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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Catarina Ruivo: "Quando a minha avó morreu quis salvá-la, e filmá-la pareceu-me a única solução."

Hugo Gomes, 19.07.24

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Na sua quarta longa-metragem, Catarina Ruivo (“André Valente”, “Em Segunda Mão”) decide capturar o vazio e, nele, encontrar uma figura familiar: a sua avó, uma presença que considerava sua e que o destino levou aos 92 anos. 

Surpreendeu-se com essa perda, mesmo que a idade avançada sugerisse o contrário; a vida que transbordava dela dava sinais opostos, contudo, através dessa existência encantatória, Ruivo decidiu conceber um filme em sua homenagem. Durante esse processo, encontrou uma avó que desconhecia: uma avó antes de ser sua avó, uma mulher cujas aventuras, desvendadas por meio de cartas e fotografias, revelam a protagonista de um "épico". O épico de Catarina Ruivo, “A Minha Avó Trelotótó”, é um documentário-ensaísta que condensa uma vivência que, por mais ingrata que seja essa ideia de redução, encontra aqui o seu devido palco.

Catarina Ruivo aceitou o desafio de Cinematograficamente Falando... e respondeu às seguintes questões envolto desta obra sua que estreia nos cinemas portugueses, cinco anos depois de ter sido premiado no Indielisboa

Começo pela seguinte questão: como se filma a ausência? 

Neste filme, parti da ideia de que a ilusão do real no cinema é tão forte que ao filmar a  ausência de um corpo, tornando visível o espaço que ele ocupava, consigo não só filmar a  dor dessa ausência, mas também, materializar um ser, fazer existir um fantasma.  

Considera este filme uma homenagem à sua avó ou uma representação do vazio  humano? 

Quando a minha avó morreu quis salvá-la, e filmá-la pareceu-me a única solução. Não queria fazer um documentário sobre a minha avó, mas fazer um filme com ela. O que  me propunha fazer era filmar um fantasma para depois o devolver ao reino dos vivos, como Orfeu tentou com Eurídice. Criar um mundo onde ela pudesse continuar a viver 

Depois de terminado o filme, consegue me dizer quem foi a sua avó? O que descobriu dela que estava fora do seu radar? A pessoa que conheceu é a mesma com quem terminou o filme?

No sótão de casa da minha avó encontrei uma arca cheia de cartas suas e do meu avô, que  morreu jovem e que nunca conheci. Cartas para os pais quando foi viver para Moçambique com o meu avô em 1946, cartas de amor, cartas para mim.  

Descobri uma nova intimidade com a minha avó. Conheci a minha avó com vinte, com trinta anos, quando ainda não era avó. Através das suas cartas conheci a Julita e via-a  envelhecer. 

Gostaria que me falasse sobre algumas questões estéticas, as fotografias e a sua importância memorialista, acima do seu lado arquivista, obviamente. 

Gosto das fotografias, da forma como cristalizam um instante. A minha avó fazia álbuns que  construía como um romance, uma biografia, e onde muitas vezes colocava legendas com  pequenas histórias, pelo que parte do trabalho já tinha sido feito por ela. A ideia de fazer bonecos de cartão a partir de fotografias e colocá-los em cenários naturais, brincando com a perspectiva, surgiu das bonecas de cartão que existiam na minha infância a quem podíamos vestir diferentes fatos também eles feitos de cartão. 

Sobre a utilização dos não-atores, ou melhor das pessoas que conheceram a sua avó e que no filme interpretam elas próprias como se ela estivesse viva?

Fiz este filme para salvar a minha avó e em troca este filme salvou-me. Trabalhar com quem nunca tinha feito cinema, fez-me descobrir novamente o cinema e devolveu-me intacta a minha vontade de filmar, que julgava perdida.

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Rita Durão é uma atriz que tem sido recorrente na sua filmografia, o facto de  emprestar a sua voz para a narração atribui algum sentido de familiaridade ao seu filme? 

Nunca filmei sem a Rita, e quando tive que pensar quem seria a voz da minha avó não  pensei em mais ninguém. Quando gravámos a sua voz a ler as cartas não o quis fazer como uma voz off no sentido tradicional do termo, queria trabalhar com a Rita como actriz, criar uma personagem, fazer um trabalho de composição, como num filme de ficção. E quando oiço a Rita sinto que conseguimos, sinto a sua voz envelhecer e mudar ao longo do  tempo. 

