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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A criança do fogo!

Hugo Gomes, 21.05.24

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O Apocalipse (só) é matéria ‘cool’ no cinema, não esperemos grande ‘coisa’ do Fim do Mundo na sua realidade, ou melhor, da Humanidade, como tem nos sido brindado desde a descoberta do fogo. Andiamo

Furiosa”, a prequela prometida de George Miller após revitalizar o território de “Mad Max” no reboot de 2015 - “Fury Road” para ser mais exato - é uma resenha bíblica de um mito forjado nos confins da cúpula do trovão. Nota-se o carinho do realizador por este seu universo, cuja redescoberta o fez renovar votos para com a sua distópica crónica de consumo desenfreado, destilado em delírios steampunk, resultando numa obra de autor com milhões investidos, no qual é provocado a retratar Furiosa, essa personagem anteriormente encabeçada por Charlize Theron, como um prelúdio de um épico por vir e que tão bem conhecemos.

Quanto à autoralidade, esta concentra-se no engenho artesanal, com stunts e ação coreografada a servir as leis deleuzianas em estado de graça. Tal como nos seus outros evangelhos, é nessas ditas sequências de ação, meros acessórios de atração em outras produções, que o avanço espaço-temporal e ético-emocional destas personagens confinadas à sua animalidade parece desenrolar. Sem Theron e sem Mad Max, Furiosa é agora detida pelo olhar reptiliano e a voz pujante em corpo aparentemente frágil de Anya Taylor-Joy, a vingança como escudo de um relato prefácio, ainda assim dotada do circo milleriano que o próprio Miller declarou aproximar-se às causas e fabricação do cinema mudo, a essa dita gramática cinematográfica ora um tanto primitiva, ora um tanto natural, mas descaradamente universal.

Talvez possamos encostar o mundo “Mad Max” do século XXI à fisicalidade e corpo de um Buster Keaton, Charles Chaplin ou Harold Lloyd, o qual impuseram na tela as suas acrobacias e risco em modo comédia slapstick - a génese do cinema de ação moderno, poderíamos sublinhar! - porém, é no dito universalismo linguístico que Miller encontra-se pleno de razão através desta comparação, ou melhor, herança, desviando do tópico da montagem que o próprio declara influenciado pelos mestres da comédia muda ou o cinema soviético contemporâneo. Portanto, eis o exercício: tentamos com isto assinalar neste “Furiosa” uma cena que seja, cujo diálogo é crucial para entender o que se está a decorrer no grande ecrã (curiosamente a própria Anya Taylor-Joy assume o laconismo da sua personagem para com a trama, em contradição ao “fala-barato” e antagónico Chris Hemsworth). 

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Possivelmente nenhuma, e caso haja, peço desculpa adiantada pela memória não ser totalmente eficaz, enfim, é nesta prol que a ação demonstrada tem uma importância imagética e semiótica para a nossa perceção; tudo está em cena, nada fora dela. Até mesmo a fracassada diplomacia (ou tentativa dela) exposta na narrativa belicosa ergue-se por via de imagens-fundamentais, uma economia pensada das mesmas acompanhado por uma sobre-expressão por parte dos atores que revela mais do que aquilo que é propriamente dito - como por exemplo, o desenrolar da guerra e a sua aplicada estratégia é acompanhada por uma improvisada maquete e artefactos a simbolizar as necessidades batalhas no deserto sem fim [Wasteland]. É nesse silêncio que se desvenda a grande essência dos “Mad Max”, a saga, desde Mel Gibson a Tom Hardy, a maravilha da sua ação monstruosamente automobilística sem traduções nem manuais à sua compreensão. 

Se por um lado não é a “ida e volta” de “Fury Road”, o Prometeu do cinema de ação do século XXI (os exageros são mais que bem-vindos aqui), “Furiosa: A Mad Max Saga” não descansa em trazer mitologia ao seu imaginário, uma vendetta dos portões do inferno que vem demonstrar que cinema-espetáculo em mãos de experientes é arte de encadear os olhos. É autor, sim, e mais autor que muito do “cinema de autor” que nos é induzido goela abaixo sob o selo do mesmo.

