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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Licença para viver

Hugo Gomes, 04.11.25

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A travessia pelos cinemas extintos do centro do Recife, acompanhada das histórias e mitologias deixadas pelos projecionistas-fantasmas no seu anterior “Retratos Fantasmas” (2023), pode ser entendida como um repérage conceptual para “O Agente Secreto”. Após esse momento proustiano de reinscrição da memória e da fabulação das mesmas e do tal contacto cinematográfico, Kleber Mendonça Filho repousa agora num sonho acordado, fantasiando enredos possíveis em tela projectada, sem nunca abdicar do zeitgeist brasileiro.

Depois o êxito (ou fenómeno social, diríamos até) de “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, encaramos inconscientemente nesta demanda de Wagner Moura pelos meados da Ditadura Militar uma, e igualmente, espécie de exorcismo para com o passado, revisto e revanchista por saudosos; um duelo para com memórias de um país que, em matéria cinematográfica, trabalha na contrarrevolução dos ventos politizados. Ou seja, o “cinema-resistência” que a cinematografia brasileira nos tem oferecido nos anos recentes, seja na forma escancarada do campo de disputa simbólica (ou guerrilheira), ainda em plena contracorrente face às pulsões reacionárias dos últimos anos, marcadas por agendas ultra-capitalistas da dissipação identitária, seja perante a ascensão de Bolsonaro e do seu ainda por definir movimento bolsonarista (coberto, ano após ano, por novos e inquietantes matizes).

“O Agente Secreto”, por sua vez, brinca com a estética e gramática do chamado “filme de espionagem", sem nunca respeitar a fórmula na sua exactidão: com o seu requisitado protagonista [Moura], despojado de histerias, ressentido e parcialmente reprimido, vivendo como exilado político, cercado e “barricado” na cidade onde outrora ‘ergueu’ uma família. Em suma, é um “cabra marcado para morrer” que caminha dia após dia como se cada um fosse o último. Kleber Mendonça Filho emprega o que sabe sobre cinema e a sua dita espectacularidade num filme politizado mas sem palanque, corroído mas não vencido, agressivo sem marca de dentes: um exercício sobre como filmar tempos (polvilhados com um pouco de “kitsch”) e actualidades em nome do amor cinematográfico (ou a desculpa do mesmo). Dispondo do Cinema enquanto retrato social, o qual encontra aqui o seu lugar reservado na tribuna, com “The Omen” e “Jaws”, dois exemplos de medos colectivos, a funcionarem como separadores temporais e vitrinas de possibilidades narrativas — um enredo invadido por perguntas sobre o que poderá ser e nunca sobre o que será.

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Ao longo de mais de 2h30 somos constantemente despistados por trilhos, atalhos e direcções sussurradamente sugeridas sobre o rumo dessa mesma narrativa; um vento (ou ventos) em sopro incessante. Sim, é saturado (barroco até) e, por desgraça das suas entranhas, por vezes chega a perder o norte, funcionando como um projecto demasiado fascinado consigo próprio. Porém, ao perdoarmos essa confusão involuntária, somos colhidos por grandes momentos de cinema: o prólogo de tensão hitchcockiano, lições aplicadas com sabedoria (dois pontos para Kleber), e uma perseguição crucial, pulsante, para o coração do filme, a revirar no seu clímax sob o prefixo de “anti” (mais dois, medalha à vista!).

“O Agente Secreto” peca por tentar ser tudo e mais alguma coisa, esquecendo que a simplicidade, por vezes, torna a mensagem mais apetecida. Ainda assim, não cortaremos as pernas a quem insiste em sonhar com um ‘cinema grande’ — épico, sem muletas fantásticas (ainda que com pernas cabeludas para o assombro), um espectáculo puro digno da tela. Não cuspimos, mas também não saltamos de alegria: e só para terminar, relembro que o anterior “Aquarius” foi o antídoto dessa ambição.

"O filme deve deixar a sensação de ter vivido algo com a Rita Lee": uma conversa com os criadores de "Ritas"

Hugo Gomes, 30.10.25

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Um grande êxito de bilheteira brasileiro que nos informa, mesmo com a timidez dos nossos dias, que, passado um ano da sua derradeira despedida, o Brasil tem saudade da sua cantautora do Flagra: bailando como se baila na tribo e pelos amores em telepatia. Rita Lee, a Mulher-Sol, como bem dizia, dando lugar à Mulher-Lua - de cabelos grisalhos, vivências acumuladas e eras passadas - a mulher, por si só, que se descreve entre muitas variações. As várias Ritas, abordadas ao longo de hora e meia em “Ritas”, documentário a quatro mãos, de montagem cuidada e pensada, fugindo aos “rodriguinhos” do género. Não é elegia, é celebração.

Co-realizado por Oswaldo Santana e Karen Harley, “Ritas”, cuja estreia se marcou na passada edição do Curtas Vila do Conde, terá apresentação especial no Teatro Ibérico, em Lisboa (30 de Outubro), com a presença dos seus autores. O Cinematograficamente Falando … conversou com eles sobre o filme e, acima de tudo e de todas as ‘coisas’, sobre Rita Lee: a “mutante” que se fez ícone.

Antes de mais, devo salientar que este documentário foi um sucesso de bilheteira no Brasil …

Oswaldo Santana: Sim! Foi o documentário brasileiro mais visto do ano. Ficou 19 semanas em cartaz.

Karen Harley: Atenção, 19 semanas, e mais de 50 mil pessoas. Acho que foram cerca de 56 mil espectadores, o que, para um documentário no Brasil, é bastante.

Queria começar por aí, pela questão do sucesso deste filme, para vos lançar um certo exercício. O Brasil de hoje ainda é o Brasil da Rita Lee? Ou o país ainda guarda o espaço para o Brasil imaginado por ela?

OS: Para dizer a verdade, penso que o Brasil de hoje é, em parte, resultado de um processo que a Rita começou, mas que ainda tem muito a evoluir. Ela trouxe temas e colocou luz sobre questões que continuam relevantes e ainda não foram totalmente resolvidas. Por exemplo, o activismo pelos animais. Se ampliarmos, temos também a questão da voz feminina no rock, do prazer feminino num ambiente tão machista quanto o rock. Esse é um tema que ainda enfrentamos hoje. Então, ela abriu caminhos para muitos assuntos a precisar de desenvolvimento, infelizmente.

KH: Penso, de certa forma, que temos hoje um Brasil melhor, um Brasil que a Rita gostaria, mas também andamos para trás em vários aspectos. A nossa sociedade, de certa maneira, ficou mais ‘careta’. Por isso a Rita é tão atual. Em vários sentidos — como o Oswaldo disse — e também na forma como ela aborda as drogas. Ela falava disso sem hipocrisia. “Diga não, obrigada.” E lembrava que a bebida também é uma droga. Ela foi, e continua sendo, um farol em vários aspectos da sociedade.

Sim, é muito curioso mencionarem essa questão das drogas. No documentário deparamos com o discurso dela sobre o tema: ela critica esse tom moralista, quase como aqueles vídeos educativos meio caricatos, tipo “Pato Donald contra as drogas”. Ela expõe essa hipocrisia social. No filme ela confessa: “Eu experimentei todo tipo de droga. Hoje não uso mais, mas não me arrependo.”

KH: Ela não tem um discurso moralista nesse aspecto, ou mais que isso, ela não julga. O que tem é um discurso de consciência, de autenticidade.

OS: A Rita viveu intensamente todas as fases da vida dela. De verdade. Podemos achar certas coisas certas ou erradas, mas ela sempre viveu com intensidade, “com os dois pés dentro”, como dizemos no Brasil. Tratava de assuntos sérios com muito deboche. Isso era muito eficaz, a mensagem chegava forte, clara, e genuína.

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Passo agora para o início, a génese deste documentário. Gostava que explicassem por que decidiram avançar com o projeto. E, Oswaldo, faço uma nota especial: como foi montador de “Tropicália” (Marcelo Machado, 2012), pergunto-lhe se esse projecto foi um passo essencial para entrar neste projeto?

OS: Sem dúvida. Foi um óptimo aquecimento acrescento, mesmo sem percebermos na época. Em “Tropicália” mergulhei justamente nesse período em que surge a primeira “vitrine” da Rita Lee. Isso me ajudou muito, não só com o universo da Rita e a relação com a família Lee, que passou a ver meu nome como adequado, mas também com a Karen. Nosso diálogo foi facilitado. Mas foi a Karen que iniciou o projeto; quando entrei, ela já estava em andamento. Então nossas primeiras conversas passaram muito por “Tropicália”, sim.

KH: O projeto começa quando a Biônica Filmes (a produtora) compra os direitos da autobiografia da Rita. A ideia era fazer uma ficção, uma série para TV e um documentário, cada um com uma abordagem diferente. A série seria cronológica, mais jornalística; o documentário, que então se chamaria “Lado B”, correria por fora, com outro olhar. Fui convidada para co-dirigir, primeiro com o João Jardim (realizador de “As Polacas”, 2023), que depois não pôde, e depois com o [Fernando] Fraiha, director da Biônica. Começámos em 2018. Em 2020 sentimos a necessidade do Oswaldo, especialmente pela experiência com “Tropicália”, e porque era um trabalho primoroso.

OS: O processo de “Tropicália” ajudou muito a pensar linguagens para o filme da Rita. Comecei entre 2019 e 2020, e passamos por quatro estruturas diferentes até chegar a esta versão. O documentário é um processo vivo. Felizmente tivemos tempo para maturar e testar caminhos, e o resultado está aí.

Quanto ao processo criativo: como decidiram o que “entra” e o que fica de fora? Pergunto isso porque o título “Ritas” é alusivo, no filme ela menciona as personagens que cria ao longo da sua carreira, e vida também. Ela diz: “Eu talvez não consiga dizer não, mas uma personagem minha consegue”. Vocês quiseram trabalhar com qual Rita? Ou com várias Ritas?

KH: A ideia sempre foi ter a Rita de hoje no filme — a Rita idosa. Não queríamos um documentário de depoimentos de outras pessoas falando sobre ela, que era o que a família preferia. Então, no início (em 2018), o nosso grande trabalho foi convencê-la a estar presente, com toda a potência dela, inclusive a Rita velha, como ela dizia. Quando topou, começou a filmar-se com o celular e a enviar-nos imagens preciosas: da vida, dos animais, do estúdio, dos trabalhos. No depoimento, ela mesma nos deu a chave: existiam várias Ritas. Dizia que no início era tímida, “da coxia”, olhando a outra Rita, “porra louca”. No material vemos outras ainda: a pintora, a activista, a escritora, a avó, a feminista… A Rita trouxe essa pluralidade para nós.

OS: Foi ela quem nos deu essa pista. No processo do filme sentimos que não fazia sentido escolher só uma faceta. Ela é múltipla, rica, forte em tantos aspectos. Então decidimos abraçar isso e falar de quase tudo.

Algo que me chamou a atenção no filme é o trabalho de montagem, e de momento estou a falar com dois montadores. O vosso filme evita o formato, muitas vezes preguiçoso, dos documentários musicais, cheios de “talking heads”, intercalando com imagens de arquivo. Mas nota-se um trabalho pensado de montagem muito evidente. 

KH: Este é um filme de montagem, desde o início, antes mesmo de o Oswaldo chegar. Tínhamos um volume enorme de material, sabíamos o que não queríamos, e a Rita ia nos trazendo o que queríamos. Sabíamos que queríamos a Rita de hoje, isso era fundamental e muito batalhado. O filme virou essa costura, esse bordado entre fases dela: a Rita potente no palco, a Rita íntima, os depoimentos, as imagens caseiras. Desejávamos tempo para respirar, ouvir uma música, emocionar-se, não só uma colagem frenética. Equilibrar profundidade e pluralidade em uma hora e meia é um grande desafio. O resultado é totalmente fruto do trabalho de montagem.

OS: Sem dúvida. Com tanta diversidade e quantidade de material, é de esperar que seria um projeto a exigir esforço na montagem, e é o tipo de filme que nasce desse processo.

E que lições vocês aprenderam ao longo dos seus percursos enquanto montadores? Como já mencionei, o Oswaldo tem trabalhos importantes como Tropicália, entre outros, e a Karen tem uma filmografia de respeito: “Febre do Rato” (Cláudio Assis, 2012), “Zama” (Lucrecia Martel, 2017), “Que Horas Ela Volta?” (Anna Muylaert, 2015), além de filmes portugueses como “Raiva”, do Sérgio Tréfaut, e “Great Yarmouth”, do Marco Martins. O que levam dessas experiências de montagem, especialmente agora, que trabalharam juntos neste projeto, numa co-realização?

KH: Da minha parte, eu gosto muito de desafios, e esse foi um enorme, em termos de montagem. Mas também foi um presente poder mergulhar na obra da Rita Lee: ler tudo, ouvir de novo os discos… Eu, como a maioria dos brasileiros, sou super fã da Rita. Todo mundo sabe cantar uma música dela: da minha geração e das mais novas também. Ela é uma presença constante na cultura brasileira. Poder me dedicar profundamente a esse universo foi algo incrível.

Adoro, na montagem, trabalhar com materiais de origens diferentes, romper fronteiras entre documentário e ficção. Comecei o processo com essa ideia, de que a ficção seria o que a própria Rita nos entregasse, filmando a si mesma. Então há essa mistura de linguagens: em alguns momentos é um filme-ensaio, em outros um show, ou ainda um depoimento íntimo. O desafio era costurar tudo isso e encontrar o equilíbrio. É algo que me atrai muito.

OS: Sem dúvida. Um dos grandes desafios como montadores aqui foi contar um documentário com um arco emocional parecido com o de uma ficção. Criar envolvimento, não ficar só no racional. Queríamos que o público fosse conduzido mais pela emoção do que pela informação. Esse foi um dos nossos focos ao buscar a linguagem final.

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Depois de ver o vosso filme fica-se com a sensação de existência de uma espécie de hub criativo entre artistas naquela época, não apenas a Rita Lee, mas todo um grupo que convivia, trocava, criava ‘coisas’ junto. Acabavam por influenciar uns aos outros através desse ambiente e relações. No cinema, por exemplo, na Nouvelle Vague, é sabido que os cineastas conviviam, encontravam-se nos cafés, trocavam ideias. Hoje isso parece quase impossível — as “vagas” artísticas desapareceram. O vosso filme, mesmo indirectamente, também reflete sobre isso.

KH: Sim, é verdade. Hoje há alguns movimentos mais articulados entre artistas jovens, mas, no geral, perdemos muito desse convívio. Penso que estamos muito isolados, cada um na sua “caixinha”, com menos trocas, e essas trocas eram extremamente criativas.

A Rita conta que, em certo momento, ia à casa do Caetano e do Gil, quando eles viviam em São Paulo, antes do exílio. Ela ficava ali quietinha, observando, eles criavam músicas, e ela apenas “babava”, encantada. Eram vários artistas, uma turma que se reunia. Ela dizia que o Gil e o Caetano falavam para ela: “Você pode tudo. Pode misturar tudo: banana com Coca-Cola, com rock’n’roll, com feminismo.” [risos] Tudo isso nasceu de encontros. As pessoas precisam passar tempo juntas para que a criação aconteça.