Porquê só agora a sua estreia em sala, cinco anos depois do Prémio no Indielisboa?

Só agora, com a ajuda do Gustavo Scofano e da Catarina Almeida, conseguimos que o  filme chegasse às salas, o que me deixa muito feliz pois os filmes só existem quando são  vistos. 

“A Minha Avó Trelotótó” é a sua última longa-metragem até então, encontra-se a preparar mais alguma? Tem novos projetos?

Em 2020 filmei uma curta-metragem, “Boa Noite”, que espero vir a estrear e estou neste  momento a filmar uma nova longa-metragem de ficção, “Como é que te aguentas”.

Falando com Rita Durão, uma mulher de cumplicidades ao som de Mozart

Hugo Gomes, 14.12.22

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Rita Durão em "Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Encontros e reencontros sempre centralizaram o espírito criativo de Eric Rohmer (que hoje poderemos afirmar como um dos nomes mais influentes do dito cinema moderno). Nessa sua familiarizada demanda concebeu com “O Trio em Mi Bemol”, a sua única peça de teatro, numa revisão aos elementos humanos, passado e presente de braços dados enquanto visualizam o Futuro a passos de si. 

Porém, não estamos perante um trabalho integralmente rohmeriano. “Éric Rohmer est mort”, cantarolava Clio acompanhada por Fabrice Luchini, e as suas estâncias rumaram para outras mãos, e para outros formatos. Rita Azevedo Gomes apodera-se desse material e compõe um filme a três dimensões, um teatro inicialmente delineado, um realizador (Adolfo Arrieta) com ambições de gerar televisão a partir daquelas relações e por fim, um filme, Cinema, aí parido num “salta-pocinhas” de linguagens e estéticas. 

Segundo a realizadora, a obra foi fruto da colaboração dos seus “amigos”, artistas unidos levados a cabo para materializar e musicalizar esta visão, entre eles, calejada aliada do seu Cinema, Rita Durão, atriz que como Rohmer valoriza relações e afinidades, o seu conjunto funde Arte.

Em conversa, Rita Durão falou-nos do projeto e do seu contacto com a (outra) Rita, o seu círculo e ainda prestou a conhecermos esta protagonista. Esta “Mulher Vingativa”. 

Gostaria de começar pelo início, pelo seu envolvimento neste projeto, e sabendo que o “Trio em Mi Bemol” estava planeado ser um rádio drama ao invés de um filme.

A Rita [Azevedo Gomes] tinha-me falado deste projeto, antes de ele se tornar num filme, era um fruto da sua vontade e de verbalizar essa ideia. A conversa inicial não tinha qualquer intenção de convite à sua participação. Depois recebi um telefonema da Rita a propor-me a participar no seu então decidido filme, só que ela propunha começar a filmar no dia seguinte. Ora bem, tinha uma “carrada” de texto para decorar e a juntar isso, o meu “pouco à vontade” com o francês, estando na dúvida se aceitaria ou não. Pensava, “isto é uma grande ‘maluquice’, é muito texto em tão pouco tempo e ainda por cima em francês  … não sei se serei capaz.” Sentimentos de dúvida que embateram no meu instantâneo entusiasmo em ouvir aquela “cor” na voz da Rita ao telefone, do qual dá sempre uma vontade em “correr atrás” do seu desejo. Isto porque existe uma energia entre nós que funciona muito desta forma … por isso acabei por dizer que “Sim”. E pronto … o filme fez-se. 

Apesar de não ser um entendido a francês, alguns colegas meus notaram durante a projeção de Berlim [o filme estreou nesse festival] sobre a sua pronúncia. Mais tarde, a Rita Azevedo Gomes revelou que Rita não sabia falar francês, como me confirmou agora. 

Não, porque nunca tive francês na escola, e portanto acabei por ter, o que chamo, de um certo “francês de praia” [risos]. 

