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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Conexões e fidelidades cinéfilas: Encontros de Cinema do Fundão celebra mais uma edição com Cinema, amizade e memória

Hugo Gomes, 07.08.24

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Atlântida – Do outro lado do Espelho (Daniel del Negro, 1986)

Agosto, silly season como se aborda em matéria de cinema, um deserto de ideias ou de criatividades, ou as faces mais descobertas dos mercados dominantes. Contudo, no Fundão, o desejo é outro, fazer dessa “estação parva” numa comunhão cinéfila, uma reunião, um debate constante sobre o Cinema e as suas periferias. Recebemos a 14ª edição dos Encontros Cinematográficos, desta vez de “cara lavada” e nome alterado - Encontros de Cinema do Fundão - ficando por aí as radicais mudanças, o espírito, esse, mantém-se … tal como prometem … assim como a Moagem permanece como albergue desta “peregrinação cinematográfica” e o Cineclube da Gardunha no apoio fundamental.

De 8 a 12 de Agosto, a cidade será a capital do cinema em Portugal, novamente com sessões, debates, convívios e ainda um espéctaculo concebido pela fadista Aldina Duarte, a “Princesa Prometida”, segundo Manuel Mozos. Teremos novidades, primeiras imagens, amizades e ligações entre duas nações, duas cinefilias, e que bem. E claro, Pedro Costa! Este ano, José Oliveira, programador e realizador (Os Conselhos da Noite”, "35 Anos Depois, O Movimento das Coisas") responde às dúvidas do Cinematograficamente Falando …, descortinando o programa destes quatro dias e o que podemos esperar destes Encontros. 

Começo por lhe perguntar sobre os desafios de mais uma edição dos Encontros de Cinema do Fundão, não apenas no sentido de ser uma comunhão cinéfila fora de Lisboa e do Porto (cada vez mais tidos como epicentros cine-culturais), mas também das cada vez mais propostas que vão preencher o verão, nomeadamente o mês de agosto.

No ano passado tivemos, devido a várias condicionantes, pela primeira vez os Encontros no mês de agosto. E foi a edição com maior sucesso em termos de espectadores. Portanto, não mexemos no que funcionou. Talvez as outras propostas de verão sejam uma ajuda. Quem gosta mesmo de cinema, quem quer ver filmes difíceis de ver em qualquer lugar, opta pelos Encontros. Os desafios são sempre os mesmos: fazer muito, fazer bem, com pouco. Fazer homenagens e trazer autores há muito sonhados por nós. E não pensar um segundo na questão dos grandes ou dos pequenos centros. Os certames de cinema que sempre admirei foram anomalias de grande sucesso como o Telluride film festival, de Tom Luddy, nas montanhas do Colorado, o Midnight Sun Film Festival, fundado por Aki e Mika Kaurismäki e Peter von Bagh, em Sodankylä, ou, entre outros, o MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, no Alto Minho, organizado pela Associação Ao Norte.

Olhando para a programação, podemos constatar uma forte presença portuguesa na sua seleção, desde os consagrados (Pedro Costa), aos homenageados (Jorge Silva Melo) e aos que merecem atenção no nosso radar (Manuel Mozos). De certa forma, os Encontros Cinematográficos espelham uma vaga ou um pensamento transversal do cinema português através da sua mostra?

Se virmos a história dos Encontros, percebemos que umas das questões mais importantes, e que tantas vezes estrutura a nossa programação, é a questão da fidelidade. Fidelidade aos cineastas que admiramos, aos autores, às vozes únicas. E assim, desde que eles tenham um novo filme, é quase certo que regressarão aos Encontros. Pedro Costa, Manuel Mozos, mas também Rita Azevedo Gomes, o saudoso Pierre-Marie Goulet, entre outros. O caso do Jorge Silva Melo é importante, e também tocante, pois sempre o quisemos trazer, mas nunca o conseguimos devido a conflitos de datas. Mas agora, com a presença da Aldina Duarte, fadista que ele admirava imenso, percebemos que seria a hora de uma homenagem condigna. 

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Aldina Duarte: Princesa Prometida ( Manuel Mozos, 2009)

Mas não podemos deixar de referir um acto justiceiro que é para nós um dos vetores fundamentais deste ano: a exibição da cópia restaurada pela cinemateca de “Atlântida – Do outro lado do Espelho”, de Daniel Del Negro, um filme de 1986. Temos uma entrevista inédita e extremamente confessional de alguém que erradamente é considerado um eremita. A cópia está surpreendente. E assim todos poderemos apreciar em boas condições um filme único no cinema português, que combina o fantástico e o labiríntico com o lado documental e poético sobre Lisboa de uma forma nunca vista por aqui. Evidentemente, por ser uma peça única, um molde sem exemplo anterior nem posterior, foi muito mal recebido por uma certa crítica politicamente manhosa e interesseira e sem pingo de humanidade ou saber. Basta comparar o fabuloso texto de João Bénard da Costa, uns anos depois, sobre o mesmo filme, para percebermos que foi ele, como sempre, que acertou. Citando-o: «é mesmo, eventualmente, a mais radical aposta no fantástico de que me recordo no cinema português. As suas quedas - ou quebras - são, como os seus riscos, abissais. Do fundo deles, vale bem a pena sustentar o desafio que, insólita mas rigorosamente, Daniel Del Negro nos lançou.» Um momento único.

No terceiro bloco da programação [dia 11 de agosto], o José Oliveira, em conjunto com a sua parceira de realização (posso também incluir de vida?) Marta Ramos, serão o grande destaque. Enquanto realizador e programador, o eterno malabarismo, gostaria que me falasse sobre esse projeto de nome “Génesis” (cujo work in progress será exibido), assim como da escolha de “Milestones” de Robert Kramer e John Douglas na proposta carta branca.

É importante começar por dizer que os Encontros têm vários programadores, amigos, conselheiros. E que, obviamente, nem eu nem a Marta programamos o nosso filme. Foi o Mário Fernandes que fez questão, como já aconteceu noutras ocasiões em que nem eu nem a Marta estávamos ligados à programação. Outro factor decisivo é que o filme foi produzido num contexto de uma bolsa artística atribuída (em concurso) pelo Município do Fundão. Ou seja, para o processo ser validado o filme terá de ser exibido no Fundão

O “Génesis” resulta de um longo processo de vivência e de observação de um vasto território onde o poder da natureza e das forças da natureza são soberanos. De alguém que larga a grande metrópole e se perde e se encontra num meio completamente diverso. É complicado desvelar mais sobre o filme, pois nem nós mesmos, os realizadores, estamos bem seguros de como falar dele, e muito menos de como resumir. 

O “Milestones” é para nós um dos filmes mais belos, radicais e escondidos da história do cinema. Feito por amor, por puro amor, com todo o tempo e disponibilidade do mundo. Um épico intimista onde a confiança entre quem está atrás e à frente da câmara é total.

Repito esta pergunta, feita a Mário Fernandes no ano passado: os Encontros de Cinema do Fundão, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

A palavra Encontros é mesmo a mais preciosa e precisa para nós. Encontro entre quem ama o cinema, entre quem está interessado em descobrir novas formas, novas relações, sensibilidades, visões do mundo. Por isso desprezaremos sempre os prémios, os concursos, a competição, o circo. Importa os belos encontros, as pessoas, tornar o mundo um pouco mais habitável. 

Gostaria que me falasse sobre a restante programação, de Paulo Carneiro a Miguel Ildefonso, os convidados e as cartas brancas, passando, claro, pela presença da fadista e artista Aldina Duarte.

Além da fidelidade, o que mais gostamos é de descobrir novos cineastas, novos filmes que nos toquem. O que mais apreciamos no “Via Norte” foi o respeito e o afecto do Paulo Carneiro para com os imigrantes apaixonados por carros e com coisas primordiais para dizerem. Seria muito fácil e tentador gozar com essa paixão, tornar o filme jocoso, como outros realizadores portugueses costumam fazer, e com desgraçado sucesso, mas o Paulo esteve à altura, foi digno, e por isso o filme tem momentos comoventes em que ele cria o espaço para uma expressão sincera assomar.  As cartas-brancas são outra das constantes dos Encontros, e que permite achar e conversar sobre filiações com que as escolhe. Por exemplo, o filme do Miguel Ildefonso foi escolhido pelo Paulo para acompanhar o seu. Quanto à Aldina, tanto tem a ver com a homenagem ao Silva Melo, como com a nossa parceria com a Associação Fado Cale, que muito almejava tê-la no Fundão.

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Na rodagem de "Contactos" (Paulino Viota, 1970)

Quais são os próximos desafios a ter em conta com os Encontros de Cinema do Fundão? Existe interesse em expansão ou o nicho/regionalidade é um artifício necessário para a sua identidade? 

Não existe qualquer interesse na expansão, além da habitual extensão na Cinemateca, nossos amigos. Só faltou referir o único convidado internacional: Paulino Viota, que vem acompanhado por figuras míticas da cinefilia espanhola, como Enrique Bolado, programador e fundador da cinemateca de Cantabria e uma figura importantíssima em termos culturais mais latos, ou José Luis Torrelavega, do Cine Club Santander, catedral cinéfila de um culto precioso. 

