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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Na graça de Greice ...

Hugo Gomes, 31.08.24

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Novamente Lisboa! Não “uma” qualquer, a Lisboa de Leonardo Mouramateus, brasileiro vivendo como Colosso de Rhodes nestes dias - um pé em cada margem - fazendo da capital o seu biótopo, envergando-se num imperativo olhar “estrangeiro”. E é essa Lisboa com que ficamos, porque é nessa mesma que habita Greice, jovem estudantil, algo fura-vidas e com uma particularidade, uma mentirosa nata, e através disso, mesmo sem intenções de má-índole, a convivência com ela torna-se algo difícil, não só para as personagens do seu universo, como para nós, espectadores. 

Talvez seja nesta mesma figura, a de Greice, com encantamento próprio, graças ao corpo e alma de Amandyra, o qual nos deparamos com o melhor e o pior que esta obra tem para nos oferecer, e portanto, um desafio à nossa sensibilidade, ou hipersensibilidade empregada nos espectadores hoje de poderes atribuídos. Até porque Greice detém as marcas burlonas de quem se “vira como pode na vida”, por vezes sem olhar a meios a quem prejudica, mas igualmente exibe um lado doce, jovial e vivido, e uma fantasia às telenovelas que Mouramateus parece partilhar fascínio, que faz querer a sua companhia, com alguma distância é certo, isto envergado no dito olhar do realizador, essa perspetiva de Lisboa longe de miserabilismos e classes médias baixas, apenas imigrantes com alguma sorte na sua fatura e com Belas Artes no horizonte (vejam, a estátua de São Jerónimo, o primeiro artefato a sair da escuridão-génese do filme). 

Greice” espelha os mesmos trilhos do realizador em outros 'andamentos', nomeadamente a da sua anterior longa-metragem “A Vida São Dois Dias”, este “homesick” [saudades de casa] embrulhado numa certa recusa de voltar, um desraizamento e suave negação das suas origens. Lisboa, novamente essa, o lugar de pertença às suas figuras que se dão pelo nome de personagens e curiosamente é nessa mesma cidade que Mouramateus revela-se mais esmerado nos planos e nas suas conduções (existe um flashback integrado à ação, cujo um quiosque assume tendências antonionianas). Depois conta-se sempre com o seu “muso”, Mauro Soares, a servir de “pau mandado” [no bom sentido] a este imaginário citadino. 

Contudo, o desafio imposto por Greice, essa menina-migrante sedutora, que engraça como subsistência, e o de enquadrar-se numa espécie de bolha. Talvez seja isso mesmo que nos compele a distanciar-nos da jeitosa órbita da protagonista. Há algo nela e nas suas companhias “alfacinhas” de privilégio ou de uma nova “burguesia à rasca”, ligadas a esoterismos e moralidades pré-fabricadas.

Equus Ex Machina

Hugo Gomes, 19.08.24

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Em conferência de imprensa em Cannes deste ano [2024], Karim Aïnouz ligava a imagem do motel, brasileiramente falando, com a de um país hipócrita, cujos desejos, muito deles reprimidos só poderiam ser concretizado no refúgio destes lugares, com pouco contacto com o exterior, e sob o sigilo monetário. Será isto a sua representação de Brasil? Uma sociedade vivida com intensidade no oculto? 

Quanto a “Motel Destino”, o filme que o motivou a essa relação, é previsivelmente o encarar dessa metáfora, até porque o estabelecimento do qual título partilha com o filme, revela-se num abrigo “mágico” de Heraldo (o estreante Iago Xavier), que após um noite a tresandar sexo ocasional, acorda, algumas horas depois, roubado pela sua companheira de passagem. Incapacitado de pagar a estadia, pede auxilio a Dayana (Nataly Rocha), funcionário do local (e devido a sua relação com o proprietário, meia-dona daquilo tudo), e prossegue em modo relâmpago para a tarefa pedente, mas atrapalhada pelo lapso temporal. 

Heraldo, juntamente com o seu irmão, Jorge, tinham como plano assassinar um francês residido naquela cidadela cearense, como forma saldar a dívida para com a máfia local. Chegou tarde demais, e como era “esperado”, o francês continuava vivo e o seu irmão morto. A cabeça do nosso protagonista está agora a prémio, tendo como única solução regressar ao motel e pedir asilo. Durante dias, na sombra dos corredores que dão acessos às alas privadas, autênticas montras lascivas, sob olhar atento do gerente, e também esposo tóxico de Dayana, Elias (Fábio Assunção, ex-galã de novela, aqui cedido à decadência que lhe aufere um lúdico antagonista), Heraldo torna-se num “faz-tudo”, até cometer um (outro) erro na sua vida: envolver-se com Dayana

Com uma direção fotográfica assinada pela sua colaboradora habitual, a francesa Hélène Louvart (A Vida Invisível de Eurídice Gusmão e “Firebrand”), “Motel Destino” proclama um certo onirismo suado enquanto retrata aquele cerco agora criado para conter Heraldo e a sua tentação. Um interior que se vai confortando até ser, isso mesmo, o exterior como perigo iminente. Toda a vez que o nosso protagonista sai do seu recinto, tememos pela sua vida, da mesma forma que de fora para dentro, de clientes sarados a “fantasmas do Natal passado”, até aos acidentes animalescos (a cobra como carga simbólica bíblica evidente - “problemas no paraíso!”), tudo chega-lhe sob um toque de aviso ou sinal xamânico. 

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Aïnouz regressa aos guetos de mística e sexualidade ali reencontrados na encruzilhada do ilícito (“Madame Satã” como a sua maior auto-referência), ou dos desencontros, essa nova estância perdurante na sua filmografia, e cujo apogeu repousou na sua adaptação de Martha Batalha (A Vida Invisível, como esquecer?). Aqui, o desencontro não é uma traição do destino, mas antes uma sorte em que o espectador deseja prevalecer. “Motel Destino”, por outro lado, ostentando uma pobreza disfarçada, como pechisbeque se tratasse, com neons e cores obtusas cobrindo as suas limitações técnicas (mais um ponto para Louvart!), mas que nunca atingem a gravidade dramática ansiada por Karim Aïnouz

A culpa? Esta recai sobretudo na fragilidade do protagonista - Iago Xavier - isento de ferramentas performativas para abraçar a sua tragicidade. Há pelo menos dois momentos que a sua emotividade de jardim-escola retrai as ênfases e a dramaturgia que as cenas em questão suplica; uma delas na intenção confessionária do seu passado, algo trágico, não só à personagem de Rocha como também, indiretamente, ao espectador, sendo que a outra, lá mais perto do final, como o Auto da Barco do Inferno numa declaração de resiliente (“Nasci com um alvo no peito”) proclamado com frouxidão. A sua sorte, porém, como a de Aïnouz, é Rocha e ainda mais Assunção (com aquelas vibes à “pornochachada”) a assumirem-se reforços. 

Cai o pano, ou melhor, o cavalo (ao ver o filme entenderão!) e o que fica é um exercício de crítica social que vai em corrente oposta ao muito, e dito, “cinema brasileiro político”, este fraquejado pela sua sobre-literalidade. “Motel Destino”, como faz Kleber Mendonça Filho desde … sempre talvez … utiliza a sua geografia como holofote alegórico. É o motel como espelho do Brasil, esse país que Karim Aïnouz proclama encontrar. Um país a viver loucamente nas suas sombras, só que o tal "sombreado" ostenta tons carnavalesco. Bem haja …

"O digital é talvez o factor mais realista": Eduardo 'Teddy' Williams e a busca do auge da Humanidade

Hugo Gomes, 13.07.24

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Eduardo "Teddy" Williams na rodagem de "El auge del humano 3" (2023)

Foi em vésperas da estreia nacional (com ‘perninha’ no festival Indielisboa e uma retrospetiva no Cinema Batalha), que Eduardo Williams, conhecido por estas bandas cinéfilas como “Teddy”, me recebeu para falar sobre o seu mais recente projeto, "O Auge Humano 3" (“El auge del humano 3”), que conta com produção portuguesa, além de envolver outros 7 países, unidos para explorar uma ideia de universalismo. A nossa conversa abordou desde as ideias por detrás do filme até ao seu cinema em geral, consolidando Teddy como uma das vozes mais debatidas no meio académico cinematográfico e no mundo do cinema experimental e independente.

Com "O Auge Humano 3", lançado sete anos após o primeiro (atenção, nunca houve um "O Auge Humano 2", essa sequela está no “segredo dos deuses”), acompanhamos um grupo de jovens que testemunham um fenómeno difícil de caracterizar para lá das montanhas. Enquanto vivem e debruçam-se sobre os seus quotidianos, ponderam um retorno ao estado selvagem, ao primitivo ou até místico. Eis uma obra sobre a comunicação, mesmo diante de diversas línguas ouvidas ao longo deste percorrer de cenários em 360º e dos glitchs que vão sendo presenciados. Há uma distorção dessa realidade! Mas Teddy acalenta as nossas preocupações, tal é tão ou mais real do que a nossa própria realidade humana. Aliás, o que é ser humano?

A discussão alarga-se sobre "O Auge Humano 3", o virtual enquanto nova realidade, o filme das multi-interpretações e de estéticas e o AI contra a carne da nossa carne. 

Começo a conversa desta forma: que lugar acha o ideal para ver o seu filme?

O lugar para qual o meu filme foi feito? É isso que me está a perguntar?

Sim, é uma questão um pouco abstrata, porque entendo que a sua estética é provocadora, neste caso, neste filme, sinto uma certa distância das pessoas, do factor humano, por ter sido filmado com uma câmara de 360 graus o que lhe aufere uma sensação estética muito virtual. Não sei se era esse o seu propósito.

Sim, uma parte é voluntária, a outra surgiu através da descoberta e do experimento. Em relação ao local, faço filmes para o cinema, seja em película, seja em 360 graus, a sala de cinema será sempre o seu lugar, exceto algumas encomendas para museus. Tenho consciência de que se vê muito cinema em computadores e nos mais diversos lugares. Nada contra essa opção, mas os filmes que faço são concebidos para serem vistos e ouvidos no cinema, refiro o “ouvido” porque considero o som extremamente importante para a experiência cinematográfica, e penso deixar saliente esse elemento na minha filmografia.

Acerca da distância com o humano, não sei o que responder; depende de como se pense nisso. Não o encaro da mesma maneira, porque, para mim, o virtual hoje em dia é parte da minha vida, é essencialmente humano, é uma criação humana e é o mundo em que vivemos. Acho que, para mim, justamente esta presença do virtual no filme fala, pelo menos, de como experimento a vida hoje em dia, e creio que muita gente partilha tal experiência comigo. Então, simplesmente acredito que uso ferramentas para mostrá-lo de uma maneira mais sucinta, talvez. Quanto aos rostos se deformarem e especificamente integrarem a imagem, obviamente que na vida, no real, não vemos isso, mas talvez sintamos isso a acontecer de alguma maneira.