Recordo que no Teatro da Cornucópia, o Luís Miguel Cintra convidou a Christine Laurent para encenar uma peça - “O Lírio” de Ferenc Molnár - e na altura ela precisava de um assistente de encenação. Não sei bem como a ‘coisa’ aconteceu, mas acabei por ser a tal assistente. Entrei em pânico porque não sabia falar francês, e a Christine nem português, mas ao longo do processo, passadas algumas semanas, já me lançava nestas aventuras da língua estrangeira. A Christine também tentava desvencilhar no português, e se havia alguma dúvida entre nós, requisitavámos o inglês como auxílio. Portanto era umas conversas bastante misturadas [risos]. Esta experiência acabou por me dar, de uma forma bastante natural, uma aproximação ao francês. Também acabo por ler ‘coisas’ em francês, livros e até filmes que me vão acompanhando, e quanto mais fundo sigo na língua mais entendo o quão próximo está da nossa. 

Mas para este filme, com a quantidade de diálogos, acabei por recorrer e muito ao Olivier Blanc - um excelente diretor de som que se encontra em Portugal há vários anos, o companheiro da Rita Azevedo Gomes nos seus filmes, e qual cruzamos não só nesse universo mas também em outros trabalhos com outros realizadores. Ele ajudava nos meus ensaios. Gravamos por via dos telemóveis e com isso aconselhava o quanto e como teria que aperfeiçoar a minha pronúncia, por exemplo, sendo que não era uma opção do filme, visto que a Adélia, a minha personagem, assume-se como portuguesa. Por vezes o preciosismo da língua não era levado ao extremo, como tínhamos o propósito de "construir" algo agradável e que fizesse sentido. 

A juntar a isso, os ensaios por Zoom com o Pierre [Léon], que interpreta Paul no filme, sempre companheiro, estando disponível 100% para me ajudar a melhorar a língua, porque, francamente, há palavras bastante difíceis para mim, principalmente em termos de pronúncia.

Mas o filme, foi essa força conjunta em ajudar ao máximo o próximo. 

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Rita Durão em "As Bodas de Deus" (João César Monteiro, 1999)

Outro ponto referido pela Rita [Azevedo Gomes] é que a língua não poderia ser entendida como uma barreira à sua participação, visto que ela desejava manter a química encontrada entre si e Pierre Léon.

De facto, eu e o Pierre tivemos mais tempo juntos durante a rodagem do filme, e virtualmente, através dos nossos ensaios via Zoom. Eu o conheci em … julgo ter sido em Locarno, o qual acompanhei a Rita com um outro filme dela, e aí fui apresentada ao Pierre e automaticamente nos demos naturalmente bem. De alguma forma, penso que a Rita guardou essa memória, esse sentimento, pelo que mais tarde lá reencontramo-nos durante “A Portuguesa”, uma experiência que adorei. O meu papel nesse filme era muito secundário, julgo só ter tido uma deixa e era algo baço, mas encontrava-se constantemente presente em cena, e com isso ia observando tudo à minha volta. Porém, aconteceu uma interação entre nós que deslumbrou a Rita. Julgo que foi a maneira como nos relacionamos um com ou outro nessa determinada cena que a marcou, guardando os ingredientes necessários para nos voltar a juntar. “Um dia, gostaria de juntar a Durão e o Pierre num filme, e ver o que isso gerará”, deve ter pensado, pelo menos, é o que me deu a entender no tal telefonema. 

Desde “A Conquista de Faro” (2005) que a Rita [Durão] tem sido recorrente nos filmes da Azevedo Gomes. Sente que, de certa forma, o Cinema dela encontra-se inteiramente ligado à sua figura?

Francamente, não me lembro como é que conheci a Rita, mas recordo de estar na “Conquista de Faro” e aperceber-me da química que estávamos a criar. Ela gosta particularmente de trabalhar com equipas pequenas, mais íntimas possíveis, sendo uma característica que também me interessa, porque permite uma observação de tudo que está a acontecer. Outra característica da Rita é de manter-nos envolvidos intrinsecamente no projeto e levar-nos a irmos além do nosso respetivo ofício. Ela proporciona esses momentos, enquanto realizadora, não guarda as dúvidas para com ela, partilha-as com a equipa e incentiva a procurarmos uma solução juntos.

