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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O sofrimento de uma avó num sofrível trabalho de um autor

Hugo Gomes, 06.08.20

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É difícil de olhar para este “O Adeus à Noite” (“L'adieu à la nuit”), de forma a negligenciar o seu autor – André Téchiné – crítico de segunda vaga da Cahiers Du Cinéma que se aventurou (à imagem dos seus companheiros) nas odes da realização, sendo que em 1985, graças ao impacto de “Rendez-Vous” (filme que nos apresentou Juliette Binoche), construir aquilo que seria uma formatada idéia de cinema autoral até aos dias de hoje.

Pois, foi com esse realismo poético que o desfasou dos seus anteriores romanescos thrillers (“Paulina s’en va”, “Barocco”), que o colocaria no mapa como um dos mais respeitados realizadores francófonos. Mas ultimamente, o seu paladar sofisticado parece não ser mais que uma receita replicada e com isso anonimizada. Voltando a “O Adeus à Noite”, que tão bem poderia pertencer a um tarefeiro qualquer, é de uma indiferença técnica e criativa, pegando num tema cada vez mais abordado por esta indústria (o fundamentalismo islâmico) e esvaziá-lo de qualquer caracter reflexivo do mesmo.

Se é verdade que Techiné está interessado em assumir o efeito ISIS como um mero dispositivo narrativo que desafia a relação entre uma avó (Catherine Deneuve, a atriz-fetiche do realizador) e um retornado neto (Kacey Mottet Klein), cuja sua “nova” fé é encarada como uma patologia a ser mencionada, é também desleal que o retrato feito a essa radicalização é um conjunto de semióticas reconhecíveis de um certo medo coletivo. Mas fora esses temas cortantes, o que mais aflige em “O Adeus à Noite” é a sua profunda displicência, nada mais do que o expectável, a singela competência que se verifica aqui.

Se é sabido que atualmente, Téchiné não é mais do que uma sombra daquilo que fora (que dor é o de relembrar a estranheza inconfortável de “Rendez-Vous”, e que boa sensação era!), é um claro facto que a sua transladação ao não-identificável é um sinal destes tempos, onde a autoralidade é constantemente despida. E os velhos mestres ao abandono da morte lenta.

Como tal, ficamos com mais um palco para Catherine Deneuve brilhar … sim, mais um!

Percorrendo um mapa emocional de Hirokazu Koreeda

Hugo Gomes, 01.07.20

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Após 20 anos de carreira no Japão, passando de documentarista televisivo a um dos mais respeitados cineastas nipónicos da atualidade, e depois de cumprir com distinção máxima o Festival de Cannes (Palma de Ouro com “Shoplifters”, em 2018), Hirokazu Koreeda utiliza essa experiência como pretexto de embarque em novas geografias. Aqui (França), um realizador estrangeiro perante um elenco de luxo como este facilmente seria “engolido” pelas diferentes manivelas desta indústria ou dos egos profundos dos seus “novos” atores. Koreeda, tão diluído na cultura-mãe, vê-se obrigado a adaptar-se a um novo ambiente, concretizando com este “ La Vérité” (“A Verdade”) o que aparentemente seria o seu filme mais anónimo, numa ode à resistência autoral.

Face ao egocentrismo de Catherine Deneuve num perpétuo jogo de reflexos (existe na sua personagem, não uma autobiografia, mas uma perceção da sua personificação cinematográfica), o nipónico taticamente opera num registo de engodos lançados à ficção. Desengane-se quem pensar que o realizador encontra-se absorvido nos ambientes de glamour da indústria francesa e das suas respetivas lendas vivas, até porque essas características são peões numa tremenda partida à moda de Koreeda. Poderemos percorrer o seu território em dois pontos.

O primeiro, sendo o mais evidente – a família como vetor de toda a trama. Aqui, Juliette Binoche interpreta uma filha que a passos tenta reencontrar-se com a sua mãe (Deneuve), não através da distância física que se encontra exposta nos caminhos paralelos que ambas seguiram (ela vivendo nos EUA, enquanto a progenitora continuava celebrizada como atriz na França), mas pelos afetos negados, negligenciados e sobretudo desencontrados. “ La Vérité” usufruiu dessa aproximação como cadência própria da sua espessura dramática, esta melosa e sorrateira como é habitual no cinema de Koreeda.

