Diogo Fernandes em "Revolução (Sem) Sangue" (2024)
25 de Abril de 1974, uma data de ruptura com um sistema político que vigorou por 40 anos. Todos nós sabemos sobre ela, muitos de nós viveram-na, outros relembram, outros estudam, e alguns ainda choram. E foram estas lágrimas silenciosas dos “mortos de Abril”, esquecidos pela força da História, que levaram Rui Pedro Sousa a explorar este momento fatídico na rota dos cravos. Ao reunir um elenco de atores jovens, praticamente desconhecidos do grande público, ele deu vida à tragédia do quinteto de morte violenta: Fernando Giesteira, João Arruda, Fernando Reis, José Barneto e António Lages. Os seus nomes, muitas vezes ocultos pelos relatos posteriores, aqueles cujo sangue foi derramado nas ruas de Lisboa, na calçada em frente à antiga sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, serão agora resgatados.
Esta não é a história do 25 de Abril, mas sim a história deles. O realizador Rui Pedro Sousa aceitou o convite do Cinematograficamente Falando … para conversar sobre o projeto e a sua órbita, tendo como companhia do jovem Diogo Fernandes, o Fernando Reis no filme, o rebelde militar que, durante as celebrações um povo que contemplava a luz da sua liberdade, decidiu sair de uniforme, mesmo estando de licença. O ator, que fora escolhido por Gus Van Sant para interpretar Andy Warhol na sua peça “Andy”, é um dos núcleos narrativos de “Revolução (Sem) Sangue”.
Gostaria de começar a conversa perguntando como vocês encaram o 25 de Abril?
Diogo Fernandes: Acho que é a realidade que a maioria dos jovens da minha idade tem, aquilo que aprendemos na escola. Sabia que antes do 25 de Abril, Portugal vivia sob o regime ditatorial do Estado Novo, e que o 25 de Abril marca o início da democracia e de valores como a liberdade de expressão, política, social e económica. Era isso que eu sabia anteriormente. Contudo, ao me envolver neste projeto com o Rui e ao conhecer a história dos quatro jovens e das cinco pessoas que morreram nesse dia, percebi que o simbolismo promovido pelo discurso político da Revolução Sem Sangue, da Revolução Pacífica e dos cravos nas armas não era tão pacífico quanto parecia, uma vez que, de facto, houve mortes causadas por esse evento. Acredito que é muito mais interessante promover o país e a única relação que este teve a nível internacional do que simplesmente referir as pessoas que perderam a vida. Essencialmente, é isso.
Rui Pedro Sousa: Na minha experiência, sempre ouvi histórias do meu avô que esteve no Ultramar, e ele partilhava muitas dessas experiências comigo, tanto do Ultramar como da vida aqui em Portugal. Lembro-me da minha avó dizer: "Olha, não podíamos estar dois ou três a conversar na rua, que logo levávamos uns ‘estabefos' e nos mandavam dispersar.".
E depois, claro, o que se aprende nas escolas, mas só quando entrei neste projeto e comecei a falar com historiadores como o António Araújo e a Irene Pimentel, é que realmente percebi muitas coisas do que se passava, especialmente dentro da PIDE. Vi, de facto, que nós, os jovens que não vivemos, que nascemos depois do 25 de Abril, damos a nossa liberdade como garantida, e por vezes até nos queixamos tanto dela, sem termos noção de como era antes. Para mim, admito que não sabia tanto... Se não fosse por este projeto, hoje não teria o conhecimento que tenho sobre o 25 de Abril. Foi o projeto que me obrigou a estudar, a investigar a fundo, tudo o que aconteceu, como era antes, o que aconteceu nesse dia e como foi depois.
Ou seja, sempre tiveram contacto com o lado romantizado do 25 de Abril, como no filme "Os Capitães de Abril" de Maria de Medeiros, que continuamos a ver em loop. A questão é: sentem que essa romantização ainda persiste?