De resto, Viota é uma das grandes descobertas dos últimos anos, realizador de um dos filmes mais radicais, políticos, misteriosos e importantes dos anos 70 espanhois – “Contactos”. Jean Narboni chegou a dizer que se os Cahiers du Cinéma tivessem visto “Contactos” nos anos 70, quando Langlois costumava mostrar estes filmes duas vezes na sua cinemateca, eles teriam imediatamente promovido (e consagrado) este filme como promoveram as primeiras obras de Kramer, Cassavetes ou Huillet/Straub. Viota é ainda um enormíssimo historiador, escritor, com livros sobre John Ford, Godard ou Eisenstein, ou maravilhosos artigos sobre diversos grandes autores, como os presentes no seu último livro, La Familia del Cine”, que será apresentado nos Encontros

Toda a programação poderá ser consultada aqui

Terra Nostra

Hugo Gomes, 18.05.24

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Olha para baixo.

 Que vês?

Exaustão. Vida, Mitos, Raízes, Memórias. Crimes, Fim, Início. Acumulação. Ruínas. Sal. Escuridão. Vejo-te.

Uma faísca originada dos esforços conjuntos entre os coletivos Grandeza Studio [Amaia Sánchez-Velasco e Jorge Valiente Oriol] e Locument [Romea Muryn e Francisco Lobo],Strata Incognita”, é-nos apresentada como uma “viagem trans-escalar e trans-temporal” tendo como paragem a condição dos solos - das suas propriedades às possessões - termos meramente expostos na carta de manifestação deste projeto. E não poderiam estar mais próximos da experiência alcançada: uma viagem que parte de imagens dronescas (drones everywhere!) e de terras aparentemente inóspitas, erosivas, desertos de cinzas e terras “mortas” onde figuras munidas de fatos de proteção térmica, como exploradores vindos de outros mundos, nos são encaradas como guias de uma prolongada performance video-artística, cruzadas por um ativismo de instalação.

Inicialmente, “Strata Incognita” expõe uma ideia de contra-vazio, demonstrando terrenos aparentemente escassos em vida como paraísos de micro-criaturas, microesferas e biótopos invisíveis ao olho nu (e longe do coração), onde “uma colher de terra colhe mais vida do que todos os humanos existentes na Terra”. À cadência de um videoclipe, viajamos à velocidade do som através dessas relações e inter-relações entre fauna, flora e fungos, Arcas de Noé das quais nos deleitamos ou aterrorizamos através do imaginário desfeito de estarmos sós no ‘baldio’. Contudo, passamos para a próxima paragem, a “Primavera Silenciosa”, onde o solo enquanto propriedade (“uma palavra que o sonho humano alimenta…”, um palpável delírio do nosso liberalismo enviesado num antropocentrismo feroz) e a sua ultra-exploração que destroem, para além da vida, os seus recursos, as suas prosperidades, a fertilidade concebida apenas uma vez, desperdiçando essa terra, dizimando a sua essência, convertendo-a num disputado amontoado de pó. Assim, somos remetidos ao vazio, sem mais líquenes, sem mais lombrigas ou formigas domesticáveis, o que está além da nossa percepção alia-se, por fim, ao austero que o batido e cinzento nos oferece (o filme faz uso das paisagens devastadas pelo vulcão em Las Palmas, nas Ilhas Canárias).

Strata Incognita” persiste numa musicalidade de intervenção ecológica, talvez para apelar às sensibilidades através de um corpo de arte, mas é um filme de texto, ora alarmado, ora abocanhado nas raízes primárias e secundárias do seu problema (voltas e voltas, para nos resumir na nossa auto-extinção), estruturado numa mensagem imagética, artificializada pelo zénite captado pelos inúmeros drones, esse Olho de Deus, julgando a nossa passagem, ou diríamos antes, pegada.

O escritor do Cinema, o Cinema do escritor

Hugo Gomes, 01.05.24

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Um Homem é feito de ignorâncias, e admiti-las é abraçar o seu trajeto de progressão nesta breve existência. Não, nunca li Paul Auster e daquilo que começo da sua pessoa vem do cinema, que o próprio sempre demonstrou fascínio e parte da sua influência literária. E foi através do seu Martin Frost (interpretado por David Thewlis, ator diversas vezes posto à margem) a fazer aproximar do que pode chamar de seu universo. “The Inner Life of Martin Frost” (2007) escrito e realizado pelo próprio escritor, um filme de como torturante (e desesperante) é um escritor lidar com a sua própria arte.

Paul Auster (1947 - 2024)

"Nunca tive a intenção de fazer um filme político": falando com Rui Pedro Sousa e Diogo Fernandes sobre "Revolução (Sem) Sangue"

Hugo Gomes, 21.04.24

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Diogo Fernandes em "Revolução (Sem) Sangue" (2024)

25 de Abril de 1974, uma data de ruptura com um sistema político que vigorou por 40 anos. Todos nós sabemos sobre ela, muitos de nós viveram-na, outros relembram, outros estudam, e alguns ainda choram. E foram estas lágrimas silenciosas dos “mortos de Abril”, esquecidos pela força da História, que levaram Rui Pedro Sousa a explorar este momento fatídico na rota dos cravos. Ao reunir um elenco de atores jovens, praticamente desconhecidos do grande público, ele deu vida à tragédia do quinteto de morte violenta: Fernando Giesteira, João Arruda, Fernando Reis, José Barneto e António Lages. Os seus nomes, muitas vezes ocultos pelos relatos posteriores, aqueles cujo sangue foi derramado nas ruas de Lisboa, na calçada em frente à antiga sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, serão agora resgatados.

Esta não é a história do 25 de Abril, mas sim a história deles. O realizador Rui Pedro Sousa aceitou o convite do Cinematograficamente Falando … para conversar sobre o projeto e a sua órbita, tendo como companhia do jovem Diogo Fernandes, o Fernando Reis no filme, o rebelde militar que, durante as celebrações um povo que contemplava a luz da sua liberdade, decidiu sair de uniforme, mesmo estando de licença. O ator, que fora escolhido por Gus Van Sant para interpretar Andy Warhol na sua peça “Andy”, é um dos núcleos narrativos de “Revolução (Sem) Sangue”.

Gostaria de começar a conversa perguntando como vocês encaram o 25 de Abril?

Diogo Fernandes: Acho que é a realidade que a maioria dos jovens da minha idade tem, aquilo que aprendemos na escola. Sabia que antes do 25 de Abril, Portugal vivia sob o regime ditatorial do Estado Novo, e que o 25 de Abril marca o início da democracia e de valores como a liberdade de expressão, política, social e económica. Era isso que eu sabia anteriormente. Contudo, ao me envolver neste projeto com o Rui e ao conhecer a história dos quatro jovens e das cinco pessoas que morreram nesse dia, percebi que o simbolismo promovido pelo discurso político da Revolução Sem Sangue, da Revolução Pacífica e dos cravos nas armas não era tão pacífico quanto parecia, uma vez que, de facto, houve mortes causadas por esse evento. Acredito que é muito mais interessante promover o país e a única relação que este teve a nível internacional do que simplesmente referir as pessoas que perderam a vida. Essencialmente, é isso.

Rui Pedro Sousa: Na minha experiência, sempre ouvi histórias do meu avô que esteve no Ultramar, e ele partilhava muitas dessas experiências comigo, tanto do Ultramar como da vida aqui em Portugal. Lembro-me da minha avó dizer: "Olha, não podíamos estar dois ou três a conversar na rua, que logo levávamos uns ‘estabefos' e nos mandavam dispersar.". 

E depois, claro, o que se aprende nas escolas, mas só quando entrei neste projeto e comecei a falar com historiadores como o António Araújo e a Irene Pimentel, é que realmente percebi muitas coisas do que se passava, especialmente dentro da PIDE. Vi, de facto, que nós, os jovens que não vivemos, que nascemos depois do 25 de Abril, damos a nossa liberdade como garantida, e por vezes até nos queixamos tanto dela, sem termos noção de como era antes. Para mim, admito que não sabia tanto... Se não fosse por este projeto, hoje não teria o conhecimento que tenho sobre o 25 de Abril. Foi o projeto que me obrigou a estudar, a investigar a fundo, tudo o que aconteceu, como era antes, o que aconteceu nesse dia e como foi depois.

Ou seja, sempre tiveram contacto com o lado romantizado do 25 de Abril, como no filme "Os Capitães de Abril" de Maria de Medeiros, que continuamos a ver em loop. A questão é: sentem que essa romantização ainda persiste?