OS: Concordo perfeitamente. E outra diferença daquela época para hoje é a diversidade de áreas envolvidas. O pessoal do teatro, das artes plásticas, da música, todos se misturavam. Era um movimento cultural amplo, que atravessava fronteiras artísticas. Era, como dizia o disco da “Tropicália”, uma “geleia geral”. Essa mistura dava uma força enorme para expandir o universo criativo.

No vosso filme há uma frase proferida de Rita Lee que podemos encontrar: “Como mulher, eu escancaro os tabus, mas não revelo os mistérios.” De certa forma, o vosso documentário faz o mesmo. É um filme sobre a Rita Lee, mas sem decifrá-la completamente, preservando a aura de mistério, o que, acredito, só aumenta o fascínio, especialmente para as novas gerações.

KH: Sim, e acredito muito nisso. Num documentário sobre uma personalidade, o ideal é que o espectador saia do filme querendo conhecer mais sobre ela. Acabei de fazer um documentário sobre o Cacá Diegues, e as pessoas saem com vontade de ver os filmes dele. Com “Ritas”, é a mesma coisa: a ideia é que o público queira ouvir mais suas músicas, se aprofundar na sua obra e também deixar espaço para o espectador viajar — ler o filme de maneiras diferentes. É esse equilíbrio de que o Oswaldo falava: entre informação e emoção. Para mim, a emoção precisa ser mais forte. A informação, o espectador pode buscar depois.

O filme deve deixar a sensação de ter vivido algo com a Rita Lee, de ter sentido um pouco da sua presença. A experiência emocional é mais importante do que o acúmulo de dados.

A Karen já adiantou um pouco, mas mesmo assim vos pergunto: depois de “Ritas”, quais são os novos caminhos a seguir? Vocês pretendem continuar juntos como dupla ou cada um seguirá o seu próprio rumo?

OS: Do meu ponto de vista, teria a Karen em todos os filmes! É um prazer trabalhar com alguém com a personalidade, o talento e a experiência dela. Por enquanto nós não temos nada fechado ainda. Sabemos como é difícil viabilizar projetos no momento…

KH: [Ao Oswaldo] Não sei… depois a gente conversa. [risos]

OS: Pois é. Mas acredito muito no processo colaborativo, especialmente no documentário. É um processo muito rico mesmo. Claro, mostramos cortes para colegas da área, trocamos ideias e isso faz parte dessa “sociedade” do cinema, e é muito enriquecedor trabalhar com pessoas com experiências diferentes. Eu e a Karen temos formações e trajetórias distintas, e isso fortalece o resultado. Então, sim, por minha vontade é sempre colaborar. Com a Karen e com outros talentos como ela.

KH: Gosto muito de colaboração. Agora mesmo co-dirigi um documentário sobre o Cacá Diegues com o Lírio Ferreira (“Para Vigo Me Voy!”, 2025). A minha longa-metragem como realizadora, “Lixo Extraordinário” (“Wast Land”, 2010), também foi em colaboração. E montar é, essencialmente, um trabalho colaborativo com o realizador, é quase um casamento. Por vezes dá muito certo, às vezes não, é como qualquer relação. A montagem é a “terceira escrita” do filme, atravessando fases muito intensas, e é um processo profundo, e gosto dessa intensidade criativa.

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Voltando ao início, sobre o sucesso do documentário: será que estamos a ver uma espécie de renascença da bilheteira do cinema brasileiro? “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, por exemplo, foi um fenómeno, e “Ritas” se destacou ainda mais por ser documentário, um género que costumava ser o “patinho feio” das bilheteiras. Como vocês encaram esse momento do cinema brasileiro para o seu próprio público?

OS: O cinema brasileiro está a viver um ano espectacular. É muito importante poder contribuir para isso. Acho que houve uma confluência de factores que reforçam o talento e a importância do nosso cinema, e a necessidade de mais holofotes, e também mais incentivos. No caso do documentário, estamos num momento muito criativo, realmente inovador na linguagem, e ver filmes brasileiros batendo recordes de bilheteira e chegando ao Oscar é muito gratificante. Lançar “Ritas” nesse contexto foi uma alegria enorme.

KH: Acho que os exemplos que você mencionou mostram casos pontuais — grandes sucessos, sim, mas ainda poucos. Temos um problema muito grande na distribuição e exibição. Existem documentários e ficções muito criativos sendo feitos no Brasil, mas ainda precisamos trabalhar muito para formar público. Muitos filmes têm apenas uma semana em cartaz, ficam restritos a festivais… “Ritas” foi um fenómeno, claro, muito por causa da Rita Lee, e tivemos retornos lindos. Mas esses fenómenos ainda são exceções.

Os filmes pequenos, com menos verba para divulgação, muitas vezes não encontram o seu público. Além disso, ir ao cinema no Brasil está caríssimo. Uma família não consegue pagar bilhetes, pipocas… é inviável. Temos poucas salas, quase todas em centro comerciais, ou em centros de cidade. A rede de exibição é cara e limitada. É um cenário que precisa melhorar muito, com políticas de incentivo, acesso e formação de público.

África aguçada, África trocista ...

Hugo Gomes, 22.10.25

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Às portas de Ceuta, em tempos politicamente incorrectos de referir, a sua conquista abriu o apetite do Mundo a um Império que, automaticamente, se subjugou na expansão marítima, os "Descobrimentos", se olharmos pelo brilho do ouro pilhado, ou o colonialismo como influência de um Ocidente estendido sobre terras distantes da bússola. Foi daqui que a História se virou mar fora; mas, para Pedro Pinho, em colaboração com Frederico Lobo, na sua primeira longa-metragem [“Bab Sebta”, 2008], foi a África que se deixou entender pela sua câmara.

Deu-se “Um Fim do Mundo” (2013) nos cantos de Setúbal, na crista dos bairros sociais, entre a sua gente e os seus frutos, mais do que simples marginalidade classista, um culminar de despojos de África (e de outros recantos). Depois partiu num vai-e-vem entre “Cidades e Trocas” (2014), a refazer rotas para saciar a fome do exótico e do longínquo. Até “A Fábrica do Nada” teria o seu momento africano: avestruzes descobertas no Vale do Tejo, ratites sacanas que remetem a esse continente que o espera... e esperou até à sua megalomania quase “Fitzcarraldo”.

Parte, então, para a Guiné, trauteando a canção de Tom Zé (“Fiz meu berço na viração, eu só descanso na tempestade, só adormeço no furacão”), “O Riso e a Faca”, desejo de constante descoberta, consciente de raízes e privilégios. Pedro Pinho é branco em África e segue uma personagem europeísta nesse termo: saída do sofá do conforto, vem trabalhar na conceção de uma estrada cuja construção alterará a vida dos habitantes das diferentes tribos que ocupam essas “terras à venda”. Precisa de um relatório de impacto ambiental — quem sabe, não apenas para salvar etnias e etnografias, mas também hipopótamos raros. Este personagem, quase alter ego, Sérgio (Sérgio Coragem), comete os vícios próprios da sua origem pouco modesta. Olha para a Guiné com exotismo, ou acredita poder “salvá-la”. De quê? Eis o conceito difícil de definir. 

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O Riso e a Faca” é a história da branquitude nestas paragens: não sou eu quem o diz, o próprio filme faz questão de relembrar tais “crimes”, sempre com um sermão desbocado a ser gritado. Para além disso, a obra desenha um mosaico de retalhos, todos, mesmo que convocados para uma narrativa evidente, prestam-se a picar o ponto nos diferentes estilos, géneros e abordagens deste cinema. É um épico no sentido da sua grandiosidade e da incansabilidade ao longo das 3h30 (versão vista por este vosso escriba, a mesma estreada na Quinzena de Realizadores, embora exista notícia de um trabalho ainda mais longo, integral como nos informam, a ultrapassar as cinco horas).

A jornada de Sérgio, “herói” à imagem dos heróis do cinema português recente, revela uma passividade que o faz levitar ao sabor do vento, em vez de criar o próprio destino ou resistir às adversidades. Sublinho: não há nada mais português do que essa cedência ao tempo e às vicissitudes da vida, mesmo nos campos aventureiros desta África Ocidental. Há momentos de ouro: a lição moral trazida pela prostituta contra o samaritanismo eunuco dos europeus — cena crucial após o episódico revisitar de “A Fábrica do Nada”, com caras familiares e toda aquela camaradagem sem filtros do proletariado à portuguesa, que nos enche de saudades de “casa”. Ou a negociação das cabras, dilemas simples, mas de resolução nada simples. Que caprino salvar? O mais pobre? O mais bonito? “Menos a branca”, afirma o outro “estrangeiro” (Jonathan Guilherme, brasileiro negro confrontado com a sua improvável branquitude. “Não, tu és branco”, responde-lhe o nativo).

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Segue-se o ménage à trois explícito e exótico, temporãs de um turista acidentado, ou uma Cleo Diária, bravura em diamante, actriz de fulgor que parece existir num mundo à parte deste ensaio fílmico. Queremos segui-la, mas é no branco que fixamos o olhar, caindo no típico registo etnográfico de um último acto, entre não-atores e aldeias genuínas, documentário disfarçado em contrastes tão ocidentais. Mas cresce uma suspeita (sim, no protagonista Sérgio) e, pela primeira vez, a sua passividade soa contestada (até o sexo contém essa submissão). Para que serve a estrada, afinal? A quem beneficia? Não coloquemos, porém, nos seus ombros as dores do “herói branco”. “O Riso e a Faca” não vai nessas cantigas: prefere desconstruir essa imagem, nem que para isso atravesse o deserto em quarenta dias.

É o fascínio de Pinho e é tratado com o devido cuidado, não vá acusarem-lo de colonização cinematográfica. Contudo, é o seu filme de sonho, o seu devaneio, a sua câmara incansável ao serviço de um permanente diário de bordo. Depois da viagem, o que fazer com as imagens? Resposta de cineasta: constroi-se um filme!

Paolo Marinou-Blanco: "Fala-se muito de uma 'terceira via': um cinema inteligente, mas ainda acessível ao público. É nesse espaço que gosto de estar"

Hugo Gomes, 18.10.25

Denise Fraga e Paolo Marinou-Blanco durante a rodagem de "Sonhar com Leões"

A Morte é um tabu, um assunto a evitar, apesar de estar inserida nos nossos pensamentos constantemente, até porque duvidamos que exista alguém que não pense, direta ou indiretamente, sobre a morte no seu dia a dia. Gilda (Denise Fraga) fá-lo de uma forma intensa: deseja morrer e tudo tenta para cumprir esse desejo, mesmo que o seu redor a impeça cada vez mais, ou que a promessa de um abraço lhe dissipe essa vontade de finitude.

Como solução, Gilda inscreve-se na Joy Transition, uma empresa clandestina que promete guiá-la para um suicídio rápido e indolor. Lá conhece Amadeu (João Nunes Monteiro), um jovem com a capacidade de falar com os mortos, dom (ou maldição) que lhe arrancou qualquer traço ou ambição de felicidade, e ambos formam uma dupla improvável nessa busca incessante pelo seu ponto final.

Paolo Marinou-Blanco regressa a Portugal, 18 anos depois da sua longa (“Goodbye Irene”), com uma obra tragicómica que aborda temas pesados através de uma troça satírica e caricatural de uma sociedade ultra-capitalista. O filme “Sonhar com Leões”, estreado entre nós em maio deste ano, integra-se na programação do 10.º Cine-Atlântico, mostra de cinema português promovida pelo Cineclube da Ilha Terceira.

O Cinematograficamente Falando… celebra a passagem do filme à beira do Atlântico plantado com um encontro com o realizador e uma discussão sobre a obra, o guião, a comédia enquanto tratado social e o sonho, não com os felinos africanos, mas com uma terceira via no cinema português.

Começo pela seguinte questão: o seu filme, “Goodnight Irene”, estreou entre nós em 2008. No meio disso, houve uma curta [“Nada nas Mãos”, 2021], e agora chegamos a “Sonhar com Leões”. Porquê tanto tempo até uma nova longa-metragem?

Sim... Depois do “Goodnight Irene” fiz um telefilme para a RTP, que estreou em 2010, mais ou menos, e nessa altura decidi tentar trabalhar nos Estados Unidos. Fiz o mestrado de cinema na NYU e tinha vários amigos e contactos lá, por isso pensei: “Por que não tentar?”. Passei meio ano em Nova Iorque, a trabalhar como produtor associado em programas de televisão, mas percebi rapidamente que não era o meu caminho. Depois mudei-me para Los Angeles e comecei, aos poucos, a estabelecer-me como argumentista. Entrei para a WGA [Writers Guild of America], vendi guiões à Paramount e à MGM, fiz script doctoring, vendi pitches... enfim, comecei a criar uma vida como argumentista lá e acabei por me especializar em certos géneros — dramas históricos e thrillers de espionagem, normalmente baseados em factos reais, mas ficcionalizados. 

Dois géneros muito difíceis de fazer em Portugal [risos].

Sim, exatamente. Mas há imenso material cá para isso. Aliás, o “Glória”, do Tiago Guedes, a primeira série portuguesa da Netflix, tentou explorar esse tipo de território: histórico e de espionagem.

A grande diferença é que lá [EUA] não tens a liberdade que existe no sistema europeu ou latino-americano. Nunca entrei muito na realização lá, porque vi muitos amigos meus, realizadores, que passavam anos à espera de conseguir financiar um filme. Mudava o actor, o orçamento caía, os investidores desistiam… e tinham de começar tudo de novo. Enquanto argumentista não é assim. Claro que também há momentos difíceis, mas no fim do dia ninguém te pede para trabalhar anos de graça “pela tua visão”.

Pois, nos Estados Unidos não há muito essa ideia da “visão do autor”. É quase tudo um sistema.

Sim, alguns realizadores conseguem ter liberdade, os que tiveram muita sorte com o primeiro filme, como o Wes Anderson, só que no geral, é como dizes, é um sistema. Por isso há uma grande atração pelo modelo europeu ou latino-americano, onde há financiamento público e maior liberdade criativa. Os Estados Unidos são o único país do mundo sem financiamento público para a cultura.

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Então, desse sistema europeu, porquê regressar a Portugal para fazer um filme?

Porque sou português: metade grego, metade português, mas ainda assim português. Onde é que faria este filme? Não seria na Bulgária [risos].

Ou na Grécia? [risos]

A questão da eutanásia, que está no centro de “Sonhar com Leões”, parte de experiências pessoais mais ligadas a Portugal do que à Grécia. Além disso, a Grécia é mais conservadora nessas questões sociais. Ter uma conversa sobre eutanásia lá seria quase impensável, estamos décadas atrás desse debate. Aqui, senti que podia contribuir de forma mais concreta para a discussão. O filme não é um manifesto político, nasce de algo pessoal e também da minha estética, mas em Portugal faz sentido. Na Grécia, seria como falar de naves espaciais [risos].

É triste ouvir isso da Grécia, o país dos filósofos, da política…

Pois é [risos]. Mas, em resumo: fiz o filme aqui porque sou português.

Tendo em conta que já tinha trabalhado em Portugal com “Goodnight Irene”, e sabendo que é um país difícil para certas actividades artísticas, o que te levou a voltar a filmar cá?

