito “Boldstar”. A protagonista é, mais uma vez, uma mulher – como acontece em todos os meus filmes. Vamos ver o que acontece depois disto.

Abram alas para ... Lav Diaz

Hugo Gomes, 11.08.22

FID+Marseille+2022+A+Tale+of+Filipino+Violence+Doc

A Tale of Filipino Violence (Lav Diaz, 2022)

A cinefilia é também uma constante descoberta, nunca adquirindo o cinema por garantido, nem sequer esgotá-lo até à exaustão. Como tal, prossigo na busca de novos nomes e até mesmo o preenchimento de lacunas, sejam filmes ou sejam autores, sabendo de antemão que nunca completarei o tal e imaginário catálogo. Sobre esse “Prazer da Ignorância” [ler texto de Rui Alves de Sousa para o “dossiê”15 Anos de Cinematograficamente Falando … Escritos de Resistência”], lancei-me pela primeira vez num realizador há muito adiável por estas bandas, longe de ser um total desconhecido ou corresponder a um marginalizado nicho, visto estar sempre integrado nas programações dos festivais de cinema por este mundo fora - refiro ao filipino Lav Diaz

Bem, não era um completo ignorante quanto à sua pessoa, devo dizer que deparei com muitas suas produções e excertos dos seus filmes em diferentes análises, ensaios audiovisuais e as constantes dissertações de Mark Cousins, porém, assistir a um filme inteiro desta parte, não tem sido uma opção prioritária. Confesso que a duração é por si que me tem afastado, juntando a isso a sua prolificidade, duas características que juntas acentuam um certo ar de desleixo (nesse campo penso automaticamente em Hong Sang Soo e a sua estética sem teorias), ou simplesmente numa falta de direção / seleção / edição dos seus projetos. Poderia estar enganado na altura, e tenho confrontado com isso desde então. A leitura das suas entrevistas tem-me conquistado graças à sua ideologia e aproximação do dito e vendido rótulo de “slow cinema”, o qual sempre negou dizendo tratasse apenas de Cinema. 

Quanto à tão badalada duração (recordo que a longa-metragem mais “pequena” tem “somente” 2 horas e meia), tal diz mais sobre mim, enquanto espectador ocidental amontado de informação, do que propriamente dos filmes, e se bem que hoje assistimos um desdém por “cinema longo”, enquanto comumente nos “deslumbramos” pelo binge watching de temporadas completas de séries. Já Jean Eustache para explicar as quatro horas da sua obra-prima “La Maman et la Putain” / “A Mãe e a Puta” (1973), referiu uma apropriação de tais “tempos” para os épicos e as grandes produções, com isto “abrindo a porta” para o drama e consequentemente as verborreias não serem escravas do senso comum de divertimento / aborrecimento ou simplesmente dos mercados. 

Portanto, esta foi a minha “primeira vez” no universo de Lav Diaz, mais precisamente na programação do FID Marseille com “A Tale of Filipino Violence” (título original: “Isang Salaysay ng Karahasang Pilipino”, 2022), uma busca pelas memórias do violento regime de Ferdinand Marcos e a sua lei marcial que vigorou anos 70, enquanto reflete nas dicotomias desse mesmo tempo (e com tempo) sem deixar de barato o sintoma da colonização. Com cerca de sete horas de duração, a preto-e-branco e composto por múltiplas narrativas que desaguam numa uniformidade, Lav Diaz extrai da história escrita de Ricardo Lee (um importante artista filipino) um relato de denúncias de um passado que ainda persegue, instalando-se com acidez, discurso modernizado e constantes metáforas visuais politicamente instrumentalizadas na mão deste realizador (a plateia militar, por exemplo, a sintetizar um temido panóptico). 