RPS: A romantização ainda persiste, e com o nosso filme, tentei mostrar que o 25 de Abril foi um dia de júbilo e felicidade para todo o povo português, pois representou a libertação de amarras crueis que nos oprimiam ao longo dos tempos. No entanto, é importante reconhecer que, apesar de não ser comparável à Ucrânia ou a revoluções em outros países ao longo da História, o facto de apenas cinco pessoas terem perdido a vida não deve ser minimizado. Até que ponto podemos dizer "afinal houve sangue"? Essas cinco pessoas ficaram esquecidas na memória coletiva do país, e acho que é crucial, até para as famílias, que os seus nomes sejam lembrados daqui para a frente. Apesar de ser considerada uma revolução sem derramamento de sangue, uma evolução pacífica, não podemos ignorar que houve jovens que lutaram pela mesma liberdade que os nossos avós, mas que hoje não estão a usufruir dela.

DF: Ressalto o facto de que não condeno essa romantização, porque, afinal de contas, a intenção era exatamente ter uma revolta pacífica, o que reflete os valores da democracia: resolver conflitos através do diálogo, encontrar pontos de entendimento no meio da discordância. No entanto, no calor do conflito, acabaram ocorrendo essas mortes, que de facto mancham essa imagem, a qual, naturalmente, foi adotada pelo discurso político para não comprometer a narrativa histórica.

RPS: Acima de tudo, o que busquei alcançar, e espero ter conseguido, foi evitar transformar este projeto num filme político. Em vez disso, o foco principal permaneceu na essência do que aconteceu: houve uma revolução, está a acontecer uma revolução, e no centro dela estão cinco pessoas - embora apenas tenhamos recebido autorização para explorar a história de quatro delas, devido à falta de consentimento da família no quinto indivíduo. O filme capta a narrativa dessas quatro pessoas, revelando as suas vidas e perspetivas enquanto a Revolução se desenrolava à sua volta. O objetivo foi evitar uma abordagem política definida sobre o que é certo ou errado. Embora tenha as minhas opiniões pessoais sobre o assunto, o filme procura retratar principalmente as experiências individuais dessas pessoas e o contexto da Revolução em que estavam imersas.

Pelo que entendi [para Rui Pedro Sousa], o início deste projeto aconteceu quando viu uma notícia que relatava essas mortes, o que te surpreendeu, e depois descobriu o livro do jornalista Fábio Monteiro, "Esquecidos em Abril". Tentou adaptar esse livro ou seguiu por uma investigação própria?

RPS: Não, realizamos uma investigação própria, pois o livro não era adaptável para o formato do filme. Fábio Monteiro conseguiu de forma incrível descobrir os familiares e entrevistá-los, o livro apenas expõe quem eram essas pessoas em vida, como o João Arruda, um estudante que colava cartazes e faixas pela rua, que dormia na residência universitária onde filmamos - ali era o seu lar, o quarto onde descansava e a faculdade onde estudava. O livro apresenta simplesmente: "Olhem, o João era assim, o Fernando Giesteira era assim, a irmã contou-nos isto." O filme incorpora muito dessa informação, mas tendo-a obtido através do livro, contactamos o Fábio, que nos facilitou o acesso às famílias, possibilitando-nos realizar novas entrevistas para compreender quem eram essas pessoas em vida. Em termos históricos, procuramos a colaboração de Irene Pimentel, Jacinto Godinho, que é outro jornalista, responsável pelo documentário incrível da RTP intitulado “Os Últimos Dias da PIDE”, além de Fábio Monteiro e António Araújo, que é um historiador que compreende muito bem o dia em si. E foram essas as bases para a história.

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Rui Pedro Sousa / Fonte.: Cinemundo

Mas como é que chegou a este projeto? Bateu à porta de quem: “Olha, quero fazer um filme sobre isto”?

RPS: Tenho uma produtora chamada Station Productions, em conjunto com Sónia Resende e Rui Morgado. Durante um longo período, buscamos obter financiamento do ICA para realizar a nossa primeira obra. Contudo, ao longo dos últimos três ou quatro anos, enfrentamos dificuldades nesse processo, e então decidimos convidar uma outra produtora do Norte, a Filmesdamente, que já possuía um currículo mais consolidado, especialmente através do realizador Nuno Rocha, conhecido pelo filme "A Mãe é que Sabe". Ao unir as nossas capacidades por meio da Filmesdamente, conseguimos ativar o nosso contacto, que já tínhamos há alguns anos, com a Filmax, uma empresa de produção espanhola, o que valorizou ainda mais nossa candidatura, entrando connosco como Co-Produtora Internacional. Apresentamos o projeto ao ICA e tivemos a sorte de ser muito bem recebidos, especialmente por coincidir com os 50 anos do evento. Como costumo dizer, no ICA, 80 projetos são submetidos, mas apenas oito são selecionados. Tivemos a sorte de ser um dos escolhidos, ao lado da Ukbar, duas pequenas empresas do Norte, conseguindo obter o financiamento necessário, o que nos permitiu garantir o apoio subsequente da RTP e da TV Galiza. Foi assim que tudo se conjugou e o projeto começou a tomar forma.

Gostaria de abordar a questão da coprodução espanhola. Até que ponto houve exigências impostas pela produtora espanhola? Por exemplo, visto referirmos “Os Capitães de Abril", que foi co-produção luso-franco-italiana, os italianos impuseram o protagonista [Stefano Accorsi]. A Filmax também impôs alguma exigência?

RPS: Nada, foram incríveis nesse aspeto. Porquê? Porque o primeiro contacto da Filmax com este projeto foi com a TV Galiza. Descobrimos que a Galiza tem um forte interesse em tudo o que está relacionado com a nossa revolução, dada a sua proximidade com o evento. E, por estarem tão interessados no tema, prontamente concordaram em apoiar o projeto. A única exigência que fizeram, o que considero normal, foi que o filme fosse transmitido na TV Galiza no dia 25 de Abril, dobrado em galego.

DF: Vou ser dobrado! [risos]

RPS: A TV Galiza disse logo que sim, tanto que estamos a tentar ainda ter apoio da TVE, a TV espanhola.

E onde entrou o Diogo Fernandes nisto tudo?

RPS: O Diogo foi escolhido devido à São José Correia. Escrevi o argumento com três atores em mente: o Jorge Mota para o senhor Vinhas, o João Arrais para Nelson Silva e a São José Correia, que conheço desde os tempos do MotelX. Naquela altura, ela interpretava a PIDE Filomena, uma personagem que inventamos. No entanto, a um mês das filmagens, descobrimos a personagem da Leninha, uma agente da PIDE. Decidimos então transformar a personagem interpretada pela São José, tornando-a na cara da nossa vilã, a cara da PIDE. 

Queria que estes quatro protagonistas fossem atores relativamente desconhecidos, pois pretendia rostos frescos no cinema, já que essas pessoas são praticamente desconhecidas do grande público. Foi então que ela mencionou um jovem ator que estava a fazer teatro, envolvido numa peça de Gus Van Sant [“Andy”]. Disse-me que ele era muito talentoso e seria perfeito para o papel do soldado. Pedimos uma tape do Diogo e, sem hesitar e sem necessidade de audição, ele ficou imediatamente com o papel. Foi um dos casos raros. 

A família do Fernando Reis o descreve como uma espécie de James Dean português, era muito rebelde, e apenas queria fazer as coisas à sua maneira. A gravação do Diogo foi incrível e, pronto, temos aqui o nosso Fernando Reis.

DF: Admite … [risos] Foi a maçã, não foi? [risos]

RPS: Pois, a certa altura pegas numa maçã e, “o que tens que arranjar é um bom namorico”, e mordes a maçã … e é o que bastou. [risos]

DF: Obrigado, maçã.. [risos]

Gostaria que vocês me falassem da vossa abordagem para com os familiares.

RPS: Curioso, julgava que, passados 50 anos, seria fácil conversar com os familiares. Pensava para mim mesmo: "Bem, isto aconteceu há tanto tempo, o diálogo com eles será tranquilo." No entanto, ao chegar lá e começar as entrevistas, senti uma dor no coração. Era angustiante ver como os familiares, como a irmã do Giesteira - esta última uma doutora -, que fala da perda do irmão como se tivesse acontecido ontem. São pessoas que valorizam muito o significado do 25 de Abril para o país, mas ao mesmo tempo carregam um profundo lamento por terem perdido os seus entes queridos, e acima de tudo, lamentam a ausência de qualquer reconhecimento por parte do Governo, da Imprensa ou da Sociedade em geral, seja anualmente ou em celebrações subsequentes de 10, 20 ou 30 anos. Fiquei profundamente surpreso ao ver uma irmã do António Lages a chorar como se tivesse perdido o irmão ontem. A Ana Giesteira, por exemplo, ainda está muito marcada por tudo isso. Os filhos do Reis tinham apenas dois ou três anos na altura e não tiveram a oportunidade de conhecer o pai. Aqueles que estavam vivos na época já todos faleceram.

Os filhos relatam o que lhes era contado pelos avós, os pais do Fernando Reis, a Alice e o Luis (interpretados por Patricia André e Filipe Homem Fonseca no nosso filme). Durante o processo de filmagem, fui partilhando com eles algumas informações, embora não muitas, pois só hoje [10/04] vão ver o filme completo, tal como todas as outras pessoas. 