Sim, é verdade, e é uma pena. Fala-se muito de uma “terceira via”: um cinema inteligente, mas ainda acessível ao público. É nesse espaço que gosto de estar, e espero ter conseguido com este filme.

Gosto muito dessa ideia da terceira via. Também não gosto da trincheira entre “cinema de autor” e “cinema comercial”, muitas vezes o que se chama cinema comercial é quase uma prima afastada da televisão…

Exacto, e esse é o problema. O apoio ao cinema em Portugal está muito dividido. Temos uma tradição forte de cinema de autor, e com mérito, mas falta um cinema que tente atrair o público às salas sem deixar de ser inteligente e exigente. O chamado cinema “comercial” muitas vezes tenta apenas replicar modelos televisivos. Acho que o caminho devia ser outro: contar boas histórias, bem escritas, com substância, mas que também comuniquem com o público. Nenhum termo é perfeito, mas é isso que falta cá.

Falando então do seu projeto … e do teu trabalho de argumentista … nota-se que “Sonhar com Leões” possui um guião sólido, muito bem trabalhado. Foi por aí que começaste o projecto?

Sim, claro. O começo é sempre o argumento. Como dizia o Hitchcock: “argumento, argumento, argumento”. Trabalhei muito o guião. Acho que, para podermos quebrar regras, temos primeiro de conhecer bem a tradição da escrita. Só assim se pode inovar de forma consciente. Só quando o argumento está realmente sólido é que podes chegar à rodagem com liberdade para improvisar, adaptar, alterar. O guião não deve ser seguido de forma rígida, mas para isso tens de o conhecer profundamente, só assim sabes o que estás a mudar e porquê.

Sim, e é uma ideia interessante. Sou fascinado pela questão do humor. Recordo que o humorista Ricardo Araújo Pereira, que também é um obsessivo pelo tema e tem imensos livros publicados sobre isso, define que o humor foi criado pela humanidade como forma de lidar com a sua consciência da mortalidade.

Aliás, há uma frase de um escritor francês (não me lembro agora qual) que me ficou desde miúdo: “O homem pode estar à beira da falésia, mas tem de rir.” E é isso. Até pus uma citação do Mark Twain na capa do guião quando ele circulava: “A humanidade só tem uma arma verdadeiramente eficaz: o riso.

É curioso, porque o filme ri do tema, mas ri connosco. Não ri de nós, mas connosco.

É isso mesmo. Ao mesmo tempo, é preciso ter consciência de que estamos a lidar com temas muito sérios. Nunca quis, e penso que consegui, não menosprezar as experiências das pessoas que realmente vivem situações de doença terminal ou sofrimento psicológico. Elas estão “dentro da piada”, por assim dizer, participam dela connosco. Sobretudo a Gilda.

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E era aí que queria chegar. A personagem da Gilda, enquanto argumentista, como é que a construiu? E olhando agora para a Denise Fraga no papel, foi ela a tua primeira opção?

Sempre quis que a personagem não fosse portuguesa. Sempre a imaginei estrangeira, porque, em parte, é inspirada em aspectos da minha mãe, que também não é portuguesa, e, para a história da eutanásia, fazia sentido que Gilda fosse uma outsider, alguém isolada.

Se fosse portuguesa, o público iria naturalmente pensar: “Mas ela não tem família? Um primo? Um sistema de apoio?”, e isso criaria outra camada de leitura. Sendo estrangeira, essa solidão é mais credível.

Quanto à Denise, descobri-a durante a pandemia. Vi uns trabalhos que ela fez com o marido, o realizador Luís Vilaça, pequenos filmes caseiros que acabaram por virar uma série [“Horas em Casa”]. Ela falava diretamente para a câmara, num tom muito poético, muito íntimo, muito parecido com o da Gilda. Não havia uma narrativa linear, mas percebi logo: “É ela.” Foi uma sorte tremenda. A Denise Fraga é uma dádiva ao mundo da representação.

Em relação ao tema, e porque o filme joga constantemente com ele,  há uma grande coragem em abordá-lo desta maneira. A opção de Gilda não ser portuguesa reforça esse isolamento, essa falta de rede afetiva. E isso faz-me lembrar certos debates sobre eutanásia aqui em Portugal, quando surgem artigos contra e dizem: “Essa pessoa precisa é de um abraço.

Sim, sim! Lembro-me de ter escrito, numa versão inicial do guião, uma cena de manifestação pró e contra, e usava slogans reais que achava absurdos. Um deles era “Vida sim, morte não”. Sempre achei graça, quer dizer, é uma ótima ideia, mas expliquem-me como é que isso se faz [risos].

E essa coisa do “abraço como solução para tudo”... Confesso que, a certa altura do filme, temi que o final fosse cair num moralismo, ou que ela acabasse por sobreviver.

Exactamente! [risos]

Torcia para que isso não acontecesse. [Risos]

Pois, isso seria a pressão americana [risos].

Mas há algo no filme: na relação entre Amadeu (João Nunes Monteiro) e a Gilda (Denise Fraga), que traduz isso muito bem: pode haver afeto, pode haver humanidade, mas isso não obriga ninguém a continuar a viver “por arrasto”.

Ou por obrigação. A vida é uma dádiva fenomenal, maravilhosa, mas também deve haver certos requisitos para que valha a pena vivê-la, e esses variam de pessoa para pessoa. Por exemplo, alguém com um diagnóstico de demência iminente pode não querer continuar se perder aquilo que considera essencial — a lucidez, a ligação intelectual ao mundo. Outra pessoa, para quem o corpo é central, pode definir a mobilidade como esse limite.

Temos de aceitar isso. Dizer “não, temos de viver a qualquer custo” não é defender a vida, é o contrário. Paradoxalmente, ao defender o direito de escolher, estamos a afirmar o valor da vida, a dizer que ela é preciosa e deve ser vivida plenamente. Se isso não é possível, deve existir o direito de decidir.

Queria falar agora da personagem do João Nunes Monteiro, porque acho-a fascinante. A certa altura é-lhe atribuída uma espécie de “fobia à felicidade”.

Sim … chama-se “anhedonia”.

O papel parece ser uma crítica viva à ideia de felicidade consumista em que vivemos, à indústria que nos vende um conceito vazio de “felicidade”.

Há hoje quase uma obrigação de ser feliz, mesmo sem se saber bem o que isso significa. A palavra “felicidade” é tão vaga que pode significar tudo e nada. Um psicopata pode sentir prazer em matar. Será isso felicidade? É absurdo. O Amadeu representa essa crítica a uma sociedade que impõe a felicidade como dever moral. E isso alimenta uma indústria bilionária: quanto mais falta de felicidade crias, mais produtos e experiências vendes para tentar suprir essa ausência. Esses dois lados estão interligados, e a Joy Transition International [a empresa fictícia do filme] faz parte dessa crítica.

Sim, porque a Joy Transition tem uma estética muito próxima das igrejas pentecostais. Dentro daquele barracão, há todo um ritual…

É inspirado nesse tipo de ambientes. Já estive em vários retiros, de naturezas diferentes, alguns bons, outros mais ao estilo da Joy Transition [risos]. Faz-se lá de tudo: mantras absurdos, frases como “Eu sou o mundo, o mundo sou eu” ditas em coro... há sempre um tom quase religioso. A crítica do filme é mais a esse lado, ao fervor quase espiritual que o capitalismo consegue apropriar, do que a uma religião específica.

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Porque tudo se transforma em negócio: os retiros, os coaches, o “sair da zona de conforto”... No fundo, até na morte, é tudo capitalismo.

Sim, exatamente, “como saber morrer” também vira um produto. E a única forma, ainda que nunca totalmente eficaz, de nos protegermos disso é através de legislação, de supervisão civil, que, em democracia, é o Estado. Sem isso, é a lei da selva — o capitalismo puro —, e abre-se o espaço para este tipo de exploração, inclusive no fim da vida.

Mudando de assunto. Tenho pena que a personagem da Victória Guerra apareça tão pouco. Aquela influencer de funerária possui um absurdismo que podia ter sido mais explorado.

Tens razão, concordo. Mas há sempre o dilema do “kill your babies” … tens de cortar coisas de que gostas.

Podemos então dizer que o filme, de certa forma, é também sobre esta sociedade ultracapitalista? Onde a morte é lucrável e mercantilista?

Sem dúvida. E acrescento hedonista. Uma sociedade onde a procura constante de felicidade e prazer está sempre ligada ao lucro, tudo é subordinado a isso. É uma crítica, sim, mas feita através da sátira, que por sua vez é uma forma de crítica, sem dúvida.

Por vezes a comédia é muito eficaz nesse ramo. Mas sobre a constante quebra da quarta parede — essa comunicação direta da Gilda para com o público. Veio um pouco da ideia da Denise Fraga, do programa que ela fazia durante a pandemia, certo? E o facto de termos uma personagem assim… e isto talvez seja spoiler… mas esse narrador, a Gilda … já está morta?

Pois, essa é uma boa pergunta… [sorri] mas não quero revelar essa questão, estaria a descortinar em demasia o final do filme.

[risos] Está bem, não insisto. Então, para última pergunta. Fiquei muito curioso com o título — “Sonhar com Leões”. Tentei perceber se havia alguma metáfora escondida.

Há, um bocadinho, mas é tangencial.

Porque o leão, e a associação mais próxima que encontrei está igualmente presente “Crónicas de Nárnia”, do C.S. Lewis, onde o animal é uma representação de Deus. Encarei o título do seu filme como uma espécie de “sonhar para além da vida”.

É uma leitura próxima, sim. Mas deixa-me explicar. Apesar de ser uma pessoa bastante analítica, gosto de seguir o instinto. Se algo me parece forte numa certa direção, sigo-o, seja na escrita ou na encenação. Por exemplo, a cena em que o cão morto fala nunca foi uma decisão prévia, simplesmente estava a escrever: o Amadeu entra numa sala vazia e, de repente, há uma voz. Perguntei-me: “Que voz é esta?” Percebi: só pode ser a de um cão. E se é um cão, então é a de um cão morto. Continuei a partir daí. Foi puro instinto. Inspiração e prazer em seguir uma ideia que surge do nada.

Com o título aconteceu o mesmo. “Sonhar com Leões” vem de “O Velho e o Mar”, do Hemingway. A imagem dos leões aparece no início e no fim do romance. O velho pescador vive uma existência miserável (pobre, esgotado, derrotado), mas tem essa recordação de juventude, quando navegava na marinha mercante e viu uma família de leões a brincar na costa africana. Essa imagem representa paz, refúgio, a fuga à dor. É o seu lugar de serenidade.

Quando encontrei essa imagem, senti que era perfeita. Comecei por instinto. “Vamos por aqui”, e ficou. Curiosamente, durante todo o processo de financiamento que foi longo, com apoios difíceis de conseguir, como da Eurimages, do Ibermedia, e várias idas a mercados de coprodução, ninguém nunca nos questionou o título. Achei engraçadíssimo, porque pensei que seria a primeira coisa que nos iam perguntar: “O que é isto de ‘Sonhar com Leões’?” Mas não. O título ficou, e ficou mesmo.

Para finalizar, tenho uma questão em duas partes. A primeira toca, indiretamente, nos “novos projetos”, embora imagine que, com “Sonhar com Leões”, ainda esteja a repousar sobre ele…

Não senhor. É o contrário, já estou a pensar no próximo! [risos]

[risos] E a segunda parte é: como é que este filme pode funcionar, ou relacionar-se, com o público português? Tendo em conta que o público português, muitas vezes, é um pouco preconceituoso com o seu próprio cinema.

Sim, esse é um grande problema. Espero, e voltamos aqui à questão de tentar criar um cinema narrativo, inteligente e acessível que “Sonhar com Leões" funcione como um passo nesse sentido. Mesmo sendo um tema difícil, eu reconheço isso e não fujo dele. Quando é suposto doer, dói.

Acredito que a cultura deve estar na vanguarda da mudança. Caso contrário, o que estamos aqui a fazer? Se for apenas para validar o que já está validado, então nem vale a pena começar. Mas atenção: não se trata de “quebrar ídolos” por quebrar. A questão é, se tens uma ideia que diverge do status quo, então propõe, arrisca, faz.

Isso faz-me lembrar o Dias Gomes, dramaturgo brasileiro que escreveu “Roque Santeiro”, primeiro como peça, depois como novela. Ele dizia: “Toda a gente nasce para irritar alguém, e se não estás a irritar ninguém é porque não estás a fazer nada.

[risos] O George Bernard Shaw tem uma parecida: “O segredo do sucesso é ofender o maior número de pessoas.

A minha esperança é que, mesmo sendo um tema sensível e polémico, a linguagem narrativa e o ritmo do filme sejam suficientemente acessíveis para que um público alargado se queira sentar, ver e partilhar essa experiência, e, com isso, a criar um pouco de erosão nesse preconceito contra o cinema português: dessa ideia de que é sempre lento, pesado, distante.

E o tal novo projeto?

Estou a trabalhar em vários neste momento, mas o mais avançado segue um pouco o mesmo caminho deste filme, em termos de produção e também com a Denise. Será uma comédia negra e satírica sobre os lares de idosos e a crise habitacional que estamos a viver.

Doclisboa '25: daqui consigo ver o mundo lá de fora. Uma conversa com Hélder Beja, sobre programação e imagens a (re)descobrir

Hugo Gomes, 15.10.25

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En la alcoba del sultán (Javier Rebollo, 2024)

O Doclisboa arranca não apenas sob a ideia de um cinema documental em desconstrução ou em permanente reinvenção sintática, mas como uma espécie de bola de cristal dos nossos tempos: dos movimentos que despontam às memórias que se preservam, passando pelos conflitos que se reconfiguram numa nova lavagem imagética, das “guerras infinitas” às múltiplas violências sociais. Tudo condensado em dez dias de cinema… sim, sobretudo Cinema.

Como sempre, o Festival Internacional de Cinema não se assume como uma mera mostra documental. Aliás, em tempos de streaming e de facilitismo de acesso, o género documental popularizou-se, e, com isso, formatizou-se, standardizou-se, em remessas de conteúdos que pouco têm de experimental ou transgressor. O Doclisboa tem batalhado para contrariar essa tendência: entrega-nos cinema para lá da “estética Netflix” e das suas pedagogias fáceis.

É uma janela para o mundo, esse cliché tantas vezes gasto pelo mercantilismo cinematográfico, que aqui faz pleno sentido. Porque nestes filmes não vemos “olhares de ninguém”, mas sempre um “olhar de alguém”. De William Greaves a Ross McElwee, da Palestina à Ucrânia, dos Riscos ao tão amado Heart Beat, em português ou noutra língua, o Doclisboa reafirma-se como um festival de classe.

O Cinematograficamente Falando… conversou com Hélder Beja (nesta que é a sua primeira edição como director e programado) para nos guiar pelo meio da programação: das sugestões às surpresas, das novidades aos imperdíveis. O documentário, aqui, não como género fechado, mas como abertura.

