Cataratas sanguinárias
O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012)
Byzantium (Neil Jordan, 2012)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012)
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Na rodagem de "Bacalhau" (Adriano Stuart, 1975)
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Com Renato Aragão em "Os Trapalhões e o Rei do Futebol" (Carlos Manga, 1986)
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Vinheta promocional de "Os Trombadinhas" (Anselmo Duarte, 1979)
Com Sylvester Stallone na promoção de "Escape to Victory" (John Huston, 1981)
"Escape to Victory" (John Huston, 1981)
Hot Shots (Rick King, 1987)
"Os Trombadinhas" (Anselmo Duarte, 1979)
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Neste quarteto amoroso - três irmãos enfeitiçados por uma “ninfeta de rio” - o rio Amazonas, essa grande porção de água que serve de fronteira “imaginária” a diferentes nações, é matéria de Tragédia Grega, como o próprio realizador [Sérgio Machado] afirma nas suas notas de intenção, mas, apropriando-se ao local, à cultura e, ao cliché da importação, bem poderia ser a raiz de uma telenovela brasileira (sem negativa conotação aqui).
Inspirado num pequeno romance de Milton Hatoum, um dos mais aplaudidos dos escritores brasileiros contemporâneos, “O Rio do Desejo” é um retorno “refrescante” ao romantismo que o cinema brasileiro é capaz de emanar, pausando assim nos movimentos revoltados ou temas sociais estampados que “conquistaram” festivais de todo o Mundo. Não com isso negando o lado politizado na obra de Machado (visto o seu círculo criativo não ser desprovido disso, Walter Salles e Karim Ainouz consolidam a circunferência), até porque, segundo o escritor norte-americano Philip Roth, “tudo é político, até o ato de lavar os dentes é um gesto político", seguindo essa lógica, evidenciamos "statement" nas descidas e subidas pelo rio, para além da miragem ao natural e a espontaneidade da mesma, da imprevisível “dança” dos pássaros até ao magnetismo que a selva (sublinhamos a fotografia de Adrian Teijido), dominante nas suas margens, apela.
O cinema encontrado em Machado é um cinema de vislumbre que traz, subtilmente, uma mensagem de preservação, não somente ecológica, como também multicultural, e o faz, não com discursos diretos, mas pelas imagens captadas, pela jornada que o filme revela e como um rio, contorna, sem nunca seguir em direção à pretendida aventura. Poderia ser um novo “Fitzcarraldo” de Werner Herzog (o barco fluvial invoca essa espiritualidade das dimensões humanas em contraste com a imponente Natureza), essa influência como sinal divino, ou poderia seguir pelo cinema narcotráfico ou tropico-criminal, mas a “coisa” é companheira da vida, tudo é uma passagem, uma história que fica é que é posteriormente recontada como experiência de café.
Em “O Rio do Desejo”, o coração é mantido em sigilo de tragédia, o espectador o sente desde a sua primeira “faísca”, quando o “conto de fadas” arranca com uma falsa-cápsula de felicidade. Sérgio Machado encara o seu público como experiente, a ingenuidade não mora aqui, e muito menos neste Brasil húmido e febril, as juras de “finais felizes” ou neste caso de “noites de foda adentro” são meras ilusões que antecipam a morbidez. É também um filme de atores, esses, que pelos intervalados espaços tentam imprimir a sua carga psicológica, a sua fantasia, o seu desejo ardente e por vezes mutilador. Rômulo Braga, homem de capa viril e de interiores despedaçados, não acredita na morte (nem ele, nem Elon), a “cabeça” deste elenco condenado ao efêmero sonho, e no centro do eventual quadrado circunscrito, Sophie Charlotte, a sereia ribeirinha, o boto da luxúria revelada na mais infeliz das mulheres, devido à sua constante dúvida no seu querer. Mas é por ela, que mais compaixão tecemos, até porque a certeza é inimiga da nossa existência. Nascemos a questionar, até mesmo os nossos sentimentos.
Somos apenas fiéis ao rio, à sua corrente, assim como o Cinema que "flutua" nas suas águas que se dá pelo nome de narrativa, formal ou informal. Seja Jean Renoir, seja Apichatpong Weerasethakul ou até Pedro Costa, o rio é mais que paisagem é o estado líquido das suas personagens, das suas relações, das suas emoções, que pouco perduram, ao contrário dessa representação. Sergio Machado providenciou a sua ida, a aventura acontece nas margens.
