Retratos Fantasmas ...
Na despedida do CineClube de Alvalade (prometeram mais um "até já" que "adeus") com filme a condizer- "Retratos Fantasmas" (Kleber Mendonça Filho, 2023) - sobre a história que ficou dos ex-cinemas do centro do Recife.
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Na despedida do CineClube de Alvalade (prometeram mais um "até já" que "adeus") com filme a condizer- "Retratos Fantasmas" (Kleber Mendonça Filho, 2023) - sobre a história que ficou dos ex-cinemas do centro do Recife.
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Wanda (Barbara Loden, 1970)
Tão distante, tão perto. A década de 70 afasta-se cada vez mais da nossa contemporaneidade, contudo nunca se falou tanto, ou igualmente se repescou, aqueles anos como agora. Saudosismos, reavaliações, ou as lições embutidas que as promessas do amanhã anotam como suas, este período, marcante para várias artes além do cinema, refletiu numa subversão e consequentemente numa ruptura das velhas fórmulas e estéticas acompanhadas pelo teor “Novo Cinema” que difundiria pelo mundo afora desde os 60. Nos EUA, a sua nova vaga foi entardecia para a década seguinte, abraçada por “movie brats” e denominada por “Nova Hollywood”, a frente contra a decadência do velho sistema e a imposição de novas vozes, personagens e historietas, assim como novas preocupações, quer sociais e políticas, desencantando a ficção tida cinematográfica. Apesar da relevância desta onda, o cinema norte-americano não viveu apenas de “Novas Hollywoods”, mas dificilmente mesmo é ignorar essa sua influência nos mais diferentes quadrantes.
Sendo assim, voltamos ao Alvalade Cineclube, que ano passado nos presenteou com uma rota ao cinema dessa década. Nesta sequela, tendo arrancado no passado dia 8 de novembro com “Wanda” de Barbara Loden, seguimos pela Nova Hollywood e as suas ramificações, com tempo para “truques” de kung fu e pesadelos paternais. Com quatro sessões, e desta vez decorrendo no Cinema Ideal, o ciclo “América ‘70” prossegue nesse cenário cinematográfico de outros tempos e de novos entusiasmos. Falamos novamente com o programador Bruno Castro sobre a mostra, eventualidades e possibilidades.
Voltamos à tão aguardada segunda ronda pela América dos anos 70, aqui, ao que parece, ocasionalmente nos desviamos da trilha da Nova Hollywood que estava tão presente na primeira parte. Como foi feita a seleção dos filmes para esta "sequela" e qual a razão por trás da escolha destes títulos específicos?
Ficamos a pensar nesta questão da sequela depois de, há um ano atrás, teres perguntado especificamente se fazia sentido voltar a repetir. Foi algo que ficou em cima da mesa. A ideia desta vez foi, em primeira instância, manter a possibilidade de contarmos com uma visão feminina dentro do programa, e é aí que surge o “Wanda", da Barbara Loden. Quando há um ano tínhamos passado o filme do Cassavetes - “Mulher sob Influência" - constatamos que deveríamos ter esta possibilidade de termos um olhar feminino naquela década, e achámos “Wanda" a escolha totalmente óbvia, até porque não é um filme muito visto em tela em Portugal, apesar de ter passado algumas vezes, não é muito disseminado … não é fácil também devido a questões de direitos e afins. E a cópia que existe habitualmente em Portugal é em película, não foi o nosso caso que contamos com uma cópia digital.
A partir daí, desta vez, a intenção foi de facto fugir um bocadinho da ideia da Nova Acrópole, daí surgindo títulos como o “Enter the Dragon", do “Eraserhead", e , por fim, do “Blue Collar". Tentamos a outra fase da moeda dos 70's. Não insistir apenas nesta ideia da Nova Hollywood, ou seja, não fazer uma sequela direta, mas encontrar dentro da década de 70 pistas para aquilo que aconteceu depois. E daí também, por exemplo, a questão do “Eraserhead”, o início de carreira do David Lynch, que nós possivelmente não associamos o próprio Lynch aos 70's, mas as ‘coisas’ começaram daí.
Eraserhead (David Lynch, 1977)
É uma evidência da década de 70 ser um espaço de liberdade criativa, ou seja, não só do ponto de vista formal, não só desta possibilidade de surgirem novos realizadores com novas abordagens, fora daquilo que eram os mecanismos normais dos estúdios e da forma de fazer cinema, como também do ponto de vista artístico, se quisermos. Este espaço enorme de liberdade onde parecia não haver grandes convenções: e quer o “Eraserhead”, quer mesmo o “Enter The Dragon”, são bons exemplos dessa ideia de liberdade e, portanto, focamos nessas possibilidades, não fugindo da ideia das personagens e das narrativas, e deparando com outras linhas de discussão e, devido a isso apresentamos outros tipos de convidados desta vez.
No caso do "Eraserhead" vamos contar com Vasco Araújo, artista plástico, pintor, precisamente porque queremos olhar para os filmes de outra perspetiva e de não estagnar num sítio tão cinéfilo puro e duro.
Ao explorar novamente esta América, descobrimos que existe um público interessado nas propostas e no cinema deste período. No geral, como correu o primeiro ciclo de exibições? As expectativas foram cumpridas?
Sim, foram aliás cumpridas e ultrapassadas. Em primeira instância o conceito da década de 70 era que era uma premissa muito nossa, mas foi muito interessante perceber que há vários tipos de público para este tipo de iniciativa e por exemplo, no ano passado, na sessão do “Taxi Driver” deparamos com jovens de 16, 18 anos que nunca tinham visto o filme e muito menos em tela, e cinéfilos infiltrados com 60 anos, que não só viram o várias vezes, como ainda desejavam lá voltar.
E, portanto, eventualmente a cinematografia americana de 70 tem esta capacidade, esta elasticidade de chegar a públicos muito diversos e de os "resgatar" por uma abordagem de cinema que é bastante diferente. E isso significa que de facto, aquele ciclo correu muitíssimo bem e como tal decidimos regressar a ele. Era uma aposta sedutora, nós gostamos sempre de correr alguns riscos depois e ao mesmo tempo perceber a existência de audiências possíveis para este tipo de iniciativas.
Confesso que fiquei surpreso por ver “Enter the Dragon” nesta mostra, não porque não faça parte do cenário cinematográfico americano da época, mas porque parece destacar-se em termos de estilo e perspectiva política-social, em comparação com os outros filmes. Bruce Lee e a sua equipa poderiam justificar um ciclo de artes marciais? E já agora como olha para esse subgénero numa óptica de importância (ou não) cinematográfica?
Olhando para o “Enter the Dragon” … Bom, em primeira instância, a ideia de surpresa, nós gostamos sempre de ter um joker no meio destes ciclos. Ter algo que de facto nos aufere aquele sentimento WTF. No ano passado foi através do "Car Wash", um filme muito diferente dos restantes do ciclo, este ano acontece com o caso “Enter the Dragon", até porque o trabalho do Bruce Lee está completamente associado ao Hong Kong e aqui contamos com uma produção americana, devido à possibilidade da América de 70s acolher produções que não tinham necessariamente a ver com o seu próprio contexto, sendo outro espaço de liberdade que não sabemos se voltou a repetir depois.
Bruce Lee e a sua equipa poderiam justificar um ciclo de artes marciais? E já agora como olha para esse subgénero numa óptica de importância (ou não) cinematográfica?