RPS: A romantização ainda persiste, e com o nosso filme, tentei mostrar que o 25 de Abril foi um dia de júbilo e felicidade para todo o povo português, pois representou a libertação de amarras crueis que nos oprimiam ao longo dos tempos. No entanto, é importante reconhecer que, apesar de não ser comparável à Ucrânia ou a revoluções em outros países ao longo da História, o facto de apenas cinco pessoas terem perdido a vida não deve ser minimizado. Até que ponto podemos dizer "afinal houve sangue"? Essas cinco pessoas ficaram esquecidas na memória coletiva do país, e acho que é crucial, até para as famílias, que os seus nomes sejam lembrados daqui para a frente. Apesar de ser considerada uma revolução sem derramamento de sangue, uma evolução pacífica, não podemos ignorar que houve jovens que lutaram pela mesma liberdade que os nossos avós, mas que hoje não estão a usufruir dela.
DF: Ressalto o facto de que não condeno essa romantização, porque, afinal de contas, a intenção era exatamente ter uma revolta pacífica, o que reflete os valores da democracia: resolver conflitos através do diálogo, encontrar pontos de entendimento no meio da discordância. No entanto, no calor do conflito, acabaram ocorrendo essas mortes, que de facto mancham essa imagem, a qual, naturalmente, foi adotada pelo discurso político para não comprometer a narrativa histórica.
RPS: Acima de tudo, o que busquei alcançar, e espero ter conseguido, foi evitar transformar este projeto num filme político. Em vez disso, o foco principal permaneceu na essência do que aconteceu: houve uma revolução, está a acontecer uma revolução, e no centro dela estão cinco pessoas - embora apenas tenhamos recebido autorização para explorar a história de quatro delas, devido à falta de consentimento da família no quinto indivíduo. O filme capta a narrativa dessas quatro pessoas, revelando as suas vidas e perspetivas enquanto a Revolução se desenrolava à sua volta. O objetivo foi evitar uma abordagem política definida sobre o que é certo ou errado. Embora tenha as minhas opiniões pessoais sobre o assunto, o filme procura retratar principalmente as experiências individuais dessas pessoas e o contexto da Revolução em que estavam imersas.
Pelo que entendi [para Rui Pedro Sousa], o início deste projeto aconteceu quando viu uma notícia que relatava essas mortes, o que te surpreendeu, e depois descobriu o livro do jornalista Fábio Monteiro, "Esquecidos em Abril". Tentou adaptar esse livro ou seguiu por uma investigação própria?
RPS: Não, realizamos uma investigação própria, pois o livro não era adaptável para o formato do filme. Fábio Monteiro conseguiu de forma incrível descobrir os familiares e entrevistá-los, o livro apenas expõe quem eram essas pessoas em vida, como o João Arruda, um estudante que colava cartazes e faixas pela rua, que dormia na residência universitária onde filmamos - ali era o seu lar, o quarto onde descansava e a faculdade onde estudava. O livro apresenta simplesmente: "Olhem, o João era assim, o Fernando Giesteira era assim, a irmã contou-nos isto." O filme incorpora muito dessa informação, mas tendo-a obtido através do livro, contactamos o Fábio, que nos facilitou o acesso às famílias, possibilitando-nos realizar novas entrevistas para compreender quem eram essas pessoas em vida. Em termos históricos, procuramos a colaboração de Irene Pimentel, Jacinto Godinho, que é outro jornalista, responsável pelo documentário incrível da RTP intitulado “Os Últimos Dias da PIDE”, além de Fábio Monteiro e António Araújo, que é um historiador que compreende muito bem o dia em si. E foram essas as bases para a história.
Rui Pedro Sousa / Fonte.: Cinemundo
Mas como é que chegou a este projeto? Bateu à porta de quem: “Olha, quero fazer um filme sobre isto”?
