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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Feliz dia do Pai!

Hugo Gomes, 19.03.23

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Big Fish (Tim Burton, 2003)

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Like Father, Like Son (Hirokazu Koreeda, 2013)

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Star Wars: Episode VI - Return of the Jedi (Richard Marquand, 1983)

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Adeus, Pai (Luís Filipe Rocha, 1996)

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The Lion King ( Roger Allers & Rob Minkoff, 1994)

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The Son (Florian Zeller, 2022)

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Life is Beautifull / La Vita è Bella (Roberto Benigni, 1997)

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Ladri di Biciclette ( Vittorio De Sica, 1948)

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The Pursuit of Happyness (Gabriele Muccino, 2006)

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The Kid (Charles Chaplin, 1921)

Beatriz no país das "maravilhas"

Hugo Gomes, 17.03.23

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Continuando com o seu formalismo do desesperante real, Marco Martins mantém-se leal aos trajetos agonizantes que as suas personagens, mártires feitos e refeitos, caminham em busca da sua essência. Mas o que é que procuram? A resposta aos seus males, seja ela, física, existencial, obsessiva ou corrosiva. O seu Cinema é composto por essas cores, estas deambulações e nisto, trazendo, não somente emoções, mas uma estética política, “à esquerda” como acusou veemente o jornal Observador nos ares de estreia de “São Jorge” (2016). Em “Great Yarmouth: Provisional Figures”, projeto maturado em dois “mundos” distintos, um pré e pós pandemia, ganha vida acrescida sob os ventos das novas marchas politizadas, reacionária e extremistas e quiçá nacionalistas, pintando-nos como “bons emigrantes”, acarinhados pelos povos do Mundo e bem-sucedidos na sua integração. 

Martins provoca, - porque em Great Yarmouth, cidade costeira inglesa (e uma das mais precárias do Reino Unido) - num êxodo à portuguesa é possível escutar os nativos referindo-os como mão-de-obra silenciosa, assumindo trabalhos que os próprios ingleses desdenham. Na liderança dessa peregrinação ao encontro de “vidas melhores”, está a Mãe, apelidada desta maneira (como gosta, devemos salientar), Tânia, portuguesa integrada, a face de uma rede de “exportação” destes trabalhadores carenciados e reduzidos a corpos exaustos, sacrificados, as outras martirizadas equações deste cosmo. Beatriz Batarda é essa “criminal” emigrante, com sonhos próprios, mesmo que mais mesquinhos e pirosos que sejam (velhos e bingo, combinação da sua vulgaridade). Não interessa, ela própria embarca na “foleirice” como íntimo refúgio, o “Promise Me” de Beverly Craven, por exemplo, servido como canto de sereia e de igualmente forma como canto de banshee, cantarolando para ‘seduzir’ ou invocando o antidote para a sua angústia. 

Digamos que na atriz, o ponto alto de “Great Yarmouth”, Martins deposita-lhe fé e determinação para nos guiar pelos dantescos infernos desta exploração, das madrugadas frias e silenciosas, meio adormecidas e calejadas pelo cansaço acumulado, dos “quartos” de hotel (as aspas não são acidentais) ou das idas e vindas aos matadouros de perus, em que o “trabalho liberta” encontra-se invisivelmente gravado nos seus muros. E nela testemunhamos o cansaço, envolto numa rotina, gradualmente desintegrado por vias de um caos, as rugas vincadas do seu rosto renomeia-se como “cicatrizes do tempo”, o qual não volta atrás de maneira alguma e é comumente sabido, mas são essas supra-expressões que a camufla com as noites intermináveis e os becos sem saídas. O sonho não passa disso … num sonho. Acordar é o derradeiro ato. 

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Enquanto isso, Batarda, é toda ela um filme à parte, a alma, a raiz, a força e a farsa, Martins apenas a filma, a integra e suplica para que nela nasça um filme emancipado. O realismo britânico mimetizado numa narrativa suja e sob curvas e contracurvas, a duração da miserabilidade sente-se, seja pelas sisifistas matanças às aves comestíveis, decepadas e decapitadas, "carne para canhão”, como os portugueses e tudo o resto. Só Beatriz’ salva-se, adquirindo as suas asas e transcendentemente sobrevoando tudo o resto. 

Great Yarmouth: Provisional Figures” instala-se como um ensaio sem norte, talvez as várias vidas e os seus vários procedimentos criativos o esvaziaram, porém, encontra conforto na sua protagonista, maior que o filme, maior que a vida. Beatriz Batarda show, é o que é!