Temos dúvidas, ou por outra, o Bruce Lee claramente podia justificar um ciclo de artes marciais, temos dúvidas se existiria público para esse efeito. Parece existir um goodwill muito grande relativamente a este tipo de filmes o que não reflete necessariamente em público, e portanto, dificilmente olharemos para essas questões, sobretudo as questões de género ou de subgénero que colocas na ótica de importância cinematográfica. Tem mais a ver com a possibilidade da sua contextualização, mais do que outra coisa.
Enter the Dragon (Robert Clouse, 1973)
Não temos a certeza de que o cinema de artes marciais seja um subgénero cinematográfico, sinceramente, mas estamos seguros de que ele teve, em certa medida, um contexto específico, bastante concentrado, apesar de existirem exemplos ao longo do tempo. Existe um período muito específico desse ponto de vista, no qual havia a capacidade de integrar a dimensão das artes marciais com outras componentes narrativas, entre outras abordagens. Isso, de alguma forma, foi-se diluindo ao longo do tempo ou viu surgirem outras abordagens um pouco distintas, algumas mais plásticas e visuais, outras mais focadas na tradição asiática, o que não era o caso das propostas que referi, e assim por diante. Mais adiante, temos alguns exemplos ligados à comédia slapstick.
Não estamos inteiramente seguros que isso possa fazer sentido. Pode fazer sentido sim encontrar objetos que, num outro contexto como este específico, podem encaixar e fazer sentido para audiências, mas não enquanto proposta muito concreta. Portanto é uma ideia que eventualmente não fica assim tão a pairar.
É inegável que Paul Schrader continua a desempenhar um papel direto e indireto neste prisma cine-americano, como demonstrado por um dos seus filmes mais reavaliados, "Blue Collar".
Nós queríamos ir ao Paul Schrader há algum tempo. Interessa-nos a sua faceta enquanto realizador, visto que Schrader argumentista, encontra-se mais visível, o seu trabalho está muito revisitado. Interessou-nos ir a uma visão direta de realização, e mais antiga, claramente, até porque o Paul Schrader recente não estamos a avaliar qualitativamente, é diferente.
Este “Blue Collar” tem uma série de características muito interessantes, a questão do dilema moral dos personagens. O próprio Richard Pryor, que acaba por ser uma espécie de grande figura ali no meio, que se foi perdendo depois ao longo do tempo de outra forma, interessou-nos esta lógica também ligada a um movimento sindical e a forma como ela era vista e trabalhada, e portanto também vamos ter na sessão do “Blue Collar”, Manuel Carvalho da Silva, ex-dirigente da CGTP, para a conversa e trazendo com isso um ângulo muito laboral, um outro olhar para este “Blue Collar” e isso interessou-nos mais do que outra coisa.
O que poderá dizer sobre os convidados? Que tipo de dinâmica espera criar através dessas interações?
Sobre os convidados … o que tentamos sempre é ter convidados, até este ano mais que a do ano passado, e com poucos especialistas. Não gostamos da ideia de especialistas, tentamos fugir dela como o “Diabo da cruz”, o que pretendiamos era procurar vozes que tenham opiniões diferentes sobre os filmes.
Como já referido, no “Eraserhead” vamos ter o artista plástico Vasco Araújo, com uma visão claramente diferente sobre aquilo e, portanto, não nos interessa a ideia de género, por exemplo, ligado a terror ou a bizarria, mas outro tipo de abordagem. E na última sessão, para além de outro convidado, o Carvalho da Silva, também com uma visão sobre mais a ideia do mundo laboral do que cinefilia. Interessa-nos sempre haver esse tipo de discussão, sair do filme e não ficar fechado dentro dele. O ano passado conseguimos isso em espaços. Dependeu um ‘bocadinho’ dos convidados. Neste caso específico fizemos um esforço claramente maior para que isso aconteça.
Blue Collar (Paul Schrader, 1973)
Finalmente, teremos o desfecho da trilogia?
A resposta permanece a mesma que há um ano: não temos certezas. Tudo dependerá da avaliação que faremos disso e também muito do contexto do próximo ano, se se adequar. Não apreciamos a ideia de um festival ou de uma mostra cíclica que se repete. Isso significa que, muito possivelmente, há casos em que até podemos realizar uma vez ou duas, mas não necessariamente transformar isso numa iniciativa que ocorre anualmente e se consolida. Dependerá muito do que acontecer na programação ao longo do ano e do que pretendemos fazer também em torno desta questão dos anos 70. Isso pode implicar assumir outra abordagem, explorar diversas direções ou integrar-se em outros tipos de iniciativas. Esta é uma questão que estará claramente em discussão, mas, por enquanto, ainda é muito precoce para fazer essa avaliação.
Toda a informação sobre o ciclo aqui
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Em janeiro de 2020, a poucas semanas do confinamento... sabíamos lá nós no que é que iríamos meter... antecipava-se mais um Festival de Roterdão. Esse ano contaríamos com uma presença, em parte, portuguesa - "Desterro" - obra da brasileira Maria Clara Escobar, a disrupção de um seio familiar e matrimonial, uma mulher em fuga e Trio de Odemira em baile.
A realizadora concordou em encontrar-se comigo para uma conversa sobre este seu trabalho e de certa maneira foi disso que tetamos restringir, mas as assombrações contemporâneas pairavam entre nós - do outro lado do Oceano Atlântico, Bolsonaro era o representante máximo do Brasil e Roberto Alvim, porta-voz da cultura, havia solicitado, em jeito Joseph Goebbels, uma aliança da arte com os valores defendidos pelo governo em atuação.
Passados três anos, resgato esse diálogo, essa incerteza vivida diversas vezes, relembrada pela existência de um filme eclético, pujante e autodestrutivo como "Desterro", hoje disponível na plataforma Netflix, ou em sessões especiais em mostra e cineclubes como é o caso do Alvalade Cineclube e o seu ciclo "Família é Família" [ver programação aqui].
Começo com esta pergunta trivial e meio informal, como se sente em ir a Roterdão com o seu filme?
As pessoas que trabalharam e tiveram comigo tanto tempo no projeto vão ser reconhecidas de alguma forma e vão também poder estar lá. Mais por eles e primeiro do que por mim. É importante esse tipo de reconhecimento porque, de alguma forma, combate um discurso que está sendo feito de que os filmes que estão sendo feitos nos últimos anos do Brasil são ruins ou não interessam a ninguém. Então, de alguma forma, é uma conquista política também lá estar.
Mas buscando essa parte da conquista política e tendo agora os últimos envolvimentos acerca da nominação ao Oscar [“Democracia em Vertigem” de Petra Costa como Melhor Documentário], ao Brasil, também há de uma certa parte quase um esforço em vão, este reconhecimento mundial, mas em território nacional, pelas altas patentes, não é reconhecido e por isso completamente desprezado. Não há certo sentimento em vão?
Acredito que não, porque toda conquista é uma conquista. E de certa forma, isso responde. Não quer dizer que vá resolver a paralisia que estamos a viver atualmente no cinema, mas responde e mostra que estamos em diálogo com o mundo e com as coisas. Portanto, não é em vão. Existe algo muito valioso nisso, que é a minha única esperança, na verdade, em relação ao Brasil. As pessoas aprenderam a falar, aprenderam que podem falar, podem fazer coisas, podem fazer filmes, podem publicar coisas, podem escrever na internet. Isso é algo que acredito que não voltará atrás. Existe uma potência de resistência nisso. E, bem, isso nos liberta para ter confiança em falar sobre as coisas, não é mesmo? Poder falar sobre o nosso presidente, sobre a situação do Brasil e, claro, a Petra [Costa] ainda mais, no Oscar, que é também um lugar reconhecido por essa parte da população brasileira, que está muito ligada à humanidade dos Estados Unidos, à América do Norte, e assim por diante. Portanto, é um reconhecimento muito importante.