RPS: Tenho uma produtora chamada Station Productions, em conjunto com Sónia Resende e Rui Morgado. Durante um longo período, buscamos obter financiamento do ICA para realizar a nossa primeira obra. Contudo, ao longo dos últimos três ou quatro anos, enfrentamos dificuldades nesse processo, e então decidimos convidar uma outra produtora do Norte, a Filmesdamente, que já possuía um currículo mais consolidado, especialmente através do realizador Nuno Rocha, conhecido pelo filme "A Mãe é que Sabe". Ao unir as nossas capacidades por meio da Filmesdamente, conseguimos ativar o nosso contacto, que já tínhamos há alguns anos, com a Filmax, uma empresa de produção espanhola, o que valorizou ainda mais nossa candidatura, entrando connosco como Co-Produtora Internacional. Apresentamos o projeto ao ICA e tivemos a sorte de ser muito bem recebidos, especialmente por coincidir com os 50 anos do evento. Como costumo dizer, no ICA, 80 projetos são submetidos, mas apenas oito são selecionados. Tivemos a sorte de ser um dos escolhidos, ao lado da Ukbar, duas pequenas empresas do Norte, conseguindo obter o financiamento necessário, o que nos permitiu garantir o apoio subsequente da RTP e da TV Galiza. Foi assim que tudo se conjugou e o projeto começou a tomar forma.
Gostaria de abordar a questão da coprodução espanhola. Até que ponto houve exigências impostas pela produtora espanhola? Por exemplo, visto referirmos “Os Capitães de Abril", que foi co-produção luso-franco-italiana, os italianos impuseram o protagonista [Stefano Accorsi]. A Filmax também impôs alguma exigência?
RPS: Nada, foram incríveis nesse aspeto. Porquê? Porque o primeiro contacto da Filmax com este projeto foi com a TV Galiza. Descobrimos que a Galiza tem um forte interesse em tudo o que está relacionado com a nossa revolução, dada a sua proximidade com o evento. E, por estarem tão interessados no tema, prontamente concordaram em apoiar o projeto. A única exigência que fizeram, o que considero normal, foi que o filme fosse transmitido na TV Galiza no dia 25 de Abril, dobrado em galego.
DF: Vou ser dobrado! [risos]
RPS: A TV Galiza disse logo que sim, tanto que estamos a tentar ainda ter apoio da TVE, a TV espanhola.
E onde entrou o Diogo Fernandes nisto tudo?
RPS: O Diogo foi escolhido devido à São José Correia. Escrevi o argumento com três atores em mente: o Jorge Mota para o senhor Vinhas, o João Arrais para Nelson Silva e a São José Correia, que conheço desde os tempos do MotelX. Naquela altura, ela interpretava a PIDE Filomena, uma personagem que inventamos. No entanto, a um mês das filmagens, descobrimos a personagem da Leninha, uma agente da PIDE. Decidimos então transformar a personagem interpretada pela São José, tornando-a na cara da nossa vilã, a cara da PIDE.
Queria que estes quatro protagonistas fossem atores relativamente desconhecidos, pois pretendia rostos frescos no cinema, já que essas pessoas são praticamente desconhecidas do grande público. Foi então que ela mencionou um jovem ator que estava a fazer teatro, envolvido numa peça de Gus Van Sant [“Andy”]. Disse-me que ele era muito talentoso e seria perfeito para o papel do soldado. Pedimos uma tape do Diogo e, sem hesitar e sem necessidade de audição, ele ficou imediatamente com o papel. Foi um dos casos raros.
A família do Fernando Reis o descreve como uma espécie de James Dean português, era muito rebelde, e apenas queria fazer as coisas à sua maneira. A gravação do Diogo foi incrível e, pronto, temos aqui o nosso Fernando Reis.
DF: Admite … [risos] Foi a maçã, não foi? [risos]
RPS: Pois, a certa altura pegas numa maçã e, “o que tens que arranjar é um bom namorico”, e mordes a maçã … e é o que bastou. [risos]
DF: Obrigado, maçã.. [risos]
Gostaria que vocês me falassem da vossa abordagem para com os familiares.