Sinto-me um pouco nervoso porque vou falar com eles antes da estreia, especialmente nas partes mais críticas, como a cena do tiroteio, onde estou um pouco mais preocupado com a sua reação, pois são mais gráficas. Vou falar com eles antes para perceber como vão reagir. No entanto, a disponibilidade deles foi incrível. Querem que finalmente essas pessoas sejam lembradas e homenageadas anualmente, pois temos a perspetiva de que o filme seja transmitido todos os anos na RTP, por exemplo, por esta altura. Estão muito felizes por finalmente terem, para além do livro, esta homenagem, que pode perdurar para toda a vida, e estão muito satisfeitos com tudo isso.

E quanto ao Diogo, eu apresentei-o à família. Ele tem uma história curiosa. [risos]

DF: Tudo começou com uma chamada do Rui: “Olha, Diogo, vou dar-te o contacto dos Reis, para poderes falar com ele e assim ficares com uma ideia da perspetiva sobre aquele dia e sobre quem era a tua personagem.” E eu: "Obrigado." Liguei para o Carlos: "Olá, tudo bem? Eu sou o Diogo Fernandes, vou participar no filme ‘Revolução Sem Sangue’. O Rui Pedro Sousa deu-me o seu contacto. Gostaria de combinar um encontro para conversarmos um pouco. Tudo bem para si?” E ele respondeu: "Claro, Diogo, sem problema." Pensava que ia ter de me deslocar até Lisboa ou para outro lugar para me encontrar com o filho da personagem que iria interpretar. Mas quando perguntei de onde ele era, respondeu-me: “Eu sou de Palmela.” Palmela? Que coincidência! “Eu também sou de Palmela.” E ele: “A sério? Que engraçado!” E assim descobrimos que éramos praticamente vizinhos. Palmela é uma freguesia em Setúbal. E eu já conhecia bem Palmela. Ficamos combinados para nos encontrarmos.

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Diogo Fernandes em "Revolução (Sem) Sangue" (2024)

Quando perguntei onde exatamente, ele disse: “Moro numa aldeia dentro de Palmela, que se chama Lagoinha.” E eu pensei: "Lagoinha? Eu também sou de Lagoinha!" Foi uma grande surpresa. O Carlos vivia a cerca de 1,5 quilómetros de mim, a apenas 400 metros da casa da minha avó [risos]. Era incrível como nunca nos tínhamos encontrado, considerando que passava pela casa dele praticamente todos os dias, pois ia apanhar o comboio no Pinhal Novo, e a casa dele ficava na rua ao lado da casa da minha avó.

Depois, quando nos encontramos, percebi que ele não tinha uma relação direta com o Fernando, pois quando este morreu, tinha apenas três anos. A única relação que ele tinha era através dos relatos da família. Gravei a conversa para poder ouvir novamente e relembrar tudo, porque já se passou algum tempo desde então. A conversa foi muito esclarecedora para mim.

Foram muito simpáticos e prestáveis. É claro que não existem registos em vídeo ou outras gravações que pudessem ajudar a ter uma ideia mais concreta de quem era o Fernando Reis, no entanto, consegui obter uma boa ideia do caráter dele através das conversas com a família, bem como da visão do Rui e do guião, o que me deu a margem necessária para fazer a minha própria interpretação. 

Portanto, tirando António Lage, o funcionário da PIDE, José Barneto, o qual não tinham autorização da família - que já lá vou - o Fernando Reis é a personagem mais livre?

RPS: O Fernando Reis acabou por ser o personagem sobre o qual tivemos mais liberdade criativa.

DF: Só tínhamos uma fotografia dele.

RPS: e mais os relatos que o avô contava ao Carlos [Reis], que também ajudaram a moldar o personagem. Por exemplo, o pai do Fernando Reis era sapateiro, não dono de uma barbearia. Mas ajustamos esse detalhe para o filme por questões de orçamento; seria muito caro recriar uma sapataria de raiz, enquanto uma barbearia era mais acessível e até conseguimos patrocínio para isso.

Além disso, a relação do Reis com os pais foi retratada de forma um pouco diferente. Ele era mais ríspido com a mãe e mais afetuoso com o pai, no filme é o contrário. Tivemos de adaptar isso, com a autorização da família, para adicionar mais camadas à personagem, transformando a narrativa com o pai saindo de casa e também pressionando o filho, tornando a personagem ainda mais interessante. Acredito que, por termos tido mais liberdade na criação da sua imagem, o Fernando Reis acabou por ter uma curva mais complexa e interessante na narrativa do filme.

DF: Sim, mas também há diversos factos históricos que correspondem a essa análise que nós fazemos. O facto de ter sido deslocado para a Primeira Companhia, e ser bastante desobediente no seu serviço militar …

RPS: O avô sempre dizia, que ele não queria saber da tropa para nada. Não se enquadrava naqueles ‘costumes’ …

DF: Era obrigado, tinha que ser. [risos]

Mas mesmo assim ele saiu fardado no seu dia fatídico …

RPS: Isso é verdade! Os pais viram-no sair fardado no dia da Revolução e perguntaram: "Onde é que vais vestido assim?" Ele respondeu: "Eu sou militar, claro que tenho de ir fardado, faz todo sentido." No entanto, a família suspeitava que ele estava a fazer isso ao seu próprio estilo, talvez com um toque de vaidade, como se dissesse: "Vou vestir a minha farda e sair..."

DF: O curioso é que ele não estava de serviço no dia da Revolução. Conversando com o Carlos, descobri algo interessante: o avô do Fernando, acho que do lado materno, tentou pedir uma indemnização ao Estado português pela morte do Fernando, mas não conseguiu. A justificativa foi que ele não estava de serviço no momento da sua morte, sendo considerado um civil quando faleceu.

Mas o Diogo já está habituado a fazer personagens que, de uma forma ou de outra, tentam quebrar o sistema. Seja nas curtas “Filhas da Pátria”, de Catarina Almeida, também ambientado no Estado Novo, ou em “Bégan”, de Maria Jorge, em que sabota o talho do seu pai para o transformar num ponto de venda vegan, e claro, referindo ao seu papel como Andy Warhol na peça do Gus Van Sant.

DF: São os projetos que me têm aparecido. [risos]

RPS: Sobre o Fernando, sempre quis ser o mais fiel possível à realidade dos eventos ligados à Revolução. No entanto, ao mesmo tempo, ele é um dos personagens que tivemos que inventar mais coisas para completar a história. Com a PIDE, por exemplo, conseguimos fazer suposições sobre o que acontecia dentro da organização, mas optamos por criar uma narrativa que mantinha a ambiguidade, deixando o personagem do PIDE [António Lages] no escuro, quase sem falas, servindo como os olhos do espectador para os acontecimentos ali dentro. A sua história tinha um certo grau de liberdade criativa, mas alguns detalhes eram conhecidos, como ele estar procurando emprego para sair dali, ou querer fugir, baseando-se em relatos da família.

Por outro lado, houve personagens como o Giesteira e o Arruda, cujas histórias conseguimos manter o mais fieis à realidade. Isso aconteceu porque as irmãs dessas personagens ainda estão vivas e compartilham detalhes importantes. Por exemplo, a irmã do Giesteira teve uma conversa com ele no restaurante Galeto, local onde também filmamos, refletindo a autenticidade das locações usadas no filme. Além disso, o senhor Vinhas, que era dono da residência universitária onde o João Arruda morava, contou-nos que, no dia 25 de Abril, alertou o João para não sair, pois poderia ser perigoso. A resposta dele foi memorável: "Hoje é o dia mais feliz da minha vida!" Incluímos essa cena no filme, pois era uma fala real.

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Revolução (Sem) Sangue (2024)

Fale-me sobre o caso do José Barneto, visto que não teve autorização por parte da família.

RPS: Ao princípio a família estava muito receptiva em apoiar-nos. 

Em Portugal, a produção de filmes que exploram a vida de pessoas reais segue regras diferentes em comparação com os Estados Unidos. Nos EUA, é permitido explorar a vida das pessoas em filmes de forma relativamente livre, pois é considerado parte do domínio público. No entanto, em Portugal, a abordagem é mais restrita, especialmente quando se trata de ficção. Para documentários, a legislação é mais flexível, pois são considerados peças jornalísticas. Portanto, é possível falar sobre qualquer pessoa e explorar as suas vidas sem grandes restrições. No entanto, quando se trata de produções de ficção, é necessário obter uma autorização por escrito dos primeiros descendentes, caso a pessoa em questão já tenha falecido, isto foi o que a Sónia Resende nos informou, que é formada em direitos de autor.

Por exemplo, para explorar a vida do Fernando Reis, que é uma personagem central na narrativa, era necessário obter a autorização dos filhos, que são os primeiros descendentes vivos. Da mesma forma, para João Arruda, a autorização teve que vir das irmãs, para o Giesteira, da irmã viva, e para o Barneto, dos seus quatro filhos descendentes. Enquanto dois estavam bastante favoráveis ao projeto e deram suas autorizações sem problema, os outros foram mais cautelosos e chegaram a mencionar compensações financeiras, algo que não se tornou viável para a produção.