Não sei, pelo menos eu sinto aquilo que os ingleses apelidam de “uncanny valley”, sofro com isso, a deformação das faces das suas personagens quando nos aproximamos, leva-me a distanciar deste conjunto, porque tudo me soa na ressonância do fim da Humanidade. O nosso fim, de certa maneira, não sei, é a minha impressão acerca do seu filme, mas pelo que entendi, também é um filme com várias interpretações, dando uma exposição para quem o vê.

Sim, por isso, mesmo que por vezes se pense o mesmo ou não, o tipo de filme que faço, como bem disseste, é justamente para isso: para se abrir a múltiplas interpretações e não se reduzir somente à minha. Se assim não fosse, faria filmes mais claros e que comunicassem diretamente uma ideia minha, mas essa não é a minha noção de cinema. Gostei de ouvir a tua interpretação e respeito-a, mesmo que não vejas o filme à minha maneira. Não te posso censurar; se o fizesse, seria contra a minha essência. Só te digo como me sinto em relação aos lugares, ao binarismo do humano e do não-humano, mas isso também depende das nossas experiências, das nossas vidas, de como nos sentimos em relação ao cinema. Nem todos nos sentimos da mesma maneira. Mas, o que dizias concretamente no início?

Que existe uma certa distância, como o fim da Humanidade.

Sim, isso! O fim da Humanidade! Não sei. [risos] Tenho esta sensação desde os meus tempos de criança. Chega o ano 2000, termina a Humanidade, desde os lugares mais simples e até aos mais bobos, até coisas como a mudança climática e a destruição do planeta, que se tornam cada vez mais reais. E também há esse desejo de querermos o fim de certas ‘coisas’, mas não a Humanidade, talvez o sistema em que vivemos. Nesse sentido, há que escolher em colocar-se na crise ou de ver a crise do sistema, por assim dizer, de diferentes sistemas. Mas o fim da Humanidade... não sei! Não acredito, na verdade. Por agora, parece-me que ainda falta muito para tal acontecer.

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El auge del humano 3 (2023)

Digo isto, porque existe a certo momento do “O Auge Humano 3” uma personagem a lamentar-se de que existir é cansativo. Entendi isso como algo muito niilista no seu filme.

É verdade, e além disso, acho que deve haver um equilíbrio entre essas coisas. Deparamos por momentos mais niilistas, como esse que citaste, ou do cansaço em relação ao trabalho, à vida  como ela é ou por outras questões, só que também temos que ver que há esperança. O simples facto de pessoas, de países distantes, se reúnem e avançam em conjunto em direção a algo que não entendemos ao certo é para mim uma forma de esperança e de continuar a tentar algo em oposição a esse niilismo: uma revolução. Mas sim, há de tudo, as duas dimensões: falar sobre determinados elementos negativos ou sobre o facto de que a mera existência provoca cansaço, só que não podemos esquecer que temos um outro lado.

Outra característica do seu “O Auge Humano 3”, é que foi filmada em vários lugares do mundo, como Sri Lanka, Taiwan e Peru. Além disso, a forma como juntou os locais cria uma sensação de unidade. É como se toda a Humanidade estivesse conectada, com excepção da linguagem, visto ouvirmos uma panóplia delas, quase como uma Torre de Babel, que nos separa ou nos identifica. Mas, ao mesmo tempo, todos esses lugares e pessoas, apesar das distâncias, são semelhantes porque somos humanos. No entanto, sempre mudamos algo para sermos mais diferentes, especialmente no que diz respeito à linguagem.

Penso que no filme também está implícito uma fantasia: as personagens entendem-se em diferentes idiomas. Há cenas em que um fala mandarim e o outro responde em espanhol. Mostrando que as línguas não nos separam como realmente o fazem. 

Também, ao fazermos um filme, viajo para países cujo idioma não falo e, por vezes, usando a internet e outras ferramentas, conseguimos que essas barreiras linguísticas não sejam a nossa total separação. No filme, há pessoas que não falam inglês, espanhol ou qualquer idioma que eu fale e, de várias maneiras, conseguimos comunicar-nos. Parece-me que isso está presente, também na forma como o fazemos, o que é interessante. Não quero dizer que somos todos iguais, porque, felizmente, é melhor que não sejamos todos iguais, mas que podemos juntar-nos e ter um projeto como este. É como, a certo momento, todas aquelas personagens caminharem juntas para a montanha em busca de algo maior do que elas.

Por mera curiosidade, qual o lugar que, como demonstra no filme, tem aquelas habitações que parecem-nos cogumelos?

Ah, é o Sri Lanka!

É muito peculiar. É como um parque infantil! Gostaria que me falasse sobre os diálogos, li algures que estes foram conseguidos por via da improvisação.

Não só. Alguns textos foram escritos e outros foram improvisados. Há cenas em que tudo o que vemos é totalmente escrito, enquanto outras revelam o improviso, e a maioria das cenas combina os dois registos. Esta é a norma no meu cinema.

E quanto ao que dizes sobre as casas, posso contar-te que a primeira razão para querer filmar no Sri Lanka foi exatamente este bairro. Já tinha ido ao Sri Lanka antes, numa viagem de lazer, digamos, não por motivos de filme ou curiosidade, e passei de autocarro por este bairro e fiquei muito surpreendido. Depois, ao investigar, descobri que tinham construído estas casas sob esta forma porque um tsunami havia destruído tudo, e estas estruturas provaram ser mais resistentes, caso haja outro tsunami, do que uma forma retangular.

O filme ia ser rodado sob a chuva, mas não conseguimos fazê-lo nesse contexto. No entanto, a presença do clima no filme tem o seu lugar nesta narrativa, por isso, achei por bem incluir este cenário estranho ou irreal para nós. Mas, ao mesmo tempo, quando estamos lá, vemos que para estas pessoas aquele bairro é um lugar normal. E isso fascinou-me, um local onde o irreal e o real se encontram na mesma imagem.

Podemos dizer que o seu filme é quase como um retorno ao selvagem, mais concretamente a Humanidade à Natureza, e por fim, as suas esperadas pazes?

Não sei se diria retorno, mas sim o ato de ir. Não vou sempre atrás da natureza, mas também em frente, como em tudo. Portanto, diria que é ir ou um pouco buscar, afastar-se da cidade que nos aprisiona. Talvez para depois voltar, porque no final a câmara cai, há algo de querer subir e depois descer novamente. Existe sim uma insatisfação com o lugar onde vivemos e a vontade de nos afastar para desencadear outras possibilidades, ir para a selva, ir para a montanha, etc.

Tem administrado um workshop no Porto [Cinema Batalha] e, devido a isso, queria questionar: o que pretende com o workshop que dedica aos jovens ou interessados em cinema?

Depende um pouco de quem vai. Antes de o fazer, não sei ao certo, nem projeto minuciosamente quem vai participar, desconfio se serão mais estudantes ou mais curiosos. Era algo aberto, por isso tenho a perfeita noção de que não seriam apenas estudantes. De qualquer modo, partilho a minha forma de trabalhar e estou disponível para responder às perguntas que tiverem. Partilho a minha abordagem desde o mais concreto, resolvendo problemas específicos, até os meus pensamentos sobre por que faço o que faço, etc. Tento esclarecer sobre o meu cinema, ou pelo menos tento. [risos]

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El auge del humano (2016)

E no seu caso, deixe-me mencionar uma coisa. Porque quando vi este e o primeiro “O Auge Humano“, notei uma estética e uma transição estética de filme para filme. Neste caso, é algo que percebo como muito virtual. Como já havia dito, sente-se uma grande distância em relação às pessoas. O porquê disto? Onde estou? O que é isto? Para onde vou?. Existe uma política estética nos seus filmes? Procura algo absoluto, uma meta?

Relacionado com o deformado realista? Sim. Quero dizer, para mim, o digital é talvez o factor mais realista. Mesmo que, à primeira vista, pareça irreal. É mais que realista, trespassa esse conceito. Através da utilização dessas ferramentas, podes mostrar pelo menos um ponto de vista da realidade de forma mais clara. Como te disse, quando vemos os rostos deformados, isso revela como me sinto, por exemplo, mesmo que não se veja o meu cabelo.

Mudar a estética, é, em parte, apenas curiosidade por usar diferentes ferramentas no cinema, mas, de forma geral, o sentido é sempre expressar um ponto de vista sobre o cinema, sobre a vida, e não restringir a “mim” e à minha perceção. Também tento fazer filmes que não sejam apenas sobre as minhas ideias, mas sobre como essas ideias são percebidas por pessoas em diferentes lugares e em diferentes idiomas. Por isso é que viajo para diferentes países e culturas, para ver como estas minhas ideias podem ser transformadas em outra 'coisa' que não sejam minhas.

E, como te disse, às vezes há improvisação, há “contaminação” de ideias de outras pessoas que integram o filme, e eu realmente pretendo tal contágio, valorizo muito. Estou a tentar agora juntar essas duas coisas, como me pediste, mas não sei. Pode ser muito longo falar sobre o que é realista ou não. Mas sim, não há dúvida de que há uma ideia de expressar ou partilhar pontos de vista sobre o mundo e a realidade, pelo menos como a vejo, e, em alguns casos, como as pessoas no filme a veem e acreditam.

Escolho imagens que mostram isso de forma mais clara, encaro-as como as imagens mais normais da vida. Vejo o mundo assim: o que é real e o que não é são quase indissociáveis. Portanto, há algo, mas não tenho certeza se respondi à tua pergunta neste caso.

Lembro-me de um colega meu, quando viu “O Auge Humano 3” em Locarno, dizer-me que parecia um filme feito por AI, Inteligência Artificial. Pergunto-lhe sobre isso, sobre os avanços na tecnologia para fazer filmes sem pessoas, sem cineastas. Tentaste com essa estética que temos estado a falar para te aproximar mais das propriedades estetizadas, hoje previstas, pelo AI, ou é apenas uma coincidência?

Nem por isso. Não uso AI nos meus filmes.

Não referia ao uso, referia à estética …

Sei, o que quero dizer é que não estou em contacto com a Inteligência Artificial, nem para o filme, nem na minha vida. Não estou a pensar nisso. Sei o que é de forma geral, mas não tenho tentação ou pretensão de me relacionar com isso. Para mim, está mais associado ao mundo digital de outra maneira, por ter vivido muito através da internet desde a juventude e por jogar videojogos. Está muito ligado a essa parte do mundo digital ou vida virtual. 

Quando penso em preparar um filme, estou num modo virtual, porque estou sentado em frente a um computador a descobrir mundos e a “escavar” ideias, porém, quando faço um filme, torna-se também uma experiência muito física. São os opostos da artificialidade vendida pelo conceito da AI. Descubro as cidades e os países que visito e as pessoas que conheço fisicamente, sem qualquer informação virtual. É muito importante que no filme existam esses dois mundos: o virtual e o físico. De um modo geral, se me perguntares o que penso sobre relacionar o filme com inteligência artificial, diria que não o faria, especialmente porque o que entendo sobre inteligência artificial se resume a juntar informações.