Em comparação com edições anteriores, este ano parece não haver uma temática unificadora, aliás existem variadíssimos temas que o festival quer intensamente abordar, tendo em conta que os vários filmes apoiam nessa teoria. Penso que isto se liga um pouco à minha primeira pergunta: ao fazerem a seleção de documentários, num tempo em que tudo parece cada vez mais difícil, quase com um certo fatalismo sobre o que nos pode acontecer, vocês pensam nesse ato de programação em criar uma espécie de “sintaxe”, um resumo da nossa contemporaneidade?

Sim. Desde que estou na equipa (e isso desde 2023) sinto sempre, e também este ano, que apesar de existirem algumas linhas orientadoras, o festival nunca foi muito temático. Agora, o que disseste no final é exatamente isso: o Doclisboa é uma espécie de cápsula do nosso tempo. É isso que tentamos fazer, às vezes com melhor resultado, outras vezes com menos bom, mas é esse o objetivo. Este ano, a programação é especialmente extensa, o que também é uma característica do festival pela sua natureza e pela dimensão que foi ganhando ao longo dos anos. O Doclisboa quer ir para lá do dogma do cinema documental, e isso nota-se bastante (particularmente este ano). Há o que já se chama o “género híbrido”, e até para lá disso: o festival tem várias ficções na programação, e nós gostamos disso. Apesar de termos “doc” no nome, o festival acaba por acolher muitas ficções.

Mas também porque o mundo é um lugar cada vez mais complicado, mais difícil de ler. Se tivesse de apontar alguns fios condutores nesta programação, diria que há um esforço para falar do que está a acontecer sem mostrar exactamente o que está a acontecer. Temos muito poucos filmes gráficos — se pensarmos, por exemplo, nas guerras, nos conflitos, em toda a histeria e destruição que vai pelo mundo, o festival tem muito poucas imagens explícitas. O que está fora de campo é tão importante, ou quase tão importante, quanto o que está em campo. Essa foi uma nota importante para nós. Por outro lado, quisemos também dar espaço a filmes que abrandam, que não se compadecem com a voragem do nosso tempo e deste consumo imediato. Há muitos filmes, incluindo portugueses, em que esse respiro se sente. Penso que todos nós temos essa necessidade: de parar, pensar, observar e perceber o que andamos aqui a fazer.

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With Hasan in Gaza (Kamal Aljafari, 2025)

Pegando nessa ideia — dessa convulsão moderna que estamos a viver — e também nesse ponto de que programar um festival é um acto político: o facto de abrirem o Doclisboa com um filme sobre a Palestina também é um gesto político, uma espécie de alerta para o mundo. Hoje em dia fala-se cada vez mais da Palestina, já não em modo sussurrante, mas em forma de grito.

Sim, acho que chegámos a esse ponto … Do ponto de vista da consciência global, o mundo percebeu finalmente que era preciso falar disto a toda a hora, até que acabe. Esperemos que esteja prestes a cessar. O que foi feito não é apagável, mas que termine seria muito importante. Mas, sinceramente, há uns meses não era nada líquido que, ao chegarmos agora ao Doclisboa, este conflito estivesse já na boca de toda a gente. Fomos vendo festivais, cá dentro e lá fora, acontecerem com algum espanto, sem grande posicionamento em relação aos grandes temas. Este é, claramente, o grande tema, a grande mancha da Humanidade neste tempo: o que está a acontecer em Gaza.

Falámos muito sobre isso ao longo dos meses. A equipa (sobretudo o comité de selecção) estava muito alinhada em que não se podia perder uma característica essencial do festival: o seu posicionamento político. Tanto nas questões ligadas ao cinema em si, como nas questões globais que nos tocam a todos. Sabíamos que, num momento tão grave como este, não podíamos deixar que essa dimensão desaparecesse. É verdade que, entretanto, a realidade aconteceu. Felizmente, como dizia, há agora uma consciência, mesmo que às vezes soe um pouco hipócrita da parte de governos ou instituições, de que é preciso travar esta chacina em Gaza, e foi já há poucos meses, antes do festival, que encontrámos o filme do Kamal Aljafari [“With Hasan in Gaza”].

Não estávamos à procura de um filme sobre a Palestina e isso é importante referir. Tivemos muitas outras hipóteses em mente, pensámos noutros filmes para a sessão de abertura, com conotações diferentes, mas também sabíamos que não queríamos um filme “cool”, só porque sim. Não queríamos apenas um filme com pinta, que enchesse a sala e pronto. Este filme foi escolhido por duas razões. A primeira, e mais importante, é que cinematograficamente é um belo filme, um gesto cinematográfico muito bonito, de um realizador com uma carreira interessante e já relativamente conhecido em Portugal. É um filme cheio de vida e de esperança.

Não é um filme sobre a Gaza que existe (ou deixa de existir) hoje. É sobre uma Gaza de há mais de 20 anos, já então um lugar complexo, difícil, sitiado, ocupado, mas ainda assim um lugar de vida, não de morte. E isso é muito bonito. Além disso, o filme chega a ser divertido: é um road movie em que o Kamal regressa para tentar reencontrar um homem com quem filmou no passado, e acaba por criar uma relação com o condutor que o leva pelos territórios de Gaza. Portanto, a primeira razão foi o valor cinematográfico. A segunda, claro, é o gesto político. Estamos muito contentes por poder fazê-lo e esperamos que, no dia 16, o São Jorge esteja cheio. Não é um filme fácil de atrair público à primeira, porque as pessoas estão muito saturadas deste tema.

Mas deixo mesmo essa mensagem: é um filme cheio de vida, não de morte. Não vai assolar as pessoas. É um filme de memória e de resistência.

Os filmes que falam, de certa forma, sobre alguns conflitos que estamos a viver neste momento… Vou citar um exemplo que vi na altura da Berlinale: “When the Lightning Strikes Over the Sea”, da Eva Neymann, sobre a Ucrânia. Ela filma de uma forma muito distante da linguagem televisiva habitual. Quando programam este tipo de filmes, que, directa ou indirectamente, falam destes conflitos ou destas guerras, muitas delas quase infinitas, também procuram fugir ao formato visível e às imagens já cansadas, ou acrescentaria também pornográficas, que o público tem desses mesmos conflitos?

Sim, sem dúvida. Por um lado, há esse cuidado. Por outro, e talvez relacionado com isso, há a ideia de que a repetição do mesmo pacote visual, aquele mesmo grupo de imagens que circula em todo o lado, acaba por se tornar amiga da indiferença. Acreditamos que um filme como o da Eva Neyman, com a carga humanista que tem, consegue quebrar isso. Há logo nos primeiros minutos um rapaz que vagueia pelas ruas, aparentemente normais, mas onde se veem alguns prédios destruídos de Odessa. É muito impressionante. Estou aqui a falar disto e arrepio-me, porque atinge-nos de uma forma que já não sentimos ao ver, por exemplo, um prédio em ruínas no telejornal. Já estamos tão habituados a essa pornografia televisiva — como lhe chamaste — que deixámos de ser tocados. Por isso acreditamos que, através de histórias mais ligadas às pessoas e à vida, porque a vida continua, mesmo em meio à carnificina, conseguimos gerar debate, pensamento crítico e reflexão sobre estes conflitos sem recorrer a imagens gráficas. Essa foi precisamente a ideia de programar o filme da Eva, que é um dos filmes de que mais gostamos este ano. Também o vimos em Berlim e ficou logo connosco.

When Lightning Flashes Over the Sea (Eva Neymann, 2025)

Sobre a competição portuguesa, a nacional, acho que há aqui um grande esforço em reunir uma seleção coesa, e, como falava há pouco sobre o docudrama e o género híbrido, que estão cada vez mais presentes, pergunto: há uma certa disputa com o IndieLisboa, já que também programa vários documentários portugueses? Não há o receio de que alguns filmes se “percam” antes de chegar ao Doclisboa?

Sim, claro. Os calendários dos festivais, sendo diferentes, têm os seus benefícios e também os seus desafios. Há vantagens em realizarmos o festival em Outubro, por exemplo, acontece depois de Veneza, o que permite, às vezes, conseguir filmes grandes que reforçam a programação. Mas também há desvantagens: é já tarde no ano, e alguns filmes, por várias razões, preferem estrear mais cedo. Depois há factores mais práticos - o clima, por exemplo. Fazer um festival em Maio é mais agradável do que em Outubro [risos]. Mas pronto, esperamos que este ano corra bem.

No fundo, acho que há espaço para todos. Lisboa tem a sorte de ter dois festivais muito importantes e muito diferentes — o Doclisboa e o IndieLisboa —, e até o LEFFEST logo a seguir, que também acaba por partilhar alguns filmes. No caso do LEFFEST, a natureza é bastante distinta, mais eclética, e com outra capacidade de apoiar os filmes do ponto de vista da distribuição, por exemplo. De modo geral, não temos tido grandes dores de cabeça com isso. Acho que o trabalho que o festival tem feito, e que tentámos reforçar este ano, foi o de uma aproximação ainda maior às produtoras e aos realizadores portugueses. Não lhe chamaria “reaproximação”, porque o Doclisboa sempre esteve perto do cinema português, mas quisemos aprofundar esse diálogo.

Pessoalmente, tive a oportunidade de me encontrar com muitos produtores ao longo do ano (até porque este é o meu primeiro ano como diretor do Doclisboa), e, embora já conhecesse boa parte deles, foi importante conversar e perceber o que estavam a preparar, o que lhes interessava ou não. A verdade é que, por isso e por outras razões, conseguimos uma competição portuguesa de que estamos mesmo muito orgulhosos. Temos sete filmes em estreia mundial, talvez o número mais alto dos últimos anos. Não é que estejamos obcecados com as estreias mundiais, mas é um sinal de confiança: os realizadores e produtores confiam no festival para lançar os seus filmes.

Além disso, temos cineastas muito diferentes, em fases muito distintas das suas carreiras, desde a Rita Azevedo Gomes até ao Duarte Coimbra, por exemplo. Essa diversidade, entre alguém mais sénior e alguém mais jovem, é o lugar onde queremos estar. Também temos bons representantes desse registo híbrido, do docudrama, como o novo filme do Carlos Conceição, “Baía dos Tigres”, “Andar com Fé” do Coimbra, o “Explode São Paulo, Gil”, de Maria Clara Escobar, todos eles a explorar esse território que não é apenas documental, mas que tem os seus próprios passos e ritmo, e isso é muito estimulante.

Agora, passando talvez a um grande regresso no vosso festival — que esteve em Veneza e estará também presente no Doclisboa —, falo do Ross McElwee. Não só o regresso dele ao ativo, com o filme “Remake”, mas também aos circuitos dos festivais.

Sim, sem dúvida. O Ross McElwee é um autor muito querido do Doclisboa. Eu não estava no festival no ano em que lhe foi dedicada uma retrospectiva, mas já me contaram muitas histórias sobre essa passagem dele por Lisboa.

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Remake (Ross McElwee, 2025)

O Ross McElwee esteve vários anos sem filmar, e, embora isso não seja o mais importante, vale a pena referir que esteve afastado por razões pessoais muito duras, que estão, de certa forma, ligadas ao novo filme. Agora regressa ao ativo, passou já por alguns festivais importantes, como Veneza, e vem também ao Doclisboa, que, claro, é o seu espaço natural.

Enquanto Veneza foi a estreia, o Doclisboa é o segundo festival por onde o filme passa?

Não acompanhámos o percurso exacto. Quando não temos a estreia mundial ou internacional de um filme, não nos preocupamos tanto em seguir o circuito dele antes de vir até nós. Claro que, quando queremos garantir uma estreia mundial, isso é discutido diretamente com a produtora. Mas no caso de estreias internacionais, às vezes há dúvidas e é preciso confirmar se o filme não vai passar antes noutro país. De qualquer forma, creio que o filme já pode ter passado em mais alguns festivais.

O certo é que o próprio Ross, de forma muito honesta, anunciou em Veneza, numa conversa ao Público, que viria cá, e quisemos preparar tudo com cuidado para o receber bem. Ele ficou muito entusiasmado com a ideia de regressar a Lisboa. Vem acompanhado pela esposa e traz este filme muito pessoal, em que retrata a relação com o filho — entretanto já falecido. Obviamente, é uma dor que quase nenhum de nós consegue imaginar, mas podemos supor o que significa ter um filho e deixá-lo de ter. É uma das experiências mais duras da vida.

O Ross McElwee vem, portanto, não só mostrar o novo filme e retomar o contacto com os festivais, mas também participar num momento simbólico: uma conversa entre ele e a Cíntia Gil [dia 19 de outubro], que, como sabes, foi diretora do Doclisboa durante muitos anos e é agora programadora associada. Ela teve um papel fundamental neste desenho de programação que apresentamos este ano. E, além disso, já estava no festival na altura em que o Ross veio pela primeira vez, por isso vai ser um reencontro muito especial.

Aproveito para dizer que essa conversa com o Ross McElwee vai acontecer no Fórum de Debates da Culturgest. Criámos este ano um novo espaço de conversas com realizadores, algo que, pessoalmente, sentia que fazia falta. Muitas vezes, quando acompanhava o festival como parte da equipa, percebia que tínhamos convidados muito importantes a passar por aqui, mas, tirando os poucos minutos de Q&A depois das sessões (que muitas pessoas até evitam porque já estão cansadas), não havia um verdadeiro momento de diálogo. Então decidimos organizar seis conversas com realizadores este ano: quatro com cineastas internacionais e duas com realizadores portugueses. Entre as portuguesas, teremos o Eugène Green, com “A Árvore do Conhecimento”, e o Pedro Pinho, com “Riso e a Faca”. Entre os realizadores estrangeiros, teremos: Ana Negri, com “Toni, Meu Pai” (“Tonio, My Father”), e Deni Côté, realizador de “Paul”, que vai conversar com o Boris Nelepo, um dos nossos chefes de programação (a outra é a Cecilia Barrionuevo). E claro, entre essas conversas, está também a do Ross McElwee, que vem mostrar o seu novo filme, fará depois uma masterclass no Porto, na Universidade Católica, na Escola das Artes, e participa nesta conversa pública em Lisboa.

Acho que vai ser um regresso muito bonito e cheio de significado. Esperamos mesmo que o público apareça para ver este novo filme de um cineasta fundamental.

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Duran Duran: Unstaged (David Lynch, 2011)

Deixa-me só tocar num ponto … senão começam a bater em mim! [risos] … há uma secção muito querida aqui no Doclisboa. Refiro-me, obviamente, ao Heart Beat. Gostava que me falasse um pouco dela, nem que fosse um pequeno tour pela secção.

Sem dúvida, o Heart Beat é uma das secções favoritas do público. É uma secção que vai muito para lá da música, e por vezes as pessoas têm aquela ideia de que é “a secção de filmes sobre música”, mas na verdade é sobre expressões artísticas no seu sentido mais amplo, são filmes que nascem dessa relação entre o cinema e outras artes, e este ano isso é particularmente visível, desde logo nas três homenagens que organizámos: Uma delas é ao Robert Wilson, recentemente falecido, alguém muito conhecido do público português, do teatro, da performance, dos palcos. Temos um filme sobre a obra dele, uma recuperação de um filme dos anos 80, “Robert Wilson & the Civil warS" (Howard Brookner, 1986) e depois dois filmes mais experimentais realizados pelo próprio Wilson. Acho que vai ser uma das secções mais especiais deste ano.

