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O “Acontecimento” filipino! Uma jovem ginasta, batizada de Sunshine, descobre que está grávida, o que pode comprometer a sua ida às Olimpíadas e um futuro promissor. Para evitar esse impasse, percorre as ruas de Manila em busca de uma forma de interromper a gravidez, num país altamente rígido e sem intenção de debater o tema.
Apresentado no Festival de Berlim, na secção Generation, onde venceu o seu prémio máximo (o Urso de Cristal), “Sunshine” não é apenas mais um filme na extensa carreira de Antoinette Jadaone, veterana do audiovisual filipino, é também um retomo ao seu lado mais intimista, emergente e, talvez, autoral desde “Fan Girl” (2020), cujo retrato dos segredos obscuros de um ídolo lhe valeu elogios e atenção no Ocidente. Já em “Sunshine”, é a obscuridade ainda vivida num país que lhe aufere um registo de ativismo.
Em conversa com o Cinematograficamente Falando…, a realizadora falou sobre o projeto e a dificuldade de abordar esse cenário num país como as Filipinas.
Gostava de perguntar de onde surgiu a ideia para este filme, visto possuir uma longa carreira tanto no cinema, quer mainstream e mais autoral, como também na televisão. Portanto, como foi trabalhar este tema em particular no seu filme?
Durante a pandemia comecei a desenvolver este conceito. Estava a brincar com a ideia do que acontece dentro da mente de uma adolescente grávida, e a partir daí, mergulhei numa espécie de “toca do coelho” [rabbit hole]: vi documentários sobre o sucedido nas Filipinas, entrevistei raparigas que quiseram levar a gravidez até ao fim, outras que quiseram interrompê-la e também aquelas que recorreram a abortos ilegais no país. Além disso, falei com ativistas dos direitos das mulheres e até com grupos religiosos. Quis olhar para este tema em diferentes perspetivas antes de finalmente decidir avançar com o filme. Estamos a falar de um tema delicado ...
Exacto, até porque está referido no press kit que o aborto ainda é um tabu no cinema filipino. E na sociedade filipina?
Sim, muito. As Filipinas são um país profundamente católico. Veja, o divórcio ainda é ilegal. Apenas existem dois países no mundo onde o divórcio continua proibido: um é o Vaticano, o outro somos nós. A religião está intimamente ligada a tudo na nossa vida, especialmente a política. É por isso que temas como o divórcio, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aborto e os direitos das mulheres ainda são tão difíceis de discutir e precisam de ser amplificados. Não são assuntos facilmente abordados em qualquer contexto, muito menos no cinema filipino.
Este filme surge, creio, três anos depois da consagração de “L'Événement”, de Audrey Diwan (com base no livro de Annie Ernaux), no Festival de Veneza, filme também sobre o aborto que causou um certo frenesim e debate por esse mundo fora. Chegou a vê-lo? Inspirou-a de alguma forma a explorar esta realidade no seu filme?
Não, na verdade, ainda não vi esse filme, mas conheço-o. [risos] Existem muitos filmes que abordam o aborto em diferentes regiões do mundo, ainda que não seja um tema muito comum. No entanto, mesmo quando o aborto é tratado no cinema, nunca é da forma como ele é visto nas Filipinas. Aqui, o aborto é ilegal em todos os casos, mesmo quando está em risco a vida da mãe. Noutros países, há estados ou regiões que permitem a interrupção da gravidez dentro de determinados prazos ou circunstâncias, mas, nas Filipinas, é estritamente proibido em qualquer situação. Não há nada a fazer!
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Antoinette Jadaone
Como funcionou o processo de casting? Posso garantir que a atriz principal é o coração trepidante do seu filme. Como a encontrou?
Sim, a Mariestella Racal [Maris Racal]! Ela, na verdade, não é ginasta como a protagonista. Nunca tinha praticado ginástica antes, mas é uma bailarina, muito flexível, movimenta-se graciosamente e dança muito bem. Queria uma atriz que já tivesse alguma preparação física, fosse flexível e que pudesse treinar para os movimentos de ginástica. Então, ela treinou com a equipa nacional das Filipinas, um dos treinadores da seleção nacional também foi seu treinador e coordenador para o filme.
Já tinha trabalhado com a Maris noutros projetos, numa série de comédia e também numa série dramática. Enquanto trabalhava com ela, percebi que, de certa forma, estava a prepará-la para um papel deste género, algo completamente diferente do que tinha anteriormente feito na sua carreira e fico muito feliz quando as pessoas que veem o filme me dizem que está incrível na pele de Sunshine, porque o papel foi realmente desafiante para ela!
E sobre as crianças que aparecem no filme…
Fizemos duas rondas de audições. Como sabe, é muito difícil selecionar crianças para um filme, por isso, foi um processo mais demorado. Tivemos um psicólogo infantil no set para orientar e explicar o sucedido, e depois fazer um acompanhamento após cada filmagem. Era essencial, porque o tema do filme é muito sensível, e não é algo que uma criança de oito anos compreenda facilmente, mas, na vida real, as crianças do filme são muito espertas, têm um grande sentido de sobrevivência e são muito perspicazes. Conseguimos falar abertamente sobre tudo, também com os pais delas, para garantir que estavam confortáveis com a situação.
O aborto é o núcleo do filme, mas durante a narrativa há sempre espaço para abordar outras questões, como o abuso infantil, juvenil, famílias disfuncionais e até a marginalização da comunidade queer. Como é que estes elementos se juntaram neste argumento?