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Parsi (2016)

O filme é muito diferente disso, é sobre humanos a decidirem, no momento, o que fazer, sendo surpreendidos por vezes, e outras vezes a prepararem-se. Acho que o funcionamento do nosso cérebro difere dessa inteligência artificial, não estão no mesmo patamar. Contudo, como referi ao longo desta conversa, estou aberto a ouvir e a gerar diferentes pontos de vista com o filme, no entanto, não estou receptivo à AI. Não a utilizo; talvez se o fizesse, compreendê-la-ia de uma forma diferente.

Quanto aos outros elementos, como os videojogos ou a internet, surgem no filme porque fazem parte da minha experiência de vida, portanto, surgem naturalmente. Não acho que com isso desejo fazer um filme sobre a vida virtual ou a internet; isso acontece porque é assim que experiencio o mundo. Depois, percebo que, quando escrevo um filme, não penso muito no início, mas sim mais tarde. É mais tarde que me dou conta de como e quanto a presença da vida virtual está no filme.

Essa presença é muito evidente, não só quando falamos disso, mas ainda mais quando não falamos. A forma como falamos, de como as personagens se expressam, tem muita influência das conversas de chat. Em outras curtas-metragens minhas, isso é dito de forma mais evidente. Mas, em muitos momentos da minha vida, falei mais com as pessoas através de chat na internet do que na vida real. O ritmo da conversa e a forma como organizamos a informação diferem. Quando escrevo diálogos, percebo o quão presente isso está.

Mas neste momento não temos uma ideia clara do que é o cinema de inteligência artificial. Temos algumas imagens definidas e uma visão bastante ampla. Mas quero perguntar: o porquê das câmaras de 360 graus? De onde veio essa ideia?

Usei esta técnica uma vez numa curta-metragem, “Parsy”, em 2019. Escolhi inicialmente porque queria dar a câmara aos atores. Com uma câmara de 360 graus, não é necessário enquadrar durante a filmagem, os atores podem segurar a câmara e não precisam pensar no enquadramento. Isso foi muito útil na altura. Depois de experimentar, descobri outras vantagens durante a filmagem, mas o motivo principal para usar novamente esta técnica neste filme foi a possibilidade de enquadrar na pós-produção. Penso que isto é diferente do que penso sobre a inteligência artificial, porque ao visualizar as imagens num headset de realidade virtual, pude gravar os meus movimentos. Por exemplo, ao visualizar a imagem, se faço isto, o enquadramento fica assim; se faço aquilo, fica de outra forma. É uma maneira muito diferente de abordar o enquadramento num filme. Faço os meus filmes para pessoas que não sabem o que é o enquadramento ou a realidade virtual, mas espero que sintam esta forma especial de observar os outros e de estar com eles através deste método.

Para mim, a maior diferença é que agora posso fazer o enquadramento não durante a filmagem, como é habitual. Durante a rodagem, estamos a pensar em mil e uma coisas, incluindo no próprio enquadramento, agora, faço-o sozinho na pós-produção, numa sala, dedicando todo o meu corpo e mente a isso. É diferente a forma como penso sobre o que enquadrar, onde enquadrar e como sentir isso, incluindo a relação física. Normalmente, enquadramos com as mãos, agora, posso fazer isto, enquadrar e até mover o meu corpo. A relação física com o enquadramento revelou-se diferente. Essa foi a razão para escolher esta câmara. Além disso, editei as duas horas do filme no computador e depois assisti-as de uma vez, para que pudesse enquadrar o filme todo de uma vez. Normalmente, faríamos isso cena por cena. Agora, consegui fazer o enquadramento continuamente, cena após cena, à medida que me movia. A última parte do filme está relacionada com essa experiência de assistir e, não sei, de ter assistido ao filme.

A principal razão para usar a câmara de 360 graus foi essa diferença no enquadramento e, enquanto a usava, descobria outras coisas. Por exemplo, a relação com o tipo de imagem é, por vezes, como o Google Maps, outras vezes como uma câmara de segurança ou como um videojogo. Descobri isso mais enquanto a utilizava do que antes. Não pensei especificamente que queria a câmara por isso. Mas quando vejo e edito, sempre tenho a oportunidade de acentuar isso ou não. Por exemplo, deixei alguns movimentos robóticos no computador porque me faziam pensar numa câmara de segurança. Ou algumas cenas eram mais como o Google Maps e podia escolher se queria que isso fosse mais acentuado ou menos acentuado. Portanto, sim, essa foi a razão.

É fácil conseguir financiamento para os seus filmes? Pergunto isto porque o “Auge Humano 3” é uma coprodução entre 8 países [Argentina, Peru, Brasil, Portugal, Países Baixos, Taiwan, Sri Lanka, Hong Kong].

Não! Fácil não é. Não sei quem te dirá que é fácil. Ninguém sente que é fácil, certo? Mesmo que para alguns filmes seja menos difícil do que para outros, ninguém acha que é fácil. Mas sim, a primeira vez que consegui financiamento institucional vindo de institutos de cinema, como aqui em Portugal, Argentina, Brasil, Holanda e Taiwan, foi para este filme. Para os outros, nunca consegui esse tipo de financiamento, principalmente quando comecei a fazer curtas-metragens. O que escrevia nunca interessava às outras pessoas, porém, acabei por encontrar quem se interessasse pelo meu cinema. Para as curtas, recebia ajuda de pessoas que gostaram de algum trabalho ou que leram algo que escrevi. Talvez, se gostares dos meus filmes, possas “ler” o que quero para o meu próximo filme e entender ou ter uma ideia do que pretendo fazer.

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El auge del humano 3 (2023)

Tentei procurar maneiras de fazer cinema com o dinheiro que tenho, ou fazê-lo com o apoio dos amigos. Apercebi-me de que ter as imagens filmadas é uma forma de conseguir que as pessoas se interessem em financiar o filme. Para a primeira longa-metragem, consegui financiamento privado dessa forma, graças àqueles que viram imagens que já tinha filmado ou as minhas anteriores curtas-metragens. Penso que, para este filme, provavelmente foi porque os anteriores tiveram uma boa recepção nos festivais de cinema e em outras partes do mundo cinematográfico.

E nas escolas de Cinema?

Talvez as instituições confiem mais nos meus filmes agora. Mas não é fácil. Além disso, é interessante que essas complicações tragam novas formas de resolver problemas, o que também é sempre fascinante.

Sigo para a pergunta, do qual julgo que lhe mais fazem. [risos] Este é o “O Auge Humano 3”, e houve um “1”, mas nunca um “2”. Pensa em fazer mais algum “O Auge Humano”? Talvez o 4?

Não sei. O próximo filme não será sobre o “2”, isso é certo. Não há dúvida alguma. Talvez nem sequer seja sobre o universo do “Auge Humano”. Não sei. Talvez no futuro, num futuro muito distante, quem sabe?

Mas por onde anda “O Auge Humano 2”? [risos] Ficará como um mito urbano? [risos]

Perdido no tempo. [risos] Sim, mas por agora, essa é a ideia. Não é uma necessidade fazer essa sequela. Claro, é possível, mas gosto deste mistério. É esse espaço vazio que talvez possa ser preenchido no futuro, ou talvez não. Um buraco misterioso. Também está no meu campo existir tantos buracos e partes que não compreendemos ou que estão de alguma forma em falta.

Pode falar em novos projetos? Sinto que tem um novo filme na sua mente.

Não! [risos] Não estou a sentir-me bem quanto a isso. Claro que tenho ideias em mente, mas por agora são apenas pequenas notas. No início, faço apenas anotações sobre as coisas que me despertam interesse. Depois, quando quero começar um projeto, sento-me, leio as notas e dou-lhes forma. Na maioria das vezes, provavelmente já não gosto da maior parte dessas notas, mas aquelas que ainda me agradam, junto-as e começo a trabalhar nelas. Por agora, estou a viajar muito para apresentar este filme. Além disso, como falo tanto sobre ele, sinto que preciso me distanciar e direcionar a minha mente para outro lugar. Estou sempre muito ligado aos filmes que faço, por isso não consigo dividir os meus pensamentos. Algumas pessoas conseguem ter vários projetos na cabeça; no meu caso, só consigo focar num de cada vez.

Ou seja, um “filho de cada vez” …

Sim, espero começar em breve, mas desde agosto, desde Locarno, tenho viajado sem parar. Vou continuar a viajar por mais alguns meses. Assim que conseguir desacelerar, espero poder iniciar o projeto.

Atravessemos o "Pedágio": uma conversa com Carolina Markowicz

Hugo Gomes, 13.06.24

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Pedágio (2023)

Seguimos o caminho casa-pedágio / pedágio-casa sob o olhar cínico e, em certa parte, caricatural de Carolina Markowicz nesta sua segunda longa-metragem - “Pedágio” - uma co-produção luso-brasileira que aborda as terapias de conversão gay praticadas pelas igrejas pentecostais sob um mote de “high moral ground”. Aqui, o ator português Isac Graça nos é apresentado como o pastor deste “circo” montado na hipocrisia moral, signo humano que a realizadora perpetua ao longo da sua obra de passo acelerado. “Pedágio” (2023), designação brasileira para portagem, chega aos nossos cinemas, um ano depois da sua estreia no formato longa com “Carvão” (2022), também sobre aparências e ambiguidades morais, o qual repete a sua protagonista, Maeve Jinkings.

Carolina Markowicz passou por Lisboa para apresentar o seu mais recente trabalho em sessões especiais, algumas delas ligadas à programação do Indielisboa, festival que sucede à sua estreia mundial nas telas de Toronto e San Sebastian. Nessas andanças, arranjou um breve tempo para conversarmos sobre o filme e a sua periferia. Fica o aviso … alguns “pedágios” foram atravessados aqui. 

Quero começar com o ínicio de tudo. Sobre “Pedagio”, de onde surgiu a ideia para o filme? 

A ideia do filme surgiu de uma certa inquietude que tinha em entender pouco... No Brasil, há uma cena política muito forte, cheia de escárnio para com a população LGBT, que é absolutamente surreal, protagonizada por pessoas que detém muito poder na nossa sociedade. Por exemplo, houve uma ex-ministra dos Direitos Humanos [Damares Alves], que agora é uma das senadoras mais votadas, que afirmou num vídeo que as crianças não podem ter bonecas da “Frozen”, porque é lésbica.

