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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Beyond the Canon 2024: participação

Hugo Gomes, 20.04.24

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Aus dem Leben der Marionetten / From the Life of the Marionettes (Ingmar Bergman, 1980)

Como um suplemento à "polémica" lista da “Sight & Sound”, a "They Shoot Pictures, Don't They?" selecionou vários profissionais da área do cinema, incluindo alguns críticos (fui um dos convidados, fazendo parte da "seleção oficial") para participar no "Beyond the Canon", uma enumeração de alguns dos melhores filmes que estiveram de fora das escolhas da igualmente canónica lista que deu vitória a "Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles", de Chantal Akerman.

Aqui está a lista aqui, e aqui as minhas escolhas pessoais (com uma ressalva: não votei em "Before I Go" de Chris Evans, e sim em "Before We Go" de Jorge Leon, mas não foram primeiros nem serão, certamente, os últimos a cometer tal lapso).

O Lugar da Mulher é na realização! Arranca o 2º Screenings Funchal Festival

Hugo Gomes, 01.06.23

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Iniciado em 2017, o Screenings Funchal é uma iniciativa cinematográfica madeirense que visa enriquecer esse panorama no Funchal. Até à data, foram mais de 200 filmes exibidos, oriundos de mais de 30 países, contando obras-primas, cultos, redescobertas ou êxitos improváveis, tudo em nome do cinema e a sua arte de partilhar e de ver o Mundo, sistematicamente em todos os fim-de-semanas. 

Contudo, o evento sucedâneo deu origem a um festival, uma mostra cinematográfica fora do âmbito convencional do que se predomina ser festival de cinema. Ciclos temáticos que não só vieram para fortalecer a proposta em si como também criar pontes imaginárias unificadoras da ilha com o cinema, seja lá qual for, longe dos catálogos mainstreams e supra-vendidos que preenchem multiplexes no continente. À chegada da segunda edição o Screenings Funchal Festival (do dia 2 a 24 de junho), seguimos numa pequena viagem pelo cinema assinado no feminino; de Vera Chytilová, a “mãe da Nova Vaga checoslováquia", a Kinuyo Tanaka, a sensação nipónica na distribuição portuguesa deste ano, com paragens em Kelly Reichardt, na consagrada e irreverente Chantal Akerman e a promissora Eliza Hittman. Mulheres, e além disso, cineastas a conhecer ou revisitar, gestos e olhares para além da delicadeza e da serenidade. 

Para conhecer melhor este festival, o Cinematograficamente Falando … conversou com Pedro Pão, programador, dando luzes à programação, aos propósitos, aos desafios e mais que tudo, ao Cinema [toda a programação poderá ser consultada aqui].

Visto que o Screenings Funchal é uma iniciativa que corresponde a sessões correntes em quase todos os fim-de-semanas, o que difere este intitulado Screenings Funchal Festival da periódico evento que os cinéfilos do Funchal estão habituados?

Na nossa actividade regular semanal, trabalhamos essencialmente com obras com distribuição portuguesa. O Festival Screenings Funchal além do número superior de filmes exibidos (8 em vez de 4), permite-nos construir uma programação com menos “restrições” e trabalhar com distribuidoras internacionais se houver necessidade disso e ter cá convidados que possam contribuir para o enriquecimento da experiência cinematográfica e de certa forma minimizar, mesmo que por breves momentos, a nossa condição ultraperiférica.

Este Screenings Funchal Festival posiciona-se na casa feminina, numa mostra que compreende cinco cineastas / realizadoras. Quais foram os critérios de seleção das oito obras e das suas protagonistas?

A primeira parte da seleção definida foi o ciclo. Dada a frequência pouco habitual do festival, um ciclo parece-me dar alguma coesão ao mesmo e minimizar de certa forma o espaçamento existente entre as sessões. Soube o ano passado que a The Stone & The Plot ia exibir em Portugal o ciclo da Kinuyo Tanaka e pareceu-me importantíssimo não só que as obras viessem ao Funchal mas que fossem o pilar central desta edição e que se usasse a promoção adicional à disposição para promover estas obras e chegar ao maior número de pessoas possível. Ajudou que o feedback do público tivesse sido muito positivo quando exibimos o ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos I

Um dos critérios principais é exibir filmes que não tenham estreado no Funchal e nesta segunda parte da programação procurei que os filmes cumprissem isso e que comunicassem de certa forma entre si e com o ciclo. Acho que em todos os filmes há um olhar feminino sobre questões que me parecem extremamente pertinentes e que apresentam uma abordagem única (sem falar na óbvia qualidade artística das obras) pelas suas autoras. Apesar das limitações da programação, procurei tematicamente ter diversidade e universalidade nas lutas das protagonistas, achando importante que essas lutas não se restringissem a uma época específica. Procurei algum distanciamento temporal entre elas. Começamos na década de 60 com “Daises” e acabamos em 2020 com “Never Rarely Sometimes Always”. 