São todos grupos marginalizados na sociedade. Não foi algo totalmente planeado no início da escrita, mas, ao desenvolver a história da Sunshine, era impossível ignorar o ambiente onde ela vive. E esse ambiente é Manila, que representa o que são as Filipinas atualmente. Como poderia uma adolescente grávida crescer nesta sociedade sem esbarrar noutras formas de marginalização? Era natural que outros aspetos da realidade social emergissem, como a infância em situações precárias e os desafios enfrentados pelas mulheres, tal como acontece com a Sunshine.
Gostava de falar sobre Manila. A cidade tem quase um papel próprio no filme. Enquanto espectador ocidental, vejo Manila retratada em muitos filmes filipinos, como os de Brillante Mendoza … posso referir desde já o seu “Ma’Rosa” (2016), por exemplo, que tal como o seu filme expõem a cidade de forma caótica, mas muito viva. Manila é, de facto, assim? Ou fruto da “magia do cinema”?
Sim, é caótica, mas também vibrante e cheia de cor. Desde o início, quis que Manila fosse uma personagem à parte no filme. É lá que a Sunshine encontra os medicamentos ilegais para abortar, mas também é onde faz amigos para a vida. Manila pode ser uma amiga para ela – às vezes leva-a a lugares perigosos, mas também a pessoas que a apoiam. Acho que é isso que define uma sociedade: há partes sombrias, mas também há esperança. O nosso objetivo, a nossa visão, é que estas crianças encontrem o caminho para os aspetos mais positivos da sociedade, em vez de ficarem presas às partes mais escuras.
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Queria falar sobre o final do filme, porque me pareceu bastante otimista. Não sei se, naquela situação, seria um desfecho realista, mas é como se fosse o "nascer do sol" para a Sunshine. Sentiu a necessidade de dar um final mais feliz à história? Foi uma escolha intencional em oposição ao que geralmente se retrata no cinema sobre este tema?
Sim, o final foi um tema recorrente nas nossas discussões – creio ter voltado a ele umas 10 ou 12 vezes em conversa com os produtores. O desfecho em si nunca mudou; o que variou foi a forma de o apresentar. Seria uma representação negativa ou uma visão mais positiva?
Pus-me no lugar de uma rapariga que, no futuro, possa ver este filme, alguém na mesma situação da Sunshine. Pensei no impacto dessa experiência e quis que encontrasse nas Filipinas uma imagem que a apoiasse, que lhe desse esperança, em vez de um futuro marcado apenas pelo desespero e uma sensação ainda maior de impotência.
Nas Filipinas, ao abordar estes temas, o desfecho tende a ser trágico – morte, destruição ou violência. A mensagem manteve-se, mas procurei uma perspetiva diferente, algo mais luminoso, mais "ensolarado", por assim dizer. Não sei se esse futuro se concretizará, mas em 2024 e 2025, quando fiz este filme, quis acreditar que era, pelo menos, uma possibilidade.
Este filme teve a sua estreia mundial em Toronto no ano passado, se não me engano. Agora estreia em Berlim. Já foi exibido nas Filipinas ou será para breve?
Ainda não estreou lá.
Certo. E como espera que seja a receção nas Filipinas? Imagino que vá gerar discussão e debate…
Isso é o mínimo que espero. Claro que queremos mudança, queremos uma sociedade melhor para estas crianças, mas tem de ser um passo de cada vez, um filme de cada vez. O nosso grande desejo é poder exibi-lo nas Filipinas, para que o filme possa "voltar para casa". Estamos otimistas, mas temos uma comissão de censura muito rigorosa no país. Ainda assim, espero que consigam ver para além do tema sensível e enxergar “Sunshine” pelo que realmente é: a história de uma rapariga a crescer, que deseja apenas um futuro brilhante para si.
Sente-se otimista em relação à sociedade filipina? Não apenas sobre este tema, mas também sobre os outros que aborda no filme?
Essa é uma questão político-social complexa. É muito difícil ser otimista hoje em dia, não só em relação às Filipinas, mas ao Mundo em geral. Ainda assim, acho que é sempre melhor ter esperança do que simplesmente ser pessimista. Acredito que a verdadeira esperança para o nosso país está na juventude, nas crianças. Já não sou jovem. [risos] Já fui como a Sunshine, já tive esse olhar para o mundo… E sim, o mundo está difícil, mas se o virmos através dos olhos da Sunshine, talvez as coisas não sejam assim tão más.
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Agora, para terminar, uma pergunta um pouco banal … Tem novos projetos em mente? Já pensa num novo filme? Talvez sobre outro tabu nas Filipinas?
Na verdade, tenho um projeto que ficou perdido devido à pandemia. Chama-se “Boldstar” e chegou a fazer parte do Mercado de Coprodução da Berlinale em 2020, mas tive de o suspender para o desenvolver melhor e também para esperar pela atriz principal. Talvez seja esse o projeto que vou retomar depois de “Sunshine”. É engraçado, porque escrevi “Sunshine” depois de “Boldstar” – o plano era trabalhar nele, mas durante a pandemia acabei por mergulhar completamente neste tema e decidi avançar com “Sunshine”. Depois, quem sabe, posso finalmente retomar ao dito “Boldstar”. A protagonista é, mais uma vez, uma mulher – como acontece em todos os meus filmes. Vamos ver o que acontece depois disto.