Sinceramente, acho que fomos criando uma cumplicidade. Começou com os momentos artísticos e foi saltando para nós enquanto mulheres e depois enquanto amigas. Sim, é sobretudo uma relação de amizade.

Mas foi com Rita Azevedo Gomes que teve, possivelmente, um dos momentos altos da sua carreira no Cinema. Refiro a “A Vingança da Mulher” (2012), filme que a colocou como plena protagonista e que a premiou com a distinção de Melhor Atriz da Sociedade Portuguesa de Autores. 

Não sei. Não com isto dizendo que não estou agradecida aos prémios, dos quais são bons de receber, tratando-se de uma prova de que o nosso trabalho é reconhecido, assim como o filme e da equipa também … mas o que importa referir aqui é que a “A Vingança da Mulher” foi um filme bastante especial resultante de um trabalho intenso e conjunto entre mim e a Rita. Nós nos reunimos, com a devida antecedência, para preparar este filme. Intensamente discutimos essas ideias, as cenas, os diálogos, a dicção. Aí houve um trabalho muito grande entre a pessoa que diz, a que escuta, a que realiza e a que vai encenar. Uma consolidação de uma grande proximidade que já se adivinhava, seja de projetos anteriores, mas acima de tudo, e devido à natureza do filme e a do meu papel, originando horas e horas de conversa a propósito do mesmo e na órbita desse mesmo filme. “A Vingança da Mulher” abre a janela para outros temas e outros entendimentos. 

Fora Rita Azevedo Gomes, existe outra realizadora o qual tem sido presente nos seus trabalhos - Catarina Ruivo - desde a sua primeira longa-metragem (“André Valente”, 2004), passando por “Daqui P’rá Frente” (2008) e contracenando com o ator Pedro Hestnes, no seu último papel (1962 - 2011), em “Em Segunda Mão” (2012).

Sim, é verdade, também tenho uma cumplicidade com a Catarina. Obviamente que são pessoas bastantes diferentes, mas acabo por me identificar com elas da mesma maneira. São duas mulheres importantes para mim de alguma maneira, lançam-me desafios, deixem-me integrar na concepção dos respectivos projetos e são “abertas” para mim. Gosto de as escutar. 

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Leonardo Viveiros e Rita Durão em "André Valente" (Catarina Ruivo, 2004)

Gosta de que lhe desafiam artisticamente?

Sim, gosto [risos].

Distanciando destes dois universos, a Rita partilhou uma romã com João César Monteiro em “As Bodas de Deus” (1999) … 

Sim. O Cinema é também isso, a vida a “mexer-se” e o meu primeiro encontro com o João César Monteiro foi desencadeado por esse mesmo movimento. Ele procurava alguém para aquele papel e eu acabei por cruzar-me com ele, o que me garantiu a personagem. E a verdade é que por questão geracional, ambos [Rita Azevedo Gomes e João César Monteiro] acabavam por gostar das mesmas ‘coisas’, frequentavam os mesmos círculos culturais, sendo normal que tivessem a mesma aproximação, o mesmo universo, a mesma familiaridade. 

Com o João César Monteiro ainda trabalhou em “Branca de Neve” (2000) …

Eu não participei no “Branca de Neve”.

Mas encontra-se creditada no projeto.

Sim, tenho conhecimento disso, mas não sei porquê. Era para participar, mas por algumas razões não cheguei à fase final do filme. Não apareço no filme.

Acho que ninguém “aparece” no filme [risos]

Sim. [risos]

Prosseguindo, depois participou no “Vai e Vem” (2003), o último filme do César Monteiro. Como foi trabalhar com ele? 

Essa é uma pergunta que me fazem tantas vezes. Tive uma relação muito especial com o César, aliás a minha forma de trabalhar é, prioritariamente, de criar laços de cumplicidade, gerar uma relação de cuidado para com a pessoa e para aquilo que me é proposto. 

Eu gosto muito de observar os realizadores, da mesma forma que eles nos observam, também gosto muito de observá-los. 

Nesse seu campo de observação e visto possuir uma carreira que oscila entre o Cinema e o Teatro, tenta "transferir" experiências de um território para o outro? 