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“O problema do Brasil é um problema moral (...) Não há crise no Brasil”, a resposta recolhida por diferentes brasileiros, destacando-se a sua pele branca, banhada ao Sol em plena estância balnear, com o objetivo prazeroso de adquirirem o seu solicitado bronze. É o festivo litoral, esse Brasil de “olhos vendados” à outra metade, o Brasil interior e nordestino, que como bem vimos nas últimas eleições presidenciais, divergem em massa quanto ao futuro da sua terra de Ordem e Progresso. Ora, esses dois “Brasis”, a do litoral do qual este “Maioria Absoluta” (1964) atribui palco, perante os privilegiados e cómodos com a sua “estabilidade”, preocupando-se maioritariamente com o som da “reportagem”, e depois a do interior, de pele escurecida pelo Sol árduo (aqui a grande estrela adquire outra conotação, não o luminoso prazer, mas o cansaço do dia-a-dia), não-alfabetizados (80% da população brasileira era analfabeta, o que segundo a Constituição da época, eram impedidos de exercer o voto), cujos relatos abordam os variados problemas, esses, negados pela “gente privilegiada do Atlântico", como a crise habitacional, a crise alimentar (as queixas sobre o excesso de produção de açucar), a crise educacional, entre outros.
Por vezes há que entender os “problemas de ontem” para perceber os “problemas do amanhã”, e nesse aspecto, NOVOCINE, plataforma lançada há um mês com perfil gratuito, decidiu embarcar na “aventura” deste “Maioria Absoluta” - o segundo trabalho do importante cineasta Leon Hirszman (“São Bernardo”, “Eles não usam Black-tie”, “A Falecida”), que dedicou uma obra inteira a “remexer” entre classes sociais - como “aperitivo” ao fervoroso embate de dois “Brasis”, não somente o Brasil de Lula e o Brasil de Bolsonaro, mas o Brasil das metrópoles costeiras, a invejar o lado do Oceano, e o Brasil “de dentro”, de sentimentos esquecidos perante a falta representação na classe política.
Hirszman já mencionava isso em 1964, conduzindo uma reportagem pelos trilhos da brasilidade e a distância que os separa. É um conjunto de declarações que vista, como é instalado na abertura de “Maioria Absoluta”, instalar-se no seio dos “analfabetos”, dos “desfavorecidos”, dos “olvidados”. A praia, amontoada pelos corpos tratados e pela presunção burguesa, são apenas engodo, o filme não interessa pelas suas “vozes”, pela sua distorcida percepção do país que vivem. São o contraste para a restante intervenção. Partimos de uma ignorância para a outra, e antes de questionarmos realmente “quem são os analfabetos?”, o narrador [Ferreira Goulart] alicia-nos a entrar num mundo de desconhecidos e desconhecimentos, por entre um mercado de rua, a sua voz proclama: “Justamente por não conhecermos as suas causas, buscamos soluções absurdas e remédios milagrosos”. Haverá remédio para o Brasil?
Sob uma montagem de Nelson Pereira dos Santos, a curta aproxima-se do seu desfecho, da sua volta, mas antes sobrevoa o Congresso Nacional, em Brasília, ouvindo os ecos das vozes de quem julgamos representar uma população. Uma "gritaria" amontoada e diluída no oblívio - a distância não apenas numa imagem, mas sim apresentada num revoltoso e silencioso grito imagético. Pereira dos Santos, colega-montador de Hirszman na sua estreia no coletivo “Cinco Vezes Favela” (com Cacá Diegues, Joaquim Pedro Andrade, Marco Farias e Miguel Borges, no mesmo ano que exerceu iguais tarefas para Glauber Rocha [“Barravento”, 1962]), explorou ainda mais esse símbolo, essa Brasília - “capital do futuro” - na sua curta linguística “Fala Brasília" (1966), sem o uso das óbvias imagens-chaves da metrópole em construção e sem definida identidade.