Depois, celebramos também o centenário do Luciano Berio, figura incontornável da música contemporânea, e trazemos dois filmes à volta da sua obra. Há ainda dois filmes ligados ao David Lynch“Welcome to Lynchland”, em estreia portuguesa, e uma reposição de “Duran Duran: Unstaged”, um concerto filmado por Lynch, que já não passava em sala há imenso tempo. O Heart Beat também serve para isso: revisitar coisas que têm uma energia única e que vale a pena voltar a ver em grande ecrã.

Mas a secção também olha para o cinema português, e isso interessa-nos muito, sobretudo porque é uma secção mais festiva, mais celebratória. O festival, no seu todo, tem essa dimensão de celebração, mas o Heart Beat tem-na de forma ainda mais marcada. Por exemplo, vamos ter um filme da Solveig Nordlund sobre o Teatro da Cornucópia (“Memórias do Teatro da Cornucópia); um filme muito inesperado do Diogo Varela Silva, “Soco a Soco”, sobre o Orlando Jesus, um ex-boxeur que ainda dá aulas; e ainda um filme da Aline Belfort sobre o trabalho do João Fiadeiro, que passa aqui na Culturgest. É um filme que vai surpreender muita gente, navega entre várias expressões artísticas e reflete muito o espírito da secção.

Mas há outro momento que queria destacar, porque representa algo que o festival quer reforçar neste novo ciclo: a convocação de outras expressões artísticas para dentro da programação. Sempre com o cinema no centro, claro, mas abrindo espaço ao teatro, à literatura, à música e às artes visuais. Um bom exemplo é o filme da Joana Botelho, “Estava Escuro na Barriga do Lobo”, acompanhado por uma performance da Sara Carinhas, cuja prática artística o filme acompanha. Durante a projeção, a própria Sara vai intervir ao vivo, aqui na Culturgest.

Depois há momentos absolutamente imperdíveis: o novo filme do Pippo Delbono, “Bobò”, que é belíssimo; e “Cast of Shadows”, sobre a família Flaherty, uma homenagem aos primórdios do cinema. O último filme a entrar na programação, já mesmo no fecho, foi o “Megadoc” de Mike Figgis sobre a rodagem de “Megalopolis”, do Francis Ford Coppola. Foi uma verdadeira corrida contra o tempo para o conseguirmos ter, e só vai passar uma única vez, não é o filme de encerramento, mas será uma das últimas projeções, no dia 26, aqui na Culturgest. Achámos que terminar o festival com um filme de um mestre como o Coppola fazia todo o sentido.

 

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Megadoc (Mike Figgis, 2025)

Ainda por cima, cheio de dramas de bastidores! E em relação aos Riscos? A secção que adquiriu uma aura especial no ano passado, com a despedida do Augusto M. Seabra.

Sem dúvida. Os Riscos são, por excelência, a secção de curadoria do festival. Enquanto a Da Terra à Lua é quase uma panorâmica do que se faz no mundo, com filmes de autor, mas também alguns de maior público, os Riscos dão total liberdade criativa a quem programa. Pensamos a programação como um acto político, mas também como um ato criativo e essa secção traduz isso na perfeição. Os Riscos são programados sobretudo pela Cíntia Gil, embora haja contributos de várias pessoas do comité de seleção. Há também colaborações especiais e programas paralelos.

Por exemplo, temos artistas convidados muito interessantes este ano. Um deles é Trương Minh Quý, realizador vietnamita pouco conhecido em Portugal, de quem mostramos três ou quatro filmes e recomendo começar por “Hair, Paper, Water …” (2025). Do Egipto, chega a Hala El-Khoussi, uma realizadora que para mim foi uma verdadeira descoberta. Há nela algo de felliniano — mistura teatro, cinema, palavra, tudo. Os filmes têm uma energia incrível e ela vai estar connosco no festival. Depois há um programa de que gosto particularmente, Shadowboxing, feito em parceria entre a Cíntia e o Jean-Pierre Rehm, que foi durante muitos anos diretor do Festival de Marselha e estará também presente em Lisboa. O ponto de partida é o filme “Two Meters of This Land”, do palestiniano Ahmad Natche, já falecido, e a partir daí criaram um jogo dialético de sessões que se respondem entre si. É um dos momentos mais especiais da programação, vale mesmo a pena seguir.

E, claro, há muitas outras descobertas: destaco, por exemplo, “As Aventuras de Gabriel Veyre pelo Mundo”, sobre uma figura fascinante do cinema primitivo, e “Na Alcova do Sultão” (“En la alcoba del sultán”), do espanhol Javier Rebollo, que dialoga com esse mesmo universo. Portanto, um breve sobrevoo pelos Riscos, que estão cheios de coisas incríveis para descobrir.

Queria que falássemos sobre o William Greaves, a retrospectiva. Até porque a informação que tenho, já agora, de um dos responsáveis pelo ciclo, Luís Mendonça, que afirma que Greaves é bastante desconhecido, até mesmo nos Estados Unidos.

O William Greaves surgiu dessas conversas sempre muito frutíferas que temos com a Cinemateca. Costumamos “bater bola” até chegarmos a um consenso, e gostamos mesmo que seja um consenso entre o festival e a Cinemateca, no que toca à retrospectiva. O Doclisboa chegou a ter duas retrospectivas por edição, mas percebemos que fazia mais sentido dar espaço a pequenos focos e concentrar esforços. Duas retrospectivas exigem muita energia, e achámos que não era produtivo.

A relação com a Cinemateca já dura há muitos anos e é muito equilibrada para ambas as partes. Este ano, tivemos um verdadeiro final feliz — chegámos ao nome do Greaves. Alguns de nós conheciam-no vagamente, outros nem isso, e fomos todos mergulhar no trabalho dele. Foi uma grande descoberta! Percebemos logo duas coisas muito rapidamente: primeiro, nunca houve uma retrospectiva completa do William Greaves, nem nos Estados Unidos nem fora. E, ao mesmo tempo, ele tem um seguimento quase de culto — há muitos textos de críticos norte-americanos influentes sobre a obra dele, pequenos programas em que se mostravam um ou dois filmes, e títulos de culto como “Symbiopsychotaxiplasm: Take One” (1968) e “Symbiopsychotaxiplasm: Take 2 ½ ” (2006).

E o curioso é que, quando a maior parte de nós esperava encontrar um cineasta afro-americano que tratasse sobretudo de questões raciais ou da luta de classes e dos direitos civis, o que encontramos foi um artista incrivelmente experimental. Claro que esses temas estão presentes, mas o que mais se destaca na obra dele são os gestos de maior rasgo artístico: a invenção formal, a ousadia, o olhar criativo sobre o real. Há filmes belíssimos sobre o conflito social e racial, sim, mas o que impressiona mesmo no Greaves é o facto de ele ser um artista completo, quase um homem renascentista, como dizia o Luís Mendonça numa conversa. Ele escreveu canções, foi actor (e vamos mostrar vários filmes em que ele atua), realizou documentários e experimentou formatos que, ainda hoje, parecem modernos.

Por isso, esta retrospectiva é muito especial. Fizemos um investimento maior do que o habitual, não só na programação, mas também para trazer a família do Greaves: o filho, David Greaves, e a neta, Liani Greaves, vão estar cá em Lisboa. Curiosamente, sem sabermos no início, acabámos por antecipar um grande programa internacional de homenagens, porque, ao que tudo indica, o próximo ano marca o centenário do nascimento do William Greaves, ou, pelo menos, uma data redonda (se não forem cem, serão noventa anos). Portanto, o Doclisboa, de certa forma, está a abrir esse ciclo de redescoberta.

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Frederick Douglass: An American Life (William Greaves, 1985)

Acho que o festival vai ter um papel importante nessa redescoberta do Greaves, tanto em Portugal como lá fora. É uma obra singular, de uma liberdade e modernidade impressionantes. O trabalho de curadoria feito pelo Luís Mendonça e pelo Scott MacDonald, que convidámos para ser o programador associado desta retrospectiva, foi excepcional e contou também com o apoio da equipa toda do festival. Tenho mesmo a certeza de que quem se der ao trabalho de acompanhar esta retrospectiva vai descobrir um cineasta absolutamente surpreendente.

Para último tópico. O Tribeca apareceu no ano passado, decorreu em simultâneo e, digamos, quase roubou o foco ao Doclisboa. Mas Paula Astorga, directora do Doclisboa no ano passado, em algumas entrevistas, desvalorizou o evento e insistiu sempre que o Doclisboa era o único festival de cinema a acontecer naquela altura. Tendo em conta que este ano o Tribeca cresceu, e parece querer afirmar-se como festival de cinema, para apaziguar o flop no ano passado, este cruzamento não vai interferir com o Doclisboa, nem em termos de fundos?

Começando pelo ano passado, acho que foi um ano infeliz para a Câmara Municipal. Terem decidido lançar um evento como o Tribeca sem olhar para o calendário foi, acima de tudo, uma falta de atenção. Não creio que tenha sido propositado, mas isso não o torna menos grave. Aliás, é até mais preocupante: ninguém pareceu reparar que as datas coincidiam com o primeiro fim de semana do Doclisboa.

Foi, de facto, uma decisão infeliz. A APORDOC fez questão de o assinalar imediatamente junto da Câmara, e a verdade é que este ano não voltaram a cometer o mesmo erro. A Câmara reconheceu o problema, desculpou-se formalmente com o festival, o que, a meu ver, é o gesto correto. Agora, olhando para o presente e o futuro: a decisão da Câmara foi continuar com o evento, e não lhe chamo “festival” porque, sinceramente, não me parece que seja um festival de cinema, é outra coisa.

Claro que, quando vemos os valores que foram atribuídos ao Tribeca e os comparamos com aquilo que o Doclisboa recebe, é inevitável sentir que há algo que não está certo. Mesmo assim, o Doclisboa do ano passado manteve-se forte: não acho que o Tribeca tenha conseguido roubar-nos o foco. Tivemos mais de 20 mil espectadores, um número semelhante aos anos anteriores. Mas não deixou de ser um episódio desagradável, um erro infeliz da Câmara, como disse.

Quanto aos fundos — já o disse há pouco tempo ao Público, num artigo sobre os atrasos nos apoios a alguns festivais —, o Doclisboa já recebeu o valor atribuído pela Câmara Municipal para este ano, e esse valor aumentou 15%. Não era atualizado há bastante tempo. No ano passado, o presidente da Câmara chegou a dizer que o financiamento ao Tribeca tinha sido compensado com um aumento aos outros festivais, o que não era verdade, e nós desmentimos isso publicamente. Este ano, sim, houve finalmente uma atualização real.

E é um sinal positivo. Ainda assim, acho que o Doclisboa — e também outros festivais sérios da cidade — merecem um investimento maior. Porque o Doclisboa tem uma escala e um impacto indesmentíveis. Estamos a falar de centenas de convidados internacionais, não de 20 ou 30 pessoas. Isso significa ocupação hoteleira, movimento cultural e económico na cidade durante várias semanas. Mesmo que esse não seja o nosso foco principal, o festival tem um peso concreto na vida cultural e social de Lisboa.

Mas, mais do que números, o que nos importa é fazer o festival bem: tratar bem os filmes, os cineastas e o público. São esses os três vetores que nos guiam, e não a obsessão com quantidades. Ainda assim, é importante reconhecer o que o Doclisboa representa: é o único festival português com uma competição internacional de cinema, com estreias mundiais e internacionais, o que é um trabalho árduo e muito desafiante.

Por isso, sim, acho que o Doclisboa merece ser tratado com carinho e respeito pelos agentes políticos e culturais da cidade. O sinal deste ano foi bom, mas veremos o que acontece a seguir, até porque teremos eleições antes do festival. Quanto ao Tribeca, a Câmara tomou as suas decisões e decidiu continuar com o evento, apesar do que aconteceu no ano passado. Mas, sinceramente, o Tribeca tem muito pouco a ver com cinema, e ainda menos com o cinema que nós defendemos no Doclisboa.

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Confira toda a programação do Doclisboa '25 aqui

O Fio de Baba Azul-Fluorescente

Hugo Gomes, 02.09.25

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Gabriel Mascaro, de volta às distopias reais, aprendeu com "Divino Amor" a interligar-se com a actualidade brasileira sem recorrer ao descaramento do confronto directo ou ao panfletarismo que, por vezes, o cinema de guerrilha parece contrair contra si próprio. Em "O Último Azul", o idadismo soa a verdade em tempos em que os anciãos se tornam prisioneiros, tutorados ou transportados sem guia para a "Colónia": um “não-lugar” de onde, segundo a narrativa, ninguém regressa.

Mais do que comentário sobre uma sociedade moderna que falha em garantir segurança aos seus cidadãos mais duradouros, trata-se de gesto político: apanhar pedaços de história num país que ambiciona recontá-la. Em tempos de Covid-19, entre as várias teorias conspirativas que circulavam, uma acusava o vírus de ser um  agente politizado para “assassinar” velhotes, os guardiões de histórias que poucos queriam ouvir: lutas revolucionárias ou chaves-mestras contra fascismos, talvez. A conspiração é panela de pressão entregue ao “deus-dará”; mas também é certo que nasce sempre com carácter político, apontando a distopia como centro obsessivo.

Por um lado, "O Último Azul" parece materializar tais teorias na sua reconstrução, nessa crítica prolongada pela elipse que o filme sustenta. É a fuga da anciã (Denise Weinberg) que, após cumprir 70 anos, passa a ser perseguida por todas as forças governamentais, condenada ao destino imposto aos outros como lei da vida. Mas Tereza, o nome da personagem, despreza o "cata-velhos" (transporte de detenção, não mais que uma jaula ambulante) e nutre um desejo maior do mundo para compensar a vida esmagada pelo ditatorial sistema capitalista: trabalhar sem fim, sem recompensa, sem direito às mais puras fantasias (no seu caso, apenas voar de avião). Despedida por causa da idade, fica sob tutela da filha, ameaçada pela sombra da tal “Colónia”. Mas essa não é vida. Foge, paga um barqueiro que a leva rio Amazonas abaixo, diante de selva irreconhecível, mágica, quase fantástica. 

"O Último Azul" ganha sabor no seu realismo mágico, quase arrancado aos cânones literários (como Gabriel García Márquez), ainda hoje em força na literatura centro e sul-americana. Contudo, a viagem carece de conflito, de consequência; a atmosfera instala-se pesada sobre a estrutura. Mascaro não força a distopia, embeleza-a de alguma maneira (do trabalho de fotografia de Guillermo Garza, acompanhado pelos toques retros-musicais de Memo Guerra): alonga-a como movimento líquido, com um pé na água e outro no terreno da contemporaneidade. Porque este país não é para velhos … só que não! Tereza vai contrariar. Viver sem idade e com igual honra, olhos tingidos pela baba azul do caracol raro, conduzindo a tempos e vontades diluídos, e a sorte grande nas escamas de peixes beta. 

É um filme sensorial, talvez (desde o boi pintado no seu “Boi Neon” que o realizador ganhou o gosto). Codificado, porém. Mas envolvido no seu próprio retrato. Fiquemos assim.