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Daisies (Vera Chytilová, 1966)

Uma das coisas que gostaria de conseguir transmitir é a sensação que há muito trabalho a fazer. Noutro formato teria sido possível pensar as coisas de outra forma, mas neste e em torno destas obras da Kinuyo Tanaka pareceu-me fazer sentido assim. Vamos ver como corre e qual será o feedback do público.

O festival apresentará 4 obras de Kinuyo Tanaka, e receberá o investigador Miguel Patrício [para apresentar a palestra intitulada “Quem és tu, Kinuyo Tanaka?”], que foi um dos responsáveis por trazer o integral da cineasta nipónica ao circuito comercial nacional. Gostaria que me falasse destes gestos que vão além da distribuição convencional, e enquanto coordenador de um festival, os desafios que estes filmes (e outros) possuem para vingar nas telas além do ambiente de festival de cinema?

Só posso (tentar) responder a esta questão refletindo sobre a situação particular da região. Não me sinto habilitado a tentar responder acerca desses desafios em Portugal Continental apesar de ter uma ideia de como as coisas correm por aí. Não temos festivais a “roubar” público às salas porque a realidade local é outra. Quando os festivais que já existiram no Funchal tinham antestreias, os filmes regra geral não estreavam cá depois.

Simplesmente não havia espaço para cinema, excepto animação e blockbusters. Durante algum tempo, por exemplo o Madeira Film Festival que decorria uma semana por ano, era a única hipótese de quem queria ver este cinema poder fazê-lo. Um dos desafios principais é fazer com que as instituições locais repensem a forma como pensam o cinema. Aqui parece-me que primeiro se pensa no impacto económico, depois no turístico, depois ainda virá certamente o educativo e o social (a arte pela arte parece-me ser um conceito alienígena por estas bandas) antes de se pensar no impacto cultural. Creio ser essencial que certas instituições (que têm poder/dever para apoiar, dinamizar e divulgar) comecem a ver o cinema como um acto de cultura e isso infelizmente não me parece que seja o caso.

Mas ainda assim no que diz respeito a desafios, acho que temos é de olhar ao espelho. Continuo a achar que o grande problema é a falta de curiosidade do público. Acho que há um grupo pequeno de pessoas a trabalhar muito para distribuir filmes fora dessa distribuição convencional, tal como há um grupo pequeno de críticos a trabalhar muito, a escrever e a fomentar discussões muito importantes sobre estas obras e que do outro lado há uma enorme massa de pessoas que só quer ver aquilo que conhecem e aquilo que já viram e que não parecem minimamente cientes das discussões que este cinema tem para oferecer.

A importância de eventos cinematográficos deste género fora, além das metrópoles, do Portugal continental?

A insularidade é uma coisa tramada, e não duvido que seja equivalente ao que ocorre fora das grandes cidades no resto do país. Um madeirense ir a um festival de cinema tem custos astronómicos. É um luxo. E por vezes não tem hipótese de ver os filmes de outra forma. E acho que não devia ser assim. O streaming devia ser um último recurso, ou um complemento, e nunca a única solução possível. Acho importantíssimo e perfeitamente exequível que houvesse articulação entre entidades locais e alguns desses festivais de forma a que se tornasse mais fácil para os madeirenses (e todos aqueles de certa forma isolados geograficamente) de acederem a esses eventos, por exemplo através de extensões. E tenho a certeza que haveria público, se as coisas fossem feitas com discernimento, em locais onde estivessem garantidos conforto e qualidade de projecção e onde se colocasse em primeiro lugar o impacto cultural das iniciativas e não deixando o imperativo económico dominar. Acho que esse investimento teria repercussões brutais a todos os níveis.

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The Eternal Breasts / Para Sempre Mulher (1955)

Ambições para o futuro? Quais outros signos a explorar em eventuais novas edições do Screening Funchal Festival?