ATaleOfFilipinoViolence14-scaled.jpg

A Tale of Filipino Violence (Lav Diaz, 2022)

Apesar de tudo isto, a (minha) estreia não foi de todo impressionável (e pelos comentários, críticas e impressões de outros, nomeadamente de experiente em territórios “lavdiescos”, este nem é de perto o seu melhor trabalho), mas pela “amostra” consegui deparar-me com a natureza deste realizador, um cinéfilo lúdico (que sonha realizar um 007) e eclético que cita Cinema e arredores nas suas peregrinações cinematográficas. Nem sequer refiro aos gigantes posters rompantes do breu da noite, anunciando um novo filme da personagem Pedro Penduko [a versão dirigida por Jose Wenceslao] ou o clássico de David Miller (“Midnight Lace”, 1960) como alternativa, contemplados quer seja pelo agredido, quer seja pelo agressor, ou do dispositivo doppelganger que poderia tão bem caber nos enésimos “contos” do período expressionista alemão.

Poderia abordar tais como claros exemplos, porém, é na medula que achamos um espírito de quem brinca com o cinema da mesma forma como brinca com a realidade, apercebendo da dimensão que o seu filme tem ao se aproximar do campo camp (associação propositada, não foi preguiça), como evidencia aquela sequência em que o improvável hitman entra numa instituição adentro, disparando em pessoas como quem disparasse em tordos, sem precisão alguma, apenas acreditando na realidade alterada graças às leis inabaláveis de um cinema descomprometido. 

Resumindo esta minha viagem (não pela viagem em si, mas a iniciativa da mesma), é de entender que a cinefilia continua a ser um continente desconhecido, e continuamente desconhecido será.

Há Tempo para degustar o Cinema! Arranca o 4º Close-Up, Observatório de Cinema de Famalicão

Hugo Gomes, 10.10.19

les_yeux_sans_visage_1.jpg

Les Yeux sans Visage (George Franju, 1960)

O Tempo destrói tudo, isso é mais que sabido, mas ele também constrói. Constrói uma perspetiva, uma noção e acima de tudo a História. Neste caso a História do Cinema, que é novamente revisitada no CLOSE-UP – Observatório de Cinema, neste seu quarto episódio, como é habitual, a ter lugar na Casa das Artes de Famalicão, entre os dias 12 a 19 de outubro.

Novamente, uma programação recheada de filmes, concertos, temáticas, round tables e muitos convidados naquela que já é a mais respeitada comunhão de cinefilia do país. E voltando ao Tempo, a História do Cinema que é constante revista, CLOSE-UP contará como prato principal dois acompanhamentos musicais a dois dos grandes clássicos do cinema russo; o sempre incontornável “Battleship Potemkin” / “O Couraçado Potemkin”, de Sergei Eisenstein, com a Orquestra de Jazz de Matosinhos a condizer, e o aclamado filme de Boris Barnet, “The House on Trubnaya Square” / “A Casa na Praça Trubnaya”, onde os Mão Morta assumem uma original banda-sonora. Já nas sessões especiais, a História do Cinema pelos olhos delirantes de Quentin Tarantino, “Once Upon a Time... in Hollywood”, e a antestreia da mais recente obra do filipino Brillante Mendoza, que volta a debruçar-se pela teias criminosas e marginais de Manila em “Alpha: The Right to Kill”.

A fortalecer a temática do Tempo, ainda temos o historial condensado num folhetim imagético em “Le livre d'image”, do sempre intemporal Jean-Luc Godard, ou do tempo enquanto dispositivo manipulável em “John McEnroe: O Domínio da Perfeição” / “L'empire de la perfection”, de Julien Faraut. A Lenda e o Contemporâneo do atual Cinema Francês, dois pontos de partida para uma das secções fundamentais desta anual mostra cinematográfica – Histórias de Cinema – que nos brinda com um Passeio pelo Cinema Francês com dois protagonistas: Agnès Varda e Jean-Luc Godard.

still_1_3_1360x765.webp

Halito Azul (Rodrigo Areias, 2018)

Aí, para além dos filmes da cineasta que apaixonou gerações pela sua criatividade e dinamismo e o realizador que continua a fomentar cinefilias, passearemos por alguns dos clássicos ante-Nouvelle Vague de uma das cinematografias mais fortes a nível internacional. Será o brilhante “Les Yeux sans Visage”, de George Franju, ou a viagem pela metrópole americana em “Deux hommes dans Manhattan”, de Melville, ainda as histórias trágicas e tragicómicas de “Le Plaisir”, de Max Ophuls, e até mesmo um dos mais belos casamentos de imagem e música de “Ascenseur pour l'échafaud”, de Louis Malle, a fazer as delícias dos amantes de cinema? A resposta é sim.