Também, um dos deputados mais votados do Congresso, de um dos maiores estados, colocou uma peruca verde e fez um discurso anti-população trans. Outro pastor, também deputado, com um grande quórum de votos, começou referir os sinónimos dos seus órgãos genitais. Ou seja, acontecimentos ridículos, patéticos, e que inacreditavelmente não descredibilizam essas pessoas. Sempre tive muita inquietude em entender como é que essas pessoas não são colocadas no ridículo onde deveriam estar. É simplesmente inacreditável; não conseguia acreditar que alguém comprasse, ou pior ainda, acreditassem no que eles estão a pregar, e eles mantêm e até aumentam os lugares de poder onde se encontram. 

Como também, a ideia nasceu do turbilhão disso tudo, porque para mim - por mais que, obviamente, os lugares tenham esse conservadorismo flutuante, essa polarização - as pessoas estarem preocupadas com a sexualidade alheia é tão anacrónico. Estamos em 2024 e isso é tão presente. Então, acho que essa grande questão não só brasileira é também mundial …

E isso está a aumentar …

Exato. Além disso, existem as bolhas mais progressistas, só que, com tantos problemas reais no mundo, as grandes “procupações” é se alguém está a ter relações sexuais com homens ou com mulheres. Todos esses elementos contribuíram para uma grande sopa de ‘coisas’ importantes, portanto, pretendia colocar isso no filme e retratar com uma certa ironia essas pessoas que são levadas demasiado a sério. E daí surgir esta história, desta mãe e deste filho. 

Na verdade, para mim, o personagem principal do filme resume-se nessa relação, que é problemática, como qualquer relação normal, mas também sem demonizar essa mãe, que é o produto de uma sociedade que lhe ensinou que o filho deveria ser de determinada maneira. Como tal, ela acha que fez algo errado.

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Carolina Markowicz / Foto.: Carlyle Routh 

Essa questão da relação gostaria de abordar novamente, porque para mim também foi uma característica muito acentuada no seu filme. Mas voltando ao tema central do “Pedágio” … vamos apontar o “coração” do filme nas chamadas terapias de conversão. Experienciou, ou foi atrás da existência dessas terapias no Brasil? Como elas funcionam? Qual o seu modo de operar?

Sim, fui. Pesquisei muito, falei com muitas pessoas, visitei muitos lugares, li muito a respeito, etc. Contudo, o filme não retrata essas terapias de forma literal, com a violência que realmente ocorre, não tinha a intenção de fazer um filme sobre a violência que acontece, que provoca coisas horríveis, inclusive suicídios, situações realmente muito graves e negativas. A minha ideia não era retratar uma violência gráfica nessas pessoas. Não era o que pretendia. Queria virar a câmara para o ridículo de quem pratica isso, de quem acredita nisso, por ser absurdo alguém achar que tem o poder ou que deveria procurar algo como tivessem a combater uma doença.

Queria entender e pesquisar, mas o meu objetivo nunca foi reconstruir elas são, literalmente, no sentido da seriedade e gravidade delas. Mas, sim, abordar essa ideia de terapia de conversão, que é algo que vivemos diariamente no mundo. Um político ou um presidente [Jair Bolsonaro] dizer que preferiria ter um filho preso que a um filho gay, ou uma pessoa qualquer com uma peruca verde a fazer declarações ridículas sobre o que é ser homem ou mulher, é algo que enfrentamos e que estamos a lidar diariamente.

… ou até mesmo dentro de casa.

Sim, até mesmo dentro das nossas casas. 

É que nesta relação, falo obviamente da mãe, é todo um espelho dessa sociedade - “Não, você tem que aprender homem” - ou a tentativa de arranjar qualquer trabalho que seja correspondente à imagem masculina.

Exatamente. 

Mas essa questão das terapias de conversão, algo que você mencionou, é que captou o ridículo da situação. No entanto, os relatos que temos, especialmente vindo dos Estados Unidos, são de uma violência, seja psicológica ou física, indescritível. O que você retratou é o ridículo dessa idealização; nós rimos daquilo.

Exato. Nós rimos da ideia de terapias de conversão, sem negar o facto de alguém querer mudar algo que você é, é bastante violento. E também como você disse, já temos muitas obras que mostram isso, portanto não queria trabalhar em algo que já tivesse visto, e quanto à violência, bem sabemos que é, não havia necessidade de sublinhar mais. 

A minha intenção era ter um outro tom ... Porque o humor é também violento de uma certa maneira. Por vezes é mais efetivo até do que reiterar algumas coisas, então, colocar essas pessoas nesse lugar ridículo, tanto de quem faz aquilo quanto de quem acredita, parece ser mais interessante enquanto linguagem. Não estava interessada em fazer mais um filme sobre cura gay, e mostrar alguém em sofrimento, queria revelar o quão ridículo e absurdo é alguém querer mudar alguém ou fazer alguém sofrer por essa pessoa ser gay? Para mim, essa era a questão mais interessante a ser abordada.

Gostaria também de perguntar porque, e como, escolheu a mesma atriz com quem havia trabalhado em "Carvão", Maeve Jinkings, e se há planos de colaboração numa terceira longa-metragem no futuro?

A concepção dos dois filmes meio que se cruzaram, e foram feitos em tempos muito próximos. Comecei a escrever o "Carvão" em 2016 e, sei lá, um ou dois anos depois, prossegui para o "Pedágio". Quando comecei a escrever a primeira longa, já imaginava o papel pensando nela, quando segui para a segunda, também pensava na Maeve, mas não queria que fosse a mesma protagonista; queria visualizar outra pessoa, mas não consegui.

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Carvão (2022)

O que aconteceu ao certo é que ela já estava integrada no “Carvão”, depois seguiu-se a produção do “Pedágio” que seria filmado ainda antes da pandemia, só que conta da mesma, e consequentemente as questões de orçamento, etc, toda essa situação fez com que o filme não pudesse ser filmado no período pretendido, foi uma reviravolta louca. Nesse momento, ela ficou vinculada ao "Pedágio", assim como "Carvão". Não conseguia parar de visualizar ela enquanto Suellen [protagonista de “Pedágio”]. Então, liguei para ela um dia e disse: "Cara, tenho uma coisa para te falar. Sinceramente, eu não queria te fazer este convite, mas vou ter que fazer. Você leria o roteiro? Porque não paro de te imaginar como essa personagem, mas não queria ter a mesma pessoa protagonizando os dois filmes, porque são duas mães. Os filmes são muito diferentes, mas são duas mães."

Ao qual respondeu: "Nossa, eu não me incomodo nem um pouco”. Fez uma piada, “não me incomodo nem um pouco de repetir diretor, não sei o quê." Aí ela leu e amou o guião. A partir daquele momento, quando começamos a conversar sobre a personagem, passou a ser impossível tirá-la da minha cabeça. Já a tinha convidado, e ela passou a estar vinculada a "Pedágio" também. Isso foi antes de filmar "Carvão". 

Filmamos "Carvão", foi ótimo, a nossa parceria foi incrível. A relação, o entendimento da linguagem, foi realmente muito incrível a relação que construímos profissionalmente. Três meses depois, filmamos "Pedágio", e já tínhamos uma relação de confiança e entendimento artístico muito forte.

Não sei se ela vai fazer os próximos filmes, mas ela é uma atriz muito capaz. Penso, assim como na Aline Marta, que fez os dois filmes também, fazendo a enfermeira em "Carvão" e a amiga dela em "Pedágio", são atrizes muito boas, com uma sintonia artística para comigo, o que me fascina. Consigo enxergar nelas as novas vidas que criarão quando as vemos no cinema. Então, não sei dizer especificamente se ela vai ou não fazer, mas possivelmente, ela, Aline, Camila Márdila, Pedro Wagner, Thomás Aquino, atores que gosto e com quem já trabalhei e que gosto muito de trabalhar, repetiria sem dúvida. Ela, com certeza, é uma delas.

Pelo visto funcionou, tendo em conta o curto prazo entre a produção dos dois filmes, em "Carvão" tem uma postura mais "bicho do mato", enquanto "Pedágio" assume uma personalidade completamente diferente. 

Mas o que é interessante nesta relação entre mãe e filho [interpretado por Kauan Alvarenga, o qual trabalhou com a realizadora na curta “O Órfão”, em 2018], é que, em momento algum, encontramos uma epifania, uma consolidação ou redenção, aquele momento chave que a partir daí “tudo correrá bem”.

Por exemplo, falando em conversão, recordo de um filme norte-americano com a Nicole Kidman, “Boy Erased” [de Joel Edgerton], onde existe um momento em que a sua personagem faz com nós espectadores simpatizamos, ou perdoamos ela. Em “Pedágio”, sabemos o que a mãe está a fazer ao seu filho, e ao mesmo tempo percebemos que o filho também não demonstra grandes sentimentos para com ela Aqui, a relação é um eterno work in progress, o que a torna mais verdadeira e humana.

Diferente desse filme que mencionaste, que apresenta uma linguagem que, sinceramente, não corresponde à minha visão nem às histórias que me cativam, pois penso que se trata de enredos que, de certo modo, ficam por resolver. Penso que uma relação de tamanha complexidade é algo subtil e, simultaneamente, um eterno trabalho em progresso. Esta relação é um constante trabalho em desenvolvimento, não é algo que se resolve numa epifania, como disseste, onde tudo magicamente se acerta ou desmorona. Eles são mãe e filho e, acima de tudo, amam-se. Isso fica claro em vários momentos, como quando o namorado dele pergunta: "Por que precisas da tua mãe se não dependes dela?" E ele responde: "Porque a amo." É algo que nem ele próprio consegue explicar totalmente, mas que está lá.

Por exemplo, no final do filme, quando estão juntos e ela olha para ele, não é um olhar de orgulho, mas também não é fácil perceber exatamente o que o olhar transmite.

Para mim, é assim: esta história vai continuar. Como vai continuar? Se ela vai aceitar, se não vai, existe um processo, e é esse processo que me interessa, porque acredito que é isso que humaniza os personagens. É verdade: discutimos com alguém, ficamos chateados por algum motivo, ou amamos alguém, e isso precisa de tempo para assentar, para compreender, para nos habituarmos, ou não. Faz parte das nossas relações esses altos e baixos, esses caminhos por vezes tortuosos, que nem sempre resultam num final resolvido e feliz.

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Pedágio (2023)

Há momentos em que ela diz, até ao seu namorado, que ama o filho e que faz tudo por ele. Então, vou focar-me muito nessa dinâmica, porque acredito que essas pessoas veem aquilo como uma doença.

Sim, também acredito que essas pessoas veem aquilo piamente como uma. Elas são ensinadas a pensar assim, são produtos de uma sociedade que lhes inculca que, se não tiverem um desempenho social perfeito, há algo de errado com elas. Sendo uma mãe que criou e está a criar um filho, qualquer erro é atribuído a ela.