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O segundo ponto, este mais “tricky”, remete-nos à memória ilustrada que a obra do realizador sempre nos pontuou. Quem se lembra da urgência de registar fotograficamente uma separação em “Like Father, Like Son” (2013)? Ou, ainda mais longínquo, o paraíso hipotético de “After Life” (1998), onde as almas recém-falecidas têm de optar por uma das suas queridas recordações como um eterno loop de “existência” (estas, curiosamente, não seriam autênticas, mas encenações de uma equipa de anjos-cineastas). Pois, é através desse trabalho, ainda inédito em Portugal, que deparamos com os propósitos da persuasão de Koreeda na criação da memória através da imagem replicada. O dispositivo requerido é a rodagem de um filme dentro de um filme e a extração emocional de uma invocação memorialista. É o dedo do cineasta, com cumplicidade de uma Deneuve pronta para desarmar-se das suas “armas de resistência”.

Na “A Verdade” (mata-se aqui dois coelhos duma cajadada só) são esses os dois pontos que nos fazem, enquanto espectadores, aproximar do filme em si, demonstrando que o cinema de Koreeda está mais universal que nunca.

Entre Cherburgo e Rochefort, os musicais de Jacques Demy

Hugo Gomes, 17.08.17

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Diz-se por aí que de Jacques Demy pouco se fala, se é bem verdade que foram muitas dessas vozes que levaram à razão deste seu esquecimento. A crítica, de certa forma, inconsolada com o insucesso de um dos seus filmes mais célebres, “Une Chambre en Ville” (em 1982), dedicaria páginas inteiras em defesa do autor e da respectiva criação perante um público desinteressado, provavelmente não apto ao escapismo oferecido pelo género musical ou simplesmente esquecido dos momentos graciosos dados pelo realizador. De forma a reavivar a sua memória, a possibilidade de resgatar Demy dos nichos cinematográficos que o acarinharam como uma espécie de refúgio ou de o valorizar acima do cognome de "marido de Agnés Varda", o Cinema Ideal estreia hoje (dia 17 de agosto) duas cópias restauradas, correspondente a dois dos seus filmes mais apreciados (“Os Chapéus de Chuva de Cherburgo” [“Les parapluies de Cherbourg”] e “As Donzelas de Rochefort” [“Les demoiselles de Rochefort”]).

 

- Os Chapéus de Chuva de Cherburgo: a vida tal como ela é -

Para muitos "o musical dos musicais". A história de um romance que depressa evolui para um drama de desencontros consolidados com um final "feliz" à sua maneira. Aqui, Jacques Demy conforma-se com o género tão apreciado do outro lado do Oceano para encantar e desencantar a sua natureza musical. Ao contrário do que acontece na maioria dos seus congéneres, onde a música é servida como um rompante ocasional ao "realismo disfarçado" utilizada pelas suas personagens, n'Os Chapéus… o filme inteiro está completamente imerso nesse veículo expressivo. Os diálogos são integralmente incorporados nesse modelo, ou seja, o filme é completamente cantado, musicado, sem noção de rima ou em perfeita sintonia com a melodia, simplesmente porque a vida é assim, um pesaroso musical (aqui orquestrado por Michel Legrand).

O enredo, esse, apontaremos como dos mais rotineiros e triviais que o cinema embelezado tem para nos oferecer. É ele, sobretudo, o  propósito para esta manifestação, o romance de dois jovens sonhadores cujo destino acaba por fazer das suas, levando ambos imperativamente às suas respectivas noções de "felicidade criada". Mas começando pelo início, pela nota de arranque desta melodia suave e de vizinhanças tristes, o plano picado de guarda-chuvas que cobrem a calçada encharcada num "estalar de dedos" servindo de postal de abertura para esta dita terra encantada - Cherburgo.

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Encantada? Sim, um verdadeiro conto de fadas em linguagem estetizada, a arquitectura rústica e quase erguida de cartão que sobressai nesta paisagem em manto de um belo cinzento para por fim, guiar-nos ao cantos e recantos, devidamente ao ritmo das câmara de Demy que se faz entre travellings arquitectónicos de compartimento a compartimento. Nesta viagem, extraem-se cores e mais cores, um jogo de paletas que endurecem ainda mais o conceito de fantasia. O sonho de juventude, a beleza dos verdes anos, agora vivida por jovens em pleno romance, cuja plasticidade referente ao brilho dos olhos apontados no futuro se perde na chegada do segundo ato. Cherburgo abraça assim esse realismo formal, pelo menos estético, para nos conduzir ao desencanto da maturidade.

Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo são estes os novos Romeu e Julieta, cujo infortúnio da sua separação deve-se aos caminhos incertos da vida. Uma juventude planeada e abalada pela herança e pelo dever. “Os Chapéus de Chuva de Cherburgo” é cinema sem registo fantasioso, não há Deus ex Machina que empale o conflito, é tudo resumido a uma longa serenata à chuva, como vemos no seu início, para chegarmos ao final, também ele exausto pela precipitação. A chuva do encontro com a chuva do reencontro, o de "não voltar onde já alguma vez foste feliz", o de desistir na persistência e abraçar a resistência para com a infelicidade.