"Dá-me as minhas savings"

Curtas, curtinhas, a origem: 1ª edição dos Prémios Curtas

Hugo Gomes, 13.03.23

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Os premiados e os jurados / Fotografia.: Ricardo Fangueiro

Foi através de uma curta que Portugal desbravou caminho em direção à Kodak Theater, a nomeação à tão cobiçada estatueta norte-americana automaticamente entrou para a História audiovisual do nosso país, e então porquê de estarmos constantemente a reduzi-los a "protótipos" de futuras longas-metragens?

André Marques teve um sonho, criar uma cerimónia de festividades, premiações e de comunhão a esse universo bem português, a resistência do Cinema na sua mais natural essência, a simples e de rápida dicção, a curta. Para isso juntou oito magníficos* e fundou um júri, aliciou e arrecadou apoios, e “convidou” a todos os participantes a inscrever o seu trabalho. A sua vontade fez com que o seu desejo se materializasse. No passado dia 10 de março, sexta-feira nervosa devido à nomeação de “Ice Merchants”, cujos Óscares seriam revelados no domingo seguinte (“será desta?” pensavam todos os que presentes), o Auditório Fernando Pessa em Lisboa encheu-se (deve-se sublinhar), para receber a primeira edição, modesta, ainda com o seu quê de improviso, muitas vezes ocultado graças ao malabarismo e carisma de Rui Alves de Sousa, radialista da Antena 1, que assumia o papel de anfitrião. Intercalado pela dita premiação e pela projeção de três curtas referentes aos três géneros-base (ficção, documentário e animação), a cerimónia ficou marcada pelas promessas do seu fundador, ambicionando seguintes edições em maior escala e a ambição de um “microfestival” em celebração daquilo que a curta-metragem tão bem representa - o Cinema, aqui e agora.   

Quanto à premiação, a noite consagrou “Azul” de Ágata de Pinho com cinco prémios, no qual incluem as categorias de Curta de Ficção, Realização, Argumento, Atriz (também Pinho) e Fotografia (assinado por Leonor Teles). “O Homem do Lixo” de Laura Gonçalves arrecada três distinções (Curta de Animação, Curta Documental, Banda-Sonora), igualando com “Punkada” de Gonçalo Barata Ferreira (Montagem, Caracterização, Guarda-Roupa). Os outros prémios; Vítor Norte recebe o de Melhor Ator (“O Caso Coutinho” de Luís Alves), Nuno Nolasco como Ator Secundário (“Tornar-se um Homem na Idade Média” de Pedro Neves Marques), Rita Tristão na categoria de Atriz Secundária (“As Feras” de Paulo André Ferreira), Rodrigo Manaia em Interpretação Infantil (“By Flavio” de Pedro Cabeleira), e ainda a animação “Garrano” de David Doutel e Vasco Sá no campo dos Som / Efeitos Sonoros juntamente com a ‘dobradinha’ de “2020: Odisseia no 3.º Esquerdo” de Ricardo Leite (Direção Artística, Efeitos Visuais).

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Rui Alves Sousa e eu / Foto.: Ricardo Fangueiro

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Vítor Norte brama ao Cinema após vencer o Prémio de Ator / Foto.: Ricardo Fangueiro

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André Marques, fundador do evento, discursa / Foto.: Ricardo Fangueiro

*Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger do Hoje Vi(Vi) um Filme), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico e fundador do Fio Condutor) e André Pereira (videografo e editor de vídeo da Renascença).

Óscares para tudo e para todos, em todos os lugares, menos para Portugal

Hugo Gomes, 13.03.23

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Everything Everywhere All at Once” saiu-se, de alguma forma previsível, como o grande triunfante na noite de entrega dos Óscares. O estranho e filme de culto da A24 assinado pela dupla Daniels levou para casa 7 prémios incluindo os de Melhor Filme, Realizador, Atriz Principal, Atriz Secundária e Ator Secundário. É a possível abertura da Academia a estes filmes tresloucados que apenas viriam os prémios por “canudo”, contudo, mudanças feitas e tendo em conta o vencedor do ano passado (que já ninguém se lembra, e que na pior das hipóteses escancarou ‘portas’ para o streaming) é uma melhoria, venceu o Cinema, mesmo que não seja o “nosso” ou o “vosso” Cinema, porque de resto, bem, Óscares são Óscares, valem o que valem. Nessas narrativas são ‘sonhos’ a serem concretizados, bastou ouvir Ke Huy Quan no seu discurso oscarizado [um dos mais emocionados na história dos prémios] para perceber que aquele momento era o momento em que se atinge o conceito “sonho americano”, até Jamie Lee Curtis o chegou, de estatueta na mão. Uma imagem improvável para quem sempre fora entendida como a atriz do “Halloween” e outros slashers