RPS: Curioso, julgava que, passados 50 anos, seria fácil conversar com os familiares. Pensava para mim mesmo: "Bem, isto aconteceu há tanto tempo, o diálogo com eles será tranquilo." No entanto, ao chegar lá e começar as entrevistas, senti uma dor no coração. Era angustiante ver como os familiares, como a irmã do Giesteira - esta última uma doutora -, que fala da perda do irmão como se tivesse acontecido ontem. São pessoas que valorizam muito o significado do 25 de Abril para o país, mas ao mesmo tempo carregam um profundo lamento por terem perdido os seus entes queridos, e acima de tudo, lamentam a ausência de qualquer reconhecimento por parte do Governo, da Imprensa ou da Sociedade em geral, seja anualmente ou em celebrações subsequentes de 10, 20 ou 30 anos. Fiquei profundamente surpreso ao ver uma irmã do António Lages a chorar como se tivesse perdido o irmão ontem. A Ana Giesteira, por exemplo, ainda está muito marcada por tudo isso. Os filhos do Reis tinham apenas dois ou três anos na altura e não tiveram a oportunidade de conhecer o pai. Aqueles que estavam vivos na época já todos faleceram.
Os filhos relatam o que lhes era contado pelos avós, os pais do Fernando Reis, a Alice e o Luis (interpretados por Patricia André e Filipe Homem Fonseca no nosso filme). Durante o processo de filmagem, fui partilhando com eles algumas informações, embora não muitas, pois só hoje [10/04] vão ver o filme completo, tal como todas as outras pessoas.
Sinto-me um pouco nervoso porque vou falar com eles antes da estreia, especialmente nas partes mais críticas, como a cena do tiroteio, onde estou um pouco mais preocupado com a sua reação, pois são mais gráficas. Vou falar com eles antes para perceber como vão reagir. No entanto, a disponibilidade deles foi incrível. Querem que finalmente essas pessoas sejam lembradas e homenageadas anualmente, pois temos a perspetiva de que o filme seja transmitido todos os anos na RTP, por exemplo, por esta altura. Estão muito felizes por finalmente terem, para além do livro, esta homenagem, que pode perdurar para toda a vida, e estão muito satisfeitos com tudo isso.
E quanto ao Diogo, eu apresentei-o à família. Ele tem uma história curiosa. [risos]
DF: Tudo começou com uma chamada do Rui: “Olha, Diogo, vou dar-te o contacto dos Reis, para poderes falar com ele e assim ficares com uma ideia da perspetiva sobre aquele dia e sobre quem era a tua personagem.” E eu: "Obrigado." Liguei para o Carlos: "Olá, tudo bem? Eu sou o Diogo Fernandes, vou participar no filme ‘Revolução Sem Sangue’. O Rui Pedro Sousa deu-me o seu contacto. Gostaria de combinar um encontro para conversarmos um pouco. Tudo bem para si?” E ele respondeu: "Claro, Diogo, sem problema." Pensava que ia ter de me deslocar até Lisboa ou para outro lugar para me encontrar com o filho da personagem que iria interpretar. Mas quando perguntei de onde ele era, respondeu-me: “Eu sou de Palmela.” Palmela? Que coincidência! “Eu também sou de Palmela.” E ele: “A sério? Que engraçado!” E assim descobrimos que éramos praticamente vizinhos. Palmela é uma freguesia em Setúbal. E eu já conhecia bem Palmela. Ficamos combinados para nos encontrarmos.
Diogo Fernandes em "Revolução (Sem) Sangue" (2024)
Quando perguntei onde exatamente, ele disse: “Moro numa aldeia dentro de Palmela, que se chama Lagoinha.” E eu pensei: "Lagoinha? Eu também sou de Lagoinha!" Foi uma grande surpresa. O Carlos vivia a cerca de 1,5 quilómetros de mim, a apenas 400 metros da casa da minha avó [risos]. Era incrível como nunca nos tínhamos encontrado, considerando que passava pela casa dele praticamente todos os dias, pois ia apanhar o comboio no Pinhal Novo, e a casa dele ficava na rua ao lado da casa da minha avó.