Voltando ao “Desterro”, gostaria que me falasse sobre a sua criação, da ideia ao argumento que escreveu em colaboração com a atriz Carla Kinzo [a protagonista].
Eu comecei a escrever este argumento quando ainda estava a concluir o meu documentário "Os Dias com Ele" (2012), que fiz com o meu pai. Acredito que em algum momento descobri que estava interessada em abordar algo irreparável, algo que também está presente no documentário, que fala sobre a tortura e a Ditadura Militar. Havia, por um lado, o desejo de abordar o comportamento de uma classe média brasileira que, naquela época, jamais imaginaria que iria desembocar na situação em que nos encontramos hoje. Era uma forma de se ausentar um pouco, de evitar conflitos e dizer "enquanto não falarmos sobre isso, enquanto não chegarmos a isso, isso não existe". Mas as coisas estão a acontecer, essa estrutura familiar está a repetir-se historicamente.
Não é por acaso que quando chegamos à votação do impeachment da Dilma, todos votam em nome das suas próprias famílias. Esse era um ponto de partida, de certa forma, para refletir sobre o que isso significa. No final das contas, acredito que a resposta para mim é destruir a casa, destruir a ideia de casa. Foi assim que o vimos. Ao longo do processo, que durou cerca de oito anos, desde o início até agora, trabalhando em conjunto com a equipa, com a atriz, passamos três anos no quarto, foram sendo descobertas outras coisas.
Muito da sequência do autocarro foi construído em conjunto com as mulheres que surgiram na minha vida ao longo do processo, à medida que o mundo ia mudando e eu também ia mudando. Fui pensando com eles, sobretudo.
Maria Clara Escobar no Festival de Roterdão
Ou seja, o filme representa um processo de mudança e criação. Talvez seja essa a sensação que ficou em mim ao assistir a "Desterro", a de ter presenciado dois filmes completamente opostos. De facto, existe uma clara fissura entre o protagonista no Brasil e a protagonista deixando o país. Gostaria de saber a sua opinião sobre a questão de deixar o Brasil. Apesar de ter mencionado que não possui as mesmas referências que existem no mundo atual, hoje em dia faz mais sentido abordar essa temática. Este filme adquiriu uma interpretação própria.
É difícil falar sobre isso porque não posso falar pelas outras pessoas, mas para mim sair do Brasil não é uma solução. É uma solução de sobrevivência individual para aquelas que pertencem a uma certa classe social. No entanto, cada pessoa tem a sua própria história. Para mim, na verdade, trata-se mais de uma questão de território, no sentido simbólico de deixar um determinado espaço, um certo território, e conseguir se transformar ou se reinventar em outro tempo, em trânsito, na verdade. A questão do trânsito é mais importante do que simplesmente sair do Brasil... É claro que estou falando a partir do Brasil, mas não acho que seja uma questão exclusivamente brasileira. É um reflexo da nossa sociedade familiar e patriarcal.
Até saindo do lado politizado, é um lado compreensivelmente existencial.
Sim, acho que é mais nesse caso. A ideia de atravessar uma fronteira, que no exemplo do filme, é física, e igualmente simbólica, o ato de não ter mais para onde voltar.
Até porque a personagem principal é completamente amarrada a certas questões morais, a própria ideia estabelecida de que uma mulher na sociedade deve restringir a casa, família, filhos, casamento, etc. O momento em que ela realmente se libertou foi naquele não-lugar, uma área de serviço que é uma mistura de bomba de gasolina ou discoteca. Gostaria que me falasse dessa determinada cena e na escolha da música [“Ana Maria” dos Trio de Odemira].
É genial a banda, porque tem uma coisa muito racional e ao mesmo tempo muito passional. O filme é brasileiro, é português e é argentino, por isso a música realça essa identidade portuguesa presente. Só em Portugal alguém consegue ser tão apaixonado e tranquilo ao mesmo tempo. A música transmite algo muito forte. Ele está em desespero, mas canta a rir. E no videoclipe é ainda melhor.
Mas acho que a escolha coincide com o filme porque vai dando pistas. Ela aborda toda a representação da mulher que já foi feita, ou que ainda é feita, em argumentos, em livros, em filmes. Como pensamos e enquadrámos uma mulher e tentamos colocar isso em questão. Então ela está lá no auge, tem um tipo a chamá-la... Enfim. A dizer tantas "coisas ruins" sobre uma mulher quando, de repente, não é essa imagem que vemos. Essa desconexão faz parte da natureza de "Desterro".
A música é praticamente solta para a sequência em si. É como se fundisse dois ferros de diferentes estruturas numa única peça. E é curioso, a própria protagonista em transe naquela cena.
Eu acredito que o filme em si é construído dessa forma. Sempre foi um desejo meu. Por exemplo, durante a edição com a Patrícia Saramago, eu costumava dizer: "Se está parecendo bom, vamos fazer o oposto". Não no sentido de ser bonito, agradável. Se o filme está parecendo confortável, acho que devemos tentar o contrário. Porque desde o início, o filme trata também de ir contra uma certa tradição do cinema de ser excessivamente realista e ter que fingir que você não está assistindo a um filme, para que as pessoas acreditem que elas vão sentir algo, entende? Elas precisam se distanciar e acreditar que aquilo é apenas um filme.
Portanto, há sempre um desejo de construção em memória de que este filme existe, ele é um filme, e apesar de ser um filme, ou talvez por ser um filme, sentimos coisas e estamos imersos nessa ... Acho que isso está relacionado com o conflito das questões e aprofundá-las, e sentir mais, ter consciência das coisas. Então, havia esse desejo de desconforto presente durante a construção dos atores e atrizes, na estética, na edição posterior, e também nas músicas.
Outra questão a abordar, algo que está muito em voga, inclusive com a influência dos Oscars e do filme "Marriage Story", é a deterioração amorosa que leva ao divórcio. No seu caso, é uma separação, independentemente dos bens. No entanto, é curioso que as únicas cenas em que esse casal se comunica ocorrem durante o “café da manhã” [pequeno-almoço]. E mesmo assim, a comunicação é superficial, consistindo em conversas triviais e de certa forma desconectadas das emoções. Além disso, é interessante notar que nessas sequências a Maria Clara utiliza o falso raccord.
Tinha o desejo de repetição, mas também de desconexão. Na verdade, o segundo “café da manhã” é filmado através de um espelho, o que causa tanta confusão, porque constantemente há uma alteração de eixo. No entanto, acredito que há um forte desejo pelo novo. Para essa sensação de conexão, pensamos muito em como criar um sentimento de estar gradualmente desconectado, mas ao mesmo tempo não deixar claro a consequência do ato. Não é um problema, é mais uma questão de surpresa. Não ficamos pensando "Ah, olha, estão fazendo isso dessa forma". Sempre ficamos com uma certa sensação.
Para mim, a gramática é o primeiro sistema, certo? A primeira organização sistemática. E as palavras são uma forma de conflito. Usar palavras, falar, sempre vai gerar algum tipo de conflito no sentido de que o outro nunca vai entender exatamente o que se está a dizer. E vai tentar responder a algo e, acho que o espírito vai permanecer nessa desarmonia, como diz a personagem. Então, de certa forma, eles não estão realmente ali. Eles não estão mais em relação.