Conseguir mais apoios do que temos seria muito benéfico e iria permitir eventos com outros formatos (cineconcertos por exemplo) e trazer mais realizadores e outros convidados que pudessem enriquecer de alguma forma a oferta existente, porque esse contacto faz-nos falta e acho que é importante. Não sei, no entanto, se poderia classificar esse desejo de uma ambição para o futuro. É que já lá vão 6 anos e o reconhecimento ao que tem sido feito nestes anos geralmente vem de fora. Temas a explorar? Anteriormente referi a falta de curiosidade e como reação a isso, estou constantemente à procura de algo que provoque uma reação (boa ou má) nas pessoas. 

Gostava de num futuro próximo me focar no género de terror, que me parece ter muito má reputação em Portugal (incluindo na própria crítica), e mostrar que é um género com uma grande variedade e riqueza cinematográfica, como todos os anos o festival MOTELx bem nos mostra. Para o ano, havendo uma 3º edição do festival gostaria imenso de dedicar um ciclo ao John Waters. Estou convencido que o “Pink Flamingos”, em exibição articulada com as escolas secundárias, universidade e decisores políticos pode ser a chave para despoletar não só uma renovação de público em massa aqui no Funchal como para nos desbloquear novas formas de apoio financeiro.

O Drama, a Tragédia, o Horror, a Jeanne Dielman ...

Hugo Gomes, 04.12.22

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Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman, 1975)

O problema incutido nas listas coletivas encontra-se na reação posterior. Existe uma crença neste tipo de forças mútuas como se uma verdade inabalável, um absolutismo, se tratasse. Recordo, há um par de anos, no virar de uma década completada, um top correspondente por parte do Cahiers du Cinéma, no qual elegia a série “Twin Peaks: The Return” como o filme marcante de dez anos de cinema, curiosamente, lugar que, estranhamente, coube a uma produção televisiva. Porém, a lista revelou-se fruto dos seus colaboradores, statements ou mensagens à parte, cada um pôde ler como bem apeteceu, mas na realidade é que após a divulgação foram muitos os que contestaram as escolhas num radicalismo puro e pior, colocaram em causa a reputação da revista de cinema. A resposta de muitos surgiu nas formas de listas individuais e pessoais, uma hipocrisia de quem condenava um trabalho de muitos.

As listas são o que são, meros “apanhados”, mero resultado democrático, e talvez essa contestação cada vez mais violenta de uma, seja um reflexo das nossas sociedades que se tem mostrado mais polarizadas, viventes de um período pós-verdade, ou será antes, embate de “uma” verdade contra a “outra” verdade (a verdade de cada um, vulgarmente declarado e citado por aqueles que pouco acreditam na mesma). Essa “violência” surge agora na forma de outra revista, a “Sight and Sound” da BFI, e a sua célebre eleição de “Melhor Filme de Sempre”. Título ambicioso, embora nele haja um certo simbolismo quanto à mesma. O processo é um inquérito feito através de uma seleção de críticos internacionais, cada um deles escolhendo dez títulos para que depois disso a magia seja feita. Desde o início desta atividade já esteve no topo, “Ladri di Biciclette" de Vittorio Di Sica, “Citizen Kane” de Orson Welles e por último “Vertigo” de Alfred Hitchcock. Um neorrealista italiano e dois pertencentes à Hollywood clássica tiveram em mãos a faixa de “Melhor Filme de Sempre”, um trio que dá lugar a um quarteto, porque aí entrou uma nova triunfante: “Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles” de Chantal Akerman

E num estalar de dedos, as reações fizeram-se sentir, de um lado quem celebrou a representatividade, “mulher feminista e queer”, promovendo causas e ativismos acima da arte (pois bem, mesmo sendo ambas, Chantal Akerman nunca pretenderia ser reconhecida desta maneira). Enquanto, do outro lado da barricada, como cães de Pavlov, rugindo e rasurando, acusando com a pretensão de “wokismo” e ideologias, sem perceber que até as suas vozes operam em regimento de uma. Um cenário polarizado, um cenário divisório, longe daquilo que poder-se-ia celebrar, o Cinema. Não se deve queimar Welles, Hitchcock nem Di Sica por não corresponderem a um mundo idealizado, ou simplesmente representarem um outro, cada vez mais distanciado (contraditoriamente, Orson Welles mantêm-se mais moderno que muito do cinema hoje produzido, e “Vertigo” num dos mais influentes de sempre), nem a oposição, o de “fechar portas” a "newcomers". 