DF: Ainda pensei que fosse pela liberdade de ser na ficção, ter a liberdade para alterar os dados históricos.

RPS: Nada disso, foi apenas uma disputa entre os quatros descendentes.

Em relação ao António Lages, não houve constrangimentos pelo facto de ele ter pertencido à PIDE?

RPS: Tivemos o apoio da família. Devido a tudo o que nos contaram, sabemos que ele era funcionário da PIDE e tinha a sua parcela de responsabilidade por estar lá. No entanto, sempre abordei a personagem sob uma perspectiva diferente, a minha intenção nunca foi pintá-lo como vilão, embora ele acabe por ser um, pela simples razão de estar associado à PIDE. A verdade é que ele escolheu fazer parte dela. Mesmo assim, eu queria mostrar o lado mais humano dessa personagem.

Sabendo que esta é a sua primeira longa metragem, e os problemas que teve com a curta “Tsintty”, que na altura foi protestado por uma fatia mais conservadora da nossa sociedade. Digamos, você arrisca? [Risos]

RPS: Opá [risos] … acho que ainda me perguntaram isso. Sim, é aquele momento de "vai ou racha". É preciso tomar uma decisão. Estava à procura de uma história para a minha primeira obra, e quando encontrei uma notícia do 25 de Abril, pensei que poderia ser algo interessante. Eu tinha pesquisado no Google com as palavras "Histórias curiosas sobre a História de Portugal", e obtive alguns resultados. [risos] Surgiram temas sobre a Batalha de Aljubarrota, sobre o último rei de Portugal, etc, e de repente, deparei-me com uma história que não era tão branda quanto parecia.

Li várias histórias, mas essa específica ficou na minha mente. Ela foi ganhando espaço, cada vez mais. Fui comprando livros para investigação, como a do Fábio [Monteiro], que descrevia os personagens principais. 

Em suma, foi uma questão de paixão. Apaixonei-me por estas personagens. Apaixonei-me por eles. 

Mas voltando à romantização do 25 de Abril, ou melhor, à polarização que a data tem adquirindo, ainda mais, nestes anos. Acredita que o seu filme poderá contribuir, ou “alimentar”, um desses lados, nem seja por equívoco?

RPS: Não sei se isto vai mudar alguma coisa. E, para ser sincero, nem era essa a intenção quando fiz o filme. O que eu realmente espero, como ser humano e como cidadão português, é... temos uma liberdade hoje em dia da qual, mesmo assim, reclamamos bastante. E acho importante discutir isso. A Cinemundo, a distribuidora do filme, já nos disse que o público mais interessado tem entre 18 e 28 anos, a faixa etária mais ativa, que quer ver o filme, seguir o filme nas redes sociais, etc. O que me parece crucial é transmitir aos jovens de hoje: no passado, vivíamos num regime de extrema-direita. Mesmo com a liberdade que temos agora, que é imperfeita e tem falhas, ainda assim, reclamamos muito.

Quero mostrar aos jovens que devemos ter cuidado. Se ficarmos complacentes, podemos acabar num cenário semelhante ao do passado, com liberdades limitadas. O filme mostra que a juventude se uniu para mudar o rumo do país. Talvez, no futuro, vocês também precisem se unir para fazer algo, dado o caminho que as coisas estão a tomar. Se calhar, vai ser preciso juntar-se para lutar por uma sociedade melhor.

DF: Para um lado ou para o outro, é preciso unir-se para mudar o rumo das coisas. Identifico-me bastante com este discurso, e, depois de concluir o filme, continuei a refletir sobre o que isso poderia significar e qual seria o impacto do nosso trabalho, tendo em conta o contexto social e político atual do nosso país. Nunca tive a intenção de fazer um filme político. Claro que, tratando-se do 25 de Abril, há uma carga política inerente ao tema. No entanto, se o filme despertar a curiosidade das gerações mais novas, cuja relação com o 25 de Abril é cada vez mais distante, e inspirar uma compreensão dos valores pelos quais se lutou antes do 25 de Abril, como a liberdade e a democracia, que hoje damos por garantidos, então o nosso trabalho terá valido a pena.

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Revolução (Sem) Sangue (2024)

Se o filme estimular a curiosidade dos jovens para investigar e compreender como era a vida antes do 25 de Abril, talvez eles também valorizem mais esses valores que agora tomamos como certos. E talvez isso os inspire a lutar por esses valores, porque, de facto, eles não são garantidos e podem desaparecer a qualquer momento. Precisamos estar vigilantes e empenhados na defesa desses princípios para que nunca os percamos de vista.

Pergunta da praxe: quanto a novos projetos?

RPS: Quanto a novos projetos, estou a considerar, ainda que de forma preliminar, um caso que ocorreu no Porto, envolvendo uma mulher transexual que imigrou do Brasil. O seu nome era Gisberta

Esse caso já resultou num documentário de animação.

RPS: Sim, “O Teu Nome é”, se não estou em erro. 

DF: No momento, estou a gravar "A Senhora do Mar", uma novela da SIC. E o futuro, bem, a vida de ator é assim mesmo. Não há propriamente uma rotina ou garantias de nada. Mas essa imprevisibilidade traz-me alguma excitação, algum entusiasmo, e um pouco de ansiedade também.

7º Porto Femme: em Abril ser Mulher é continuar na Luta

Hugo Gomes, 18.04.24

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Sew to Say (Rakel Aguirre, 2023)

Abril, Águas Mil, contudo, nos último ano, na cidade do Porto parece ser costume clamar Abril, Mulheres Mil. Tendo arrancado na passada terça-feira (16/04), o festival Porto Femme apresenta-nos uma nova edição, a sétima para sermos mais exactos, novamente com destaque nas vozes femininas e acima de tudo nas suas histórias e Histórias.

Este ano, as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril contamina a programação, de lutadoras de gema a revoluções, pequenas ou grandes, redefinidoras de um cosmo feminino. Além disso, Margarida Cardoso, realizadora com sensibilidades atentas a um Moçambique historicamente colonial, é homenageada no palco (e tela) dos Maus Hábitos e do Cinema Batalha (estendendo-se para a Casa Comum do Porto, Casa das Artes e a Universidade Lusófona do Porto).

Em conversa com o Cinematograficamente Falando …, Rita Capucho, co-diretora artística do evento, aborda as novidades, os filmes (122 oriundos de 38 países), os desafios, workshops, masterclasses, e todos esses elementos que constituem este 7º Porto Femme.   

Que desafios trazem esta nova edição do Porto Femme?

A cada edição lidamos com alguns desafios que são constantes, sendo o financiamento o principal. A dignidade que pretendemos alcançar, a devida e justa para todas as pessoas que trabalham no projecto e que nele participam mobilizam-nos todos os anos.

Para esta edição em particular o maior desafio foi olhar para a nossa trajetória e pensarmos em termos de interseccionalidade e de diversidade e de que modo poderíamos trilhar um caminho mais inclusivo.

O festival tem sido programado no mês de abril desde a sua sexta edição e neste ano de 2024 ganhou um sentido especial além do desafio de pensar um programa para o mês com a enorme carga simbólica que são os 50 anos da Revolução dos Cravos. Longe de fugir ao tema, resolvemos mergulhar e refletir sobre o seu contexto histórico e como afetou a vida das mulheres. A escolha do tema recaiu sobre as mulheres e as revoluções, com intuito de refletir sobre a luta dos direitos das mulheres que ainda está bastante aquém, e tão pouco chegou com o 25 de abril, se se pensa com relação à igualdade de género, à liberdade e ao poder de decisão sobre o próprio corpo, entre outros aspectos. A decisão de apresentar o tema “Mulheres e Revoluções” no plural, quer refletir a diversidade em termos de contextos político, sociais, geográficos e étnicos. O movimento feminista funciona a diferentes ritmos consoantes esses contextos. 

Um dos destaques desta edição é a homenagem à cineasta Margarida Cardoso, das suas visões oriundas de um Moçambique colonial e pós-colonial, assim como o fortalecimento no olhar feminino nestas mesmas “visões”. Gostaria que me falasse no trajeto até à proposta desta homenagem, e a importância de Cardoso, não só no cinema português e para lá do continente, como também nas correntes discussões sobre o colonialismo.

Desde o início do projeto que a Margarida Cardoso esteve presente na lista das cineastas que pretendíamos homenagear. Com a decisão de abordarmos o tema a partir da perspetiva do 25 de Abril, pareceu-nos o melhor contexto para trazê-la ao palco do festival. Os filmes da Margarida abordam o passado colonial e pós-colonial, debates cada vez mais presentes na sociedade portuguesa, além de seu olhar muito particular que traz as mulheres para o centro, dando visibilidade e que nos parece ser um olhar necessário, atento, sensível e reflexivo. Interessa-nos sobretudo este tipo de olhar e de sensibilidade.

