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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Chiara mia, come possiamo affrontare un mondo senza Marcello?"

Hugo Gomes, 15.04.25

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Christophe Honoré deve, como muitos de nós, ter olhado para a face da sua colaboradora Chiara Mastroianni e notado, naquele seu rosto, as semelhanças ditadas pela sua genética — nomeadamente a do pai, Marcello Mastroianni — a fazer-se sentir e  confluir naqueles traços de mulher. Supondo isto, terá-lhe proposto um dispositivo carnavalesco: biografar o actor numa panóplia metamorfósica, quase metalinguística, sem nunca esconder o lado farsola. Chiara é Chiara, esmagada pelas constantes comparações da sua árvore genealógica, “e que tal seres mais Mastroianni do que Deneuve?”, deixando-se engolir por esse parentesco como um confortável distúrbio identitário.

Portanto, veste-se como o pai numa incursão (ou digressão) de Fellini, vive as “Le Notti Bianche” de Visconti (esse magnífico e, por vezes, esquecido filme em que uma estranha partiu o coração ao nosso galã… imperdoável), e regressa à Roma de “La Dolce Vita”, faltando apenas levitar sob o vento balnear. “Marcello Mio” faz questão de nos pontuar com essa vaidade da máscara, da imitação como forma de homenagem, não no processo ou na via de, mas na protagonista sujeita a esse propósito. Talvez se sinta aqui uma constante inversão: a da veneração e, igualmente, a do privilégio. Porque, no fundo, há uma camada que anseia sobressair face às revestidas e encarapaçadas diretrizes do tributo: o de Chiara. E onde está Chiara nisto tudo? A resposta, óbvia, está em todo o lado. Ela é o centro da jornada, mais do que o fantasma que incorpora como num ritual de candomblé. Fala-se de Marcello para se falar de Chiara, mas Honoré confunde o espectador com as suas constantes piscadelas: “olha aqui Scola, olha aqui Visconti, olha aqui Fellini … e sempre haverá Fellini entre nós”.

Talvez seja o ímpeto de desejar algo mais furtivo nesse campo da persona, em vez de se perder nas memórias retiradas do bolso da frente em prol do pai. Mas, se o caminho era esse, “Marcello Mio” funciona como esse passeio pelas assombrações e pelos romances fora-de-tempo (invocando a passagem de Melvil Poupaud, ao referir que “os actores vivem para interpretar os amantes dos outros e os fantasmas”). Contudo, não existe nada de verdadeiramente felliniano aqui! Dizer que sim é recorrer à via fácil do adjetivo, apenas porque Marcello e Federico eram (e são) duas dimensões indissociáveis. Presta-se, sim, à vontade de o ser, mas nunca à verdadeira catarse do estilo. Fellini é Fellini, Marcello é Marcello, e Chiara… bem, Chiara ainda se está a descobrir. Se é mesmo Mastroianni ou Deneuve, ou algo novo, gerado dessas duas “forças". Mas ainda tem muito por onde caminhar…

As "canções de amor" de Christophe Honoré ouvem-se do outro lado da rua

Hugo Gomes, 10.06.20

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Ele percorreu 400 quilómetros para chegar a ela. Ele vai atravessar o Canal. Eu, nem consigo atravessar a rua para te ter de volta.”: uma frase de “Welcome – Bem-Vindo”, um filme de Philippe Lioret que passou discretamente nos nossos cinemas em 2009 e lidava com a questão dos migrantes. No centro, estavam os conflitos matrimoniais de uma personagem nativa (Vincent Lindon), que demonstrava admiração pelo rapaz refugiado que a acolhera. Porquê falar desta obra para seguir em frente com o mais recente trabalho de Christophe Honoré? Fácil: em “Chambre 212” é a “pequena” distância, mais relativa do que factual, que se torna no grande antagonista do seu debate interno.

Quando Richard (Benjamin Biolay) descobre que a mulher, Maria (Chiara Mastroianni), tem um caso com um homem bem mais jovem do que ele, o diálogo diplomático é traído com o afastamento. É que Maria saiu de casa e atravessou a rua para ficar hospedada num hotel, um quarto com vista para a sua “vida passada”. A um passo de separar, todo o passado de ambos, por um fenómeno inexplicável, adquire literalmente uma vida própria, confrontando estes dois amantes perdidos no tédio dos 20 anos de matrimónio. É como se o "Conto de Natal" de Charles Dickens encontrasse refúgio nas prosas burguesas de um cinema que tenta desvendar aquilo que as personagens sentem de uma forma intelectualizada.