Depois, quando nos encontramos, percebi que ele não tinha uma relação direta com o Fernando, pois quando este morreu, tinha apenas três anos. A única relação que ele tinha era através dos relatos da família. Gravei a conversa para poder ouvir novamente e relembrar tudo, porque já se passou algum tempo desde então. A conversa foi muito esclarecedora para mim.
Foram muito simpáticos e prestáveis. É claro que não existem registos em vídeo ou outras gravações que pudessem ajudar a ter uma ideia mais concreta de quem era o Fernando Reis, no entanto, consegui obter uma boa ideia do caráter dele através das conversas com a família, bem como da visão do Rui e do guião, o que me deu a margem necessária para fazer a minha própria interpretação.
Portanto, tirando António Lage, o funcionário da PIDE, José Barneto, o qual não tinham autorização da família - que já lá vou - o Fernando Reis é a personagem mais livre?
RPS: O Fernando Reis acabou por ser o personagem sobre o qual tivemos mais liberdade criativa.
DF: Só tínhamos uma fotografia dele.
RPS: e mais os relatos que o avô contava ao Carlos [Reis], que também ajudaram a moldar o personagem. Por exemplo, o pai do Fernando Reis era sapateiro, não dono de uma barbearia. Mas ajustamos esse detalhe para o filme por questões de orçamento; seria muito caro recriar uma sapataria de raiz, enquanto uma barbearia era mais acessível e até conseguimos patrocínio para isso.
Além disso, a relação do Reis com os pais foi retratada de forma um pouco diferente. Ele era mais ríspido com a mãe e mais afetuoso com o pai, no filme é o contrário. Tivemos de adaptar isso, com a autorização da família, para adicionar mais camadas à personagem, transformando a narrativa com o pai saindo de casa e também pressionando o filho, tornando a personagem ainda mais interessante. Acredito que, por termos tido mais liberdade na criação da sua imagem, o Fernando Reis acabou por ter uma curva mais complexa e interessante na narrativa do filme.
DF: Sim, mas também há diversos factos históricos que correspondem a essa análise que nós fazemos. O facto de ter sido deslocado para a Primeira Companhia, e ser bastante desobediente no seu serviço militar …
RPS: O avô sempre dizia, que ele não queria saber da tropa para nada. Não se enquadrava naqueles ‘costumes’ …
DF: Era obrigado, tinha que ser. [risos]
Mas mesmo assim ele saiu fardado no seu dia fatídico …
RPS: Isso é verdade! Os pais viram-no sair fardado no dia da Revolução e perguntaram: "Onde é que vais vestido assim?" Ele respondeu: "Eu sou militar, claro que tenho de ir fardado, faz todo sentido." No entanto, a família suspeitava que ele estava a fazer isso ao seu próprio estilo, talvez com um toque de vaidade, como se dissesse: "Vou vestir a minha farda e sair..."
DF: O curioso é que ele não estava de serviço no dia da Revolução. Conversando com o Carlos, descobri algo interessante: o avô do Fernando, acho que do lado materno, tentou pedir uma indemnização ao Estado português pela morte do Fernando, mas não conseguiu. A justificativa foi que ele não estava de serviço no momento da sua morte, sendo considerado um civil quando faleceu.
Mas o Diogo já está habituado a fazer personagens que, de uma forma ou de outra, tentam quebrar o sistema. Seja nas curtas “Filhas da Pátria”, de Catarina Almeida, também ambientado no Estado Novo, ou em “Bégan”, de Maria Jorge, em que sabota o talho do seu pai para o transformar num ponto de venda vegan, e claro, referindo ao seu papel como Andy Warhol na peça do Gus Van Sant.