Na também habitual Fantasia Lusitana, espaço dedicado aos ascendentes protagonistas do cinema português, conheceremos (ou revisitarmos) o trabalho de Eduardo Brito, realizador, argumentista e fotógrafo, descrito pelo seu olhar perfeccionista e dedicado aos enquadramentos. Aqui deparamos com uma seleção de curtas da sua autoria, incluindo a estreia de Úrsula, como também vídeos experimentais, videoclipes e ainda uma longa-metragem escrita pelo próprio com a realização de Rodrigo AreiasHálito Azul”.

O cinema terror também terá o seu tempo de antena, ao integrar o espaço de Cinema do Mundo, este ano centrado no género profundo (“Mandy”, “The Love Witch” e “It Comes at Night”, compõem o trio de sessões que explicita o terror e o medo na América). Além disso, o CLOSE-UP contará ainda com sessões dedicadas às escolas e de família, com as exibições de “Toy Story 4” e “The Lion King”, como ainda tempo exclusivo para o legado de João César Monteiro, onde serão mostradas algumas das suas curtas como ainda lidas os seus poemas. Para a cadência das suas palavras, Isaque Ferreira será o responsável pela leitura.

Jonathan Beller: "devemos fundar novos arquivos, programá-los ou reprogramá-los para que a imagem torne-se num símbolo de resistência"

Hugo Gomes, 21.04.18

Jonathan_Beller.jpg

Teórico fílmico, investigador, crítico e professor do Pratt Institute, Jonathan Beller trabalha constantemente para desconstruir o valor simbólico da imagem e relacioná-la com a perceção do espectador. Os seus livros [“The Cinematic Mode of Production”] referem esse vínculo profundamente psicológica da audiência para com o Cinema, e tal a extensão para o lado mais politizado do visual.

Beller esteve presente em Lisboa, mais concretamente na Cinemateca Portuguesa como um dos intervenientes da 2º edição do Laboratório do Ciclo de Encontros “O que é O Arquivo?”, de forma a debater a importância do Arquivo e da Imagem no ponto de vista social e antropológica.

Nesta conversa, abordamos os seus objetivos assim como do arquivamento, passando pela raiz do seu trabalho e do seu fascínio pelo Cinema das Filipinas.

É sabido que esta é a sua primeira vez em Portugal, o que está a achar do país até então?

Bastante agradável, Portugal é tudo aquilo que esperava. Provavelmente melhor. As pessoas são amigáveis e o ambiente é absolutamente relaxante.

Começaremos por falar sobre o seu trabalho bibliográfico, como por exemplo o seu livro The Cinematic Mode of Production. É curioso como você habilmente mistura a natureza das imagens com questões políticas. Recordo que utiliza inúmeras vezes a palavra Marxismo para clarificar a economia simbólica das mesmas.

Ou seja, o meu trabalho é marxista e lírico? [risos] Para dizer a verdade, não uso a palavra ‘Marxismo’ como um conceito ou uma teoria, apenas desenvolvo as minhas doutrinas das imagens através das ideias fixas do marxismo e do capitalismo. Dessa forma enuncio a organização da qualidade consoante a evolução das tecnologias visuais e assim das estruturas financeiras.

Gostaria de invocar a pergunta que serve de título para este evento-ciclo: O que é O Arquivo?