Se bem que Jacques Demy nos reservou um filme sobre a decadência da paixão, mas nunca a queda do amor. Ou seja, nesta sua descrença no Cinema como ato de sonhar, ele encontra a crença no ato de viver. E o Cinema vive no seu filme, deixando o espectador longe do estatuto de divindade onipresente tantas vezes gratuitamente adquirido, não interrompendo esta alternativa de "felicidade" (que acaba por sê-lo). As personagens têm aqui, direito às suas vidas autónomas.  

 

As Donzelas de Rochefort: Jacques Demy restaura a fé no Cinema

Se em “Os Chapéus…” o espectador não possui o direito de ver a sua felicidade concretizada, em “As Donzelas…” Demy massacra-o constantemente com uma eterna teia de desencontros, tal como um castigo ao desejo egoísta do filme anterior. Aliás, Rochefort deveria chamar-se antes "a cidade dos desencontros", com as personagens à deriva entre canções, danças e assobios, sonhando com o par, pelo romance que deixaram um dia partir e a correspondência à muito procurada, mas que se perde por entre um mar de gente, numa cidade completamente em movimento. Não é por acaso que o filme se faz de "notas soltas", prontas para serem inseridas nas suas respectivas pautas, adiadas constantemente pelas inúmeras contradições.

Curiosamente, a primeira resolução "conflituosa" de Rochefort dá-se quando duas bailarinas descobrem o encanto nos olhos azuis de dois marinheiros. São personagens mais que secundárias, mas é a prova que Demy dá o braço a torcer para depois atirar-nos num perfeito desespero, cuja aproximação dos "amantes inconstantes" levará o espectador a um estado de perfeita euforia. Outro factor que o distancia de Cherburgo é a própria natureza musical. Não assistimos aqui à arrastada musicalidade sem fim, aliás, a nota arranca e termina por entre impasses narrativos, a dança e a cantoria é constantemente interrompida por diálogos "normalizados" e situações tão devedoras do cinema genérico. Por outras palavras, “As Donzelas de Rochefort” é musical no seu estado puro e reconhecível, alegre, vistoso, escapista e saudosista.

Se falávamos nas separações com Cherburgo, também é certo que em Rochefort estamos muito mais próximos do que julgamos da anterior cidade dos chapéus-de-chuva. As referências são mais que tantas, quer pelos diálogos mencionados (falando em Cherburgo, falamos também de Nantes, a cidade de “Lola”, a primeira longa-metragem de Demy, em 1961), como pelas alusões quase trocistas ao filme passado. É como se a música destas diferentes estações estivesse mais que sintonizada e que cada canção servisse de base para a seguinte. Curiosamente é em Rochefort que encontramos a alacridade que parece ter sido esgotada em Cherburgo, apenas mais um desses traços de dependência entre as duas cidades em perfeita melodia. Devidamente representadas como as duas irmãs gémeas do signo Gémeos (Catherine Deneuve e Françoise Dorléac), tão idênticas e ao mesmo tempo tão diferentes.

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Uma dança, outra canta. Uma é loira, outra é ruiva. Uma sonha com a idealização, outra quem a idealiza. E nelas, nascem dois filmes distintos, sempre de mãos dadas com Rochefort. Em Dorléac (num dos seus últimos papéis, a atriz foi vítima de um acidente rodoviário no ano do lançamento do filme), na idealização encontrada num "americano em Paris", a participação especial de Gene Kelly que depressa contagia esta demanda a um filme à lá Minnelli. E do outro, a vertente truffautiana de quem idealiza uma imagem e a procura num corpo. Neste caso, Deneuve em busca do seu pintor e o artista (Jacques Perrin) ao encontro da sua musa, a figura-representação que vai ganhando vida até à sua elipse.

Aliás, apesar do salteado de teores, como um carnaval de tons que até certo ponto o filme parece assumir, há realmente muito de Truffaut nesta euforia musical, essa materialização da imagem como o encontrado sorriso de Jeanne Moreau naquela estátua antiga do Adriático em… espere… não é preciso mencionar … o filme faz por isso. "Lá estão eles, Jules e Jim". Existe uma vénia aqui, assim como Rochefort é o ponto de encontro do musical, dos amores perdidos e achados e de Demy com a fé no Cinema, a forma de fantasia que parecia ter perdido na chuva de Cherburgo