Penso que isso, aliado a várias pequenas ‘coisas’ do dia a dia, como os colegas de trabalho a gozar, cria um sentimento de sensibilidade forçada. Esse sentimento, que é o que move as pessoas, é muito forte, é quase como se ela fosse uma outsider numa sociedade onde todos seguem normas e se encaixam em papeis pré-estabelecidos, reconhecidos e entendidos como corretos. Cada um tem o seu lugar.

Portanto, para ela, aquilo é um ato realmente bom pelo filho. Ela acredita que está a consertar o filho e, consequentemente, a sua própria vida, para que não seja mais julgada como uma pessoa que falhou. Sim, é uma sequência.

E a Igreja, nomeadamente as pentecostais evangélicas, no Brasil, tem contribuído para isso.

Com certeza, não quis estabelecer especificamente que tipo de igreja era. A ideia também foi trazer um pastor diferente, que não fosse aquele pastor mais velho, com cultos tradicionais que já vimos várias vezes, e sem caracterizar exatamente que igreja é essa. Mas, claramente, é uma igreja pentecostal.

Não me refiro apenas aos evangélicos. Todos os religiosos conservadores têm questões com a homossexualidade e a maioria deles condena-a. Existem algumas frentes de igrejas evangélicas que são dissidências muito esparsas e específicas, com outro ponto de vista, mas no geral, contribuem para o conservadorismo, o preconceito e a violência, porque o resultado disso não é só a ridicularização ou os insultos, mas uma violência física real. O Brasil é um dos países que mais mata a população LGBT+ no mundo, então essa questão é muito forte.

A igreja, os pastores, e o que pregam, com certeza, contribuem muito para que isso continue a ser uma prática na sociedade. E não se pode colocar a culpa apenas na religião evangélica, mas ela é mais proativa e tem uma disseminação muito grande entre as pessoas.

Como também no Brasil, essas igrejas estão muito associadas ao poder político …

Exatamente. Os pastores praticamente determinam quem será eleito, pois instruem os fieis a votarem apenas em certas pessoas. Está tudo muito interligado com o conservadorismo. Mesmo que alguns políticos sejam mais progressistas, muitas vezes não podem se posicionar como tal, pois correm o risco de perder o eleitorado de uma certa parcela da população, que é orientada por esses pastores. É uma loucura!

Além disso, há políticos que não são progressistas de fato, mas precisam manter uma postura conservadora para garantir o apoio dessa base influenciada pelas igrejas. Essa dinâmica perpetua um ciclo de conservadorismo e preconceito, dificultando ainda mais a mudança social e a aceitação de questões como a diversidade sexual e de gênero.

Falando apenas do pastor evangélico, gostaria de abordar a presença de Isac Graça, pois, tal como mencionou anteriormente sobre a questão do ridículo destas terapias, o papel do ator parece contribuir nesse sentido. Além disso, gostaria que falasse sobre a sua entrada no projeto: foi um exigência da coprodução portuguesa [O Som e Fúria]?

Entendi, não foi um pedido de jeito nenhum, foi uma escolha totalmente artística. Inclusive, até uma semana antes de começar as filmagens, eu estava procurando atores no Brasil, mas não conseguia visualizar exatamente como seria aquele pastor. Eu não queria apenas repetir um tipo de personagem que já havia visto antes. Estava um pouco desesperada em busca de uma luz.

Foi nesse momento que o Luís Urbano [produtor da O Som e Fúria] e a Karen [Castanho, produtora da Biônica Filmes] me apresentaram a possibilidade do Isac. Achei que fisicamente ele poderia representar algo entre pastor e coach. A persona dele era muito interessante e então conversei com ele a respeito do papel. Ele entendeu-o perfeitamente, desse pastor como alguém que realmente acredita naquilo que faz, para quem não há nada ridículo. Para ele, é uma tarefa muito séria, muito eficaz, e o faz pelo bem da Humanidade …

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Pedágio (2023)

Ele trata tudo como uma pseudociência …

Totalmente, para ele é uma ciência. Essa seriedade me fascinou junto com a persona dele, foi como se algo clicasse na minha mente, e por isso convidei o Isaac para fazer o filme. Mas não foi uma imposição de coprodução de forma alguma.

Algo que observei, tanto em "Carvão" como de forma mais pronunciada em “Pedágio”, é o facto de muitas personagens adotarem um discurso moralista em relação às outras, revelando-se moralmente hipócritas. Temos o exemplo da colega da Suelen [Aline Marta] e a sua relação com o adultério, isso também se aplica à questão da mãe e, possivelmente, ao próprio pastor. Não sei se isto é claro, mas há uma sugestão de que o pastor também seja gay.

Assim, gostaria de perguntar se há uma intenção deliberada de destacar essa hipocrisia moral nos seus filmes.

Sim, sem dúvida. Isso é um dos elementos que mais me interessa no tipo de cinema que faço e que desejo fazer, o de questionar essa hipocrisia inerente a todos nós, em diferentes graus. Considero isso uma característica humana fascinante. As ações que tomamos, as palavras que dizemos e os papeis sociais no qual somos obrigados a desempenhar, muitas vezes de forma violenta, são temas que também exploro em "Carvão".

A questão religiosa também é crucial, onde em nome de Deus, tudo parece ser permitido, inclusive as maiores violências. Tal cria um paradoxo profundo e irónico. Portanto, vejo um espaço rico para explorar a hipocrisia humana.

Lembro-me de uma ocasião especial durante a apresentação de "Pedágio" em Roma, que ilustra bem esse tema. Estávamos com um guia turístico pela cidade, e ela contava a história de uma ponte antiga em Roma, adornada com pequenos monumentos que representavam a cabeça de um papa da época, ou algo do género. Não sei exatamente qual era o papa, mas sei que as pessoas que estavam construindo a ponte se desentenderam. Então, para castigar aqueles que estavam brigando, o papa, que acreditava que as pessoas deveriam entender-se e não ceder ao conflito, mandou cortar a cabeça dos dois. Depois, contratou novas pessoas para continuar a construção da ponte.

Isso para mim é simbólico, diz tanto sobre a psique humana, sobre o poder de julgar, de ser o arauto, o bastião da sabedoria, podendo decidir sobre o bem e o mal, e ainda assim cometer atos de maldade. É tão inocente, de certa maneira. 

E quanto a novos projetos? Senti durante a nossa conversa o avanço de algo …

Estou a escrever um novo projeto, que também será uma coprodução portuguesa. Estou muito feliz com isso, pois adoro o Luís Urbano, que se tornou um grande parceiro, e sou apaixonada por Portugal. Adoro estar aqui!

Este novo projeto será uma história que aborda as ironias da vida, agora focada numa família rica de São Paulo. O enredo começa com a descoberta de uma filha ilegítima após a morte do patriarca, desencadeando uma série de eventos na família e na empresa desta. É uma história com humor ácido e drama, ou melhor, um verdadeiro drama com toques de humor ácido.

Estou a desenvolver este projeto e vou até ao Porto para o segundo módulo do Torino Script Lab, que estou a frequentar. Enfim, este é o meu próximo projeto. Espero ter o argumento concluído até ao final do ano e estou ‘super’ entusiasmada com isso.

O fácil engate de Lisboa

Hugo Gomes, 24.04.24

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Sobre “Amo-te Imenso” há pouco para dizer e ao mesmo tempo muito para falar; como nos vemos, como os outros nos veem e como desejamos ser vistos. Três formas de exposição que num género, que tão formado nos soa moribundo parece indicar, mas nada de relevante na qualidade do filme do brasileiro Hermano Moreira [primeira longa-metragem], nesse aspecto, escassamente ou nada o faz relevar das atitudes de “Lisboa para gringos”, tudo perfeitinho, tudo esplendoroso e “tapas” como tradição. 

Enredo de viajantes e amores casuais, filme esse que cheira-nos a fragrância cosmopolita efêmera, de “para entender um brasileiro basta ouvir samba, já o português …” - uma pausa dramática e uns acordes de guitarra portuguesa - “basta ouvir fado”. É neste catálogo turístico, vendendo a nossa característica melancolia sem a entender, e o resto pela capital portuguesa em rigor dos seus postais turísticos. Tal faz-se pela ótica de um paulista recém-chegado à outra margem do Atlântico, deparando-se com um país colorido e de Sol presente, de fanfarra e farras, enquanto São Paulo, em breves cenas, nos é pintado em dominantes tons cinza, céu nublado e monos arquitetônicos, uma floresta tropical de betão que contrasta com os maneirismos paisagistas da "cidade-alfacinha". É a sua visão que conta, e nós, espectadores portugueses consentimos esse ‘julgamento’ positivo, adoramos a aprovação e o deleite encantado dos estrangeiros nas nossas terras, do selo “país de brandos costumes” a “povo que sabe bem receber”. Faz-se por via da comédia romântica, daquela importada de Nova Iorque cuja ilha metropolita é um mundo aparte, respiramos esses ares de modernidade despreocupada, porque esquecemos, por momentos, do nosso cinzentismo e deixamos escapar um sorriso amoroso agraciado nas luzes ... essa tão elogiada luminosidade ... de Lisboa

Muitos dirão que a comédia romântica está morta, ou não tem lugar no público atual, ou entenda-se não faz sentido noutras cinematografias, e esta co-produção luso-brasileira da Promenade (“Leviano”, “Frágil”) e Paramount Pictures Brasil é um tiro ao lado do alvo que se designa gosto da audiência. Para afrontamentos ‘gringos’ na Lisboa cinematográfica, tentou-se e igualmente fracassou-se, Leonel Vieira em modo Globo da alternância com “Alguém como Tu” (2017), havia um elemento fantasioso na sua fantasia, no caso de “Amo-te Imenso” (com um casal deveras tóxico) a fantasia morre pela boca.

Ímpares - Ciclo de Conversas / Double Bill: Abel Ferrara - Bacurau & Vazante

Hugo Gomes, 09.04.24

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Na próxima segunda-feira (15 de abril), estarei na sétima sessão da iniciativa Ímpares - Ciclo de Conversas enquanto moderador. Vai-se discutir a filosofia “desesperante” de Søren Kierkegaard em cruzamento com o filme de Abel Ferrara (“The Addiction”), com responsabilidade do Dr. Telmo Rodrigues, e ainda, do outro lado do Atlântico com “Bacurau” de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles com “Vazante” de Daniela Thomas, sob a batuta da poetisa e ensaísta Patrícia Lino. A ter lugar na Cinemateca Portuguesa, mais concretamente na Livraria Linha de Sombra, pelas 18h30. A entrada é livre.

Mais informação, ver aqui

Ciclo «Câmera-Corpo» na Culturgest: pela lente ergue-se a janela para o mundo indígena

Hugo Gomes, 04.04.24

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Na rodagem de "A Flor do Buriti" (João Salaviza & Renée Nader Messora, 2023)

Arrancou hoje (04 de Abril), a primeira edição do Câmera-Corpo”, ciclo promovido na Culturgest, em Lisboa, com “perninha” com o Festival Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte, do outro lado do Atlântico [Brasil], e motivado com a estreia de A Flor do Buriti” da dupla Salaviza e Nader Messora. Trata-se de um ciclo que decorrerá em dois dias com ambições de despertar a curiosidade lusa sobre o cinema-indigena e lançar-se no debate sobre, para além das estéticas, a sobrevivência destes povos e a preservação do seu modo de vida. 