E a palavra, talvez a partir desse ponto de vista, deixe de fazer sentido para eles dois, como se eles estivessem apenas repetindo coisas. Apenas ensinando que a paz é uma ilusão na vida deles.
De certa forma, o casamento é uma encenação?
De certa forma, o casamento é uma representação. É verdade! Eles estão ali cumprindo os seus respectivos papéis. O filme também aborda isso. Quando a personagem do Júlio (Rômulo Braga) entra em cena, ele de certa forma repete um modus operandi, assim como ela repete um padrão de comportamento ao substituir apenas o ator dos meus papéis, sem questionar muito. Para mim, tudo é uma encenação de alguma forma. Mas é importante sempre manter um diálogo com o que se sente, com o que se é, com o seu mundo, com essa encenação que realizamos. Caso contrário, ela se torna apenas uma representação vazia, algo que ninguém mais deseja assistir ou que não faz mais sentido algum. Não traz transformação. É como encenar uma peça antiga.
No seu filme é nos incutindo um poema - “ O Útero é do Tamanho do Punho” de Angélica Freitas - que por sua vez tem uma “história” com os deputados da extrema-direita de um estado brasileiro, quer-nos contar essa história?
Este poema é um dos poemas mais... como posso dizer... impactantes que li nos últimos tempos. Acredito que há algo central no filme é tentar compreender o que é e como pode ser uma mulher em movimento. Estamos acostumados a "congelar". A pensar "esta mulher é assim, esta mulher é assim". As pessoas, de um modo geral, mas especialmente as mulheres, são historicamente obrigadas a serem julgadas e terem outras pessoas definindo o que são, escrevendo sobre elas, fazendo filmes sobre elas. Então, este livro aborda muito a impossibilidade dessa mulher. A mulher que se desvia um pouco do que é considerado puro, que é tida como suja, bêbada, má. Não há lugar para ela.
E o poema é extremamente violento, mas ao mesmo tempo muito preciso, muito correto. E sim, essas coisas que acontecem, os filmes demoram a serem feitos e não têm qualquer relação com o governo, com este poema em particular, sequer. No Brasil, para ingressar numa universidade, é preciso fazer um “vestibular”, uma prova abrangendo todas as disciplinas em geral, depois são realizadas provas específicas.
E há leituras obrigatórias, livros que devem ser lidos para realizar essas mesmas provas. E um dos livros que é obrigatório é o dela. Acredito que seja em alguma área específica, como ciências humanas, literatura, letras, algo assim. E então o governo, julgo que seja do estado dela, que é do sul [Santa Catarina], tentou proibir, afirmou que era um absurdo a existência desse livro, que ofende a moral religiosa. E de facto, o livro pode ser ofensivo em algum sentido, mas isso só significa que a nossa sociedade mantém um vínculo muito patriarcal e machista.
Eu senti assim, como se estivesse em diálogo com as pessoas certas, porque é sobre isso, é sobre desconstruir essa ideia da mulher confinada em casa, preparando a comida para o marido. Essa imagem está muito ligada ao catolicismo, ao conservadorismo religioso. E isso se estende também a outras religiões.
E o casamento é uma questão existencial, não é apenas uma prisão existencial, mas também uma limitação da própria possibilidade de subjetividade. Acho que se trata de como uma mulher se vê, como vê o seu horizonte, e como um homem se vê, que horizontes consegue vislumbrar. Como a subjetividade é mais restrita para as mulheres e como isso as afeta.
E quanto a novos projetos?
Estou de momento a trabalhar em dois filmes. Um é um documentário ficcionalizado. Não sei bem como descrever, mas estamos a trabalhar com uma amiga nossa que é empregada de limpeza, ou melhor, diarista, como ela se refere. Ela sempre teve o sonho de cantar. Então, decidi fazer um filme em que ela pudesse ser cantora e experimentar isso. No filme, ela se transforma numa cantora e gravamos um álbum com ela. Ainda está em processo, falta a montagem e dinheiro para finalizar. Também estou a escrever outro filme chamado "O teu silêncio não te protegerá". Mas está ainda numa fase inicial, é apenas um esboço.
Mas já tem título!?
Na verdade, é uma frase de uma feminista chamada Audre Lorde. Mas acho que, de certa forma, pelo título, já dá para perceber que o filme segue em frente no pensamento da mesma questão. Está relacionado com tudo o que falamos, sobre a palavra, sobre a política …
Ou seja, também será um filme politizado?
Sim. Com certeza.
O facto de também ter agora dois projetos em mente e este medo de não haver financiamento para filmes brasileiros …
Tal como o “Desterro”, serão co-produções.
Gostaria que me falasse sobre esse medo, e o resgate da coprodução assim dizendo, e o que é que poderíamos esperar pela sua ideia de cinema brasileiro do futuro. Acrescentar, acho que foi ontem que um dos representantes da cultura brasileira [Roberto Alvim] fez um discurso muito "goebbels" acerca do cinema …
Aí precisa de letras "Goebbels", ele cita o "Goebbels", é assustador. É complicado falar sobre o futuro, porque nós não sabemos. A verdade é essa. Neste momento, o cinema está paralisado. A ANCINE funciona com uma diretoria colegiada que precisa de pelo menos três diretores, e dois para que qualquer decisão seja tomada. Acho que mais ou menos há um ano, o Bolsonaro não nomeia ninguém para ser o segundo diretor. Então, nada pode ser decidido. Enquanto isso, cortes estão sendo feitos não só na cultura, mas também na educação e na saúde, o que é fundamental para a existência do país e também para a cultura, para que as pessoas possam viver. É um governo contra qualquer ideia de pensamento, que declarou uma guerra, suposta guerra, contra esse inimigo que é aquele que pensa. Eles acham que quem pensa é o que atrapalha. Então, neste momento, não dá para saber o que vai acontecer, quanto tempo esse governo vai durar, o que virá a seguir. Eu acho que provavelmente serão vários anos de incertezas que teremos à nossa frente. E as pessoas vão ter que buscar dinheiro à Europa novamente.
Existem uma série de fundos, alguns fundos que existiam e nos quais o Brasil era contemplado anteriormente, porque era um país pobre e ao longo do seu desenvolvimento económico foi excluído. Fundos que vão para a África, vão para a América Latina. Talvez ele volte a fazer parte desses fundos agora que sua economia está em queda. Não sei, vamos ter que reinventar de alguma forma. Não sei se os filmes vão ser feitos da mesma forma, acredito que será mais difícil fazer filmes.
Acho que filmes como "Desterro" não serão produzidos nos próximos anos. Mas também não quero fazer um discurso derrotista. A indústria cinematográfica é uma classe privilegiada, assim. Então, também não acho que todas as pessoas vão parar de fazer filmes. Agora, o pior é para as pessoas jovens que estavam a começar. Mulheres negras fazendo filmes no Brasil, ampliando a visão do nosso país e promovendo reflexões. Essas provavelmente serão as primeiras a serem excluídas por falta de recursos, por falta de conexão com a Europa, por exemplo.
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Gipsofila (Margarida Leitão, 2015)
Foi com o muy celebrado “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos que o Alvalade Cineclube abriu o seu mais recente ciclo, uma mostra de filmes que nos soam familiar até porque Família é Família, como diz o título da iniciativa, e família, por bem ou mal, toda a gente a tem. Serão no total cinco obras que exploram os laços, sejam sanguíneos, sejam fabricados, que compõem esta íntima comunidade, por um lado são um espelho da nossa identidade, por outro são matéria para a criação. O cinema português celebrando “lugares-comuns”, salvo seja, com a intenção de ir mais além do mero álbum de fotografias.