(Hu)Manas: um conversa com Marianna Brennand Fortes sobre "Manas"

Hugo Gomes, 21.08.25

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Manas

Manas apoiam Manas”. Círculo vermelho, autocolante, slogan de um movimento que ambiciona viralizar: ao peito, ostentado com orgulho. Foi o que sobressaiu no primeiro contacto com Marianna Brennand Fortes, realizadora de “Manas”, projeto co-produtivo entre Brasil e Portugal, que expõe uma situação insustentável, uma prática “normalizada” do abuso familiar. Mas a partir do arranque da conversa, aquele símbolo vermelho, tornou-se distante, numa projecção, num fim, e depressa retornei aos beirais do imponente rio Tajapuru, na Ilha de Marajó (Estado do Pará), onde uma comunidade é erguida sobre segredos de família. No seu centro, meninas e pré-adolescentes sacrificadas às mãos de quem deveria proteger.

A nossa protagonista, Marcielle (Jamilli Corrêa) apercebe-se disso numa “caçada à paca”, o animal roedor cujo nome coincide com a gíria para o órgão sexual feminino. Dessa mesma caça, vê-se transformada em presa de um caçador inesperado: o próprio pai (Rômulo Braga, “Elon Não Acredita na Morte). Nesse instante crucial, depara-se com um dilema existencial: perpetuar uma “cultura” (palavra que a realizadora reprova veementemente) ou desafiar a sua ordem divina.

Manas” estreou esta semana nas salas portuguesas, depois da apresentação no Giornata degli Autori no Festival de Veneza e posteriormente no FEST de Espinho, onde foi laureado com o Prémio do Público. Um filme de denúncia que não oculta a sua natureza, mas se constrói em mergulhos entre camadas e entrelinhas, partindo do primeiro plano, onde a divisória entre tradições é visível, e prosseguindo por entre fantasmas, botos, balsas e boates.

A realizadora falou com o Cinematograficamente Falando… com punho erguido: “Manas apoiam Manas”, reafirma o slogan, a marca, a demanda. Quem a ouvirá? E quem a temerá?

Antes de avançar para esta conversa, gostaria de fazer uma observação. Foi difícil desligar-me do seu filme, até porque, há cerca de uma semana, surgiu no Brasil uma polémica em torno da intervenção do influencer Felca (Felipe Bressanim Pereira), que denunciou não só uma rede de pedofilia no Brasil como a constante ‘adultização’ das crianças e dos jovens na sociedade. O seu filme também lida com essa ‘adultização’, não só em relação à personagem principal, mas em todo o ambiente que a rodeia.

Por exemplo, numa das sequências no interior da balsa, um dos tripulantes pergunta a idade da Marciele, e ela responde que tem 13 anos, e mesmo com esta informação, o desejo sexual por parte dele mantém-se. Gostava de refletir sobre isso, sobre essa espécie de normalização — não sei se lhe podemos chamar “cultura” — dessa ‘adultização’ de crianças. O seu filme aborda precisamente esse fenómeno.

Evito usar a palavra “cultura”, porque acho que não podemos aceitar a ideia de uma “cultura de abuso” ou uma “cultura de estupro”, isso seria naturalizar algo que é inaceitável. Mas existe, sim, uma normalização.

O que percebi naquela região é exatamente isso: o abuso é tratado como algo normal. A personagem da Daniela, a mãe, representa bem essa lógica, há toda aquela cena no hospital, no confronto com a delegada, em que se percebe que ela própria foi abusada quando jovem, tentou denunciar e não conseguiu. Na minha pesquisa encontrei muitas mulheres que viveram essa mesma realidade de violência desde a infância, e que viram as suas mães, avós, tias, primas, vizinhas passarem pelo mesmo. É como se acreditassem que não existe outra forma de vida possível. Quando a mãe foi abusada, a filha cresce a achar que é “natural”, e falo sempre entre aspas [Marianna faz o gesto em ambas as mãos], porque isso é gravíssimo. Mas há uma normalização, assim como existe em toda a sociedade, basta ver os casos de feminicídio, ou o número de meninas no Brasil que engravidam aos 9, 10, 11 anos. É um absurdo!

Esse caso do Felca foi importante porque chamou a atenção para um problema que já estava ali, e não acontece apenas online: o digital é apenas um reflexo da realidade. “Manas mostra isso. O filme é um alerta. A história da Marciele, que vive na Ilha de Marajó, fala sobre essa exploração sexual e de abuso intrafamiliar, de forma muito específica àquela região, mas a verdade é que isso acontece no Brasil e no mundo inteiro. O abuso dentro de casa, cometido por pessoas que deveriam proteger e acolher, é muito mais comum do que se imagina.

Fiquei impressionada, depois da estreia em Veneza, ao perceber isso nas conversas em vários países. Muitas pessoas vinham falar comigo: “Também sou uma mana” ou “conheço alguém que passou por isso”. Em França, por exemplo, o caso da Gisèle Pelicot mostrou estatísticas muito semelhantes às do Brasil. Tivemos instituições, como a Amnistia Internacional, que se associaram ao filme e passaram a usá-lo como ferramenta de transformação social, organizando sessões seguidas de debates. As estatísticas são assustadoramente parecidas: no Brasil, cerca de 80% da violência sexual contra mulheres acontece dentro de casa, e em 60% dos casos o agressor é o pai ou um parente próximo. Aquela ideia com que crescemos, de que o perigo está na rua, num desconhecido violento, não corresponde à realidade. O maior risco está, muitas vezes, dentro de casa.

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Mariana Brennand Fortes

Voltando um pouco atrás: percebi que este projeto começou a ser pensado como um documentário. 

Sim.

Mas como é que chegou à decisão de o transformar em ficção?

Foi a partir de uma impossibilidade de contar essa história de forma documental. Quando soube do que acontecia no Marajó, o meu primeiro impulso, como documentarista e como mulher, foi fazer um documentário de denúncia. Pensei: “preciso falar sobre isto”. Não era possível que aquilo estivesse a acontecer e ninguém estivesse a fazer nada.

Mas, logo no início da pesquisa, percebi que, eticamente, seria impossível. Para um documentário, teria de colocar aquelas meninas e mulheres à frente da câmara e pedir-lhes que recontassem as violências sofridas. Só que reviver um trauma dessa forma é extremamente doloroso. É quase uma nova violência.

Ainda mais com a câmara ligada.

Exatamente. E mesmo que não ligasse a câmara, só o ato de perguntar já seria violento. Quando se revive um trauma, volta-se a sentir aquela dor. Não queria, de forma alguma, provocar isso. Foi assim que a ficção se apresentou: como a única maneira possível de contar essa história sem gerar mais violência, e também como uma forma de construir uma narrativa capaz de aproximar o espectador. Porque esta realidade é tão dura e dolorosa que, normalmente, não queremos olhar para ela. Mas só transformamos algo quando o vemos.

O cinema tem essa capacidade de gerar empatia, de nos transportar para dentro do coração daquela menina. O meu desejo, desde o início, não era mostrar a violência de forma gráfica, mas sim fazer com que o espectador a sentisse.

E essa passagem para a ficção manteve também elementos documentais. Todo aquele ambiente, principalmente a balsa, resulta da sua investigação inicial?

Sim, completamente. Acho que a força de “Manas” também está nessa sensação documental. Era um desejo nosso: que o espectador acreditasse na verdade, nas personagens, na vida que se desenrola no ecrã. Muitos me disseram depois de verem o filme: “tive a sensação de estar a assistir a um documentário, de tão verdadeiro que foi”. Acho que essa abordagem documental esteve presente desde o início: na ética e no respeito com que abordámos o tema, na pesquisa obsessiva para compreender as camadas da violência e as consequências do trauma, e também na forma de construir personagens complexos.

Na realização, houve um desafio: não conseguimos filmar no Marajó, por razões logísticas e de segurança. Muitas comunidades não têm sequer eletricidade, como se vê no filme. Passámos um ano à procura de um lugar que tivesse a mesma geografia, um rio parecido com o Tajapuru, muito largo, muito caudaloso, que transmite uma enorme sensação de fragilidade. Lembro-me da imagem de uma criança, num barquinho pequeno, a aproximar-se de uma balsa enorme. É uma experiência impressionante, impactante e quis trazer essa sensação para o filme.

A balsa é equivalente a um ferryboat, não é? Um transporte comercial.

Exatamente. É um barco que acopla aquela plataforma onde estão os caminhões e as mercadorias.

Ou seja, é quase uma plataforma por onde grande parte do Brasil atravessa o rio.

Sim, especialmente no trajeto de Manaus para o Pará. Transporta cargas de ida e volta. Quando essas balsas passam pelo rio Tajapuru, sobretudo na região do Estreito de Breves, onde o fluxo é muito intenso, algumas meninas, mulheres e crianças atracam nelas para ajudar na renda familiar, e acabam exploradas.

Gostava que me falasse um pouco sobre o elenco, em especial a escolha da protagonista, Jamilli Corrêa. Foi difícil encontrar quem seria a “face” das manas? Como chegou até ela?

Foi uma escolha muito feliz! A Jamilli é uma força da natureza. Ela é o filme. É a luz de “Manas”, está em todas as cenas, é a protagonista absoluta.

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Mariana Brennand Fortes na rodagem de "Manas"

É verdade, a câmara acompanha-a o tempo todo.

Exacto. Vemos o que ela vê, sentimos o que ela sente. Desde a fase de escrita já sabíamos que seria um grande desafio encontrar essa menina. A personagem tem uma densidade dramática enorme, e queria muito trabalhar com alguém de 13 anos, não uma atriz mais velha a fingir ser mais nova. Isso tornava tudo ainda mais desafiador.

Outro desejo meu era que fosse uma menina da região do Pará, para trazer verdade à personagem, e que não fosse atriz, ou seja, havia muitos critérios difíceis de cumprir. Fizemos uma pesquisa de elenco que durou entre oito meses e um ano, em Belém e nas ilhas ao redor. Foi um processo lindo, de conversas e descobertas de meninas muito especiais e talentosas. No fim, encontramos a Jamilli, que nos arrebatou.

Queria também falar de um ator que aprecio e acompanho o seu trabalho: Rômulo Braga. Ele costuma interpretar personagens afáveis sempre numa postura viril, lembro-me, por exemplo, do filme “Levante”, em que faz um pai que tem uma relação de grande empatia com a filha, adolescente que engravidou. Aqui, no entanto, vemos o oposto: um monstro com pele de cordeiro. Foi um desafio transformar esse ator, tão associado a papéis digamos carismáticos, num vilão autêntico?

Foi um desafio enorme. As personagens do pai e da mãe são muito difíceis para qualquer ator, porque exigem interpretar seres humanos que carregam camadas de violência e contradição. O Rômulo foi a nossa primeira opção, sugerida pela diretora de elenco, Ana Luísa Paz de Almeida. Pretendia um ator que tivesse força, mas também delicadeza. Que pudesse ser doce, amoroso e, ao mesmo tempo, violento. O Rômulo tem essa capacidade de transitar entre esses extremos com muita precisão. É um homem “acima de qualquer suspeita”: alguém que, ao olhar, ninguém diria “esse é o abusador”. Isso era fundamental para mim na construção do Marcílio.

Não queria que fosse o clichê do homem violento, porque esse nós reconhecemos de imediato e nos afastamos. O verdadeiro perigo do abuso está quando vem de alguém próximo, alguém em quem confiamos e amamos, que usa essa proximidade para causar dor. Também não queria justificativas fáceis — “ah, ele bebe”, ou qualquer desculpa desse género. Não existe justificativa para um pai abusar da filha.

Voltando à questão da normalização: o pai acredita que o que faz com a filha não é errado. Quando é confrontado, argumenta que é um “homem de Deus”.

Sim, ele acredita nisso, que tem direito sobre a filha. A delegada diz-lhe: “ela é sua filha, mas não é sua posse”. Numa sociedade machista, patriarcal e misógina, muitos homens sentem que têm esse direito.

Há até um ponto curioso: na Bíblia, existe a história de Abraão que, para repovoar, tem relações incestuosas com as próprias filhas. Até que ponto isso também se liga à religião?

Curiosamente, o sermão de Abraão que aparece no filme surgiu da pesquisa. Durante a preparação, levámos os atores a um culto numa igreja evangélica local e, nesse dia, o sermão era justamente sobre Abraão e a defesa da família a todo o custo. A mensagem era: “se tem algum problema em casa, aceite”.

Tenho amigas que frequentaram igrejas evangélicas extremistas, sofreram violência doméstica e ouviram dos próprios pastores exatamente essa frase: “aguente”. Mesmo machucadas, ensanguentadas, pedindo ajuda, a resposta era “aguente”. Nessas regiões, onde o Estado não chega, a igreja tem um papel estruturante, dá acolhimento, fornece comida (às vezes é a única refeição que a criança faz no domingo). Mas esse poder também é usado para perpetuar relações de poder e reforçar o sistema patriarcal.

E hoje vemos a igreja cada vez mais próxima do próprio Estado.

Sim. O filme também alerta para isso. A delegada representa o Estado, mas também a sua ineficiência. Ao mesmo tempo, traz o elemento humano que encontrei na pesquisa: mulheres e homens, assistentes sociais, conselheiros tutelares que arriscam as próprias vidas.

Muitas vezes tiram dinheiro do bolso para comprar remédio para uma criança ou combustível para uma lancha, porque a delegacia não tem recursos. Imagine receber uma denúncia de uma menina de 10 anos abusada por um homem de 40, a 10 km rio adentro e o delegado não ter meios para chegar até lá.

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A personagem da Dira Paes foi inspirada em duas figuras reais: a irmã Maria Enriqueta Cavalcanti e o delegado Rodrigo Amorim. A batida na balsa que aparece no filme aconteceu de verdade, o delegado Rodrigo assumiu como missão combater a exploração sexual de crianças e mulheres no rio Tajapuru. Já a irmã Enriqueta, uma grande ativista, defende meninas e mulheres em toda a Amazónia, muitas vezes levando-as para a sua própria casa. Vive sob ameaça de morte e está no programa de proteção a vítimas no Brasil. É um problema estrutural muito profundo.

E ainda há quem insista em chamar a isso uma “cultura entranhada”.

Pois é. A própria irmã Enriqueta nos dizia: “não podemos admitir que isso seja chamado de cultura”. Não devemos nos naturalizar dessa forma.

É interessante ouvir isso. Em entrevistas com outros realizadores, quando falam de violência, mencionam muito “cultura do estupro”. É curioso o que diz: que não se deve perpetuar essa palavra “cultura”.

Exato. Assim como me perguntam por que não mostrar a violência de forma explícita no filme. Porque, para mim, essa violência não deveria existir. Se a filmo, permito que exista no cinema. Recusei isso, como mulher, como realizadora, foi uma escolha política.

Durante séculos, os corpos femininos foram representados através de um olhar masculino, erotizado, quase justificando o abuso. Imagine um homem filmando uma cena de estupro: provavelmente mostraria o seio da menina, ou parte do corpo, alimentando o olhar de desejo do abusador. Mas não existe justificativa.