O Arquivo é uma questão que tem muita atividade em diferentes sentidos. Um desses, é que senão existir acesso ou oportunidade de “navegar” no arquivo experienciamos uma sensação de empoderamento. Cuja realidade destes é fabricada por aqueles que têm o controlo do Arquivo, sendo que, principalmente no caso dos EUA, há uma tendência de fabulação dessa mesma realidade através da ausência / lacuna. Contudo, existe outra questão a ser feita: o que pretende ser arquivado ou merecer esse espaço? E de que ponto as novas descobertas pretendem inserir-se no mesmo? Será que existe legitimidade social nesse campo?

O que pretende atingir com a sua intervenção neste evento?

Nesta conferência espero elucidar que o Cinema é um “world making” (um “criador de Mundos”) e que a programação é um algoritmo que faz com que as pessoas acedam ao arquivo, fortalecendo assim o seu próprio conhecimento. Mas o meu trabalho de pesquisa não se baseia simplesmente na questão do Arquivo. Eu trabalho sobretudo, naquilo que apelido de “Imagens Programáveis”, o qual uma imagem é utilizada para organizar espaço social, assim como desejo e pratica. Nesse sentido, o autor destas imagens transmitem o seu significado, como por exemplo espelhar nelas a promoção dos ideais do capitalismo ou da supremacia branca. Mas tal difere do autor e as suas próprias ideologias e objetivos. Este problema com a criação de imagens afeta todos nós, até porque estamos a produzir em massa novos conteúdos. Para tal devemos fundar novos arquivos, programá-los ou reprogramá-los para que a imagem torne-se num símbolo de resistência.

image-w1280.webp

A Short Film About India Nacional (Raya Martin, 2005)

Curiosamente, quando usamos a palavra Arquivo, somos levados à preservação de um certo espólio cinematográfico, sendo esse um dos papéis fundamentais das Cinematecas. Contudo, a minha questão é, com toda esta preocupação com o material fílmico físico, é possível o digital assumir um papel de salvador dessa conservação patrimonial cinematográfica?

Respondendo diretamente à tua pergunta, não. Todavia, o digital não é sinônimo de objeção nem sequer de neutralidade, as pessoas tendem a esquecer que o digital emerge como parte da História de uma espécie. Porém, não quero responder quanto à nossa manifestação enquanto espécie ou enquanto História. Essas questões cabem ser respondidas pelo filme em si e não pelo formato. Outra questão a ser respondida é aquela que tenho lecionado em palestras, o facto destes arquivos serem compostos por materiais físicos como bobines, fitas, ou o que quiserem chamar, e a sua relevância quer cultural ou social.

Relembro um cineasta filipino, o qual tenho colaborado em muitos trabalhos, Raya Martin, que realizou um filme chamado “A Short Film About India Nacional” (2005), no qual retratava eventos ocorridos durante a independência das Filipinas em relação à Espanha. A obra foi dirigida como se tivesse sido concretizado em tempos do “Early Cinema” (Cinema Primitivo). Os movimentos de câmara, a fotografia, os intertítulos, tudo executado a mimetizar aquele período em contexto tecnológico. O curioso é que muitas das situações do filme decorrem em 1893, ou seja, muito antes do nascimento oficial do Cinema, e como tal ele é criado de forma a constituir uma ausência do arquivo no panorama filipino.

O que quero dizer é que, sem o arquivo, os filipinos não teriam poder enquanto colónia, e sobretudo não teriam acesso ao real. A destruição deste património físico poderá ser encarado como uma prática de colonialismo.

Tem um fascínio enorme pelo Cinema das Filipinas, inclusive tem trabalhos bibliográficos nesse sentido.

Sim, interesso-me bastante por este Cinema, aliás, por toda a sua cultura artística. Foram precisos 6 anos de investigação para conseguir concretizar o livro "Acquiring Eyes", que foca principalmente o cinema social-realista das Filipinas. Muito deste Cinema surgiu em ambiente de opressão ditatorial, mas mesmo assim são poderosas obras de arte.

Curiosamente, aqui em Portugal é escassa a exibição e distribuição desse cinema.