Em conversa com o programador Bruno Castro, desvendamos pouco a pouco a viagem pelos filmes e as suas respectivas famílias. A não perder no Cinema Fernando Lopes, este ciclo iniciado em 8 de junho e com desfecho (e que desfecho!), ao som de Trio de Odemira, com “Desterro” de Maria Clara Escobar no dia 29 desse mesmo mês.
Curiosamente, alguém me afirmou numa daquelas tertúlias cinematográficas de que o cinema português “anda eternamente atrás da avó e do avô”, uma clara referência às enésimas temáticas familiares que deparamos neste panorama. O cinema português é no seu maior sumo um cinema que procura encontrar a sua identidade nas suas raízes familiares?
Temos muitas dúvidas sobre o conceito de “cinema português” hoje em dia…. Mas para além disso, o que queremos neste caso é dar espaço a realizadoras e realizadores que andam à procura de si mesmos. A Catarina Vasconcelos fê-lo na "Metamorfose dos Pássaros" ao partir de uma morte e ficcionar uma vida. O António Aleixo vai atrás sim, mas para perceber-se a si mesmo. A família enquanto tema do cinema feito em Portugal não nos pareceu mais do que uma desculpa para estes olhares, que estão longe de outras abordagens sobre os “avós”. Ainda assim, se entrar no espaço de intimidade da família for uma forma de encontrar identidade, então somos portugueses. Estes são cinco filmes para questionar inclusive o conceito de família. Parece-nos que o traço de identidade deste cinema português é a curiosidade e a vontade de fazer perguntas, seja ao avô ou ao bebé.
Tendo em conta esta seleção de filmes, que noção podemos ter de Família? Ou se no seu todo deparamos com uma tese?
Nada de tese! Não queremos ter noções, queremos ter diálogos. Nunca programamos com uma proposta de tese, mas sempre com um móbil de questionamento. E ainda por cima acreditamos piamente que família é o que se quiser. Só não está o Hirokazu Kore-eda neste ciclo porque não nasceu na maternidade Alfredo da Costa.
Um dos filmes selecionados é o “Desterro” de Maria Clara Escobar, que entra neste ciclo em oposição aos demais, é uma obra que deseja destruir laços familiares e não criá-los, e coincidentemente (ou não) é o desfecho da mostra.
É curioso como habitualmente se olha a ideia de família sobre o prisma da construção ou destruição. Como se fosse um edifício, que decidimos erigir ou demolir. “Desterro” surge pela diferença e pela coragem mais do que por oposição. A Maria Clara teve a vontade em assumir que "os dias que correm” podem ser fugas ou desagregações, e que a vida pode ser sair de casa, porque pode existir outra casa lá fora, ao ar livre. É um filme formalmente maravilhoso e de uma coragem surpreendente, pelo contexto de produção (filmado em plena era-Bolsonaro) e porque existe, apesar desta Humanidade. É também um filme que nos permite afirmar de forma bastante clara que família não é um conceito binário, boa vs má, sólida vs frágil, protegida vs exposta. É bastante mais dúbia que isso, e é por isso que fecha o programa. Adoramos zonas cinzentas.
Desterro (Maria Clara Escobar, 2019)
De alguma maneira, todos nós identificamos com estes filmes de uma forma emocional, diremos mesmo que a Família é uma palavra universal e até que ponto não é um caminho fácil para cinema, principalmente enquanto “primeiros passos” de um(a) realizador(a)?
Boa pergunta para realizadores! E porém, com os que falámos e falamos, dizem-nos que é dos caminhos mais difíceis. É mais próximo, sim, mas comporta maior risco, porque se a ligação emocional do filme não se dá com o espectador, é um “falhanço”. E depois há aquela vontade dos realizadores de ajustarem contas com a sua própria vida. Alguns fazem-nos com zombies. Outros preferem ir almoçar com a avó. São todos humanos (menos os zombies).
Havia algum critério para o ciclo ser uma demonstração do universo português (mesmo “Desterro” ser ambientado e possuir coprodução brasileira)?
Boa pergunta. Na verdade, inicialmente a ideia era existir diversidade de cinematografias, e de famílias. Mas depois os astros alinharam-se de uma forma específica e surgiram oportunidades para ter as realizadoras e realizadores em sala, para discurso directo, e não quisemos perder esse comboio. “Gipsofila", por exemplo, é uma raridade em sala e isso permitirá ter a Margarida Leitão de novo connosco. O mesmo com o António Aleixo, a Catarina, o Jorge Vaz Gomes. Não trocamos uma boa conversa em carne e osso por um taco gordurento da cidade do México, sem chicha ao vivo.
Novas familiaridades … quer dizer, novos projetos para o Alvalade Cineclube?
Podíamos fazer trocadilhos e dizer que o scoop agora vai ser de gelado de limão durante o Verão. Em vez disso, damos mesmo um scoop sumarento: em setembro os olhares têm título bem grosso: “Da Glória das Mulheres em Portugal”, com três documentários sobre senhoras desta terra. Em outubro, o primeiro ciclo participativo, em que os filmes a ver serão votados pelo público a partir das sessões mais marcantes dos últimos anos. Em novembro, o regresso da América 70 com mais cinco colarinhos azuis. Em dezembro, Noites Portuguesas serão três saraus cinéfilos especiais. Pelo meio o arranque do projecto educativo Cinedojo, com paragem pelo Cinema São Jorge. Chega para conversa de Natal no jantar de família? Nós levamos a compota para trocar no quintal.
Todas as sessões iniciam às 21h00 (ver programação aqui)
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Five Easy Pieces (Bob Rafelson, 1970)
Entre “The Graduate” de Mike Nichols e “Bonnie & Clyde” de Arthur Penn declarou-se o fim da Hollywood clássica que tão bem aprendemos a amar, e o epíteto chegou-nos através de um recomeço.
O mundo mudou drasticamente e com isso, a linguagem cinematográfica encontrava-se sensível a movimentos crescentes e a estéticas subvertentes. É o “novo cinema” e com isso, a “bem-vinda” de novos protagonistas, “contaminados" pelas manifestações de vagas, refrescantes e acidamente desconstrutivas, que surgiram por esse mundo fora. Os EUA, que tão tardio acolheu essas mesmas vontades, aprendeu a olhar para si com a desconfiança, a crítica e a motivação em reencontrar a sua própria identidade, essa, renegada e negada vezes sem conta por quem o poder estava instituído. Assim nasceu o que chamamos de Nova Hollywood, ou os “Movie Brats”, ou simplesmente os 70s, a cada vez mais discutida e mais recente idade de ouro do cinema americano.
E é pelos rumos das novas inserções, cinema que nos distancia mais e mais, e que mesmo assim, nem por um minuto, nos deixa impressionar, que o Alvalade Cineclube se lança num muito antecipado ciclo - "América ‘70" - um conjunto de sete obras que resumem a década ainda hoje relembrada como uma das importantes e revigorantes da cinematografia “yankee”.
Arranca no dia 3 de novembro com “Five Easy Pieces” de Bob Rafelson (1970), terminando no dia 15 de dezembro com “Killer of Sheep”, de Charles Burnett (1978). Todas as sessões acontecem à quinta-feira (e com convidados especiais), no Cinema Fernando Lopes [Lisboa]. Em conversa com o Cinematograficamente Falando …, o programador Bruno Castro explica as razões para não ficarmos de fora nesta mostra.