Só que não foi desta que o “sonho americano” chegou a Portugal. “Ice Merchants” ficou pelo caminho, vencido pela produção de J.J. Abrams - “The Boy, the Mole, the Fox and the Horse”, de Peter Baynton e Charlie Mackesy - adaptação de um popular livro de Charlie Mackesy, com o selo BBC e Apple, cujos seus fragmentos tornaram-se virais no Tik Tok, um conjunto de elementos que reforçam esse néctar premiável, o lobby. Todavia, a animação de João Gonzalez é já um vencedor por direito, abriu uma “porta” que Portugal nunca estendeu a mão à sua maçaneta, e levou portugueses a falar e a interessarem-se por este sector (prestigiado em todo o Mundo com excepção … como é “óbvio" … no nosso país), e da imprensa, que durante anos se “borrifaram” para ela, puseram-se a dedicar dossiês especiais sobre a nossa produção de animação e dos seus ‘protagonistas’. A Animação tornou-se na ala maior do Cinema em Portugal, não só pela indicação, mas como esta serviu de tocha para que muitos se aventurassem na escura gruta da sua ignorância. Voltando aos prémios de “last night”, Brendan Fraser com o “boneco de ouro” empunhando deixou-me satisfeito, mais uma vez, constatando o “sonho americano” e as suas narrativas de superação e “comeback” a vingarem numa entrega que tanto poderia ser contada em forma de filme oscarizado, e que o diga Michelle Yeoh!

Mas do outro lado da premiação, a derrota figurada na decepção, Angela Bassett não se controlou, demonstrando esse ar infeliz (foi a melhor de “Wakanda Forever”, mas um prémio num filme dessa instância seria ingrato para a carreira de uma atriz que, certo dia, se “vestiu” a Tina Turner), ou “Tar” de Todd Field, obra sobre a nossa modernidade e contra o seu simplismo, de mãos vazias e sobretudo com Cate Blanchett, injustamente, fora da glória da noite. Não há Óscares para todos, muitos menos ‘sonhos’.

Prémios Curtas - 1ª Edição

Hugo Gomes, 07.03.23

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Na próxima sexta-feira (10 de março) irá decorrer a 1ª Cerimónia de entrega dos Prémios Curtas, Auditório Fernando Pessa (Lisboa), apresentado por Rui Alves de Sousa (jornalista e radialista da Antena 1) e com exibição de três curtas-metragens (“Glória de Fazer Cinema em Portugal” de Manuel Mozos, “Arena” de João Salaviza e a animação “Nestor” de João Gonzalez [o mesmo de “Ice Merchants”, nomeado ao Óscar]). Integrei o júri em conjunto com Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico) e André Pereira (videografo e editor de vídeo). 

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Os nomeados poderão ser conferidos aqui.

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Será que as tartarugas também amam?

Hugo Gomes, 03.03.23

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Feita uma pausa na dedicada procissão ao inventário artístico e intelectual de Pedro Costa, Júlio Alves encena a novela de Mário de Carvalho - “A Arte de Morrer Longe” - um “Marriage Story” à portuguesa, constrangido e dotado de um senso de absurdo que passa por representação da espuma dos nossos dias. 

Aqui, o casal Arnaldo e Bárbara (Pedro Lacerda e Ana Moreira) colhe os frutos da negligência aos seus “felizes para sempre”, sintetizando que em “terra enfadonha” não existe príncipes encantados e como tal, a separação soa-nos um golpe de misericórdia ao suplício de uma relação moribunda. O processo formaliza-se como um inventário (aliás, outro para a carreira de Alves) - “da cozinha podes ficar com o microondas” - até que alguém menciona o “elefante da sala”, mais precisamente outro animal a assumir o silencioso e embaraçoso ícone do conflito: uma tartaruga. 

O pequeno e singelo réptil é a partir daquele específico momento a exaltação de um necessário final de compromissos, possivelmente a última em que o “casal” terá como tomar enquanto … isso mesmo, casal. Porém, através de debates para apurar quem “fica com o ‘bicho’”, ou de quem o “‘bicho’ é propriedade”, que Arnaldo e Bárbara conformam-se em unir ao derradeiro destino do animal, naquele, aparentemente, simbólico e pequeno gesto, uma emancipação dos mesmos, o direito da sua respectiva individualização (possivelmente o digno final do casal, esse conjuntivo social o qual se empreenderam anos e anos). 