Despedimo-nos da metragem, acenamos àquela gente, porém, o filme não nos deixa impunes para com a nossa culpa, ou possível privilégio - “O filme acaba aqui. Lá fora, a tua vida, como a desses homens, continua”. Dois anos antes e do outro lado do Oceano, “Dom Roberto” de Ernesto Sousa, um dos filmes que preveria o chamado Cinema Novo português, descia as cortinas sob o mote de, “Mas ... ainda não é o fim. O fim é para aqueles que desistem", na vocação de Glicínia Quartin. Ambos, e à sua maneira, obras da resistência dos esquecidos, dos precários, dos marginalizados, e como tal fechar por completo as suas histórias é negar-lhe as suas causas, as suas vidas “penduradas”. Existe uma crueldade em deixá-los à sua mercê.
Quanto a “Maioria Absoluta”, mesmo com a acidental ironia de ser relembrado pela plataforma a poucas semanas da determinante eleição, é uma obra sobre duas identidades brasileiras no enfoque de um retrato sócio-político, tal não agradou em nada o regime militar gerado pelo golpe de 1964. O filme foi ocultado até aos anos 80, o fim da Ditadura Militar, ou melhor, censurado para a maioria absoluta dos brasileiros.
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Central do Brasil (Walter Salles, 1998)
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Jô Soares em "O Xangô de Baker Street" (Miguel Faria Jr., 2001), baseado num homónimo livro da sua autoria.
Jô Soares (1938 - 2022)
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Garden Sandbox
Provando que a FIDMarseille é um festival impróprio para corações de storyteller clássico, Yukinori Kurokawa retoma ao seu fascínio por “locais” (seis anos depois de “Village on the Village”), criando temáticos passeios, sobressaindo o ente observador perante a narrativa. Em “Garden Sandbox" o que interessa é alimentar curiosidades, partindo do pressuposto que a iniciativa da protagonista se confunde com o mesmo objetivo do filme, o de caminhar pela localidade escolhida, criando uma topografia imaginária dos locais, de pessoas a sítios, de sítios a pessoas.
“A sua curiosidade de viajante se tornará amor”, sugere alguém durante este percurso “salta-pocinhas”, e é de facto a curiosidade a maior ferramenta aliada ao espectador nesta viagem por "recreios de areia”, o vislumbre acima da ficcionalização, e a ficcionalização mental - o que nos é permitido imaginar - como alicerce desta metragem. No fundo é como aquele filme de Jim Jarmusch - “The Limits of Control” (2009) - tudo é deixado à mercê de quem vê do que quem conta. Kurosawa apronta nesse exercício de perspetiva, e a aprofunda quando a sugestão serve para nos alimentar e não saciar. Uma proprietária de um bar, por exemplo, enigmática que nos segreda estar ali e ali estar para cumprir uma vingança. Mas qual vingança? O que sucedeu? Não sabemos, nem sequer a protagonista cuja missão é datar, recolher e reconhecer, o sabe. Ao espectador fiquemos com a imaginação, a saudável ignorância que contraria a nossa omnipresença. Possivelmente não estamos destinados a sermos omnisciente, a saber de tudo e de todos. Devemos viver saudavelmente no desconhecimento, e “abraçá-lo” como percurso das nossas próprias vidas.
Quanto a “Garden Sandbox”, o exercício está lá, o que difere é a impressão deixada em nós, espectadores, perante esse abandono narrativo e de saliência geográfica.
Competição GNCR
The Unstable Objects II
Na segunda parte do díptico “The Unstable Objects”, Daniel Eisenberg prossegue no seu registo observacional quanto a um seio industrial (ou melhor, vários), para deixar o espectador só com os processos de fabricação, de três diferentes objetos (próteses, luvas e calças de ganga) em três diferentes regiões (Alemanha, França, Turquia).
São no total 3 horas e meia de imagens “mudas” (não existe narração, não existe inteira interação ou pedagogia), de uma repetição voluntária e incentivada (se o efeito do filme é trazer a nós uma sensação quanto à natureza deste trabalho consegue na perfeição) e com voraz apetite de registo. É um exercício wisemaniano no seu esplendor, que nos remete a pensar e repensar sobre este universo, sobre a génese do mundano e das vidas limitadas a um só gesto, como fruto (e símbolo) de uma oleada máquina produtiva. Nesse termo, podemos embarcar por derivações sobre a industrialização, o mercado de trabalho, a homogeneidade da mesma e até mesmo o capitalismo, isso porque, as imagens nos remetem para isso, mais do que o esforço de Eisenberg em anexá-las a um significado pretendido.