Por esses toques, “Chambre 212” constrói-se através de um dispositivo fantástico que contagia o enredo e a sua verosimilhança em prol de uma introspecção de relações e tempos precisos. No fim de contas, a distância é novamente protagonista de um desconcerto de corações. Os fantasmas dos amores longínquos (uma ponte feita pelo cada vez mais requisitado Vincent Lacoste), a vontade personificada com sósias de Charles Aznavour e a luxúria materializada nos adúlteros corpos da tentação trazem outra camada a esse dispositivo.

Como fez no seu (ainda imbatível) "Les Chansons d'amour" (2007), Christophe Honoré está de volta ao destino radical como inconvencional noção de felicidade e ao "happy end". Por aqui encontramos os remanescentes do calor artificial desse romantismo parisiense. Um teste para nos fazer acreditar no cinema enquanto ode dos nossos afetos e relações. Ou seja, romantismo à francesa.

Room Service!

Hugo Gomes, 09.06.20

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Chambre 212 (Christophe Honoré, 2019)

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Anomalisa (Duke Johnson & Charles Kaufman, 2015)

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The Best Exotic Marigold Hotel (John Madden, 2011)

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Don't Bother to Knock ( Roy Ward Baker, 1952)

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Four Rooms (Allison Anders, Alexandre Rockwell, Robert Rodriguez & Quentin Tarantino, 1995)

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The Grand Budapest Hotel (Wes Anderson, 2014)

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Home Alone 2: Lost in New York (Chris Columbus, 1992)

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1408 (Mikael Håfström, 2007)

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2046 (Wong Kar-Wai, 2004)

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The Shining (Stanley Kubrick, 1980)

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Some Like It Hot! (Billy Wilder, 1959)

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Room 304 (Birgitte Stærmose, 2011)

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The Bellboy (Jerry Lewis, 1960)

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The Million Dollar Hotel (Wim Wenders, 2000)

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Chelsea on the Rocks (Abel Ferrara, 2008)

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Hotel (Jessica Hausner, 2004)

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Love Steaks (Jakob Lass, 2013)

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Mekong Hotel (Apichatpong Weerasethakul, 2011)

Porque a vida é uma festa!

Hugo Gomes, 09.05.19

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Christophe Honoré respondeu ao sucesso do “permanentemente falso“ [palavras dele, não nossas] “Moonlight” com “Plaire, aimer et courir vite”, no qual a vitimização da homossexualidade é vingada pela perfeita naturalidade da representação. Antes de avançar no argumento, gostaria de dizer que este é um Honoré que não se via desde “Les Chansons d'amour” (2007), um retorno à Paris romanticamente triste e aos amores de passagem.

Agora, voltando ao ponto inicial deste texto, o filme remete-nos aos meados dos anos 90 (num Cinema vemos o cartaz de “The Piano”, o qual nos envia automaticamente para o seu contexto temporal), à expansão do HIV, às lutas frenéticas do Act Up (“120 BPM” outra vez!? Calma), mas sobretudo ao secretismo da homossexualidade, às capas sociais e até aos romances às escondidas numa esquina. Elementos que avançam para uma espécie de world building queer, com Honoré a evitar qualquer queerness (ofensa é cedermos a esse rótulo) e fugindo a sete pés dos enésimos contos de armário (não se trata de coming-of-age in loco), e sobretudo esquecendo a vitimização, a maldição de ser gay que o oscarizado filme de Barry Jenkins lhe transmitia.

“Plaire, aimer et courir vite” um retrato amoroso, é o quotidiano da homossexualidade transportado para a normalidade. Eles vivem, morrem, amam, odeiam, riem, choram. Por palavras mais concretas, são humanos. E são escassos os filmes desta temática e desta magnitude que possuem um retrato tão humanista. Foi uma sincera resposta e pontuada com bom humor.

Todo este universo é reconhecível; entre as “caras conhecidas” temos Pierre Deladonchamps, a passos de se tornar num ícone deste cinema de nichos (lá estamos nós a inserir as malditas etiquetas), um homem que desempenha um escritor quarentão que deambula por Paris (e não só) em busca de uma oportunidade de amar, diversas vezes bem próximo da simples escapadinha sexual (“O sexo não é menos nobre que os sentimentos, é o mesmo”).