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A Arte de Morrer Longe” é uma tragicomédia que embarca na alegoria do quelônio, o medidor de tensão arterial a uma relação, prescrevendo-a a um digno final, mais do que a consolidação. O desfecho será visto como acesso à independência social. Enquanto isso, a jornada doméstica destes seres não habilitados para com o anterior animal de estimação é tido num visual respeito quanto à sua privacidade, dito isto são os constantes planos engendrados em que Arnaldo e Bárbara mantêm-se, de alguma forma, separados e retidos para com o seu redor, a solidão por ambos emanadas traduzir-se em “gravidades” próprias (bem presente devaneios oníricos que aludem a essa, cada vez mais, distância para com o estabelecido conformismo), apenas intercalados por grandes planos da tartaruga, cuja natural vagarosidade do animal transfere uma certa indiferença ao conflito do casal. 

Dito isto, Júlio Alves converte-se num certificador da imaginária e criada “ordem de restrição" decretada pelas personagens, e sem barricadas, indicia um invulgar trilho de superação para ambas. Os atores, por sua vez, são cúmplices dessa entranhada e voluntária melancolia. O que existe depois do amor?

Arquitetando males à lá Canijo

Hugo Gomes, 27.02.23

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"Mal Viver" (João Canijo, 2023)

Convém declarar que no cinema de Canijo o processo acaba sempre por ser a atração dos seus projetos, e nele concentra-se uma ação performativa intensamente arrastada, seja nos atores e a sua maleabilidade para aquilo que chamamos de “realismo” (o nosso senso perante essas representações), ou por outra, pela construção de uma instalação visual, cénica e sonora. 

No caso deste recortado “Mal Viver”, a sua característica nata encontra-se no segundo ponto, mais do que as possibilidades com que os seus atores (com muitas “caras” reconhecíveis do universo de Canijo por aqui) possam expressar. É a inteira percepção do realizador em elaborar um filme, arquitetonicamente falando, retalhado em diversas perspectivas (sendo que isso nos levará à outra face do díptico, mas já lá vamos). Assim, com “Mal Viver”, somos conduzidos a uma teia de dramas a ter lugar num hotel rústico, com enfoque na equipa que gerencia este mesmo espaço, esse abordado maioritariamente por vias de planos conjuntos, onde a ação é somente uma janela à escolha do freguês (literalmente e não-literalmente). O espectador assume então a posição de voyeur e é igualmente resistente face a não distrair-se do enredo principal, essa coluna vertebral conectando tudo o resto sem ordenar a sua execução linear. 

João Canijo presta-se ao desafio, vislumbrando o seu mais Tati dos filmes, um objeto aglomerante de ações sob ações, e o procedimento dessas mesmas em grande ecrã, como os diálogos interpolados e independentes, são apenas sintomas dessas personagens em livre arbítrio, pelo menos a sensação dada, visto que o realizador é um realizador por inteiro, autocrata e onipresente (próximo da rigidez de Haneke). O espectador, porém, perde esse estatuto endeusado, convertendo-se num testemunho impotente e sem certezas absolutas, escolhendo a óptica que lhe enquadrar e nisso prescrever o seu próprio filme. 

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"Viver Mal" (João Canijo, 2023)

Mal Viver” não se deleita nos corpos dos seus intérpretes (em território “canijiano” são escravos do seu método), é antes disso um filme-edificante, pensando e casuístico, cuja sua arquitetura se revelará ainda mais com “Viver Mal”, que ao contrário do filme-siamês, tende em controlar a perspetiva do espectador, ao invés de deixá-lo a “marinar” no ambiente. Desta feita, o enredo não é novo, já havia sido “descoberto” no filme anterior, e em modo loop é trabalhado com severidade na sua mimetização. Aqui, seguimos três histórias, três reservas, cada uma apresentando hóspedes presos aos seus respetivos pecados capitais ou crónicos bovarismos (“ah, o velho conto dos privilegiados encurralados nos seus ‘mundinhos’”). 