Os filmes existem, mas enquanto não houver interesse por parte das audiências ou dos programadores, estes mesmos não poderão sair do seu “arquivamento”. Por isso, não me admira que esses filmes tenham pouca divulgação e difusão.

Quanto ao Cinema atualmente produzido? Como o vê?

Para dizer a verdade, já não vejo mais Hollywood, interesso-me por muito do Cinema Europeu, especialmente o de Haneke, assim como o cinema do Sudoesta Asiático. Particularmente interessa-me o Cinema das imagens repreensivas, como o caso do Haneke, em que o filme gira em volta do que não está representado no ecrã, e trabalham em volta disso mesmo. A resistência da mentira invisível, da vida desaparecida através das possibilidades do tempo, um sítio interessante para as intervenções cinematográficas. Não é que pense que estes elementos sejam realmente necessários, transformativos, ou seja, não há garantia que tal cinema mudará o Mundo para melhor, mas julgo que são importantes, assim como, em paralelo, o trabalho do Arquivo, a datação dessas vidas invisíveis. Uma conexão desses tempos, dessas realidades, uma ligação direta com o nosso imaginário.

Os coitadinhos de Hollywood

Hugo Gomes, 02.02.17

FB_IMG_1583154859274.jpg

Sem desprezar as vidas perdidas nos ataques de Boston e obviamente condenar o atentado em si, devo dizer que é por filmes como este que Brilliant Mendoza fez o seu Taklub. Porquê? Porque o cinema de Hollywood continua a bombardear-nos com estas histórias de "coitadinhos superados". Um filme que nos demonstra o quão incompetente são as autoridades e quanto amor por Trump existe em Hollywood. É que afinal não existem só liberais. De mãos dadas com "Hacksaw Ridge".

Brillante Mendoza “pariu” um belo e naturalista filme

Hugo Gomes, 01.05.14

Thy Womb resized.jpg

“Thy Womb” (“Sinapupunan”) apresenta uma narrativa simples e carregada de significados, onde a realidade se funde com a ficção através de um cinema de eventualidades. O filme, de Brillante Mendoza (“Lola”, “Kinatay”), centra-se na história de Shaleha – interpretada pela expressiva Nora Aunor –, uma mulher infértil que, paradoxalmente, exerce o trabalho de parteira numa povoação pesqueira da província muçulmana de Tawi-Tawi, Filipinas. Num contexto onde o seu marido, Bangas-Na (Bembol Roco), anseia por ser pai, a procura de uma nova esposa constitui a única solução, revelando as contradições entre os papeis sociais e as tradições culturais.

A obra caracteriza-se pela união orgânica entre a ficção e o documentário. Mendoza aposta num cinema de improvisos, onde a câmara – por vezes intrusiva, mas sempre expressiva – capta momentos autênticos e imprevisíveis que emergem do acaso durante a rodagem. Esta abordagem natural transforma o enredo, que funciona quase como um ensaio para a captura das sequências, numa celebração da espontaneidade e da realidade, afastando-se dos artifícios narrativos convencionais.

Um dos elementos mais marcantes é o círculo narrativo que estrutura o filme, iniciando e terminando com duas surpreendentes cenas de partos reais. Estas imagens, que exaltam a dádiva da vida, criam uma ironia subjacente à figura de Shaleha – parteira infértil – e realçam os dilemas sociais e culturais da comunidade filipina. As cenas, longe de terem sido programadas, revelam uma estética que celebra a interligação entre Homem, Natureza e Fé, convidando o espectador a uma reflexão profunda sobre os papeis e propósitos das suas personagens.

Em suma, “Thy Womb" é um filme harmonioso, instintivo e anti-Hollywood, que se desvela através de uma estética de imprevistos e autenticidade. Mendoza transforma o simples em extraordinário, aproveitando as oportunidades que surgem naturalmente para criar um quadro vivo da cultura filipina, onde a realidade se converte na própria ficção e o inesperado enriquece a experiência cinematográfica.