Gostaria de, antes de mais, que me falasse sobre a natureza deste ciclo e a importância dele. É um ciclo sobre Nova Hollywood, o movimento, ou do cinema produzido na América na década de ‘70?
É um ciclo sobre a vida, num ecrã. A década de 70 no cinema americano é o pós-musical e a antecâmara do screen sugar dos 80s, e isso significa que foram 10 anos de muita honestidade, dilemas, indigências, inconformidades, pequenas felicidades seguidas de pequenas infelicidades, tiros falhados que afinal acertam noutro alvo sem comédia. E de repente tudo isto nos parece familiar em 2022, não? Somos uns suckers pelos 70 americanos, foi talvez a década de cinema mais honesta de sempre, e é essa visceralidade que nos interessa. Claro que depois podemos ter um olhar mais cinéfilo hard core e falar da Nova Hollywood e dos realizadores e de como a queda dos estúdios motivou algumas dinâmicas (e isso virá ao de cima nas conversas com os convidados dos ciclos, que são imensos desta vez!), mas o que nos interessa mesmo é a honestidade naquilo tudo. Caramba, o cinema voltou a ser assim?
Na programação podemos encontrar obras incontornáveis do “movimento” como “Taxi Driver” de Scorsese, “Serpico” de Lumet ou “A Woman Under Influence" de Cassavetes, mas é nos detalhes, como se costuma dizer, que somos conquistados. “Car Wash” e “Killer of Sheep”, queria que me falasse na seleção destes filmes. Aliás, como se procedeu à escolha desta programação?
O diabo nos detalhes, é sempre assim. Comecemos pelo mais fácil: era óbvio para a equipa de programação que não podíamos ficar nos grandes filmes, nos que toda a gente conhece. Claro que “Taxi Driver” e “Serpico” fazem sentido (até porque existem diversas gerações que nunca os viram no grande ecrã), mas os 70s foram também o Richard Pryor a chegar de limousine a uma estação de lavagem de carros, e a ser gozado pela fatiota. “Car Wash” é o ponto de fuga deste ciclo. Tem mais funk que o Prince, mais blackness que Sidney Poitier e uma bizarria dançável impossível de ver noutros filmes. Os 70s foram também aquela zona estranha em que dançamos enquanto lavamos carros, personalidades da cultura popular entram e saem de cena. Foi essa a zona de liberdade dos 70s. Se “Serpico” era um homem amargurado pela corrupção numa cidade suja, é verdade que também houve momentos luminosos naquele tempo.
Serpico (Sidney Lumet, 1973)
Já "Killer of Sheep" tinha que ser a forma de terminar um ciclo sobre esta América. É um filme precioso, invulgar, de periferias, com uma visão lindíssima sobre a realidade que não está refém de uma narrativa construída convencionalmente. É mais um exemplo de liberdade formal, e um filme muito incompreendido, pouco visto, que o tempo veio afirmar como um dos grandes. Como cineclube temos a responsabilidade de assumir um trabalho de curadoria real, isto é, de não facilitar e mostrar “apenas” o mais óbvio. Os espectadores confiam no nosso olhar, e na possibilidade de descobrir filmes que não imaginam existir. Temos que estar a esse nível.
Voltando às menções de “Taxi Driver”, é possível contar a história de uma Nova Hollywood sem a solicitação de cânones ou obras charneiras?
Uff.... A ideia de “obra charneira” e de “cânone” vem da crítica, de uma certa intelligentsia de um tempo... Na verdade, não queremos contar a história de um movimento. Nunca nos move a ideia escolástica de “explicar” algo, ou “demonstrar”. Isso seria fechar as leituras dos espectadores, e era um crime lesa cinema. Dito isto, “Taxi Driver” é um enorme filme apesar do cânone. Isto é, não foi essa tentativa de canonização que motivou o seu aparecimento, nem é essa a leitura que queremos fazer do filme dentro do ciclo. A grande questão com os “grandes filmes” é sobre quantas pessoas verdadeiramente os viram no cinema? Que gerações de espectadores atuais nunca viram estes filmes num ecrã e numa sala de cinema? Ou conversaram sobre eles? A experiência de sala está no nosso estômago, e por isso vamos sempre procurar dar oportunidades para que filmes que merecem ser vistos sejam vistos no ecrã que os viu surgir. Conhecemos imensas pessoas que nunca viram “Taxi Driver”. Que uma sala de cinema e um ecrã de cinema sejam o espaço que habitam para essa experiência inacreditável.
Há um sentimento de que hoje muita da Nova Hollywood é rejeitada por não corresponder em parte a vários padrões ou requisitos morais e político-sociais atuais. Falo por exemplo no vigilantismo, tópico diversas vezes requisitado em muitas obras deste período, ou até mesmo à antagonização feminina e de certas minorias, como também orientações sexuais. Isto tudo para lhe questionar se é possível olhar para a Nova Hollywood e a década de 70 com outros olhos, ou devemos instalá-los como algo estagnado, mas de importância histórica?
Ahahaha, que boa pergunta! Dava toda uma outra entrevista.... Ou um Q & A! Temos muito medo do revisionismo, seja ele histórico, político ou outro. Claro que é impossível olhar para trás sem os olhos de hoje, mas deve um filme ficar refém das ideologias que lhe aplicamos hoje? Não há nada de estagnado na América de 70. Aliás, nunca foi tão atual! Quantas das disfunções de 70s vemos hoje? Quantos dos dilemas? Aliás, se calhar mais hoje do que em 2000, por exemplo. Ter um posicionamento ideológico ativo hoje sobre filmes de 70s é, para nós, estranho.
Uma coisa é compreender que muito do cinema (como de todas as manifestações culturais) é filho do seu tempo e como tal incorpora abordagens que hoje podem ser vistas como datadas. Outra coisa é passar a barreira e apontar os dedos. Se alguns destes filmes promoviam práticas que hoje sabemos não fazerem inteiro sentido? Claro. Se nos cabe a nós um posicionamento revisionista, para apontar o dedo ou mesmo fazer censura ao programar? Completamente não. Cabe-nos sim mostrar e discutir. Um cineclube é um espaço de descoberta e discussão aberta. Sempre.
Em relação ao Alvalade Cineclube, a Nova Hollywood será um ciclo fechado, ou existe possibilidade de expandir em tidas “sequelas”?
É uma questão que nós temos colocado a nós mesmos, e nem devíamos fazê-lo porque o programa ainda nem arrancou. No final faremos um balanço, como sempre, e depois vamos pensar na vida. Vontade de voltar onde somos felizes há sempre, mas ao mesmo tempo não acreditamos na “festivalização” da cultura, e promover edições de determinados programas pode cair aí. E há muitas questões legais envolvidas, de direitos de exibição, cópias, que dificultam muito estas iniciativas. Este é o programa mais difícil, nesse ponto de vista, do cineclube desde que existe. É uma oportunidade incrível! Temos que ponderar todas as questões e perceber se faz sentido. É muito cedo ainda para pensar nisso. Queremos viver os 70s agora. Queremos que os vivam connosco.
Car Wash (Michael Schultz, 1976)
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O Alvalade Cineclube demonstra-se motivado em recuperar a cinefilia lisboeta, se não o seu espectro, e uma das bem-sucedidas tentativas foi com a iniciativa Salão Lisboa, em que foram projetadas 4 diferentes produções portuguesas em recintos próximos a antigos cinemas da capital. Porém, o trabalho para com esta memória, não tão longínqua, não para por aqui.