Por isso, em “Manas, era fundamental mostrar a Marciele como o que ela é: uma criança de 13 anos. Ao longo do filme, ela nunca é filmada de forma erotizada. Não há desejo ali, há apenas violência. Essa decisão ética também serviu para proteger a própria atriz, de 13 anos, com quem estávamos a trabalhar.

Até legalmente seria um problema…

Sim, mas mais do que isso: era uma questão de proteção. É um filme feminino e feminista.

Uma das coisas que mais me chamou a atenção no seu filme (e talvez você possa confirmar) é que, sendo um filme feminino e feminista, praticamente todas as personagens masculinas não valem “um chavo”, como dizemos aqui no nosso português. Há uma cena muito subtil: a protagonista está a desenhar e faz o desenho de um boto. E o boto, na tradição popular, é um ser mítico, um homem sedutor que encanta as meninas e as leva consigo.

O filme tem muitas entrelinhas, é daqueles que se pode ver várias vezes e, a cada nova visualização, descobrir algo diferente. Nada está ali por acaso, foi tudo muito pensado. O desenho do boto é muito significativo, porque a sua lenda funciona, naquela região, como uma forma de encobrir a violência contra meninas e mulheres, quase sempre abusadas pelos próprios familiares. Quando surge uma gravidez, a explicação é: “foi o boto”.

Segundo a lenda, o boto sai do rio à noite, transforma-se num homem bonito, vestido de branco e com chapéu, seduz a mulher e dela nasce um filho. Nunca é descrito como uma relação violenta, mas sim como um encantamento. Essa narrativa serve para justificar, de maneira simbólica, abusos reais.

No filme, o desenho é uma pista, uma forma da menina dizer, inconscientemente, que está a ser abusada. As crianças, através do desenho, revelam muito do que vivem. Esse momento é um testamento silencioso, e, para mim, extremamente simbólico.

Há uma (outra) cena muito interessante no seu filme, é quando elas se juntam para ver uma novela da Globo naquele café / bar / mercearia. Arrisco-me a dizer que era “Avenida Brasil”, seguindo a minha limitada enciclopédia de telenovelas brasileiras … [risos]

É, sim, “Avenida Brasil”. [Risos]

Tinha a sensação que era. Elas ficam todas excitadas ao ver a cena do beijo com o Cauã Reymond, que afinal não acontece por motivos técnicos. A pergunta pode ser um pouco abstrata, mas acredito que um dos primeiros contactos com a sexualidade, ou a representação de uma, na sociedade ultra-sexualizada como a brasileira é através das novelas. Ou seja, as novelas já funcionaram como uma porta de entrada para esse universo, inclusive a da “adultização”.

Concordo. Mas, especificamente nessa cena, o que me interessava era mostrar um momento de inocência. Pelo diálogo e pelas reações, percebemos que elas ainda são crianças, animadas com aquele suspense romântico - “vai beijar, não vai beijar?”- é uma excitação muito infantil.

Depois, há outro momento importante: quando a Marciele vai ao bar com a amiga, logo após ter sido abusada pela primeira vez. A amiga leva-a para tentar ajudá-la a lidar com aquilo, essa é uma cena que sempre me emocionou, tanto a escrever como a montar, porque marca a transição dela. É o único momento no filme em que a vemos brincar e, logo em seguida, dar um passo para a adolescência. Há ali uma troca de olhares com um rapaz, “um jogo de paquera”, e ela vive, por um instante, o que seria uma adolescência normal de uma menina de 13 ou 14 anos.

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Curiosamente, a minha interpretação dessa cena no bar foi a de que ela estava quase a dar o passo para aceitação da situação que lhe tinha acontecido, mas, depois, tem aquela recaída: vomita, vai à casa de banho e vê uma mulher enfrentar o seu agressor. É nesse momento que percebe que não vai aceitar aquilo, mas sim rejeitá-lo.

Exatamente! Esse é um ponto fundamental: é a primeira vez que a Marciele vê uma mulher dizer “NÃO” a um homem. Aquela mulher que sai do banheiro com um canivete no pescoço mostra-lhe, pela primeira vez, uma resistência feminina. É um momento decisivo, ali algo começa a mudar dentro dela.

Neste momento, “Manas” está em digressão por Portugal, mas já estreou no ano passado. Está a preparar algo novo? Vai manter-se na ficção?

Gostei muito de fazer ficção, mas acredito que as histórias é que nos escolhem. Foi assim com “Manas” e com os meus outros projetos: cada história pede a sua forma de ser contada. Quero continuar a fazer ficção, fiquei fascinada em dirigir atores, mergulhar no processo de escrita e de construção narrativa. Mas, neste momento, ainda estou muito envolvida no lançamento de “Manas”. Estamos a iniciar no Brasil o nosso “circuito de impacto”: levar o filme às comunidades onde o cinema comercial não chega. Esta semana, enquanto estamos aqui em Portugal, o filme está a ser exibido no Marajó, junto com a irmã Enriqueta, acompanhado de debates e equipas de acolhimento para conversar com as mulheres.

Fiz este filme para que fosse também uma ferramenta de transformação e de consciencialização. Agora, no Brasil, estamos a circular por comunidades, a pautar mudanças nas políticas públicas, no judiciário e na sociedade civil.

Paralelamente, tenho lido bastante. Gostaria muito de adaptar um livro brasileiro, de preferência escrito por uma mulher. Continuo interessada na temática da violência contra a mulher, mas quero sentir qual história me atravessa e como ela pede para ser contada.

Então vai continuar a trabalhar a questão da violência?

Sim. Desde que comecei esta pesquisa, foi uma mudança de vida. Abriu os meus olhos, transformou-me profundamente.

Já que falámos da Gisèle Pelicot - um caso terrível de um homem acima de qualquer suspeita, companheiro de vida, com filhos e netos, que abusava de meninas, estuprava e ainda expunha a sua imagem - há algo que ela disse e que considero fundamental: a vergonha tem de mudar de lado. A vergonha não é nossa!

Ela foi muito corajosa ao sair a público e pedir que o julgamento acontecesse de forma aberta, justamente para alertar e inspirar outras mulheres a denunciarem os seus abusadores. Para mim, essa fala dela é crucial. A sociedade colou a culpa na mulher. Além de violentada, ela carrega a vergonha. Mas não: a vergonha é do abusador, do violentador e nunca da vítima.

Curioso, porque os seus filmes anteriores nada tinham a ver com isso. Aliás, fez um documentário sobre o seu tio-avô [“Francisco Brennand”, 2012].

Exato. Um documentário sobre o meu tio-avô, um artista plástico, onde me interessava sobretudo o processo criativo. Os outros filmes foram musicais, documentários musicais. Mas, mesmo neles, havia esse olhar de resgate: lançar luz sobre temas, histórias ou comunidades pouco reconhecidas.

O último documentário que produzi foi “Danado de Bom", sobre João Silva, o maior parceiro de Luiz Gonzaga. Depois da morte do Gonzaga [1989], ele caiu no ostracismo. Era o homem que produziu o primeiro milhão de cópias do Gonzaga, responsável por grandes sucessos, e ninguém sabia que ele existia. Fizemos o filme para resgatar e honrar a trajetória dele, que foi tão importante para a música brasileira.

“O Diabo na Rua no Meio do Redemunho”: Uma incursão transversal e hipnótica pelas veredas do clássico de Guimarães Rosa

Hugo Gomes, 01.08.25

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Tudo é pacto.

Publicado em 1956, o livro “Grande Sertão: Veredas” faz parte hoje do cânone literário nacional. O romance memorialístico que traz o fazendeiro Riobaldo ruminando acerca dos eventos ocorridos nos tempos em que era jagunço – incluindo, entre tantos, os conflitos internos gerados por sua relação com Diadorim – é um verdadeiro marco cultural brasileiro que, não à toa, além das inúmeras traduções mundo afora, foi transposta para as mais diversas linguagens ao longo das décadas. Entre adaptações cinematográficas, destacam-se a primeira realizada em 1965 e a mais recente, um misto de distopia e favela movie lançada neste ano sob a batuta de Guel Arraes; na TV, a adaptação de maior prestígio segue sendo a icônica minissérie estrelada por Tony Ramos e Bruna Lombardi, que foi ao ar em 1985; e no teatro, claro, torna-se impossível não fazer referência à encenação sensorial dirigida por Bia Lessa que, agora, ganha uma versão para exibição nas salas de cinema.

Mas engana-se quem cai na armadilha de pensar que “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” é uma mera filmagem de uma peça teatral para se exibir em tela grande. O que Bia Lessa opera, na verdade, é uma transposição que utiliza, de maneira bastante criativa, as múltiplas possibilidades das linguagens que se colocam à sua disposição. O cenário minimalista, um galpão de fundo negro que consegue nos dar a paradoxal sensação de vastidão do Sertão, é habilidosamente ressignificado pelas escolhas formais de Bia e sua equipe. Auxiliada pela fotografia de José Roberto Eliezer e pela coreografia de Amália Lima, a diretora fornece ao espectador uma gama variada de ângulos – do plano aéreo ao close-up – e de movimentos corporais que impedem aquela desagradável sensação de se assistir a um teatro filmado. Nesse sentido, é incrível também a colaboração de Toni Vanzolini na direção de arte, de Fernando Mello da Costa na confecção dos adereços e do espetacular trabalho do grupo musical experimental O Grivo na composição da paisagem sonora, elementos esses que se mostram fundamentais na construção de uma imersão praticamente inescapável.

E se as soluções estéticas encontradas para construir uma intensa imersão naquele mundo roseano funcionam beirando às margens da perfeição – observe, por exemplo, a sábia decisão de enaltecer o esmero linguístico do autor através do uso de legendas –, o elenco não fica atrás e merece também ser enaltecido. É evidente a unidade, típica de um grupo teatral em total sintonia e consciente da densidade do texto que perpassa boca e alma, numa dinâmica cênica em que cada ator pode experimentar a pele de personagens distintos e até dos animais que habitam a região onde se passa a ação, formando uma ambientação bastante particular. Contudo, ninguém chega tão longe nesse quesito quanto Caio Blat naquele que, segundo o próprio, é o papel de sua vida. O ator, que já havia encarnado o angustiado Riobaldo no longa de Guel Arraes, parece tão íntimo do personagem que, nos raros momentos em que, no jogo de variações proposto por Bia, ele o “entrega” a uma colega, fica nítido o quanto sua presença e seu domínio daquele universo são imprescindíveis.

Estabelecendo um pacto entre literatura, teatro e cinema, Bia Lessa nos recompensa criando uma das obras mais inventivas a atravessar nossas artes cênicas nos últimos anos. Durante essa travessia, olha para todas as margens possíveis e honra o complexo trabalho de João Guimarães Rosa. E se a memória é imprecisa, como vez ou outra salienta Riobaldo no decorrer de sua contação, ao menos uma coisa podemos dizer que é certa: “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” é uma experiência difícil de esquecer. Deus esteja!

 

*Texto da autoria de Alan Ferreira, professor de Literatura, devoto de São Machado de Assis, que fez da sala escura um templo em louvor ao verdadeiro deus do Tempo: o Cinema! Colaborador do site Papo de Cinemateca.

Vem aí a 4ª edição do Cinalfama, o festival onde "cabem as várias camadas de uma cidade em movimento"

Hugo Gomes, 18.07.25

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"Cura Sana" (Lucía G. Romero, 2024): exibido dia 25 de Julho na Escadinha de São Miguel

Mais uma voltinha por Alfama com cinema revestido? Sim! Façam-se acompanhar da vossa disposição cinéfila para o 4º Cinalfama, entre os dias 21 e 25 de Julho, com sessões a decorrer em lugares-marco da cidade como a Escadinha de São Miguel ou o Museu do Fado. As exibições são gratuitas, redefinindo laços entre a velha Lisboa e a moderna, hoje imersa numa constante perda identitária, mas que, ainda assim, resiste: aos tempos, às novas oralidades, e à transfiguração do seu “calão”. Aliás, é justamente dessa base que parte o filme de João Gomes, “O Calão de Alfama”, a ser exibido numa destas noites lisboetas. 

Realizador e também director artístico do Cinalfama, Gomes aceitou, mais uma vez, o convite do Cinematograficamente Falando … para desvendar algumas novidades, premissas e promessas deste festival (toda a programação poderá ser consultada aqui.)

Este ano o Cinalfama volta a ser gratuito e a ocupar espaços públicos de Alfama. Num contexto de crescente turistificação e privatização do espaço urbano, como é que o festival evita transformar-se num mero “postal ilustrado” da cidade para consumo externo?

Em 2024 apresentámos, por exemplo, os primeiros fragmentos da nossa recolha de oralidades. Nessa sessão havia turistas e expatriados na audiência. Esses fragmentos são bem reais e to the point, sem miserabilismos nem maquilhagens tocamos em aspectos sensíveis e complexos da realidade de Alfama. Assim, fazemos a nossa parte de devolver à cidade, e concretamente ao bairro, pedaços das suas pessoas e das suas narrativas e memórias. O postal é vivo e nele cabem as várias camadas de uma cidade em movimento.

O Minuto Lumière propõe desacelerar num tempo de urgência digital. Não será este convite à contemplação uma provocação quase utópica, sobretudo quando dirigido a jovens que crescem já num ecossistema de estímulos incessantes?

Os resultados mostram claramente que não. Nesta edição, apresentaremos dezenas de Minutos Lumière, onde os objetivos de tornar o ordinário em extraordinário e em ver a grandeza em pequenas coisas foram plenamente atingidos. Não é utópico, é claramente possível. Os alunos mostraram-se inclusive motivados a participarem novamente para o ano. Sentiram-se agentes e ciosos do que de si mostraram. Querem para o ano experimentar a justaposição de planos, por exemplo. Para a frente é que é caminho.

A aposta contínua em categorias como “Micro & No Budget Film” desafia a lógica de produção dominante. Em termos práticos, como é que o festival garante que esses filmes não são apenas “resíduos criativos”, mas obras com espaço real para diálogo e crítica?

Há que continuar na procura das pepitas. Está no objeto social da nossa associação: “ampliar novas vozes”. Se restringirmos essa demanda a filmes com produtoras ou distribuidoras por trás falharíamos nessa missão. Há muito pouco espaço nos festivais para filmes “desprotegidos”. Os filmes que vamos mostrar continuam a mostrar que do menos se pode fazer mais. A história do cinema está cheia desses casos que se fossem encarados como resíduos nos teriam deixados bem mais pobres.

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"Sensible Soccers: Manoel" (David Matias e Vasco Gil, 2024): exibido no dia 24 no Museu do Fado

No documentário “Sensible Soccers: Manoel”, há um diálogo entre música contemporânea e cinema de arquivo. Considera que esta mistura entre linguagens e temporalidades é tendência, nostalgia ou resistência desta aceleração social e a suas ‘vistosas’ mudanças?

Não consigo discernir trendas com essa certeza. Não é essa a natureza e filosofia do festival e não temos a pretensão de que a nossa seleção seja um mosaico de contemporaneidade.

Ao recolher histórias orais de Alfama, o Cinalfama coloca os moradores como protagonistas. Mas até que ponto é possível criar um arquivo comunitário sem incorrer numa curadoria desigual ou romantizada das vivências? 