She's the darkest of angels. The Fifth Horseman of the Apocalypse."

O indomável e a cidade de Daca

Hugo Gomes, 26.04.20

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Para a sua estreia na realização de longa-metragens, Sam Hargrave inspira-se na graphic novel de Ande Parks (Ciudad) para cometer um ensaio vibrante de estilo, mercenários, honra e consciência numa Daca (capital de Bangladesh) convertida numa verdadeira fortaleza ao serviço de um barão de droga local.

O realizador ficará relembrado como coordenador de duplos de inúmeros capítulos do Universo Partilhado da Marvel, sobretudo os assinados pelos irmãos Russo (presentes aqui como produtores e argumentistas), como “Captain America: Civil War” ou os dois últimos “Avengers”. Nisso, nota-se o cunho, ou paralelismo com essas mesmas produções, os rasgos de ação one-shot cometidos aí mas no geral “sufocados” pela agenda da Disney e o seu tão precioso franchise, devaneios que aqui compõem um ritmo e personalidade.

É exaustivo, mas igualmente fascinante a concentração de ação num falso plano-sequência de 12 minutos a mimetizar os tiques dos mais recentes e aplaudidos videojogos, e por sua vez há que constatar a indústria americana cada vez mais rendida a essas mesmas fragrâncias técnicas (basta evidenciar o resultado da trilogia “John Wick” ou até o recente “Birds of Prey”, sem nunca esquecer de “1917”, de Sam Mendes). No caso de “Extraction”, a simples história de um homem fragilizado convertido em mercenário, Tyler Rake (Chris Hemsworth), que aceita uma missão de alto risco – o resgate do filho de um poderoso traficante de droga indiano das garras de um influente e sádico traficante de Bangladesh – é mais que suficiente para nunca perdermos o fio à meada da adrenalina do cerco entretanto criado, assim como a consciência embalada na emoção proclamada pelas suas personagens.

Sim, e voltando a sublinhar o simples, este “Extraction” é um trabalho formalmente requintado numa bandeja de simplicidade argumentativa ou de resolução dos seus próprios nós. Um virtuoso produto de ação (existe inegavelmente umas certas vénias aos congéneres bollywoodescos) com o coração no sítio graças à leva do seu ator-protagonista – Hemsworth – que após os incentivos de Taika Waititi (“Thor: Ragnarok” e o uso da perceção ator para compor a personagem) é cada vez mais uma figura de cartaz interessante e completa.

Como primeira aventura na indústria, Hargrave comete um filme de ritmo passageiro, oleado, mas nunca reduzido à parolice padronizada. É a ação no estado de graça e no seu registo mais competitivo. Seria uma excelente experiência no grande ecrã.

"Thor: Ragnarok": desconstruindo a perpétua fórmula

Hugo Gomes, 28.10.17

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Não vamos aqui “histericamente” proclamar que este “Ragnarok” é o Filme da Marvel por excelência, como muita da imprensa norte-americana interessada em seguir como insiders os estúdios da Marvel / Disney considera em cada produção lançada, mas poderemos garantir que este era o filme que precisávamos (não totalmente) neste universo cinematográfico.

Era fácil superar os dois standalones anteriores, tendo em conta que “The Dark World” representou tamanha pedra na qualidade narrativa e produtiva destes episódios-fílmicos. Em “Ragnarok”, o neozelandês Taika Waititi (“What We Do in the Shadows”, da série “Flight of the Conchords”) percebeu a tempo que a personagem-título necessitava de um “refresh”, de uma atualização (digamos assim), trazendo com isso consequências e implicações. Primeiro, a autoparódia que preenche o protagonista, tornando-o adaptável para uma variedade estilística. Sim, “Thor 3” é dos poucos que aposta numa divergência de estilo (anteriormente este título era de “Guardians of the Galaxy”), nem que seja pelos cenários deliciosamente coloridos ou da música techno 80 de fazer chorar David Hasselhoff, tudo isto em enquadramento com o nosso “herói”, que subliminarmente é movido por vingança, sentimento primitivo raro neste universo colorido da Disney.