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A escolha de Deladonchamps como protagonista não é vão, há sombras de “L'Inconnu du lac” aqui, o filme de Alain Guiraudie metamorfoseia. O refúgio das paixões sob consumo, o lago de um, encontra-se replicado nesta “selva de asfalto”, o jardim proibido que secretamente “entramos”, as esquinas escuras como os cinemas que também servem de “santuário” e, por fim, os quartos de hotel marginalizados. Contudo, se existe esconderijo em cada canto, sublinhamos que toda esta ocultação não ostenta o lado sombrio da discriminação. Estas personagens não questionam a sua sexualidade, a existência amorosa, são namorados, pais, filhos, amigos, vizinhos, seres de carne e osso com opção, e a decisão está tomada.

Todavia, não esperem que “Plaire, aimer et courir vite” seja somente valorizado pela sua representação. Christophe Honoré preenche-o como um filme caloroso, cuidado e refletivo, elementos que de certa forma moviam Truffaut (em homenagem) ao longo da sua filmografia (só que ao invés do Homem que Gostava das Mulheres, eis o Homem que Gostava dos Homens). Diria que é um filme de mudanças, assim como fora o anterior “120 BPM" (lá está ele outra vez!), só que neste caso a luta é silenciosa, mas nem por isso menos digna.

Os Sonhadores

Hugo Gomes, 17.12.15

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Se tivéssemos que avaliar atores como raças caninas, então difícil seria negar a existência de pedigree em Louis Garrel, o filho do cineasta Philippe Garrel, o neto do ator Maurice Garrel e ainda afilhado do também ator Jean-Pierre Léaud (o imortalizado Antoine Doinel dos “Les Quatre Cents Coups”, de Truffaut). Porém, não estamos aqui a discutir a árvore genealógica do protagonista de “The Dreamers”, mas sim confirmar a sua experiência, ou a possibilidade desta, captada na sua própria faceta artística. Talvez seja esse contacto direto com o Cinema, um dos motivos para avançar da interpretação para a realização de uma primeira longa-metragem. 

Estampa-lo com a expressão “tal pai, tal filho” é visto como uma pura hipocrisia para ambos os lados. Não só Louis difere das influências supostamente recebidas pelo seu progenitor, como demonstra uma jovialidade mais hiperativa e simultaneamente, ao contrário do que se poderia imaginar, “acorrentada” aos velhos costumes da cinematografia francesa. Aliás, como o próprio havia salientado numa visita a Lisboa, é previsível apelidar o seu filme como um filme francês na sua ingénua forma. 

“Les Deux Amis” (“Os Dois Amigos”) resulta na enésima abordagem do ménage-à-trois francês, um conjunto de relações afetivas (romance e “bromance“) que chocam neste composto triângulo isósceles, onde o terceiro elemento (Golshifteh Farahani), de natureza misteriosa, tem como propósito perturbar uma já vincada amizade masculina. A desmistificação dos três estarolas sem pingo de slapstick, mas que encontram o comic relief no embaraço – na humilhação das suas personagens – apresentam uma espontânea vontade de destacar num mundo firmado pelas rotinas agendadas. 

Esse mesmo trio "quebra o gelo” de alguma forma, vivendo o dia como fosse o último das suas respectivas vidas. “Os Dois Amigos” é também um retrato sobre a maturidade, por vezes precoces em contraste com um período globalizado e recheado de medos interiores. Aqui, as personagens masculinas são "bebés grandes“, seres inadaptados a responsabilizar dos mais cruciais atos, e ela, dotado por um propósito quase “disnesco” de procurar algo mais na limitações do seu quotidiano. 

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Escrito a meias com o seu amigo Christophe Honoré e co-protagonizado com outro amigo seu, Vincent Macaigne, o realizador Louis Garrel providência dos elementos mais estereotipados do cinema francês para recriar uma interpretação íntima desses mesmos códigos. De tal maneira que este “Os Dois Amigos” funciona como uma prolongada reinterpretação do êxito de “The Dreamers: Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci, o qual também protagonizou um tão famoso ménage-à-trois. “Queria fazer amor com este filme”, disse o próprio realizador / ator quanto aos desejos desta sua estreia na direção – concretizar uma obra íntima – um prazer seu que possa ser partilhado pelos demais. 

Até certo ponto, Louis tem razão, o cinema não tem que ser um entretenimento de massas pensado e automatizado por produtores para preencher uma faixa ou classe etária, mas sim, um pedaço de nós (cineastas) com o deleite de ser distribuído para um terceiro elemento: o espetador. Nesse ponto de vista, Louis Garrel aprendeu com o seu pai, mesmo que o seu cinema não traga nada de novo para estas “bandas“.