A resposta está na pergunta: Alfama vive, de facto, algo perdida entre uma nostalgia comunitária, um presente desapossado e um futuro incerto. Mas abordamos estas perplexidades olhando para o mundo e para o bairro. Essa dialética local e cosmopolita é a nossa singularidade. “É preciso sair do bairro para ver o bairro” está algures no nosso site.

A presença do Brasil como país convidado em 2025 projeta o festival num eixo transatlântico. No atual clima político e cultural dos dois países, o que significa esta aproximação? É apenas simbólica ou pode traduzir-se em alianças concretas de produção e resistência?

A proximidade luso-brasileira tem resistido a conjunturas diversas. Dialogar com o cinema brasileiro é dialogar com a maior comunidade emigrante em Portugal e essa relação não é simbólica, é concreta.

O que pode dizer sobre os convidados desta edição?

À semelhança das edições anteriores, o Cinalfama Lisbon Film Festival procura aproximar os realizadores e as equipas artísticas e, sempre que possível, trazê-los a este território improvável onde o melhor do cinema independente está acessível a quem visita, mas também a quem passa e fica.

Nesta quarta edição que metas pretende conquistar para servir de arranque para a quinta edição?

O crescimento é sempre uma premissa, mas trabalhamos para que aconteça sempre dentro da nossa filosofia que é de intimidade. Assim, ano após ano, o Cinalfama Lisbon Film Festival procura sempre solidificar a programação, as relações com parceiros, como o Museu do Fado, e, claro, a construção de um público que permaneça e regresse.

Os mortos também falam na "Praia Formosa": uma conversa com Julia de Simone sobre a memória de uma cidade

Hugo Gomes, 23.06.25

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A cidade como ferida aberta, memórias em ruínas e um palco para espectros prontamente a serem apagados em nome do Progresso, amnésia desculpa no cognome do futuro. Em “Praia Formosa”, Julia de Simone avança por esse Rio de Janeiro enterrado sob o concreto da modernidade, escava-o sem recursos a arqueologia, e desses achados extrai as histórias negadas pelo Poder estabelecido ou negligenciadas com a ordem estampada na bandeira. Não há aqui qualquer saudade colonial e tampouco reconstituição apaziguadora: existe sim, um confronto.

Depois de se dedicar a obras de índole documental, Julia encerra a sua trilogia portuária com “Praia Formosa” (apresentado no Festival de Roterdão de 2024, e estreado nas salas portuguesas recentemente), um delírio temporal e performativo onde acompanhamos Muanza,  mulher escravizada no século XIX, num presente onde a sua história se assume resistência, reencontro e reimaginação. 

Em conversa com o Cinematograficamente Falando…, a realizadora partilha o que move esta procura, o papel da cidade como corpo político e o desafio de encenar o passado sem lhe roubar a complexidade. Tudo o que “Praia Formosa” carrega: tempo, memória e forma.

Com “Praia Formosa”, termina a sua trilogia sobre a zona portuária do Rio [“O Porto”, “Rapacidade”], um território de disputas e fantasmas. Considera que filmar esse espaço é também um gesto de exorcismo ou de reencantamento da cidade?

Para dizer a verdade, considero que é uma busca pelo reencantamento da cidade. O filme faz todo um exercício de tentar encontrar um outro modo de ver esses espaços — esses espaços e esses tempos — encarando-os como uma sobreposição de temporalidades, de facto. É uma forma de mudar um pouco a perspectiva sobre como podemos entender, perceber e se relacionar com a região portuária, com o Rio de Janeiro e com a história da cidade como um todo.

Sobre a protagonista, Muanza (Lucília Raimundo, “Um Animal Amarelo”), deslocada no tempo, parece ser uma espécie de corpo-arquivo. Foi sua intenção que ela personificasse esse Brasil que caminha, mas sem nunca sarar as suas cicatrizes históricas?

Um aglomerar, sim. Ela traz uma certa presentificação dessa história, mas não só do ponto de vista simbólico. Existe uma concretude muito grande na personagem, que se conecta com a história das pessoas que ainda hoje vivem naquele lugar, na forma como se relacionam com esses espaços. A busca foi justamente essa: tentar trazer, não só na personagem, mas na construção do filme como um todo, todos esses elementos que, de alguma maneira, condensam tempos e espaços. Então, nesse sentido, sim, ela presentifica uma historicidade, mas também tem uma presença muito corporal, encarnada nesse presente, nessa história da Muanza.

O seu filme faz eco com outros conterrâneos, assim de repente recorda-me “Todos os Mortos”, de Marco Dutra e Caetano Gotardo, ao confrontar uma ideia muito precisa: o progresso urbano como agente de apagamento. Como se filma uma cidade cuja modernização parece construída sobre a negação das suas próprias fundações?

Sim. Acho que há, de facto, uma tentativa constante de apagamento, mas esse apagamento nunca se dá por completo. Felizmente, ele não é totalmente exitoso. O filme tenta justamente encontrar formas de olhar para aquilo que resiste a esse apagamento. Não apenas os vestígios materiais da cidade (a concretude dos objetos arqueológicos, por exemplo), mas também a vida, a presença das pessoas que ainda hoje habitam esses espaços.

Durante o processo de escrita e pesquisa do filme, conhecemos a mãe Celina, uma mãe de Santo da região portuária, que participou junto da equipa de arqueologia na identificação de objectos. A experiência dela, a presença dela, é muito viva. Então, não estamos a falar de algo apagado, e sim de algo que resiste … e resiste de muitas formas, sobretudo na experiência das pessoas.

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A sua obra parte de investigações históricas, mas chega à ficção como um ato político e poético. Como se encontra o equilíbrio entre o rigor da memória e a liberdade da fabulação?

Sim. Penso que o filme aposta muito nessa coexistência, não só de elementos históricos e ficcionais, mas também numa coexistência estética. Como os elementos que encontramos são muito heterogéneos, as escolhas formais acabam por acompanhar essa diversidade Por exemplo, no início do filme, a sequência da casa — mais ligada à presença da corte, através da personagem da Catarina — tem um modo de encenação mais marcado, mais desenhado. De certa forma, isso dialoga com a teatralização da própria corte, com essa encenação de um poder falido que, ainda assim, insiste em manter uma aparência. Por outro lado, a Muanza tem uma relação mais física, mais encarnada com os espaços. A sua atuação é mais performativa e isso conduz o filme a outro modo de ver e sentir.

A presença da mãe Celina, já na parte final, traz uma dimensão mais documental, que nos direciona para uma experiência de realidade, da experiência vivida daquela personagem real. E há também a cena na igreja, com os três depoimentos que a Muanza testemunha. Aqueles são documentos históricos reais, encontrados durante a nossa pesquisa. São raríssimos materiais de arquivo onde pessoas escravizadas falam na primeira pessoa. Mesmo dentro das limitações e violências dos próprios arquivos, esses testemunhos carregam uma força subjetiva muito potente. Então, como a pesquisa envolveu fontes de naturezas muito diversas, era natural que a abordagem estética também fosse múltipla. Faz parte da tentativa de olhar para esses espaços englobando as tensões, os paradoxos, mas reconhecendo que todas essas forças coexistem e atuam no território. As escolhas estéticas seguem justamente esse caminho.

A presença espectral de Catarina, mulher branca portuguesa (Maria D’Aires), coabita com Muanza num espaço que já foi de dor e opressão. Vês nessa convivência uma possibilidade de diálogo ou um confronto simbólico entre colonizador e colonizado?

Acho que sim. Tanto ela quanto a casa são vestígios dessa colonização nos dias de hoje. A presença da Catarina, que se transforma ao longo do filme, está muito ligada à tentativa de pensar de que forma o colonialismo se atualiza na contemporaneidade. Quando a Catarina reaparece mais à frente no filme, naquele anúncio publicitário, é justamente esse exercício de refletir sobre como esse poder colonial se mantém. Ele reaparece de outras formas, mas continua ali, presente, actuante, ditando normas e sustentando estruturas que vêm desde os tempos coloniais.

Mesmo com resistências e transformações, a força de quem ocupa esse lugar de poder e opressão ainda é muito evidente. Isso aparece, por exemplo, no tecido urbano, no próprio traçado da cidade, a mostrar como essa força se perpetua, ainda que disfarçada.

Usando as suas notas de intenção, o qual achei interessante, foi a incorporação no filme o “tempo espiralar, inspirado na cosmogonia Bantu”, subvertendo a lógica narrativa ocidental linear. Quão decisiva foi essa estrutura para transmitir uma temporalidade africana através da linguagem cinematográfica?

Foi muito decisiva! No início da pesquisa, por volta de 2012, quando comecei a filmar as obras na região portuária, as escavações no Cais do Valongo evidenciavam, de forma muito concreta, as camadas temporais. O Cais’, de 1843, foi soterrado poucos anos depois para dar lugar ao Cais da Imperatriz, que, por sua vez, também foi enterrado para o deslocamento do porto. Estávamos, naquele momento, numa quarta camada visível, uma estratificação material do tempo.

Essa sobreposição de camadas temporais, tão palpável no território, já nos colocava diante de uma visão não-linear do tempo. A partir daí, ao pesquisarmos sobre os povos escravizados que chegaram pelo Cais do Valongo (em especial os povos Bantu, os primeiros a chegar ao Brasil), fomos aprofundando o entendimento sobre a sua cosmogonia, em especial a noção do tempo espiralar. Essa concepção bantu de tempo foi uma descoberta que se alinhou perfeitamente com a nossa percepção das camadas históricas do espaço. O tempo espiralar é uma ideia complexa, difícil de resumir, mas essencialmente vê o tempo como algo construído a partir da presença. O presente evoca o passado e, ao fazê-lo, transforma o futuro (todas essas temporalidades estão em constante contato e recriação).

Essa visão rompe com a lógica eurocêntrica e branca de um tempo linear e progressivo, em que cada momento substitui o anterior, sempre apontando para um futuro idealizado. Pensar o tempo como algo em transformação contínua — inclusive o que entendemos como passado — muda radicalmente a forma como percebemos o mundo. O exercício do filme foi justamente esse: tentar traduzir essa percepção espiralar para a sua própria construção estética. Subverter a lógica narrativa linear, que está diretamente associada à noção ocidental de progresso, foi fundamental. Essa ideia de que o futuro é sempre superior ao passado é algo que o filme questiona, propondo outras formas de ver e sentir o tempo.

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Isso é muito curioso. Agora faço esta pergunta: apesar de ser uma coprodução luso-brasileira, “Praia Formosa” é, claramente, um filme mais brasileiro do que português, e nos últimos 10 ou 15 anos, tenho sentido que o cinema brasileiro tem voltado o olhar para o seu próprio passado, algo que, durante décadas, não acontecia. Havia uma aposta no futuro com desconstrução do presente. Esta viragem para o passado acontece porque o futuro se revelou uma desilusão e o cinema, de alguma forma, já o percebeu?

Talvez. Talvez estejamos justamente a precisar de reencontrar formas de contar esse passado. O futuro ainda é incerto, mas o passado — ou melhor, a maneira como o olhamos — já nos mostra que precisa ser ressignificado. O cinema brasileiro, neste momento, parece estar a repensar quem fomos, de onde viemos, tentando encontrar outras formas de narrar uma história que, durante muito tempo, foi contada de forma única, oficial até.

Igualmente o “Praia Formosa” parece inserir-se numa corrente recente do cinema brasileiro que encara o passado como um verdadeiro campo arqueológico. Vês o seu trabalho como uma continuação dessa tendência ou como uma ruptura em relação ao que poderíamos chamar de “documentário museológico”?

Não diria que é um museu, pelo menos não no sentido mais convencional [risos]. A ideia de museu remete-me a algo mais estático, rígido, fechado em vitrines. “Praia Formosa” é muito mais sobre algo vivo: uma memória em permanente construção, uma identidade em processo. Acho que essa ideia de memória como meta, e não como ponto de partida, é central. Não se trata de um regresso a um passado dado ou fixo. É uma construção contínua, a cada instante, com as vozes que entram, com as presenças que partilham o percurso.

Já deve ter ouvido este reparo diversas vezes, mas cá vai: como mulher branca a filmar histórias negras, assumiu claramente uma posição de escuta e co-autoria. Que tipo de ética norteou essa partilha? Como é que o seu olhar se transformou ao longo desse processo?

Com certeza. Todo esse processo começou com um desejo de investigar a cidade, o Rio de Janeiro. Mas, ao mergulhar na história da cidade, especialmente na região portuária, a história da escravidão e da população negra no Brasil tornou-se incontornável. Não há como falar da história do Brasil, e particularmente daquela região, sem atravessar essa dimensão.

Então, a questão deixou de ser se falaríamos disso e passou a ser como contar essa história … e com quem. Desde o início, houve uma preocupação muito clara em que esse trabalho fosse feito de maneira colaborativa e aberta. Foram dez anos de investigação e construção, sempre com uma escuta ativa, com disposição real para os encontros, para as contribuições de cada pessoa que se juntou ao projeto. Sinto que essa ética colaborativa está presente no próprio corpo do filme. Há uma generosidade no modo como ele foi construído, e isso veio do modo como escutámos e partilhámos, sem nunca querer impor uma visão unívoca.

Por fim, que papel atribui ao cinema — ao teu cinema — neste esforço de resgatar narrativas silenciadas? Seria um convite à justiça poética ou uma tentativa de reinscrição na História?

Olha, não tenho essa pretensão tão grandiosa. Não acredito que, sozinha, nem que um filme sozinho — ou mesmo o cinema, por si só — possa dar conta disso. Mas acredito, sim, que pode ser uma contribuição. Uma tentativa de fazer com que essa conversa exista, de que essas questões circulem entre nós. Nesse sentido, acho que o filme encontrou o seu lugar. Desde a estreia em Roterdão, em janeiro de 2024, tem sido exibido, debatido, visto em diferentes contextos. Já conta mais de um ano e meio de circulação. E isso, para mim, já é uma grande realização. Ver que ele está a provocar um debate (não só sobre o filme em si, mas sobre os temas que levanta, sobre as formas de fazer cinema), é algo que me deixa muito feliz. Talvez o mais importante seja mesmo isso: colocar em pauta essas questões, tanto temáticas quanto formais.

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E em relação ao futuro? A memória desse tempo, e desse espaço, continuará a acompanhar-te enquanto autora?

Curiosamente, o que era uma trilogia acabou por se tornar uma quadrilogia [risos]. Após o filme, surgiu uma exposição em artes visuais. Foi um projeto que transbordou para além do cinema, onde imagens dos três filmes foram instaladas num espaço expositivo, acompanhadas por uma instalação sonora. Foi muito interessante perceber como esse material ganhava outra dimensão ao ser transportado para uma galeria, para um espaço de contemplação diferente do da sala escura.

Quanto a novos projetos ... ainda não consegui materializar nada. Por muitas razões, inclusive pela complexidade que é fazer cinema, o tempo que exige, os desafios de produção. Acho que ainda estou num processo de assimilação de tudo o que este projeto significou. Ainda estou a digerir. Mas acredito que, de alguma forma, essa memória — esses espaços, essas histórias — continuarão a acompanhar o meu percurso.