Tendo curadoria de Daniel Ribeiro Duarte e Júnia Torres, esta última dando a honra ao Cinematograficamente Falando … de descortinar a mostra e a sua órbita, fica, para além do gesto a resistência não como grito mas como existência numa cinematografia que deseja, em todo o caso, ser emancipadora. 

Gostaria que me falassem sobre a génese deste projeto e como se desenvolveu a parceria com o forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte?

O forumdoc.bh é um festival que há 27 anos exibe filmes indígenas, sendo pioneiro nesta difusão e divulgação.  

Em 2023 fizemos o lançamento do belo e importante filme “A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader, em sessão comentada com a presença dos realizadores e dos argumentistas indígenas do povo Krahô. Foi um momento muito forte e bonito na programação. Deste encontro no Brasil partiu a ideia de realizarmos em Portugal, junto à estreia deste trabalho uma pequena mas significativa mostra das produções de diversas etnias que vem fazendo do cinema um modo de expressão valioso e um veículo de fortalecimento cultural, num movimento estético especialmente relevante para o documentário no Brasil.

Quais são os principais objetivos que esperam alcançar com esta mostra?

Difusão e valorização de um novo modo de fazer cinema, com novas perspectivas,  linguagens e abordagens que amplia o protagonismo autoral cinematográfico e colabora para a relação entre povos diversos e entre indígenas e não-indígenas. Esperamos que uma maior visibilidade internacional possa colaborar politicamente para a manutenção, emancipação e permanência dessas culturas com o seu modo especial de se relacionar com o Outro e o que chamamos de natureza.

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Yvy Pyte - Coração da Terra (Alberto Alvares & José Cury, 2023)

O que pode dizer sobre os filmes seleccionados?

Os filmes selecionados compõem um conjunto que procura mostrar trabalhos contemporâneos,  realizados nos últimos anos, com abordagens e estratégias fílmicas heterogéneas que vão de filmes mais etnográficos ou melhor, auto-etnográficos até filmes de experimentação formal, como vídeo-performance. Mas todos eles com recados importantes sobre os (civilização ocidental) limites ambientais, sociais, etc. São amostras de modos de vida diversos e mais ricos, como acreditamos. 

E em relação aos convidados?

O convidado principal desta Mostra será o cineasta Guarani, Alberto Alvares, um dos mais reconhecidos e atuantes realizadores indígenas em atuação no Brasil. Tuparay, seu nome Guarani, faz um filme muito pessoal e autobiográfico que a um só tempo é muito subjetivo e autoral e alcança as grandes questões pelas quais atravessam os povos indígenas no Brasil, assim como nos faz refletir sobre questões humanas gerais e existenciais. É o lançamento, fora do Brasil, na sua mais recente longa-metragem. 

Temos também Renee Nader e João Salaviza para comentarem o seu intenso e extenso trabalho de mais de uma década com o povo Krahô, comentando no dia 5, filmes autorais dos seus companheiros de realização nas Aldeias na região da Amazónia. 

Pesquisadoras e pesquisadores interessados e que já conhecem a produção dos cinemas indígenas também aceitaram os nossos convites para participarem, e estamos muito felizes com essa adesão.

Tencionam continuar com este ciclo no futuro, ou consideram-no como um evento único por enquanto?

Sim, a ideia é estabelecer possibilidades de continuidade nesse movimento para formar um público para estes filmes também em Portugal. A periodicidade permitirá também acompanhar o desenvolvimento dessa nova e inovadora cinematografia, pois a proposta é mostrar a produção contemporânea. 

still1-b.jpegEssa Terra é Nossa! (Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu, Roberto Romero, 2020)

Como encaram o trabalho de João Salaviza e Renée Nader Messora com o díptico krahô dentro do contexto do cinema indígena?

É um trabalho extremamente interessante pois incorpora elementos da cosmologia e da estética krahô nos filmes que são inteiramente atravessados por tais linhas de força e de potência. Desse encontro, surge uma nova perspectiva para o cinema do Real, que se constroi para além dos limites entre a ficção e o documentário, essa divisão, ou essas categorias e géneros fílmicos deixam de fazer sentido. É um modo de produção muito especial pelo nível de profunda relação, conhecimento e respeito com o coletivo indígena parceiro na realização. O que reflete numa proposta formal muito singular, que amplia os conceitos e as formas de se fazer cinema.

Não querendo estragar a "magia"", mas gostaria que explicassem a escolha do nome para o ciclo - "Câmera-Corpo" - e como os corpos dos indígenas são, maioritariamente, representados no cinema enquanto corpos políticos.

Os cinemas indígenas, assim no plural para respeitar ou responder à diversidade de povos que o realizam, mas também, evidentemente a sua bem-vinda heterogeneidade e complexidade formal, são cinemas do corpo, do gesto, das florestas, dos espíritos e não somente das palavras humanas.

Incorporam relações inter-espécies. A câmara funciona como uma extensão do corpo, do olhar, participa dos acontecimentos diários e rituais, dança, caça, compartilha mundos e modos de existência muito diferentes dos nossos. Permite-nos uma imersão nestas diversas cosmologias. A câmara é a flecha que luta e também o cesto que recolhe e guarda memórias fundamentais.

Cantar para os espíritos reunir ...

Hugo Gomes, 20.03.24

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(...) talvez tenha sido o que mais me emocionou, que vocês, tu João e tu Renée, tenham deixado para trás o antropológico, tenham deixado para trás o etnográfico,entregando-nos a condição humana, deixando-nos simplesmente perante a vida, que é observada, que é olhada e também amada.

Paz Encina, “Passagens” / Edições Batalha Centro de Cinema

 

Aproveitando a deixa da realizadora paraguaia de “Eami”, assumidamente amiga deste casal-cineasta, lanço-me naquilo que tanto me fascinou neste “A Flor do Buriti”, e que já havia sido sugerido em “Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos”: o convite e completa submersão num mundo que não é o nosso, sem estranhezas e sem pedagogias de qualquer espécie. Assim, começamos pela noite escura, envolvida numa fogueira sob cânticos ancestrais. Há um chamamento, ou talvez premonição, perto daquela intimista festividade: uma grávida na angústia das suas dores, natural como é assim dito para acalmar a “pobre criatura”. Mais afastado desse círculo, um bando de crianças depara-se com um animal estranho no seu território: um bovino, o símbolo de uma civilização, como os seus integrantes adoram apelidar em prol de uma superioridade modernista, que estes Krahôs pouco ou nada desejam conhecer. Uma praga, ou antes uma espécie invasora anexada a outra com iguais fins. Com este prelúdio, damos de cara à espectralidade que nos aguarda sossegadamente.

A Flor do Buriti”, que conta com a escrita de um dos membros da comunidade indígena (Henrique Ihjãc Krahô), e filmado em 16mm, assume a urgência de um arquivo memorialista, dando palco a estes protagonistas na partilha das suas interações, das suas dores, tragédias com que vivem, ou no medo que os habita. Talvez seja longe do seu costume, mas difícil testemunhamos um sorriso nas suas faces, soam-nos, não “criaturas” tristes, mas indivíduos conformados com a sua fatídica existência no mundo moderno, ora indesejável nestas lides do progresso e das políticas daquele Brasil que declara posse das suas vidas.

E é nessa existência que Salaviza e Messora encaminham invisivelmente, é o tratado do indígena, não uma extração de recordações e de passados que mereciam estar confinados nas profundezas, é o seu simbolismo, como o mundo parece-lhes ou como a fauna e a flora lhes encaram. Resistência e resiliência, transcendências e onirismos terrenos, como os Krahôs acreditam que os seus sonhos são apenas pedestridades da sua alma e como a morte, esse fim, não é mais que uma passagem. Os espíritos permanecem com eles, comunicam e deixam-se ser comunicados, dançam e cantam, a noite torna possível essa tradução, rompendo dimensões e barreiras impostas pela sobrenaturalidade, esse ditame ocidentalizado que coloca numa caixa tudo o que desconhece.

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A Flor do Buriti” bebe dessa naturalidade à sobrenaturalidade, o que já estava indiciado na obra anterior, mas leva-nos mais agreste, mais familiarizado (e pudera). Porém, há um contágio, um resquício nessa civilizacionalidade no percurso destes “índios”. Perante as “portas escancaradas” deixadas pelo Governo de Bolsonaro, o par que se destacou, partindo em direção a Brasília, percorrendo um Brasil contaminado pelos cantos e sermões evangélicos (prova viva de colonização) ou da mentalidade de vaqueiro e tudo o que isso acarreta, manifestando-se por um lugar desapropriado, desfeito, desvinculado, são indígenas de tribos várias, que de punho erguido, solicitam um estatuto deveras naquele país multicultural.

Neste último ato, como havia acontecido no “Chuva’” ("Krahô? Não. O teu nome de Branco?", como nunca esquecer aquele golpe de realismo sob comentário social), Salaviza e Messora lançam “farpas”, consolidam a sua experiência e cometem o seu ativismo possível, o seu gesto político, perfeitamente sincronizado com o zeitgeist e com as vontades desses seus protagonistas, é o retiro da realidade que nos impôs, a realidade dos “Krahô”.

Após a fuga, o tal movimento de protesto, as heroínas no palanque prometendo mundo e fundos numa luta, sem questão, desigual, voltemos ao “mato dos Krahôs”, aos seus rituais, à sua oralidade contada, partilhada envolto de cicatrizes e calos, e deixemos enraizar entre eles. O filme leva-nos a isso, a permanecer com eles, sem com isso nos tornarmos iguais, e por sua vez, sem nunca ceder a um olhar de estranheza, “estrangeiro” acrescentamos àquela comunidade. Não se trata do “selvagem conquistado”, mas antes disso do “espectador amestrado”. Uma viagem para além do terreno, do político, de uma dimensão que nós desconhecemos com força. O olhar dos Krahôs!

 

Um índio preservado em pleno corpo físico

Em todo sólido, todo gás e todo líquido

Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro

Em sombra, em luz, em som magnífico

Caetano Veloso

Corpos políticos, cinema de punho

Hugo Gomes, 16.03.24

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Neste filme tudo é político, declara a realizadora Lillah Halla (“Menarca”), não deixando margem para dúvidas de que “Levante”, a sua primeira longa-metragem, é uma obra politizada desde o seu frame génese até ao derradeiro. Não há engano, mesmo nos momentos de afetos, onde a pele acastanhada de Ayomi Domenica se constrata com o branco como de floco de Loro Bardot, entre amassos e abraços, carícias e beijos, sob suspiros de prazer e risinhos de intimidade, são também eles objetos de um ativismo fílmico, pontuado num filme com apetite para tudo e concentrado numa só vontade: delinear uma fronteira, geográfica, moral e praticável quanto ao tema do aborto, da sua descriminalização e da intolerância pró-vida perante essa mesma determinação. 

