![0d754865f85b5b8cd921c57f94f0982b.webp]()
Para tentar traçar uma trajetória evolutiva no cinema de Park Chan-wook, e talvez desta forma lidar com a minha desilusão para com o “Decision to Leave”, invoco um dos seus sucessos - “Sympathy for Mr. Vengeance” (2002) - primeiro tomo da sua querida trilogia de vingança, e para muitos a introdução do boom do novo cinema coreano no nosso país.
Nesse filme, uma peripécia em torno de uma não-planeada vingança em lume brando ostenta uma postura ambiciosa ao virtuosismo que é intercalada com uma viscosa sujidade, impregnada em pontos-de-vista ou planos-detalhes, desde as unhas escarnecidas até à tinta de carimbo que salienta as impressões digitais num contrato mefistofélicos, mais tarde; o sangue, as fezes, urina e o suor pontuam como “borrões” numa pintura medida a régua-e-esquadro. Em “Mr. Vengeance” persiste-se em planos-conjuntos que transformam apartamentos minúsculos em autênticas “casinhas de bonecas”, enquanto lida com os calcanhares cortados (“libertando” litros e litros de sangue na fluidez da corrente de um riacho), trata-se de um constante choque entre o belo e o grotesco, sem nunca o fundir numa perfeita utopia, ou onanizando com inteira fascinação pela violência.
Park Chan-wook aperfeiçoou o estilo no capítulo seguinte [“Oldboy”, em 2003], aprimorando não só a ênfase da vendetta como também na estilização da sua violência (basta relembrar da sequência do martelo, nunca prescindindo o humor negro). Diga-se, por passagem, que o zénite foi atingido pelo desfecho da “saga” [“Sympathy for Lady Vengeance”, em 2005]. Contudo, o grafismo foi-se perdendo, mas o teor agressivo permaneceu instalado nos seus becos, espreitando pelo momento que nunca viria a chegar, em “The Handmaiden” (2016) a sugestão era uma presença inevitável e em “Stoker” (2013), a sua experiência semi-fracassada nos EUA (um flop de bilheteira que merece uma revisão), a psicologia subverteu a ação das suas personagens.
E é então que chegamos a “Decision to Leave”, e em descrições equativas somos levados a um noir inspiradamente hitchcockiano e romântico (mais “Stage Fright” do que “Vertigo” apesar da mimetizada esquadria), o qual Park deseja “fazer bonito”, rigores de estética virtuosista, sufocando tecnicamente uma intriga com o seu bem-querer de “bom cinema”. Em um momento, admiramos um corpo já sem vida esbarrado na terra húmida de uma encosta, essa massa outrora humana revela-se no foco de atenção às mais rastejantes criaturas necrófagas, larvas e moscas passeiam nas suas retinas sem brilho num espectáculo reservado aos presentes policiais que se amontoam no descampado, mais do que curiosidade, antes, com a missão a cumprir e desvendar quem matou aquele sujeito. Eis o "whodunit" instalado.
![Screen_Shot_2022_11_07_at_11.22.54_PM.jpg]()
Esse pequeno vislumbre de grotesco, a putrefação visual, é esmagada pelo "bicho-carpinteiro" estilístico que habita em Park Chan-wook. Aquele preciso episódio (que mais tarde irá rimar com o certificado de “frescura” na morte expressa nos olhos de um peixe) que poderia ditar uma regressão à velha forma do realizador, soa-nos a um brinde afagado no artificialismo, essa, que a obra encanta, ou melhor, que deseja enfeitiçar-nos. Os pontos de fuga lá se mantêm, os detalhes no ponto-de-vista das personagens, a preocupação dos objetos nos contornos comportamentais do mesmo (a pausa dada, não apenas à intriga, mas ao filme, com sushi de luxo, saboreando e gesticulando cada pedaço sem pressas nem obrigações) e os twists narrativos que dinamizam o que poderia ser mais um conto entre detetives prodígios vencidos pelo cansaço e pelo afeto (carência que despoleta novos interesses), como “femme fatales” mais astutas que os seus igualmente problemáticos companheiros (aqui, a chinesa Tang Wei, que pensávamos estar esquecida do exuberante “Lust & Caution” de Ang Lee).
É uma sombra da mestria narrativa no qual Park Chan-wook sempre nos presenteou, recorrendo ao minimalismo extraído da sua história, com isto cobiçando o interior das suas personagens, as vísceras não direi, ao invés disso, as emoções e sentimento reprimidos pela ditadura do dever. Não há que negar que “Decision to Leave” possui a força visual de nos conquistar numa sala de cinema, fazer-nos acreditar em estarmos perante uma obra de portento cinematográfico a suplicar a projeção, e com alguma razão, visto estarmos a vaguear por tempos de atribuída relevância ao streaming e às suas estéticas binárias. Com isto Park Chan-wook comprometeu-se a fornecer material de riqueza técnica para nos diferenciar desse mundo.
Mas é essa sua obrigação que sufoca, os vislumbres do cinema rude, cru do sul-coreano, submetem-se ao senso-comum da beleza (o filme é belo sobre os padrões consensuais do que é, realmente, “belo”). Eis cinema gourmet, possivelmente.