Um novo ciclo surge-nos, desta vez recordando uma das figuras mais emblemáticas da “cidade cinéfila” - João Manuel Serra, ou carinhosamente O Senhor do Adeus - que nos deixou em 2010, sem antes nos mostrar como se deve combater a solidão. A arma? Filmes e tertúlias, assim como um gesto de esperança, o aceno propriamente dito, a todos que seguissem de passagem.
E é sob essa homenagem que o Alvalade Cineclube parte, da última obra-prima de Francis Ford Coppola - “Tetro” (2009) - para outros hipotéticos “filmes prediletos”, estreados após o seu desaparecimento mas que a programação acredita na existência de suposto amor sentido por parte de João Manuel Serra se tivesse tido a oportunidade de uma “deslumbrar”. O tributo prossegue com “About Endlessness" (Roy Andersson, 2020), “In Transit” (Christian Petzold, 2018), “The Best Years” (Gabriele Muccino, 2020), “Cold War” (Paweł Pawlikowski, 2018), “Thelma” (Joachim Trier, 2017).
Para o Cinematograficamente Falando …, mais uma vez, a programadora Inês Bernardo falou-nos sobre o ciclo que arranca já neste dia 22 de setembro, e sobretudo, sobre a figura homenageada em grande ecrã.
Numa tentativa de resgatar a aura cinéfila de Lisboa, visto que a iniciativa Salão Lisboa incumbia em devolver cinema aos antigos cinemas da cidade, chegou a vez da invocação de um espírito tão querido na nossa comunidade. Quem era verdadeiramente o “Senhor do Adeus”? E o porquê da sua influência na nossa memória lisboeta?
Na verdade, o Senhor do Adeus – ou Senhor do Olá, como ele preferia ser chamado – era o João Manuel Serra, um cinéfilo luminoso com quem todos nós cruzávamos no Saldanha ou no Restelo, a dizer olá a quem passava. Ao contrário do que muitos julgavam, João Manuel Serra era oriundo de uma família abastada e foi um homem com uma vida recheada de viagens e arte. Teve o seu primeiro emprego aos 73 anos, a comentar filmes para o Canal Q e povoa ainda o imaginário de muitos que ainda passam no Saldanha e olham à volta, procurando um sinal do seu adeus. Era um cinéfilo feliz, que amava o cinema enquanto prática semanal, como quem vai ao café. E depois escrevia sobre isso. Claro que não nos lembramos disto (porque muitos não sabem) mas lembramo-nos sim da personagem que nos acenava, a todos, de sorriso genuíno, sem segundas intenções, como se a vida fosse simples. Talvez a memória venha daí, dessa invulgaridade. Terá sido o Senhor do Adeus a última grande personagem do imaginário da cidade? Temos o cinema para discutir isso.
Este ciclo parte de um filme que aclamou [“Tetro” de Francis Ford Coppola] para se seguir numa hipotética escolha de filmes que chegaram depois da sua existência. Quais os riscos que esta seleção traz à sua memória e como procedeu esta mesma escolha? Conseguiram decifrar o gosto de João Manuel Serra através deste ciclo?
Felizmente - através do carinhoso e cuidado trabalho do Filipe Melo e do Tiago Carvalho - as opiniões do João Manuel Serra estão registadas em blog e em livro e podemos, através desses relatos, saber o que ele pensava sobre os filmes mas também sobre muitos outros assuntos. Os filmes eram um pretexto para falar também da sua vida, do que gostava e do que o emocionava. Sim, pensamos que conseguimos uma seleção interessante que o próprio gostaria. Partimos de um filme que ele viu e criticou – “Tetro” – e passamos por filmes que abordam temas que o fascinavam: a segunda guerra mundial – que ele se preocupava muito que caísse no esquecimento – a elegância que ele via nos italianos, o suspense ou terror. Claro que é sempre arriscado programar a pensar em alguém que não está, mas é um desafio, ao mesmo tempo. Era muito mais seguro mostrar apenas filmes sobre os quais ele escreveu, mas pareceu-nos redutor. É muito mais interessante perguntar: como veria João Manuel Serra estes filmes hoje (a partir do que sabemos dele)?
Tetro (Francis Ford Coppola, 2009)
Pergunto se os seus companheiros nas “peregrinações” ao Cinema - Filipe Melo e Tiago Carvalho - auxiliaram, ou contribuíram, de alguma forma, para o ciclo?
Sim, tivemos um diálogo próximo com o Filipe e o Tiago para a criação deste ciclo. Desde logo, foram eles os grandes companheiros do João Manuel Serra aos domingos, quando entravam no Cinema Monumental e escolhiam os filmes. O importante neste ritual não seriam tanto os filmes em si mas a conversa e o convívio entre eles, que se lhes seguia.
Uma questão envolvendo o universo do “Senhor do Adeus”, e tendo em conta que o blog se encontra ainda ativo (porém, sem atividade para além da sua existência), existe alguma possibilidade de recuperação dos seus textos para memória futura? Ou quem sabe, conceber um novo “ciclo” a partir dessas crónicas?
Recuperamos os textos para este ciclo e o Filipe e o Tiago já fizeram um trabalho muito importante na fixação destes textos em livro.
O que este ciclo poderá trazer às novas gerações de cinéfilos, principalmente para aqueles que foram alheios da sua presença?
Resgatar a memória do Senhor do Adeus é, precisamente, pensar nas “novas gerações de cinéfilos”. Por vezes existe a noção que os mais jovens são desinteressados e vivem no seu próprio contexto, mas a nossa experiência no cineclube diz-nos que são dos espectadores mais curiosos e sensíveis, que verdadeiramente aceitam o jogo de descobrir uma personagem que lhes é estranha. Ainda por cima este não era um cinéfilo qualquer. Não era um crítico, ou especialista, ou profissional do meio. Era uma pessoa como todos nós, que tinha a generosidade de nos acenar desde a sua solidão e história. E acenava-nos olá e não adeus. E gostava de histórias bem contadas, de suspense, da beleza e do estilo, da preservação da memória. Conhecer estes filmes pelo olhar do João Serra é uma oportunidade única para todos, nova ou velha geração. Somos todos o Senhor do Adeus.
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Kilas (José Fonseca e Costa, 1980)
Por Lisboa adentro, a capital comemorará o cinema português numa segunda edição do Salão Lisboa, iniciativa do Alvalade Cineclube que visa trazer os aromas de um “cinema de rua", prevalecendo a ideia de que os filmes merecem mais lugar do que somente salas de estar e salas de centro comercial.
Esta mostra trará produções portuguesas tão diversas desde o culto de “Kilas, O Mau da Fita”, o grande êxito de José Fonseca e Costa, até à musicalidade oriunda do bairro de Alvalade em “Já Estou Farto!” de Paulo Antunes, com paragem na tragédia relembrada (e nunca esquecida) por “Alcindo” de Miguel Dores e o convertido conto de marujos e de sereias em “A Cidade Branca”, uma das obras mais famosas do cineasta suiço Alain Tanner. Quatro longas-metragens, projetadas em quatro sábados, e localizados em espaços periféricos a cinemas de bairro, hoje extintos, mas cuja memória ecoa nessta resistente cinefilia lisboeta.