DF: São os projetos que me têm aparecido. [risos]
RPS: Sobre o Fernando, sempre quis ser o mais fiel possível à realidade dos eventos ligados à Revolução. No entanto, ao mesmo tempo, ele é um dos personagens que tivemos que inventar mais coisas para completar a história. Com a PIDE, por exemplo, conseguimos fazer suposições sobre o que acontecia dentro da organização, mas optamos por criar uma narrativa que mantinha a ambiguidade, deixando o personagem do PIDE [António Lages] no escuro, quase sem falas, servindo como os olhos do espectador para os acontecimentos ali dentro. A sua história tinha um certo grau de liberdade criativa, mas alguns detalhes eram conhecidos, como ele estar procurando emprego para sair dali, ou querer fugir, baseando-se em relatos da família.
Por outro lado, houve personagens como o Giesteira e o Arruda, cujas histórias conseguimos manter o mais fieis à realidade. Isso aconteceu porque as irmãs dessas personagens ainda estão vivas e compartilham detalhes importantes. Por exemplo, a irmã do Giesteira teve uma conversa com ele no restaurante Galeto, local onde também filmamos, refletindo a autenticidade das locações usadas no filme. Além disso, o senhor Vinhas, que era dono da residência universitária onde o João Arruda morava, contou-nos que, no dia 25 de Abril, alertou o João para não sair, pois poderia ser perigoso. A resposta dele foi memorável: "Hoje é o dia mais feliz da minha vida!" Incluímos essa cena no filme, pois era uma fala real.
Revolução (Sem) Sangue (2024)
Fale-me sobre o caso do José Barneto, visto que não teve autorização por parte da família.
RPS: Ao princípio a família estava muito receptiva em apoiar-nos.
Em Portugal, a produção de filmes que exploram a vida de pessoas reais segue regras diferentes em comparação com os Estados Unidos. Nos EUA, é permitido explorar a vida das pessoas em filmes de forma relativamente livre, pois é considerado parte do domínio público. No entanto, em Portugal, a abordagem é mais restrita, especialmente quando se trata de ficção. Para documentários, a legislação é mais flexível, pois são considerados peças jornalísticas. Portanto, é possível falar sobre qualquer pessoa e explorar as suas vidas sem grandes restrições. No entanto, quando se trata de produções de ficção, é necessário obter uma autorização por escrito dos primeiros descendentes, caso a pessoa em questão já tenha falecido, isto foi o que a Sónia Resende nos informou, que é formada em direitos de autor.
Por exemplo, para explorar a vida do Fernando Reis, que é uma personagem central na narrativa, era necessário obter a autorização dos filhos, que são os primeiros descendentes vivos. Da mesma forma, para João Arruda, a autorização teve que vir das irmãs, para o Giesteira, da irmã viva, e para o Barneto, dos seus quatro filhos descendentes. Enquanto dois estavam bastante favoráveis ao projeto e deram suas autorizações sem problema, os outros foram mais cautelosos e chegaram a mencionar compensações financeiras, algo que não se tornou viável para a produção.
DF: Ainda pensei que fosse pela liberdade de ser na ficção, ter a liberdade para alterar os dados históricos.
RPS: Nada disso, foi apenas uma disputa entre os quatros descendentes.
Em relação ao António Lages, não houve constrangimentos pelo facto de ele ter pertencido à PIDE?
RPS: Tivemos o apoio da família. Devido a tudo o que nos contaram, sabemos que ele era funcionário da PIDE e tinha a sua parcela de responsabilidade por estar lá. No entanto, sempre abordei a personagem sob uma perspectiva diferente, a minha intenção nunca foi pintá-lo como vilão, embora ele acabe por ser um, pela simples razão de estar associado à PIDE. A verdade é que ele escolheu fazer parte dela. Mesmo assim, eu queria mostrar o lado mais humano dessa personagem.
Sabendo que esta é a sua primeira longa metragem, e os problemas que teve com a curta “Tsintty”, que na altura foi protestado por uma fatia mais conservadora da nossa sociedade. Digamos, você arrisca? [Risos]
RPS: Opá [risos] … acho que ainda me perguntaram isso. Sim, é aquele momento de "vai ou racha". É preciso tomar uma decisão. Estava à procura de uma história para a minha primeira obra, e quando encontrei uma notícia do 25 de Abril, pensei que poderia ser algo interessante. Eu tinha pesquisado no Google com as palavras "Histórias curiosas sobre a História de Portugal", e obtive alguns resultados. [risos] Surgiram temas sobre a Batalha de Aljubarrota, sobre o último rei de Portugal, etc, e de repente, deparei-me com uma história que não era tão branda quanto parecia.