Mais um objeto sobre o tempo e de como trabalhá-lo, rico nutriente para os wisemaníacos desta vida, que olham para estes documentos como quem olha para o seu redor. Infelizmente, como gesto cinematográfico, não é de todo inspirado, meticuloso nem esforçado na sua busca. O tempo por vezes trai.
Competição Internacional - Vencedor do Grande Prémio
Lucie Loses Her Horse
“Não somos lagartas, nem mesmo borboletas, mas transformações acontecem através da vida”. Lucie (Lucie Debay) recebe esta frase-motivacional como uma demanda para a sua eventual epopeia pessoal. Partimos do pressuposto que esta contemporaneidade nos invoca a pandemia e confinamentos, bloqueios sociais que estagnaram o nosso próprio desenvolvimento ou “estilhaçaram” a nossa saúde mental, assim sendo as “transformações” referidas tem o seu cheiro a “auto-ajuda pandémica”. Contudo, Lucie, de um momento para o outro, é uma cavaleira, de espada em punho, munida de armadura e crente nos códigos de cavalaria, partindo em buscas quixotescas, angariando aliados (diria melhor aliadas, e precisamente duas) … e nada mais parece brotar daí. Em mais um corte narrativo, as três cavaleiras reunidas encontram-se adormecidas em um palco, uma peça igualmente suspensa no limbo, aguardando, não por Godot, mas pela salvação à sua continuidade, rompendo com quem rompe uma maldição fabulista. Assim, a “Perceval” se reparte em três dimensões - o quotidiano, o imaginário e o encenado - o contacto desta pela vida que se transforma, ou melhor adapta, perante as adversidades surgidas.
O belga Claude Schmitz (“Carwash”) conquista em “Lucie Loses Her Horse” (“Lucie Perd Son Cheval”) um humor próprio e transladado aos diferentes cenários, convertendo todo este jogo de estados numa alusão à nossa condição, portanto desafiada, durante a pandemia. E as artes, aí abaladas, pela sua etiquetada “não essencialidade”, como parece invocar num “ping pong” metalinguístico, temática que orbitam na existencialista da protagonista. Exemplar curioso, mas ambicioso em exercitar modernidades.
Competição GNCR - vencedor do Prix Du Groupement National Des Cinémas De Recherche
A Vida São Dois Dias
Um enredo de tom telenovelesco (se não fosse o facto do elemento gémeos terem sido sequestrados por tal universo) oscilando entre Rio de Janeiro e Lisboa, duas cidades solarengas, duas cidades propícias a um magnetismo cultural e literário. Escritores absurdos e acidentais, ou quem faça da sua vida a vender raridades de capa e contracapa, peões deste jogo de “faz-de-conta” só com prioridade no “que se conta”, mas uma ‘coisa' é certa no cinema de Leonardo Mouramateus (novamente aliado ao ator e argumentista Mauro Soares), a capital portuguesa perante os seus olhos é definitivamente a sua perspetiva quanta à cidade, a sua experiência enquanto brasileiro em constante migração por esses dois “mundos” delineada nesta sua segunda longa-metragem.
Mas quanto a Lisboa, foi assim desde a sua estreia em grande com “António Um, Dois, Três” (2017), é assim nas suas curtas e experimentos, e é novamente desta forma que nos ligamos com esta “A Vida São Dois Dias”. Mouramateus transformou Lisboa numa cidade sua. Esta é a Lisboa de Mouramateus, não um mero folheto turístico, é a cidade de alguém. A juntar a outros que moldam a cidade ao seu olhar (Pedro Costa, Manuel Mozos, João Pedro Rodrigues, são alguns dos exemplos de quem faz de Lisboa um cenário diferente e contínuo), o realizador ostenta a sua marca, a sua sensibilidade, o seu mapa, somos apenas convidados a juntar-se ao seu indiciado passeio. O que está em causa não é uma Lisboa vista para quem a repentinamente visita, mas quem viu nela uma nova oportunidade de alterar o seu quotidiano.
Fora a cidade, “A Vida são Dois Dias” é uma comédia de equivocadas leituras, que embebede da natureza do “livro ficcional” do qual constitui o “macguffin” da sua intriga como uma farsa, um embuste para quem procura encenações exatas da realidade ou para quem instala-se no conforto do virtuosismo. O cinema de Mouramateus é um cinema de experiências, sensibilidades e de impressões, cuja tradução dessas resulta em algo abstrato e em certo jeito desajeitado.