Levante” não foge aos quadrantes da estética queer, mas prepara-se para oferecer mais do que o efeito de inclusão e representatividade; há um aprumo, acima de tudo visual, e um simbolismo rodopiante que proclama Lillah Halla como calculista, delicada e igualmente combativa. Portanto, esta história de uma equipa de voleibol primada na sua diversidade, e cuja sua “estrela”, Sofia (Ayomi Domenica), poderá contar com um futuro risonho conforme é ditado pelas premonições dos olheiros. Uma bolsa à espera, só que nesse preciso momento, descobre uma gravidez indesejada. Sofia aventura-se na clandestinidade, na fronteira uruguaia, tentando com isto preservar o seu percurso acima de uma “prisão doméstica”, mesmo desafiando forças evangelizadas que a ameaçam constantemente. 

Com Bolsonaro fora, o cinema brasileiro prepara um novo desafio, que é lentamente emancipar-se do “cinema resistência”, não só complementado com o grito de protesto da produtora Sara Silveira no Festival de Berlim de 2020, mas também a oposição a um governo que tinha como missão secar e condicionar o audiovisual nacional. “Levante”, com um desenvolvimento de oito anos, atravessou épocas e extraiu resquícios desse regime, chegando até nós com um certo atraso quanto à sua agressividade temática, mas exibindo um devaneio estético e a subversão de alguns clichés entranhados que este cinema de pontes perpetua, neste caso oferecendo-nos o “pai aliado” interpretado por Rômulo Braga, ator viril que tem desconstruído essa imagem ao longo da sua carreira (“Elon não Acredita na Morte”, “O Rio do Desejo”). Lillah Halla poderá marcar com “Levante” a fronteira para com o cinema pós-Bolsonaro.

"Neste filme tudo é político": um conversa com Lillah Halla, realizadora de "Levante"

Hugo Gomes, 14.03.24

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Sofia (Ayomi Dominica), uma jovem a poucos passos da sua maioridade, jogadora plena de uma equipa de voleibol inclusiva, cujo futuro parece lhe sorrir com vontade. Mas o destino, por sua vez, prega-lhe uma partida. Prestes a adquirir uma bolsa, Sofia descobre que está grávida, e pelos seus próprios meios tenta interromper a gravidez, mantendo-a em segredo do seu pai (Rômulo Braga) e da sua equipa / turma chefiada pela treinadora Sol (Grace Passô). Uma corrida contra o tempo, contra um país, contra o fervorismo religioso, de frente a um progresso social que nunca chega.

Primeira longa-metragem de Lillah Halla, “Levante”, apresentado na Semana da Crítica de Cannes em 2023 e no Leffest do mesmo ano, é um filme que não esquiva da sua verdadeira natureza, uma obra política onde tudo nele é de igual ímpeto. Desde a sua temática, a sua estética, a sua diversidade e também o seu ritmo, jovial e dinamizado, que nos entrega um dos mais potentes e recentes punhos erguidos contra políticas obscurantistas, esses inimigos de face variada contra os quais o cinema brasileiro declarou guerra há muito.

Em conversa com o Cinematograficamente Falando…, Lillah Halla fala-nos sobre esse teor político, sobre o Coletivo Vermelha que fundou e que promove, e também do tema central do filme: o acontecimento, o aborto.

Começo com a, talvez, pergunta geral: de onde surgiu a ideia para este filme? Pelo que entendi foi um processo de escrita e desenvolvimento ao longo de sete anos.

Na verdade foram oito.

Corrigindo: um processo de escrita e desenvolvimento ao longo de oito anos.

São muitos os pontos de partida de um filme; são os acontecimentos políticos, são as circunstâncias pessoais, são os encontros, mas um marco bastante importante para nós foi o momento em que pisamos na fronteira entre o Brasil e o Uruguai e a descriminalização do aborto do lado uruguaio, ou a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, como eles chamam, o que gerou uma situação especular muito forte, muito imagética também. Porque o Uruguai tinha dados muito parecidos com os do Brasil até então, até à descriminalização. Hoje, no Brasil, a cada dois dias, uma mulher ou pessoa com útero morre em consequência de abortos clandestinos, é um número absolutamente alto. É a quarta maior causa de mortes de mulheres no Brasil, uma necropolítica absoluta e inaceitável. E o Uruguai tinha números parecidos até ao momento da descriminalização e não só, reduzindo praticamente a zero o número de mortes por complicações de interrupções voluntárias, como também diminuiu o número de abortos. Então, nessa situação de comparação, qual é a fronteira?

A fronteira entre o Brasil e o Uruguai é muito porosa para todos os outros assuntos. Não há um marco mais visual da mesma entre o Brasil e o Uruguai do que aquela que você vê no filme, porque de maneira geral a fronteira cruza invisivelmente, e por vezes até cruza a casa das pessoas, ou uma rua cujo lado é Rivera, Uruguai, e do outro está Livramento, Brasil. Para todos os outros assuntos, a fronteira é um lugar de encontro, não de separação, mas para este, a fronteira é um lugar, praticamente um muro que leva a uma situação muitas vezes de vida ou morte. Então, nós, eu, Maria Elena Morán [Atencio], que é co-argumentista deste projeto, e Clarissa Guarilha, que é a produtora principal do filme, estivemos lá nessa época e foi muito marcante essa imagem, a partir daí começamos a recolher testemunhos. Passamos um tempo ali na fronteira e passamos a entrevistar pessoas do lado uruguaio, médicos, militância e muitos que contribuíram para que essa transformação acontecesse, para também entender de que maneira isso poderia ecoar no Brasil.

A partir daí nós fomos puxando os fios. Se você olhar de cima para uma quadra de voleibol, reparará que ela tem essa cartografia política separada por uma fronteira. Um lugar de uma divisão artificial e binária do que pode e não pode. O feminino, o masculino, o Brasil, o Uruguai são fronteiras que estão o tempo inteiro tentando romper com isso. Dentro do filme, essa cartografia do controlo de existências, o voleibol, também nasceu nesse lugar, além do corpo em jogo. Um desporto que requer estratégias coletivas, assim como os nossos levantes, e com reflexo na história de Sofia no desenrolar deste filme.

Continuando com o tema do aborto, uma mera curiosidade / coincidência é que a estreia do “Levante” chega-nos numa altura em que a França coloca o aborto como direito constituicional e em Portugal, como tivemos eleições há pouco, o tema do aborto voi novamente referido, neste caso, numa sugerida eventualidade de reverter a sua despenalização. Isto, sem contar com as medidas mais restritivas aprovadas nos EUA.

Essa referência na Constituição francesa também é fruto de todas essas mudanças. Em vários países, com a ascensão da direita, sabemos que qualquer direito conquistado não é um direito garantido. Ad infinitum. Então, existem algumas maneiras diferentes de garantir esse direito, um deles é através da Constituição. Outro é a despenalização. Existem várias maneiras de lidar com isso e a França escolheu trazê-lo para a Constituição para dificultar esse efeito sanfona de idas e vindas e mudanças consoante a direção política. Inclusive no Uruguai, durante esses oito anos de processo do filme, quando ocorreram as eleições de 2018, essa questão foi trazida novamente à pauta, e se cogitou a possibilidade de revogação. Nós estávamos a lidar com isso no tabuleiro político o tempo todo, o processo deste filme ecoava a história e a história política e social dos dois países, ao mesmo tempo em que tentava elucubrar possibilidades de futuro.

É um direito de saúde e de existência que não pode ficar ao sabor desses movimentos políticos. Houve em 2018, no Brasil, uma tentativa de descriminalização através da ADPF, e que está novamente em votação neste momento. A ministra [do Supremo Tribunal Federal] Rosa Weber, antes de se aposentar, deixou o seu voto “Sim”. 

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Lillah Halla

Para você ter ideia, Dilma tentou abordar o assunto na campanha, foi atacada pela esquerda como pela direita, o qual a fez recuar. Lula tentou abordar a questão na campanha, foi igualmente “atacado” pela direita e pela esquerda, e também recuou. É complexo dizer isso, Lula pôde falar publicamente da importância do cessar-fogo em Gaza mas não pôde falar publicamente da descriminalização do aborto no Brasil. É uma das questões mais complexas do nosso país, embora sempre seja colocado num lugar muito maniqueista de religião versus não-religião. E é importante referir que o tema não se resume a isso, porque temos frentes religiosas, as fé-ministas, como se autodenominam, lutando pela despenalização e pela descriminalização. 

Quando os assuntos são tabus, muitas vezes nos deparamos com opiniões pessoais, então, é crucial voltar aos dados. Uma mulher morre a cada dois dias no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, e 80% das mulheres que buscam aborto, independentemente de sua religião, têm fé. Dessas, 70%, se não estou enganado, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, são cristãs.

Falamos muito mais de um controle de corpos baseado em poder, como disse a pastora Lusmarina Campos, na ADPF de 2018, estamos perante um machismo eclesiástico.

Sobre a questão do voleibol, gostaria de lhe perguntar sobre a escolha deste desporto? Há uma ideia de inclusividade, representatividade e diversidade no seu filme, refletida nesta equipa, e igualmente nesta modalidade desportiva. Pelo que percebo no filme, a bandeira forte daquela equipa conseguir chegar onde chegou baseia-se na sua união.

É por isso que o filme se chama "Levante". Acredito que o que subjaz como uma corrente subterrânea de sentido nessa história é essa organização coletiva, essa pulsão de vida, e não apenas política, essa macropolítica, sobre a possibilidade de se organizar para existir com nossas diferenças, nossas potências e com nossas alegrias. Assim, a alegria é uma questão muito importante no filme, porque também ela é politizada, não é à toa que o grupo do Celeste vem com essa potência, essa malícia e essa força cada vez que aparecem, na frente e atrás das telas. Inclusive, a cada momento que se encontram, são potentes. São pessoas que não se conheciam antes e que hoje formam um grupo, uma família, vindo de partes diferentes do Brasil. Acho que é importante dizer isso, não é? "Levante" também trata sobre família. Sobre a família que escolhemos.

E ninguém pode impor o modelo dela para nós. É um filme sobre a importância das redes de afeto, da importância da nossa organização, da importância da voz de cada uma das pessoas nessas transformações sociais.

Tamém existe outro elemento que no filme detém uma carga metafórica e simbólica, que são as abelhas, elas, as “operárias”, praticamente todas fêmeas, apesar de não terem um sexo definido, um útero, mas biologicamente são organizadas e colaboram para uma causa, no caso delas a rainha, o útero. No filme, o útero de Sofia.