Li várias histórias, mas essa específica ficou na minha mente. Ela foi ganhando espaço, cada vez mais. Fui comprando livros para investigação, como a do Fábio [Monteiro], que descrevia os personagens principais.
Em suma, foi uma questão de paixão. Apaixonei-me por estas personagens. Apaixonei-me por eles.
Mas voltando à romantização do 25 de Abril, ou melhor, à polarização que a data tem adquirindo, ainda mais, nestes anos. Acredita que o seu filme poderá contribuir, ou “alimentar”, um desses lados, nem seja por equívoco?
RPS: Não sei se isto vai mudar alguma coisa. E, para ser sincero, nem era essa a intenção quando fiz o filme. O que eu realmente espero, como ser humano e como cidadão português, é... temos uma liberdade hoje em dia da qual, mesmo assim, reclamamos bastante. E acho importante discutir isso. A Cinemundo, a distribuidora do filme, já nos disse que o público mais interessado tem entre 18 e 28 anos, a faixa etária mais ativa, que quer ver o filme, seguir o filme nas redes sociais, etc. O que me parece crucial é transmitir aos jovens de hoje: no passado, vivíamos num regime de extrema-direita. Mesmo com a liberdade que temos agora, que é imperfeita e tem falhas, ainda assim, reclamamos muito.
Quero mostrar aos jovens que devemos ter cuidado. Se ficarmos complacentes, podemos acabar num cenário semelhante ao do passado, com liberdades limitadas. O filme mostra que a juventude se uniu para mudar o rumo do país. Talvez, no futuro, vocês também precisem se unir para fazer algo, dado o caminho que as coisas estão a tomar. Se calhar, vai ser preciso juntar-se para lutar por uma sociedade melhor.
DF: Para um lado ou para o outro, é preciso unir-se para mudar o rumo das coisas. Identifico-me bastante com este discurso, e, depois de concluir o filme, continuei a refletir sobre o que isso poderia significar e qual seria o impacto do nosso trabalho, tendo em conta o contexto social e político atual do nosso país. Nunca tive a intenção de fazer um filme político. Claro que, tratando-se do 25 de Abril, há uma carga política inerente ao tema. No entanto, se o filme despertar a curiosidade das gerações mais novas, cuja relação com o 25 de Abril é cada vez mais distante, e inspirar uma compreensão dos valores pelos quais se lutou antes do 25 de Abril, como a liberdade e a democracia, que hoje damos por garantidos, então o nosso trabalho terá valido a pena.
Revolução (Sem) Sangue (2024)
Se o filme estimular a curiosidade dos jovens para investigar e compreender como era a vida antes do 25 de Abril, talvez eles também valorizem mais esses valores que agora tomamos como certos. E talvez isso os inspire a lutar por esses valores, porque, de facto, eles não são garantidos e podem desaparecer a qualquer momento. Precisamos estar vigilantes e empenhados na defesa desses princípios para que nunca os percamos de vista.
Pergunta da praxe: quanto a novos projetos?
RPS: Quanto a novos projetos, estou a considerar, ainda que de forma preliminar, um caso que ocorreu no Porto, envolvendo uma mulher transexual que imigrou do Brasil. O seu nome era Gisberta.
Esse caso já resultou num documentário de animação.
RPS: Sim, “O Teu Nome é”, se não estou em erro.
DF: No momento, estou a gravar "A Senhora do Mar", uma novela da SIC. E o futuro, bem, a vida de ator é assim mesmo. Não há propriamente uma rotina ou garantias de nada. Mas essa imprevisibilidade traz-me alguma excitação, algum entusiasmo, e um pouco de ansiedade também.