Porém, se ficamos minimamente satisfeitos com este upgrade, por este precioso momento de causa-efeito, e as inconsequências disfarçadas por alguma preocupações de insurreição, “Ragnarok” é para todos os termos uma produção gloriosamente engendrada no seu A a B em linguagem argumentativa, pelo lufa-lufa narrativo e pelas constantes personagens unidimensionais (Cate Blanchett e Tessa Thompson são exemplos disso) que apenas vingam por alguns pormenores irreverentes.

A cobardia da Marvel ao longo de 9 anos é compensada com “passos-coxos” avante, oferece-nos um entretenimento visual com uma noção satírica invejável … ou Jeff Goldblum como o merecedor imperador de uma nação. Já esperávamos isto por muito tempo (não me refiro apenas à iconoclastia de Goldblum), mas aos “ventos de mudança” que entraram no estúdio mais sobrevalorizado dos dias de hoje.

He's a friend from work!"

Mann hackeado

Hugo Gomes, 25.01.15

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Num encontro entre argumentistas decorrido em setembro do ano passado, o produtor e argumentista James Schamus afirmou que atualmente “Hollywood deixou de fazer filmes para americanos, mas especializou-se em se centrar no mercado dos jovens chineses”, face ao fenómeno que tem sido gradualmente evidente nas grandes produções hollywoodescas. Esta preocupação tem sido demonstrada num lisonjear à cultura em causa, na inserção de personagens de tal nacionalidade e na intriga – mesmo sendo inúteis para a produção, são criadas sequências exclusivas para a versão chinesa (como foi o caso do terceiro “Iron Man”) ou a ação passa por território chinês. Neste último caso, o exemplo mais descarado foi sem dúvida o quarto “Transformers”, com Michael Bay a direcionar metade da sua intriga para Hong Kong, somente com fins comerciais na mente. Resultado? Um estrondoso êxito de bilheteira.

Para o leitor, todo este cenário é pura heresia, pois comparar Michael Bay com Michael Mann deveria ser considerado uma tremenda punição. Mas a verdade é que até mesmo o realizador do muito engenhoso “Heat: Cidade sob Pressão” parece ter-se entregado a este mesmo processo. “Blackhat: Ameaça na Rede” apresenta-nos uma temática moderna sobre os perigos da informática e das redes cibernéticas. É uma obra sobre tecnologia e as consequências dessa mesma tecnologia para a sociedade, cada vez mais globalizada e dependente destes meios. No centro disto, encontramos um novo tipo de crime, golpes que não são mais executados com a precisão da mira, mas sim sob códigos de computação e o uso do teclado. Nesta transição da velha escola para os tempos sofisticados de hoje, é curioso ver Mann a abandonar parcialmente os grandes tiroteios e os bandidos quase a roçar o velho oeste para se entregar a uma nova corja de bandidos.

Contudo, mesmo sob este novo cenário, o nosso autor conserva as suas marcas:  continua a filmar a noite citadina como ninguém ou o metro como refúgio pós-clímax, mas a sua mais interiorizada imagem de marca é a forma com que aborda a complexidade das relações debaixo das “barbas da lei”, novamente citando tragédias gregas ou amor platónicos “à prova de bala”. O mesmo se pode dizer dos seus anti-heróis, que evidenciam uma descrença de Mann em personagens sociopatas, preferindo ligações humanas. Nesse sentido, visualizamos o mesmo retrato do crime cometido pelo mesmo “pintor” e, neste caso, temos umas das suas “pinturas” mais decepcionantes, pelo menos a que reúne as personagens mais vazias da sua carreira (mesmo valendo o esforço de Viola Davis). O desfecho é prova disso. A montanha pariu um rato e o velho Michael Mann demonstra pela primeira vez cansaço.

E é pena, porque longe dos olhares menos discretos do cariz comercial da obra, “Blackhat” reserva-nos momentos interessantes do panorama atual do cinema de ação norte-americano. Não é todos os dias que vemos o protagonista a invadir com êxito os sistemas informáticos da NSA (será um espectro vingador de Edward Snowden?) ou Chris Hemsworth a entregar-nos a sua melhor composição cinematográfica.

No final, temos assim um descuido do autor, mas ainda assim recheado de pontos de interesse e com o selo Michael Mann.