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A Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso, 2004)

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

Gostava de destacar a secção especial “Mulheres de Câmara na Mão, Cinema e Revolução” que apresenta filmes realizados entre 1975 e 2015, e que em sua maioria reperspectivam o 25 de abril. Poderão ser conferidos obras de Ana Hatherly,  Catarina Alves Costa, Margarida Rêgo,  Solveig Nordlund, Monique Rutler e  Luísa Sequeira, co-curadora deste programa. Além disso, os filmes da competição temática traz uma seleção de narrativas revolucionárias, como por exemplo, “Analogue Revolution: How Feminist Media Changed the World” (2024) de Marusya Bociurkiw, faz um apanhado das comunicações feministas entre os anos 70 e 90, precedendo a era #MeToo; “Šagargur” (2024) de Nataša Nelević, é o testemunho sobre um campo de prisioneiros na ilha de São Gregório, onde mais de 600 mulheres foram torturadas entre 1949 e 1952; “Sew to Say” (2022) de Rakel Aguirre, apresenta um protesto feminista que durou quase duas décadas, em que mulheres se fixaram num acampamento para protestar contra as armas nucleares; “Uma Mulher Comum” (2023) de Debora Diniz, é a história de uma mulher que viaja à Argentina para realizar um aborto.

Gostaria que me falasse sobre o workshop - “Desconstruindo estereótipos - o cinema como linguagem para transformação” - e as pretensões e objetivos deste evento.

Este workshop é realizado em parceria com o CineDelas e procura explorar temas da contemporaneidade no cinema e debater de que modo é possível democratizar e criar melhores condições para alterar o atual paradigma do setor no que diz respeito a igualdade de géneros, a condições laborais e a condições de inclusão.  

O objectivo é refletir sobre os estereótipos tendo como temas orientadores o feminismo, a colonização, o patriarcado, a democratização da cultura e do cinema, a importância da cultura local e regional, entre outros. De uma proposta de reflexão surgirá o desafio de criarem uma curtíssima de um minuto que apresente o olhar particular de cada participante.

O recente filme de João Salaviza e Renée Nader Messora - “A Flor do Buriti” - menciona a luta das mulheres indígenas em “empoderar-se” (palavra que extraiu do português do Brasil) num país constantemente alavancado num capitalismo feroz e nas constantes ameaçadas do ultraconservadorismo que relegam os povos originários à condição subhumana. Trago isto como mote de conversa sobre a especial secção “Uma Revolução Íntima. De Monstros e Mulheres no Cinema Indígena”, se a idealização deste espaço prendeu-se com a influência da estreia do filme, e que propósitos tem essa mesma secção especial?

A ideia para esta secção especial já vem de edições anteriores, mas não deixa de ser interessante esta coincidência, inclusive porque possibilita ampliar o diálogo com outras iniciativas afins. Esta secção especial com a curadoria da Maria Luna-Rassa — coordenadora e programadora associada da Muestra Internacional Documental de Bogotá — apresenta filmes produzidos em outros países da América Latina, Colômbia e México, que poderá ser um interessante complemento à produção brasileira. O propósito desta secção, como também da “Enfim o Amor”, é criar espaços de visibilidade, trazendo novas narrativas e novos protagonismos para o centro do festival. 

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Quais os próximos desafios para a Porto Femme em edições futuras? Haverá extensões por outro lugares fora da cidade da Invicta (e as sessões de Lisboa)?

Mensalmente, na última quarta do mês, apresentamos as nossas Femme Sessions no Maus Hábitos no Porto e já deixo o convite para a do dia 24 que trará alguns premiados da edição. 

Ao longo do ano percorremos o país com as nossas sessões itinerantes. No ano passado, estivemos em Leiria, Viseu, Coimbra, Águeda, Amarante, Aveiro e Amadora. Habitualmente programamos sessões ao nível internacional, tendo realizado no ano passado sessões no Brasil e no Canadá. Este ano o objectivo é regressar a algumas destas cidades e claro levar o festival a novos locais e a outros países.

Toda a programação aqui

Não há revoluções sem sangue ... derramado

Hugo Gomes, 10.04.24

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"É o dia mais feliz da minha vida", gritou João Arruda (interpretado por Rafael Paes), dirigindo-se euforicamente para a porta da rua, ignorando os avisos dados pelo caseiro que previa o pior. Aquele dia "felizardo", o 25 de Abril de 1974, hoje uma celebração que adquiriu o digno título de "Dia da Liberdade", é, para todo o caso, o último dia daquele jovem sonhador que cresceu num país errado. Infelizmente, não esteve sozinho nesse "derradeiro amanhecer"; juntamente com mais quatro, morreu à porta da Sede da PIDE durante a sua repentina desmantelação. As suas histórias, timidamente encobertas para não defraudar a romantização do dia, foram pouco a pouco investigadas, desvendadas e divulgadas, nem que seja através do livro de Fábio Monteiro ("Esquecidos em Abril: Os mortos da revolução sem sangue"), o qual serviram de mote ao realizador após a sua descoberta macabra - “Afinal morreu gente na Revolução Sem Sangue!!

Rui Pedro Sousa, que há uns anos havia corado alguns e ainda mais outros com a curta "Tsintty" (2013), desafia a sua cadência aventurando-se nessa história fatídica contada a quatro vozes, "Revolução (Sem) Sangue", enquanto primeira longa-metragem. Com a colaboração da espanhola Filmax, o filme faz uso da sua investigação para enriquecer em detalhes e ficções fortalecidas deste lado distante de capitães de Abril e Salgueiros Maias. É um drama vivido com as suas ingenuidades e vitalidades, desejoso de gritar e, nesse termo, entre um ou outro plano mais sóbrio, temos aquilo que podemos chamar "cinema para massas nacionais", sem sentidos alarves nem ambições de pequeno ecrã.

Poderia mencionar vários realizadores da nossa praça cujo discurso de cinema popular falha redondamente no mais pequeno propósito que Rui Pedro Sousa conseguiu na sua primeira tentativa em grande: nunca encarar o espectador como idiota e, acima de tudo, dignificar a sua dramaturgia. Não estabelecendo "Revolução (Sem) Sangue" como um exemplo maior, a sua arquitetura encontra-se enguiçada para vontades futuras e invejáveis.

Mas … há sempre um "mas". Existem fragilidades, algumas das quais imperativas num filme-homenagem. O final, caindo num tributo sonoramente pesaroso, vénia aos familiares, faz perder a consequência da sua ficção pela esmagadora competição com a realidade. Por outras palavras, cede em demasia aos sentimentos, sendo que a frieza, talvez contra os desejos de entes queridos, catapultaria o filme para voos maiores. Contudo, existem opções felizes, entre elas Diogo Fernandes na pele de Fernando Reis, militar endiabrado, cuja intriga se entende como o centro narrativo e a visão crítica político-sociológica do filme.

Pediu-se que não se atirasse ao pianista...

Hugo Gomes, 21.03.24

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Tal como a investigação que segue o mote da narrativa, a obra é feita de trilhos e entrelaçados, referências atrás de pistas, dando brindes a ruelas sem saída; é um filme de várias 'piscadelas', aromatizadas na cadência de “Chega de Saudade” (canção precursora interpretada por Jobim e escrita pelo poeta Vinicius de Moraes) e enriquecida com depoimentos de peso (Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e João Donato), uma espécie de “Rossio pela Betesga a dentro”, ou melhor, a tentativa de enfiar o “Cristo Redentor no Beco das Cancelas”. Novamente unindo esforços com Javier Mariscal, Fernando Trueba revisita a animação e a música aí conjugadas (recordando “Chico & Rita”, em 2010, no calor do bolero), lançando-se na sua versão “Searching for the Sugar Man”, a demanda por um artista perdido - Francisco Tenório Júnior - pianista talentoso de samba-jazz brasileiro, colaborador do movimento/género bossa-nova, o macguffin que misteriosamente desapareceu em Buenos Aires [18 de Março de 1976], após sair do seu hotel na esperança de uma sanduíche, conforme está descrito no meu recado; acredita-se que a regime ditatorial argentina o tenha apanhado, e a tragédia é, como se sabe, iminente. 

Portanto, Trueba e Mariscal ancoram-se no seu protagonista detetivesco, Jeff Harris, jornalista musical nova-iorquino aventurado nesta encruzilhada pela música exótica, caído de paraquedas nesta particular história do talentoso pianista misterioso. Aqui, damos de ‘caras’ com a primeira piscadela: a voz de Harris está a cargo do ator e entusiasta do jazz Jeff Goldblum, que fora, por mais duas vezes, jornalista musical, seja em “Between the Lines” (Joan Micklin Silver, 1977), e posteriormente no spin-off não oficializado dessa personagem excêntrica em “The Big Chill” (Lawrence Kasdan, 1983). Entendendo tratar-se de um prolongamento dessa mesma personagem, obviamente mais madura, com nuances trazidas de Kasdan, mas mantendo o seu ativismo e iniciativa. 