Organização coletiva sim.

Visto falarmos em coletivo, gostaria que me abordasse sobre sobre o Coletivo Vermelha o qual integra.

O Coletivo Vermelha também teve uma grande importância na origem destes projetos. Estes são permeados por várias questões pessoais, históricas e sociais, do ambiente e do meio social em que nós, contadores de histórias, estamos inseridos.

Estudei cinema em Cuba e venho do teatro, mais especificamente do teatro de grupo, onde aprendi muito sobre organização coletiva, o processo antes do resultado e a importância do espaço de criação conjunto. Quando terminei o cinema em Cuba, eu e outras duas colegas - Manoela Ziggiatti e Iana Cossoy Paro - e uma outra cineasta que não era da escola, mas que conhecíamos - Carou Alves de Souza - começamos então o Coletivo como resposta ao panorama da representatividade no cinema brasileiro.

Na frente e atrás das câmaras, esta cooperativa levou-nos à politização. Primeiramente, o Vermelha surge como um processo de politização feminista e queer feminista. Entramos em contato com várias matrizes e constantemente debatemos, o que levou à abertura e à adesão de mais pessoas. Começamos a fazer pequenas ações, as quais ganharam mais corpo, entendendo a absoluta necessidade de buscar possibilidades não hegemônicas dentro do cinema, seja pela questão da representatividade, organizando debates, ativismos e a criação de redes entre cineastas. Seguimos então para o segundo passo, uma pesquisa que, para mim, também foi essencial, não só para este filme, como para o anterior e para a vida. Comecei a estudar muitas mitologias fundamentais dessa ideia de abjeção do feminino, abjeção do outro não hegemónico, e o "Menarca" [anterior curta-metragem, datada de 2020] surge disso também, ao entrar em contato com mitos que são parte da nossa cultura ou importados de outras, porque esses atravessamentos também acontecem e legitimam a violência contra as mulheres, contra pessoas minorizadas, e essa ideia de abjeção.

O Vermelha é escola para mim. Possibilitou que entrássemos em contato com outros grupos também dedicados aos mesmos temas e causas, apelando assim a uma união de forças. 

Resumidamente, o Vermelha é muito parte da história deste filme também.

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Coletivo Vermelha; Caru Alves de Souza, Iana Cossoy Paro, Lillah Halla, Manoela Ziggiatti e Moara Passoni / Foto.: Wilssa Esser

Quanto à questão dos corpos, como havia também insinuado neste nossa conversa, o corpo político, o qual  parece não estar somente presente na equipa de voleibol ou no útero de Sofia, como também marcas as cenas de sexo e de afeto. Há uma estética nestas sequências o qual identifico como política, nem que seja pelo contraste de tons de pele, a da personagem Sofia para com a sua namorada.

Sim, poder político. Neste filme tudo é político. 

Era como o escritor Philip Roth dizia: “tudo é político, até o ato de lavar os dentes é político”.

Intencional e político. Neste filme, tudo também é fruto de muitos processos, de muitas discussões, inclusive com o elenco. Antes de escolher Domenica como protagonista, nós já tínhamos a equipa, mas não sabíamos exatamente quem era quem. Foi através de um trabalho conjunto que decidimos os papéis, aliás, novamente fruto do convívio e da interação que começou por delinear relações, personagens, cenas, improvisações, dinâmicas, gestos. O processo de elenco é também um processo de escrita. Não estou a impor um personagem sobre aquela pessoa. Aquela pessoa veste aquele personagem e incorpora a sua própria personalidade.

Eu escolho pessoas, e é nesse encontro que eu e Maria Helena reescrevemos o guião. Foi através da dinâmica e dos improvisos concretizados na primeira semana de trabalho conjunto que vi em Ayomi Domenica a nossa Sofia e Loro Bardot, muito evidentemente, como Bell. Propus e aceitaram, e a partir daí, Domenica e Bardot tiveram uma semana para experimentar com esses personagens, com este texto, para que no final dessa semana, afirmativamente, disséssemos: "Vamos! É isso".

Outro aspecto que gostaria de destacar no seu filme, é que, tendo em conta a existência de vários filmes brasileiros em que uma jovem vive um “coming-to-age” fora do normal, geralmente tem a família como um outro obstáculo, um impedimento ou reflexo de uma sociedade reacionário, intolerante e castradora. Mas no caso deste filme, o pai de Sofia é um aliado, uma espécie de “cavaleiro” a favor da sua filha. Gostava que me falasse do processo de escrita desta personagem e a escolha também do ator Rômulo Braga (“Elon Não Acredita na Morte”) para este papel.

Hoje no Brasil, diariamente, 500 crianças são registadas sem o nome do pai, apenas com o nome da mãe. Este é o panorama que enfrentamos. Os casos abordam uma paternidade distante, autoritária e tóxica, num sentido clássico e negativo. O cinema já retratou bastante a vida, representou-a amplamente. Portanto, para nós, era muito importante contrariar isso. O personagem de Rômulo envolve muitos aspectos importantes. Inicialmente, Sofia é menor de idade, sem a mãe presente. Ele é o responsável legal e, no início de sua jornada, acredita precisa lidar com isso, portanto, vai-se envolver gradualmente, percebendo a importância da situação. As questões de descriminalização não são uma questão de ser a favor ou contra, pois ninguém perguntou a ninguém quem está a favor ou contra.

Esta personagem passa por uma transformação ao vivenciar a experiência através da pele da filha, a qual está mais próxima dele. Cresce muito ao assumir esse papel de responsabilidade. Embora seja uma personagem que obviamente ajuda, ele compreende, como a própria lenda do filme diz, que pode tanto ajudar quanto atrapalhar. A sua escolha é ajudar. Ser o aliado. Ele é um pai amoroso, mas tem uma abordagem diferente da de Sofia, e está sempre a um passo atrás, lutando para formar um grupo de pessoas contra o país e a sua legislação, lutando contra a legitimação de violências como as que ela enfrenta. Ele é um personagem muito importante e amoroso.

Acredito que o cinema também tem uma responsabilidade em registar não apenas a realidade para que os espectadores se questionem, mas também em possibilitar imaginações de outras paternidades, por exemplo, a dedicação e o amor que este personagem tem pela sua filha e o quanto ele se propõe a rever e arriscar é uma paternidade que desejo para o mundo.

Rômulo esteve conosco no projeto desde o início. Além de ser um ator incrível, é uma pessoa que trabalha com afeto. No esquema do set de filmagem, que era muito diferente, precisávamos de alguém que pisasse com muito respeito e carinho. Rômulo, vindo do teatro, tem uma abordagem experimental do qual foi muito frutífero para a produção. Ele e o resto do elenco foram muito amorosos, abraçando a inexperiência de uma realizadora no seu primeiro filme. Entendo cada vez mais o processo desse filme, que foi um processo de criar campos minimamente confortáveis, para não dizer seguros, onde pudéssemos estar vulneráveis e criar juntos. 

O Rômulo assim como cada uma das pessoas que está nesse filme, tinha muito isso, naturalmente. Isso foi muito importante.

Numa das suas muitas entrevistas, abordou a curiosa história sobre um grupo de WhatsApp criado pelo elenco.

Algo que fui percebendo - num filme de baixo orçamento e ainda na primeira longa-metragem - é que tudo era muito corrido. Era como se estivesse a acontecer uma mágica, um encontro muito potente. A nossa pré-produção foi o momento mais marcante de todo o filme, porque foi onde encontramos a nossa essência, a nossa matéria-prima, com a qual seríamos lançados na "frigideira" durante as filmagens, porque ela era uma verdadeira correria. Tentamos criar condições para que essa correria tivesse limites; entender palavras de segurança, ter uma rede, uma comunicação com o elenco, com as equipas, que pudessem falar comigo abertamente. Criamos palavras-chave que pudessem ser pronunciadas sem que ninguém mais entendesse, para que pudessem expressar os seus riscos e as suas inseguranças. Um código para o "não me sinto confortável e preciso mudar".

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Levante (2023)

De maneira geral, isso atrasa as filmagens; o tempo realmente é mágico. Ele aconteceu muito na pré-produção, que também foi corrida, mas como não há intervenção da máquina, não é aquele relógio louco das filmagens.

Quando eu terminei o "Menarca", declarei: "Nunca mais faço cinema. Vou voltar para o teatro." Essa intervenção da máquina é terrível. Só que aí o filme fica pronto e é isso… Olha agora, o "Levante", está aqui na Itália, na Alemanha, na Turquia, no Brasil, existe algo que é muito potente uma vez feito. Mas o processo é muito doloroso, porque ele mata muitas magias pela própria estrutura industrial do cinema. Os tempos, a maneira, a máquina. Aí comecei a sentir que aqueles tempos não coincidiam ou exaltavam a magia do processo que é fazer Cinema. Sempre que me sinto apertada ou "castrada" por uma estrutura assim, eu, como as personagens, busco maneiras de hackear tudo isso. Quando a Grace [Passô] chegou, eles faziam coreografias do TikTok [risos] e não sei mais o quê, então resolvi trazer isso para dentro do filme.

Fiz uma proposta que foi uma maneira de hackear mesmo e criar outras possibilidades para registar aquela magia que estava acontecendo, porque muitas vezes a magia acontecia entre o "Corta" e o "Ação" e não entre o "Ação" e o "Corta". Então o que estava atrás de mim era muito rico, propus, já no processo de pré-produção, eles começarem a gravar ‘coisas’. É um pouco difícil, porque filmamos na academia, então a maior parte das experiências tinham máscaras no meio [“Levante” foi filmado em tempo de Covid], mas quando eles entravam naquele ambiente seguro, depois do teste, que era o ensaio, combinei fazermos um grupo de WhatsApp onde eu estaria, mas não interferia em nada, não dirigiria, nem assistiria. É um espaço deles, onde eles, como equipa, pudessem ir criar materiais.

E eles estão lá treinando vólei na quadra e fazem um “videozinho” ou um conteúdo algo assim. Aquilo lá virou uma espécie de pequeno arquivo de experiências, material lindo e muito muito vivo, sobretudo muito autêntico.

Até agora, só mesmo para terminar. Se calhar eu sei que está neste momento em digressão com o seu primeiro longa metragem, mas mesmo assim não posso deixar de fazer esta pergunta se já tem algum projeto em mente ou quer fazer um intervalinho.

E estou a desenvolver um projeto alemão. É uma coprodução com a França, chamado “Fleming”, uma comédia surrealista sobre a masculinidade e a ideia de nação. Além disso, estou a trabalhar num projeto de ficção-documentário, um híbrido no Brasil, dirigido em colaboração com uma diretora de teatro com quem trabalho há alguns anos, Janaína Leite. Este projeto é baseado numa experiência dela, sendo os dois filmes muito diferentes entre si, mas estou presente em todos eles.