Mais do que a matéria desenvolvida em “Mal Viver”, “Viver Mal” encanta-se com os seus atores, e ainda mais na dramaturgia emanada por eles, os seus corpos tornam-se devidas medidas temporais quanto à narrativa tríptica, expondo o esqueleto deste projeto, entretanto repartido em duas estâncias fílmicas. E a conexão sexual entre os demais, reluzentes atrativos para o “buraco na fechadura” que o então voyeur-espectador não deixará de espreitar. Tal como o referido, e estabelecido, filme anterior, “misturamo-nos” com a plebe, faminta por “conhecer” os traços das vidas animalescas e de excentricidades calcificadas dos passageiros residentes (o qual tão bem nos identificamos com a personagem de Cleia Almeida, a camareira que remexe os pertences dos hóspedes ou que se intervém nas suas trivialidades, uma fantasiadora do degrau que nunca irá “pisar”). 

Contudo, é neste capítulo que presenciamos os desempenhos mais ferozes, seja uma Beatriz Batarda em modo “mommy dearest” ou uma Leonor Silveira, despojada vilã de novela, no desempenho mais desafiador da sua carreira nos últimos (e largos) anos. Poderão ser dois filmes desiguais, um mais cuidado que o outro, mas são provas da maratona que Canijo tem executado ao longo da sua carreira, da performance à idealização de um cinema prestigiado por diversos “pontos de fuga”.

 

"Magoamos a mãe?"

Fisicamente ...

Parir doi ...

Transforma."

E tudo começou na Rua da Cidade de Rabat ...

Hugo Gomes, 22.02.23

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O cinema como confessionário, ou antes divã. Papel branco em jeito diarístico, tela como o mais fiel companheiro, a plataforma de partilha de sentimentos, pensamentos e anotações. Gesto, esse, que se tem sido sugerido como um caminho a percorrer a novas vozes ou a estágios de introspecção, e no panorama nacional, vemos uma normalização desse mesmo estado de “abertura” enquanto matéria fílmica. Para muitos uma tendência de tratar o cinema por “tu” e o espectador por “vocês”, para outros um tratado de ego, um narcisismo, a espreitadela contemplativa ao Espelho de Narciso

Susana Nobre nunca negou que o seu cinema é feito de partilhas, de experiências e motivações concretamente trabalhadas em filme, condensadas e integradas num perpétuo movimento de procura e de redescoberta. Fez desse mote a sua partida observacional no programa das Novas Oportunidades [“Vida Activa”, 2014)”, para mais tarde espelhar as suas reflexões maternais [“Tempo Comum”, 2018] e pelo caminho debruçando em histórias de outros [“No Táxi do Jack”, 2021], Nobre nunca dedicou-se inteiramente a si, até porque sob a sua perspetiva o cinema é um mecanismo “díptico, uma pessoa que ouve, outra pessoa que fala, uma que interpela e outra que responde, num espaço completamente circunscrito”. Mas é aí que “Cidade Rabat” rompe a “tradição”. Confeccionado como a sua primeira longa de ficção assumida, a realizadora se esconde por trás do exercício narrativo para transformar memórias num afazer. 

O exercício está à vista de todos, deitar-se no divã e abordar os seus fantasmas, o seu luto e trazer dessa sua experiência um deslumbramento para novos rumos, mais existencialistas que artísticos. Nessa feita, “Cidade Rabat” parte de um estado de autognose, uma rua lisboeta de igual designação ao do título nas Portas de Benfica, uma escadaria num prédio antigo, moradores singulares, piso a piso, até cedermos ao rés-do-chão, à figura maternal que aí habita (ou habitava), esse início de tudo. A voz de Susana - um espírito concentrado na figura de Raquel Castro, anterior enfermeira (esta informação dará luzes a um discreto e delicioso cameo em tom jocoso de "troca-de-papéis"), agora atriz - nos guia por essa viagem memorialista sem representação visual, é um trajeto imaginário em modo “Big Bang”, a génese, a origem das “coisas”, ou melhor o fim de todas elas. 

Porque é através do luto que “Cidade Rabat” despoleta, metamorfoseia-se num retrato de dor (o verbo não é coincidência, o filme prossegue do mesmo ponto que A Metamorfose dos Pássaros de Catarina Vasconcelos, da ausência), numa terapia à mesma, porém, ao contrário do seu cinema não dá “ares” de partilha, remonta-se como uma demanda sua e só sua poderá se revelar. Porém, o exercício esgota na sua própria premissa, a veste fúnebre é intransponível, a realizadora fala para ela própria (com imagens sobre ela própria) enquanto despe a sua ficção de todas as suas vertentes fabulistas, ao espectador cabe entender o nojo, a negação, a deambulação e por fim, superação em forma de emancipação (muitos “ãos” aqui reunidos!). Com “Cidade Rabat”, uma “coisa” é certa, Susana Nobre é mais arregaçada em falar dos outros do que resumir-se a si própria. 