Competição Internacional - Menção Especial
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Amigo Secreto (Maria Augusta Ramos, 2022)
Truffaut avisou: “Criticar um filme é criticar pessoas e isso eu não quero mais fazer”. Mas havia ainda algo de necessário na arte de analisar longas-metragens, na arte de ressaltar a dimensão que os filmes têm como tecido vivo, depois da Nouvelle Vague. E também, depois das ressacas de 1968. E, também, após suspiros pós-modernistas. E depois da videoarte, frente ao avanço da streaminguesfera. No Festival de Cannes de 2018, quando a tese semiótica “Le Livre d'image” garantiu ao suíço Jean-Luc Godard uma Palma de Ouro especial, ouviu-se a Croisette lamentar: “O cinema morreu depois que o realizador de ‘Alphaville’ parou de acreditar nele”. Era um lamento pertinente sobretudo ali, onde a Netflix perdia de vez, à força das decisões de Thierry Frémaux de não se render a um gigante do rentabilíssimo negócio de transmitir imagens em movimento por meio da www, em plataformas digitais.
Diante desse torvelinho histórico, do engasgo de Godard, uma vez mais, a crítica se fez e se faz necessária e urgente, mesmo com suas idiossincrasias. Uns gostam de “Top Gun: Maverick” (eu, por exemplo) e consideram esse blockbuster de US$ 1 bilhão uma exegese da técnica; outros lhe atiram torpedos stalinistas, reduzindo-o uma propaganda armamentista, refutando suas virtudes homéricas. Em Portugal, há quem cante loas ao “Bem Bom” das Doces e há quem amargue o seu lado pop. São veredas que se bifurcam pela natureza humana de um ofício (talvez, um saber) - criticar filmes - que ocupa a árdua tarefa de escrever para o Futuro a partir do Presente, contextualizando para o Amanhã aquilo que se pensa e aquilo que se sente no Agora, no Hoje. Críticas são tabuleiros onde enxadristas movem Torres e Bispos da Estética na representação de um “Game of Thrones” onde a memória disputa terreno com a ignorância do imediatismo, da intolerância e da fake news. No caso brasileiro, existe uma nuvem medieval no ar. Lá, o povo compreendido entre o Oiapoque e o Arroio Chuí fala em “Fator Minion”, numa jocosa referência à franquia “Despicable Me”, comparando os caças bolsonaristas aos asseclas de Gru.
Fazer crítica no Brasil de 2022 é correr sobre o arame farpado da bipolarização, escapando das armadilhas abertas por pruídos lacradores de patrulhas ideológicas, evitando absolutismos. Há sempre alarmes políticos à esquerda e à direita prestes a zumbir frente à escrita de textos sobre qualquer fenômeno fílmico daquele país (no caso, o meu berço). Isso vale para artigos sobre o sucesso popular de “Medida Provisória” (com seus 460 mil pagantes); ou sobre a produção de filmes baseados em BDs controversas (mas corajosas), como “O Doutrinador”; passando pelo atual barulho gerado por Maria Augusta Ramos com seu “Amigo Secreto”. Um barulho ligado à sua precisa triagem dos desacertos da Operação Lava Jato. Há muita tensão no ar no Brasil, em tempos em que aguardamos novas eleições presidenciais. E é natural que fiquemos tensos, depois de um golpe, do impeachment de uma líder eleita democraticamente e do recrudescimento do conservadorismo. E é natural que essa tensão reflita na crítica,de alguma forma. Mas esta não deixa de exercer seu papel de celebrar artesanias e autoralidades, como se vê agora na estreia do necessário “Carro Rei”, de Renata Pinheiro. Os faróis que iluminam o diálogo crítico se acenderam para o potente filme da diretora de “Amor, Plástico e Barulho” (2013) passar, consolidando seu estado natal, Pernambuco, como pátria de invenção. Da mesma forma, a crítica esteve atenta para lembrar os dez anos de ausência do mestre Carlos Reichenbach (1945-2012), garantindo-lhe espaços em múltiplas URLs para celebrar suas jóias, como “Alma Corsária” (1993).