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Depois, evidentemente, surge-nos o título - “They Shot the Piano Player” - que não foge ao espectro de um dos filmes mais subvalorizados, e, porém, mais influentes na carreira de François Truffaut - “Tirez sur le pianiste” (“Shoot the Piano Player”, 1960) - com o pianista Charles Aznavour envolvido em embrulhadas que lhe podem custar a vida, numa obra de improvisos e experimentações que tentou redefinir o tom de uma vaga cinematográfica que tão bem conhecemos, e que, devido ao fracasso financeiro, obrigou Truffaut a reger-se a filmes mais narrativamente clássicos, deixando a subversão da fórmula para os seus camaradas do igual eixo artístico. Esta referência não é somente um júbilo, é uma ponte invisível e contextual, que interliga o Brasil com a França, de um lado a música poética e melosa dessa comunidade artística, e do outro, o cinema Nouvelle Vague, de Godard a Truffaut, sublinhando este último e a sua trilogia romântica (“Les Quatre Cents Coups”, “‘Pianiste” e “Jules and Jim”) como inspirações, modelos ou apenas atmosferas importadas. Eram tempos de descobertas, revisões ou resgates criativos, tempos de “mãos à obra”, de florescimentos e fluidez entre artes, um Renascimento desconstrutivo, agressivo e, sobretudo, ditado nas suas classes. 

They Shot the Piano Player” pode muito bem ser um documentário ficcional (apenas desapontado pelo seu grafismo pobre) sobre música brasileira com dedos apontados a uma só personalidade e, consequentemente, trazendo na canção um subtexto político, mas é no embalo dessas melodias que nos chega, com saudade é verdade, um memorando para com esses tempos. De resto, pensamos nós, o que aconteceu? Simples, “abateram o pianista”.

Este lugar é interdito a "homens doentes"

Hugo Gomes, 18.02.24

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Vivemos numa época em que a saúde mental encontra-se gradualmente integrada no vocabulário e nas preocupações sociais (e governamentais), tentando com isso retirar a loucura nas mulheres e o melancolismo, comumente diagnosticado, nos homens. Os antigos retratos adquirem novas leituras nesta modernidade cada vez mais doente, contudo, continuam perpetuados por velhos estereótipos ou imposições sociais, religiosas, políticas ou simplesmente morais (visto que o conceito de moralidade é maleável consoante a sociedade vigente). Abordar a saúde mental no universo masculino é, das duas uma, uma romantização à moda do “artista ferido” (síndrome “Kurt Cobain”) ou um embaraço, visto que continuamos a retratá-los como “homens fracos e psicóticos”. Há que desconstruir. 

Mesmo assim, qualquer abordagem corajosa a essa mentalidade em declínio na figura masculina é um arrojo seja como for e nesse sentido, a co-produção alemã-espanhola "Every you Every me" ("Alle die Du bist", de Michael Fetter Nathansky) parte de um interessante tratamento performativo à ansiedade crónica manifestada num homem, cuja perspetiva, por parte de outros, transfigura-se em diferentes personas à medida que o ataque cresce (ou decresce), alcançando a animalidade como a máxima gravidade. É uma espécie de "o rei vai nu", o qual opera na ótica de fora, neste caso na sua companheira matrimonial (Aenne Schwarz), assumindo-se Atlas na relação, que tudo tenta para minimizar essas dores e o sentimento de impotência.

Em termos formais, “Every you Every me” não padece de nenhuma particularidade ou patologia, assentando numa fornalha desesperada ao transferir o redemoinho emocional do parceiro, o tal “homem doente”, para a tal protagonista (dramaturgicamente falando). Se o gesto de focalizar o tema no universo masculino é um passo, é na sua rápida transferência para o outro campo, sentindo a correspondência de um caderno de encargos (parece que as audiências estão mais propensas a ver o sofrimento nas mulheres do que testemunhar homens frágeis a afogarem-se na imperatividade do sistema), faz com que os esforços tornem-se em vão, menosprezando a questão a nível de “filme de tema”, e convenha salientar, o que temos em mãos não passa disso mesmo. 

No geral, há um sentimento deslocado devido a essa mudança de foco, e com isso perdeu-se uma oportunidade e uma contradição (ao focar o sofrimento da mulher, automaticamente encaramos o homem como ser egoista e incapacitado, a mentalidade em degraça revelando-se num antagonismo à sua companheira, ou seja a mensagem transvia-se durante o processo). Uma valente oportunidade perdida, coloco a negrito! Parece que a saúde mental dos homens continua a ser um tabu.

Secção: Berlinale Panorama

Os Melhores Filmes de 2023, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 27.12.23

Plataformas há muitas! Cada vez mais chorou-se pelas salas vazias e as telas projetadas sem companhia, mas é no encontro de 2023 que testemunhamos uma mudança neste paradigma da sala de cinema, anteriormente dominado pelo cinema “disneysco” e “super-heroesco”. As notícias de fracassos de box-office, à primeira vista, fariam qualquer adepto do cinema em sala arrancar cabelos e a gritar desalmadamente pela vida - ”se os super-heróis fracassam, o que mais poderia funcionar para conquistar espectadores?” - porém, a resposta fez-se pelo ciclo natural, Disney e os seus afilhados falham, dando a vez a outros fenómenos e a outros cinemas a dominar. 2023 foi o ano de “Barbenheimer”, a conjunção de memes de internet que rendeu milhões na estreia simultânea - “Barbie” e “Oppenheimer” - Greta Gerwig e Christopher Nolan a dupla esboçar sorrisos aos investidores, e a partir daqui, pequenos “milagres”, um cinema, talvez, mais adulto a fazer as delícias de “moviegoers”. 

Mas quanto ao Cinema? Digamos que se 2023 fosse resumida a vinicultura, seria uma boa colheita, a ser degustada e servir à temperatura ambiente como acompanhamento de um prato refinado. Sim, foi o ano em que o cinema estruturalmente e essencialmente se pensou e nele desviou-se a atenção do slogan “Cinema Morreu”, e substituiu-se pelo “Cinema está Vivo”. Victor Erice acreditou na sua “segunda vinda”, Nanni Moretti cedeu aos novos tempos (mesmo com um ar derrotado), Damien Chazelle codificou a fórmula da energia cinematográfica (o caos que gera harmonia), Bradley Cooper releu o classicismo e atribui-lhe roupagem a condizer, Wes Anderson castigou o realismo simulado e a imperatividade da continuidade (essa praga dos novos tempos) e Wim Wenders sugeriu que parássemos e contemplássemos o nosso redor. Por outras, o Cinema permanece à nossa volta, basta procurar, olhar e deliciar, os “velhinhos” da casa que teimam em vender o contrário fecharam há muito nos seus respectivos sótãos. 

Segue, sem mais demoras, os 10 filmes que o Cinematograficamente Falando … selecciona como os melhores do ano, respeitando o calendário de estreias nacionais (sala ou plataforma de streaming):

 

#10) Falcon Lake

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“Porém, a viagem é ela mesma corrompida, “Falcon Lake” deseja a sugestão como ninguém e nisso quebra a narrativa numa encruzilhada quase shyamaliana, depois disso o filme ganha um outro significado, uma outra visão, um outro efeito, o que nos leva ao grande dilema da nossa modernidade enquanto espectador - continuidade? Fortalecer ou enfraquecer?” Ler Crítica

 

#09) Killers of the Flower Moon

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“A tempestade, o Scorsese “velho” porém estilizado e fora de horas, é exorcizada nestas recentes estâncias, possivelmente na busca de um derradeiro título, em “Killers of the Flower Moon”, se tudo correr bem não deterá esse papel, mas é o ritual de afirmação para com essas memórias que se contrapõe a um Scorsese “novo”, mais próximo para com o súbito desvanecer.“ Ler Crítica

 

#08) EO

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Conta-se que Noomi Rapace, integrante do júri da edição de 2022 do Festival de Cannes, julgou em “EO” encontrar um realizador jovem no hino das suas vidas promissoras. Nada disso, Jerzy Skolimowski vai nos seus 85 anos, e com esta peregrinação exemplar, cita e recita o esperado filme de Bresson [“Au Hasard Balthazar”], remexe num cinema animalesco, de uma animalidade em contraposição da suposta e vendida Humanidade. Trata-se dessa refilmagem espiritual que cede à sua perspectiva e nos evidencia um filme fora do registo antropocentrista, e para resultar nele um Cinema puro que há um par de anos o russo Viktor Kossakovsky parece ter tecido - “Gunda”. O Cinema na pureza do seu lar, a Natureza como seu berço narrativo. “EO” não se equipara nessa pretensão, faz uso dessas iguais ferramentas. 