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Citizen Kane (Orson Welles, 1941)

Jeanne Dielman”, datado de 1975, representa um outro nome de Cinema, não o de “ser realizado por uma mulher”, antes disso, um anti-enredos aristotélicos, um anti-academista, um anti-Hollywood, um anti-agenda, um “esculpindo o tempo”, com um quotidiano capturado não ao serviço de uma ficção novelesca (“Queriam o quê? Novela”, entra, mentalmente, em cena João César Monteiro!), mas ao experimento do Cinema como expressão visual. Chantal Akerman tornaria, e hoje mantêm-se, num dos nomes charneiro do “slow-cinema” (termo que considero abjeto porque nele “nasceram” muitas nulidades artísticas, convenhamos sublinhar). Hoje é impossível não encontrar os seus “rebentos”, os seus “filhos” e “filhas”, o seu Cinema, o que resta dele, encontra-se atualmente ao virar de cada esquina e citando Herman José, “essa prostituta de esquina que se dá pelo nome de Vida”, ninguém tenha tido a mesma capacidade de a emoldurar cinematograficamente como Akerman a fez nas suas mais diversificadas estâncias e em “Jeanne Dielman”, o quotidiano é uma “bitch”.

Mas porquê “Jeanne Dielman” agora? Fácil de responder, um conflito geracional e com cada vez mais novos críticos no poll, de diferentes regiões geográficas, no qual reflete as divergências quanto ao cinema influente de cada nacionalidade. Certamente, e possivelmente, daqui a diante os filmes serão mais recentes (em 2012, um filme de ‘41 foi destroçado por um de ‘58, e dez depois, surge-nos uma obra com mais 16 anos de diferença, um espaço até menor entre “Citizen Kane” e “Vertigo”), mais extraviados do cânone anglo-saxonico (e atenção, Chantal Akerman é, acima de tudo, canónica). Haverá mais uma abertura para o cinema fora dos grandes polos. Quanto à falência à crítica apontada como razão desta escolha … realmente, a crítica de cinema encontra-se numas piores fases da sua existência, e poderíamos prolongar, mas continuo a mencionar que Roger Ebert tem muita culpa no cartório pelo binarismo, banalização e espetacularização. São outros tópicos.

Portanto, num momento em que a valorização ao storytelling (um sintoma do sistema algorítmico das novas "majors", as plataformas de streaming) tem sido imposto a milhões, “Jeanne Dielman” chega-nos com o título de “Melhor Filme de Sempre” para mandar uma mensagem ao Mundo, “o Cinema não serve só para historietas, também pode inquietar”. O resto, essas reações, são apenas ideologia (pró e anti, radicalismos que afastam a Sétima Arte da sua interminável demanda).

Não há nada melhor que Casa

Hugo Gomes, 10.08.15

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“Porquê que me estás a filmar?” “Porque quero mostrar que não existe distância no mundo“. O diálogo é entre Chantal Akerman, na altura vivendo em Oklahoma (EUA), e a sua mãe, residente na Bélgica – e dá-se enquanto ela filma uma videochamada entre ambas. Trata-se de uma distância física dissipada na sua transposição para a dimensão cinematográfica, onde tudo é possível.

No Home Movie” é, como o título indica, um filme sem lar, longe deste, mas erguido sob a saudade do mesmo. Akerman decide por via dessa poética linguagem que o cinema atribui aos sentimentos e à corporalidade, “fabricar” uma declaração de afeto pela sua progenitora, salientando a sua história de vida, a sua personalidade e adaptando o seu grande amor afetivo que, mesmo nos limites da sua própria vida, encontra-se disposta a retribuir. A cineasta volta a tecer uma obra “pendurada” através do seu rico olhar para com a rotina, a solidão e a melancolia, que atinge e nunca deixa de persistir.

É o seu retorno mais pessoal e novamente descrito sob uma ligeira frescura jovial, bastando relembrar os seus tempos áureos em que citava e redefinia o conceito “godardiano” de cinema. Porém, enquanto Godard, o seu assumido “ídolo” cinematográfico, expôs uma faceta mais liberal e simultaneamente desleixada à linguagem cinemática, Akerman reproduz esse mesmo “adeus linguístico” e, sob o seu signo, o enverga nesta sua “carta de amor” bem personalizada.

Um exercício documental em que a cineasta, uma das mais importantes da sua geração e da conduta do cinema modernista dos anos 70, convida o espectador mais vivido a regressar à sua cinematografia. Porém, tal como aconteceu com Godard nos dias de hoje, esse cinema encontra-se mais que “dedilhado”, sendo possível constatar a conversão dos anteriores vanguardistas em isolados conformistas, intatos como corais perante a maré. "No Home Movie" é isso, uma homenagem sentida à figura matriarcal, requisitada pelos previsíveis desvaires autorais. Possivelmente mais relevante para a própria cineasta (recentemente falecida) do que para História e experimentalidade do Cinema.