Cinematograficamente Falando … falou com a programadora Inês Bernardo que explicita o projeto, a ideia e os filmes, e do porquê necessitarmos de mais iniciativas como estas.
O que podemos esperar desta iniciativa na sua segunda edição? Quais as ambições do projeto?
Antes de ser qualquer mostra ou iniciativa, o Salão Lisboa era um cinema. Estava ali no Martim Moniz, ainda lá está, e era um “cinema piolho”, o tipo de cinema mais democrático que já existiu nesta cidade. E na verdade é mesmo isso que queremos, desde o início, que as pessoas vejam cinema como parte natural da sua vida na cidade, como quem vai à frutaria ou fala com a vizinha. Porque isto já foi verdade, já fomos todas mais mulheres e homens do cinema, e isso perdeu-se. Claro que somos hoje todas pessoas diferentes, mas também se perdeu porque fecharam quase todos os cinemas da cidade, os cinemas de bairro, onde não se comprava um bilhete no balcão das pipocas.
O Salão Lisboa, como o concebemos, é na sua essência, uma Mostra de Cinema Português em espaços de memória. No início deste ano esses espaços foram sociedades recreativas tradicionais, em Alfama, na Estrela, nas zonas históricas. Agora trazemos a iniciativa para o nosso território de base, porque Alvalade é literalmente o Bairro do Cinema. É o bairro dos “Verdes Anos” e dos realizadores a beber café no Vá-Vá, mas é também o bairro onde fecharam o King, o Quarteto, o Caleidoscópio, o ABCine e outros tantos. É importante falar desses cinemas e porque fecharam, porque deixámos que fechassem. É por isso que todas as sessões em Julho são literalmente à porta desses espaços de memória, excepto no caso do Quarteto que é mesmo dentro do edifício, no terraço. Temos que perceber todos em conjunto porque isto aconteceu, e a melhor forma é voltar a projectar cinema ali.
Gostaria que me falasse desta seleção? Que critérios foram usados para a escolha destes filmes? Gostaria só de acrescentar um reparo, todos os quatro filmes têm, direta ou indiretamente,
Lisboa como centro da ação. É exatamente por aí! Escolhemos cinema português que tem, directa ou indirectamente, Lisboa como o centro da acção e tem relação com os lugares onde os vamos exibir. O “Kilas”, por exemplo, estreou originalmente no Quarteto - que é onde o vamos mostrar, o “Já Estou Farto” tem uma relação directa com o bairro, porque é sobre o grupo punk que apareceu ali, exactamente nos Coruchéus. Está lá o mural do Ribas e tudo! Além disso mantemos a nossa identidade de programação: projectar filmes que merecem ser vistos, e que fazem mais perguntas do que dão respostas. São filmes gatilhos, que puxam conversas, que emocionam as pessoas de alguma forma, que não as deixam indiferentes.
Não só esta iniciativa, mas também outras promovidas pelo Cineclube de Alvalade, é possível aproximar o cinema português a novos públicos (contrariando a tendência contrária que estamos a experienciar)?
Na verdade não temos bem a certeza dessa “tendência contrária”.... Talvez até seja verdade para o cinema de ficção mainstream, mas não é no documental, por exemplo. A nossa experiência nos últimos três anos diz-nos que os ciclos de cinema português, e temos sempre um completo todos os anos, são os que mais atraem os espectadores. São sempre quando temos mais pessoas e, mais importante, espectadores interessados, que querem mesmo descobrir o que vêem na tela e ouvir o realizador, e mesmo partilhar a sua visão sobre o filme. E não são espectadores geriátricos! São na sua maioria pessoas abaixo dos 50 anos de idade, que querem mesmo ver os filmes do Tiago Pereira ou da Cláudia Varejão ou da Manuela Serra.
A distância entre o cinema português e novos públicos é igual ao nosso empenho em mostrar realidades diferentes. A chave é o trabalho de curadoria. É preciso pensar, discutir, descobrir, e não aceitar a primeira coisa que aparece nas tabelas de distribuição. O resto são as pessoas. Existem espectadores interessados, a sério, e não têm problemas com língua ou geografia. O futuro é da curadoria, dessa proposta de olhar. Estamos todos desejosos por alguém ou algum projeto que nos ajude a descobrir o que não conhecemos.
Uma das declarações das notas do projeto, é a pretensão de reavivar o “cinema de rua”. Pegando no trabalho que o Cineclube Alvalade tem feitos nos últimos tempos, nomeadamente a abertura da Sala Fernando Lopes, o grande objetivo é sim, relembrar a Lisboa o ato de “ir ao cinema”?
A prática. A prática de ir ao cinema. Ir ao cinema como quem vai ali buscar o jornal e o pão de centeio. Porque ir ao cinema não tem que ser um evento familiar especial de aniversário, nem tem que implicar navegar num programa gigantesco de um festival que aparece uma vez por ano, como uma fada. A única razão para termos perdido o hábito de irmos ao cinema de forma natural, como quem vive a cidade, foi os cinemas terem desaparecido das nossas esquinas, dos bairros, e parece que tem que ser um programa de centro comercial quando chove. É muito mais que isso. A Sala Fernando Lopes, uma maravilha da Universidade Lusófona, é um cinema de cidade, aberto, acessível, super bem equipado, e é uma felicidade enorme existir e podermos programar ali. As pessoas fazem “uau!” quando entram. Já tivemos espectadores que apareceram para a sessão sem saber o que iam ver. Se com o que fazemos relembramos esse ato de “ir ao cinema” até este ponto, então sim, vamos relembrar, e relembrar e relembrar.
A Cidade Branca / Dans la Ville Blanche (Alain Tanner, 1983)
Os locais onde o Salão Lisboa ocorrerá, foram em tempos salas de cinema, tendo em vista a recente abertura da Sala Fernando Lopes, gostaria de lhe questionar sobre a possibilidade de uma nova reabilitação destas antigas salas ou uma ascensão do próprio conceito de cinema de bairro na capital?
Ui, que conversa longa se fazia agora.... Nós sonhamos com um novo cinema de bairro em Lisboa. É muito, muito, muito difícil que esse cinema, a existir um dia, seja um destes reabilitados. Porque os poucos cinemas fechados que ainda não foram modificados (como o Quarteto ou o Caleidoscópio, que hoje têm outra funcionalidade) estão num estado de ruína tal que o nível de investimento necessário é difícil de medir. São milhões! E, depois, há a questão chata do modelo de negócio.... Deve um cinema hoje ser como há 30 anos? É para nós óbvio que não. Um cinema em 2022 tem que ser um centro cultural multidisciplinar de proximidade, adaptado em escala ao seu território, com capacidade de dinamizar diversas actividades e convocar a comunidade. E para isso acontecer é praticamente mandatório que exista um suporte público, para além de ligação à sociedade civil e corporativa. Se a ascensão de um novo conceito de cinema de bairro é fulcral, também é evidente a dificuldade em ativar, sobretudo por razões económicas.
Há inúmeros bons exemplos de cinemas independentes com este modelo ou aproximado, na Europa. Nós temos vontade, até temos algumas competências e é possível que continuemos um trabalho de aproximação e sensibilização para este futuro desejado (junto da autarquia, organismos oficiais...), mas, para já, sonhamos com isso. Sabemos que não se pode continuar a produzir o volume de filmes que se produzem atualmente para ninguém ver. Algum dia vamos todos questionar o panorama da exibição cinematográfica em Portugal e nesse dia vamos estar lá, seja para discutir ideias ou pintar as paredes do cinema novo
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