 

#07) Asteroid City

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“Terminou! A música anuncia o final, de costas voltadas para o proto-vilarejo que empresta o nome à película, os créditos finais começam a rolar, um papa-léguas, curioso pássaro testemunhante das peripécias ali fabricadas, balança no ecrã, fazendo ”pirraças” a quem vai gradualmente saindo da sala. Aos que ficam, a sua dança vitoriosa vira recompensa. Não quero abandonar este filme, não consigo de todo abandoná-lo. Rastaparta ao realismo!” Ler Crítica

 

#06) Perfect Days

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Wim Wenders também está, como é claro e sucinto, a envelhecer, não é o realizador de antes (e quem poderá ser na verdade?), pegando nesta curta de encomenda - uma aclamação pelos banheiros públicos da capital japonesa - transformou-a numa longa em perseguição à sua própria sombra, a metáfora de reconhecer o inalcançável. A vida é de curta estadia, aproveitar o que dela contêm, os “pequenos prazeres” de dia a dia, ou simplesmente devagar e devagarinho, receber cada raio de Sol uma benção, um “perfect day” cantarolando pelo esperado single de Lou Reed. Soa-nos conversa motivacional, pois soa, mas garanto-vos que a obra nada tem de desbaratamento inspiracional, porque não passa de uma filosofia quotidiana constatada, o yang ao lufa-lufa e do sucesso enquanto objetivo vivente, pregado vezes sem conta pelos falsos-ídolos do Ocidente.” Ler Crítica

 

#05) Afire

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O protagonista (Thomas Schubert) não é de fácil empatia, mas banha-se dela porque nos sentimos identificados com a sua negada emancipação, das troças do destino ou do bloqueio que o atingem enquanto maldição vindo de Deuses embusteiros. O novo filme de Christian Petzold é um magnetismo a fantasmas, seja Paula Beer em evocação da musa petzoldiana perdida (Nina Hoss, saudades tuas), seja a aura malapata deste scrooge escritor que parte para o litoral na tentativa de completar o seu romance. Soa-nos remédio-santo para assumir uma mediocridade, personagens que fazem isso merecem a ala mais elevada do Além celestial, contudo, mais do que a inteira consciência desse feito (que nunca se materializa), “Afire” é um jogo cruel, castigador deste narcisismo autodestrutivo, chegado por vias de apólices, essas epifanias ardentes e misteriosamente cadavéricas. Recorro a esta obra como um “livro aberto”, a proeza de conseguir ligar-nos aos desprezíveis, logo, incompreendidos protagonistas. 

 

#04) Babylon

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“Quanto ao nosso contacto com “Babylon”, a sua reação dispar é um sintoma de como Damien Chazelle acertou na mouche, odiar o seu lado “monstruoso” é natural e fortalecedor ao seu conceito, deslumbrar com ele é de igual forma. Um risco de produção, acentuada numa indústria que atravessa a sua crise identitária (não confundir com outras identidades). Julgo que não teremos outro filme assim durante um longo período … Obrigado Chazelle, por mostrares que és o melhor dos dois mundos!” Ler Crítica

 

#03) Il sol dell'avvenire

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“Já em “Il sol dell'avvenire”, o criado filme aproxima-se do quotidiano de Nanni (Moretti sendo ele mesmo, quem mais?), envelhecido, cansado e à sua maneira reacionário, incapaz de lidar com as transformações que a sua vida experiencia uma e outra vez. Talvez é nesse intuito que aqui o filme muta, já não é mais um espelho de quem não consegue “olhar de frente” para o trajeto da sua existência; é antes uma determinação e quiçá uma superação.” Ler Crítica

 

#02) Tar

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“Contudo, este jogo de duas faces instala esse efeito de dupla interpretação, onde cada um vê consoante a sua sensibilidade, como nos fizeram crer, felizmente “Tar” é uma espécie de palimpsesto, duas melodias na mesma nota sem com isto ser necessariamente uma questão de leitura ou de perspetiva, ou diríamos melhor, numa inquisição de perguntas e não de resposta. O Cinema não tem obrigação de responder a nada, por isso quem procura decifrar a autenticidade do seu simbolismo perde instantaneamente o seu efeito aqui.” Ler Ato I, II, III

 

#01) Cerrar los Ojos

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“Um despertar com contrariedade, porque é no encerrar os olhos que o Cinema vive. É no fechá-los que voltamos a Acreditar. Victor Erice acredita, acreditou e acreditará, a sua persuasão leva-nos a acreditar também.” Ler Crítica

 

Menções honrosas: Knock at the Cabin, Nação Valente, Nayola, Maestro, World War III, Sur L’Adamant

Fechar os olhos para abri-los sob um novo olhar

Hugo Gomes, 07.12.23

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Mesmo que Nanni Moretti e a sua trupe circense, aparentemente exuberantes, desfilem pouco antes da entrada dos créditos finais no seu "Il sol dell'avvenire", toda aquela "festividade" é-nos dada como um disfarce de uma certa derrota, a de um homem vencido e enraizado no passado, pronto a ceder para se dirigir, possivelmente enquanto subsistência, ao Amanhã. Mais do que claramente o choro do "Cinema Morreu", como os mais "progressistas" destas esquinas reduziram a obra em prol de um artifício ultra-produtivo e despejado nas plataformas de streaming (um alvo que Moretti não deixou ir sem lesões), é um adeus ao seu Cinema para que possa usufruir a vida tal como ela é; por outras palavras, o conforto na resignação. A invocação de Moretti do seu falso-estado de graça entra em confronto com o muy antecipado regresso do cineasta espanhol Victor Erice, naquela que é a sua primeira longa-metragem em 30 anos de distância com o formato. 

Pelo meio, contou-se a curta "Vidros Partidos" - integrada no quarteto fantástico angariado para o antológico "Centro Histórico" (ao lado de Manoel de Oliveira, Aki Kaurismaki e Pedro Costa) -, onde se verificava um olhar ao passado num jeito memorialista e quiçá, igualmente derrotista perante as ruínas de Ontem. Há nele uma sequência final, a de um acordeão tocado por um intérprete de costas para a câmara e de frente para um painel fotográfico, um recordações de outros tempos, onde vemos "atores", diríamos antes operários, fantasmagoricamente presentes naquela não-fábrica que serve de abrigo à fílmica de Erice. A partir daí, a câmara desliza pela fotografia, tentando enquadrar todas aquelas faces, agora desvanecidas, apenas “eternizadas” pelo arquivo. É um reencontro, um dos elementos pelo qual o realizador faz uso do cinema, e desta melancolia chegamos a "Cerrar los Ojos", novamente focando nessa hipótese de regressar a um tempo, a uma pessoa e a um local. O Cinema enquanto “Perdidos & Achados”.

A história envolve um realizador, ou o foi, Miguel Garay (Manolo Solo), que abandonou o ofício à sua segunda metragem, incompleta e desviada dos olhares do público, tudo porque o seu amigo e protagonista, Julio Arenas (Jose Coronado), desaparecera, misteriosamente, certo dia. Muitas teorias orbitam a sua ausência: suicídio, homicídio, acidente ou simplesmente um desaparecimento, cujo mistério revela-se alvo de atenção para um programa televisivo de investigação, como um mito criptozoológico. "Cerrar los Ojos" arranca com esse falso-filme (o seu início como ilusão ao espectador desatento, ou simplesmente, ao espectador que deseja encantar-se, ingenuamente, ceder ao engano, ao belo engano) em que um auto-cognominado "Rei Triste" solicita os serviços de um detetive privado, um pedido como amenização de um desejo, o de ser olhado com um outro olhar. O tal olhar de reencontro.

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Víctor Erice procura com "Cerrar los Ojos" esse novo deslumbre pelo cinema, pelas velhas ‘coisas’, pelos amores perdidos. O faz, contrariando Moretti, contrariando a sua cedência, puxando lustre ao classicismo bem seu. Em uma das sequências, Miguel visita a filha, agora adulta (Ana Torrent, a 'menininha' de "El espíritu de la colmena" / "The Spirit of the Beehive", o filme-estandarte de Victor Erice), de Arenas, guia do Museu do Prado [Madrid]. Naquele reencontro (mais uma vez), a sua profissão é abordada por via de uma confissão, do tédio acumulado ao longo de anos em "falar do mesmo" sobre “aquela determinada” pintura, banalizando o belo e vulgarizando a obra-de-arte, desprovendo-a de mistério. Claramente, surge a necessidade de um novo olhar, o "outro" inserido no pedido do "Rei Triste". Não é um olhar de ruptura ou o desvio do mesmo, é a renovação do olhar nesses tais elementos de sempre. Enquanto Moretti decide adaptar a sua perspectiva, Erice opta pela re-exaltação para com os mesmos. Não o devemos julgar, e sim, aplaudir.

Portanto, o "Cinema Morreu" não abunda nestas esferas, neste noir degenerado e igualmente classificado, ao invés disso é a Esperança, encontrada, salientada e revalidada. O milagre, conforme o céptico declara inexistentes desde a "morte de Dreyer", é a pretensão do cineasta requer, o de voltar a acreditar no Cinema, no seu Poder (se é que existe, e deste lado, crente yo soy), no seu espírito, na sua conexão. Portanto, a epifania faz-se através do confronto com realidades, como o shakespeareano “Hamlet”, em que a peça dentro da peça incentiva a culpa do velhaco Cláudio, cuja encenação manifesta-se como um espelho de consciências, porém, aqui na "peça" ericieana, espera-se, despertar. Um despertar com contrariedade, porque é no encerrar os olhos que o Cinema vive. É no fechá-los que voltamos a Acreditar. Victor Erice acredita, acreditou e acreditará, a sua persuasão leva-nos a acreditar também.