Desde os anos 1950, vozes trovejantes catapultaram a crítica brasileira ao Valhalla da relevância, como foi o caso de José Carlos Avellar (1936-2016). Como resenhista do Jornal do Brasil, curador de festivais e agitador cultural, Avellar dedicou sua vida e sua escrita a propor conexões entre os países da Pangeia Latina, escrevendo sobre Jorge Sanjinés, Miguel Littín, Lucia Murat e Jefferson De com ardor, para estabelecer pontes entre suas filmografias. A Mostra de Tiradentes alcançou a potência que tem ao ser redesenhada por um crítico, Cléber Eduardo. E segue hoje com grandes intelectuais - como Lila Foster, Francis Vogner dos Reis, Tatiana Carvalho Costa, Camila Vieira e Felipe André Silva - em seu timão. Mas há sempre que se estar atento e forte para ranços ideológicos, como as sequelas da ditadura que nos podou o interesse em entender “cinema de gênero” para além das catacumbas do terror, limitando sobretudo nossa relação com a fantasia nas telas, por haver nela um traço de códigos hollywoodianos (é o que alguns dizem). No Brasil, o fantástico vira sociologia num sopro e igrejas burguesas enaltecem registros de pobreza que estão mais próximos de uma catalogação etnográfica do que da poesia. Mas, ainda assim resistimos. Pensamos. E, sem perder a ternura, provocamos.
Texto da autoria de Rodrigo Fonseca, crítico de cinema, dramaturgo e pesquisador, integrante da equipa do C7nema e titular do blog P de Pop do jornal O Estado de S. Paulo
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Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002)
A relativa perda de abrangência dos “blogs”, particularmente os de cinema, nos últimos anos, diz menos do caráter de sobrevivente daqueles que ficaram do que os tempos de superabundância no qual vivemos: há filmes produzidos numa quantidade impossível de serem distribuídos e divulgados adequadamente; há canais de expressão para o “cidadão comum” numa escala nunca antes imaginada.
O cinema vive uma crise de superabundância, onde milhares de filmes, muitas vezes sem um horizonte maior do que uma exibição num festival de cinema ou umas poucas sessões num centro cultural, são produzidos. Isso significa que a maioria está fadada a um circuito minoritário, algo que não anula a sua relevância mas, certamente, reduz o espetro do público de um “blog” de cinema que pretenda dedicar-se ao cinema alternativo.
Neste sentido, a democratização geográfica permitida pelo “streaming”, potencializando uma multiplicidade de proveniências que o circuito de salas, dominado por três ou quatro companhias nunca permitiu, não ajudou em igual medida na inclusão do espectador em formas narrativas distanciadas do tradicional “story telling”. De qualquer forma, em termos temáticos, possivelmente encontram-se algumas ousadias mais do que o dito “cinema alternativo”, pressionado pelas agendas da “representação” e da “inclusão”.
Já o dito “cinema comercial'', tampouco, está seguro e vem enfrentando crises que parecem não ter fim nos últimos anos - primeiro a pirataria, depois o “streaming” e, para colmatar, uma imprevisível pandemia que afastou as pessoas das salas por dois anos. Em países como Portugal, esse afastamento deixou sequelas: os níveis de frequência às salas nunca retornaram. O cinema pode assim, cada vez mais, confundir-se com a televisão - o que representaria a sua derrota estética definitiva.
Ao mesmo tempo se, como dizia Eduardo Coutinho, notório por “dar voz” aos humildes que não a tinham, “ao expressarem-se as pessoas legitimam-se a si próprias”, não são menos múltiplos os formatos e canais com que hoje “cidadãos comuns” conseguem entrar num terreno que antes era espaço privilegiado da imprensa “oficial” (leia-se, dos grandes grupos de comunicação). Isso, como sempre, trouxe o melhor e pior ao mundo: de um lado significa que pessoas inteligentes e capazes que não encontraram espaço no mercado consigam dar vazão aos seus conhecimentos e interesses; mas, de outro, certamente, trouxe uma explosão de conteúdos que têm como marca maior a superficialidade.
A crítica, por seu lado, pressupõe um juízo de valor mas, como dizia François Truffaut na sua introdução de “Os Filmes da Minha Vida”, o cinema é a única arte (basta pensar na literatura ou na música), onde qualquer um acha-se à vontade para considerar-se um crítico. Essa “confiança” é tal que até livros sobre o tema são escritos por amadores bastante limitados.
Assim, no meio do maralhal, o “blog” de cinema é um estoico sobrevivente.
*Texto da autoria de Roni Nunes, jornalista, editor do site CulturaXXI, colabora com o C7nema e Sapo Mag
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