“Aqui não vos acontece nada”

Hugo Gomes, 01.02.23

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"A Primeira Idade" (Alexander David, 2023)

Em “A Primeira Idade” existe a prolongação de um sentimento (ora também transferido para esferas político-sociais portuguesas) de que necessitamos da “disciplina” ou da regulamentação, tão bem infiltradas como “tradições”, para nos movimentar numa falsa-sensação de liberdade. Possíveis migalhas de uma "indústria" crescida sob o “asilo” salazarento, bastando recordar um particular “episódio”, que no apogeu de uma balbúrdia, as crianças são abrigadas nas promessas de seguranças de Vasco Santana e do garrafal lettering Salazar em “O Pátio das Cantigas” (“Aqui não vos acontece nada”). 

Fora as propagandas de regime, e a passagem do militarismo quase panfletário que muitas produções pós-25 de Abril se revelaram, chegamos ao novo século nas juras de liberdade existencial, porém, enganadas pelo ditame de regras e normas comportamentais por escrito. Em “A Cara que Mereces” (2004), a primeira longa de Miguel Gomes, o protagonista (José Airosa) refugia-se do “mundo” [da sua realidade] e para isso constrói o seu próprio regimento, a lista de normas que não só o próprio, mas como todos os seus participantes anseiam cumpri. O seu cumprimento não é mais do que o merecido numa instantânea fábula de imposição. Por outro lado, alicerçado a uma satírica alegoria política, “A Espada e a Rosa” de João Nicolau (2010), requisita a inspiração corsária na demanda de um quotidiano regido pelas suas limitações, em confronto direto para com o embuste liberal da suas anteriores vidas (aqui, é a substituição de uma doutrina por outra, sublinhando apenas a ideologia a abraçar em cada uma dessas “realidades”). 

Nesta trajetória chegamos a bom porto à ilha de crianças-adultas cujo medo da segunda e derradeira parte do seu crescimento leva-os a conceber uma “mini-sociedade” politizada e interagida em costumes ancestrais. A existências destes jovens é contada, cronometrada e concentrada, a passagem para a fase seguinte os conduz a uma cerimónia de dissidência. Abandono ou suícido é o que espera destas outrora crianças deixadas ao desconhecido e na “companhia” da sua maturidade.

Esta primeira longa-metragem de Alexander David (que "bebe" de iguais e mencionadas regulamentações presentes na filmografia de Miguel Clara Vasconcelos, o qual trabalhou diversas vezes como ator) é uma quimera de “O Senhor das Moscas” [o romance por William Golding], crianças à mercê da sua kantiana consciência de preservação, para trespassar numa alegórica Caverna de Platão, no preciso momento em que um grupo de desertores aventura-se para longe do seu, temporariamente, conformista território. Nessa demanda, a paragem única e possível é uma cabana no meio do mato, uma armadilha “desenhada” pelos adultos monstruosos que os observam atentamente. 

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Vampyr” (Carl Theodor Dreyer, 1932)

Aí livros, objetos nunca vistos para estes olhos inocentes e cinema entram em contacto com os exilados. Assim, prescreve-se o anterior ato de descrição daquela improvisada sociedade distópica, prosseguindo num questionando do próprio regime perpetuado no entusiasmo das suas personagens quanto às respectivas descobertas. Entre elas, o encontro imediato de terceiro grau com imagens desvirginadores, o cinema mudo a assumir esse papel-guia por temáticas desconhecidas para os demais. A morte presenciada em “Vampyr” (Carl Theodor Dreyer, 1932), por exemplo, preenche a pedagogia em falta, é como se David encantasse com a ideia de uma hipotética redescoberta do cinema (mimetizando o construção do alfabético semiótico suscitado com a proximidade das “imagens em movimento” de há um século). 

Contudo, essa descoberta é efêmera, até porque a deambulação persiste ao invés do proativismo que poderia emanar. “A Primeira Idade” [coincidentemente da produtora Primeira Idade] é interiormente um filme de amarras com a cobiça de se libertar e vaguear pelo paraíso das “coisas”, mas acaba por ser incapacitado face à sua prisão, e nisto entra uma certa tendência portuguesa, mais por culpa da nossa inerência do que da produção em si, o de encostarmos a este senso utópico da regra enquanto único harmonista.