Sim, porque as ‘coisas’ não devem ser arrumadas nos seus cantinhos como gavetas. As gavetas devem permanecer “semi-abertas” para que deem espaço para criação e transferência de ideias de um território para o outro. Pelo menos penso dessa forma, porque muitas vezes eu roubo do Cinema, elementos que levo para o Teatro e assim sucessivamente. 

E quanto ao Teatro, existe uma certa afinidade deste território no cinema de Rita Azevedo Gomes.

Sim, há uma construção de cenas e situações que nos remetem ao universo teatral. Cada cena decorre num determinado sítio e num determinado tempo que é permitido de alguma forma ser inventado ou reinventado, e todas aquelas cenas possuem um significado, uma representação, cabe ao espectador tentar compreendê-las e sucessivamente encaixá-las. Soa tanto a Teatro.  

Só que no Teatro existe um contacto direto com o seu público no ato da sua criação, não uma reação à posteriori.

Sim. Mas antes da peça em si, existem os ensaios. É um pouco de Cinema dentro do Teatro, que por sua vez, acaba por ser o Teatro dentro do Cinema. Essa questão do público é uma questão de consciência, nós sabemos que o que fazemos irá ter um público em determinada altura, portanto, tentamos antecipar essa reação, seja no Teatro, seja no Cinema. A grande diferença, é que no Teatro, por vezes temos uma reação direta e manifestante, por exemplo, o riso ou a tensão, a energia emanada no público. No Cinema, não temos essa energia, mas temos outra libertada na cena, na cinematografia, ou entre nós, no qual sentimos, depois temos a restante equipa que nos observa, um público improvisado, naquele preciso momento é como se tivéssemos uma espécie de Teatro íntimo. 

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Rita Durão em "A Vingança da Mulher" (Rita Azevedo Gomes, 2012)

Qual é a sua “reação” ao termo que tem ganho uma conotação pejorativa que é “teatro filmado”? Relembro que é diversas vezes dirigido ao cinema português.

Não tenho muito para dizer sobre isso. Acho que o “teatro filmado” pode ser algo extraordinário desde que faça sentido a sua existência. Quanto à conotação … sinceramente, não sei muito bem o que dizer.

Falou-me há pouco do francês vindo dos “filmes que a acompanharam”, pergunto se Éric Rohmer entra nesse cardápio?

Não entra muito, para dizer a verdade. Quanto a Rita falou comigo sobre o projeto, percebi que não era um realizador do qual acompanhava. Na altura, achei por bem não ver nada dele para que não haja influências. O que fiz, e do qual adorei fazê-lo, foi consultar as suas entrevistas, o de ouvi-lo falar sobre os seus pontos-de-vista, do que pensava, da sua perspectiva quanto à Arte, à Vida sobretudo. De resto, tentei manter-me como uma “folha em branco”, preferi essa abordagem ao invés de me aprofundar no seu universo cinematográfico Se tivesse feito isso, teria como consequência de me sentir aquém do seu estilo ou algo do género, e nisso condicionar-me. Senti que os filmes poderiam ter um efeito diferente no “O Trio em Mi Bemol”, poderia não funcionar a aproximação do mundo da Rita com o do Rohmer, por isso evitei essa abordagem. 

E no final disso tudo - depois do “O Trio em Mi Bemol” - não ficou com vontade de espreitar a sua cinematografia?

Fiquei, mas confesso que não tenho tido o tempo necessário para o fazer. A correria entre o trabalho, os filhos, as peças para ler, não permitem aquele “tempo de qualidade”, que por vezes é essencial para a nossa receptividade. Julgo que o Rohmer merece melhor. 

É sabido também que vai ou já esteve a trabalhar com o Luís Filipe Rocha na adaptação do livro de João Ricardo Pedro, “O Teu Rosta Será o Último".

Estive a filmar com o Luís Filipe este ano, do qual terminamos no início de maio, e … pelo que vou sabendo, está praticamente pronto. Mas não sei mais detalhes nem sequer quando estreará. 

Cada um com a sua infância, cada um com o seu Cinema

Hugo Gomes, 01.06.21

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Good Morning (Yasujiro Ozu, 1959)

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The Childhood of a Leader (Brady Corbet, 2015)

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Capernaum (Nadine Labaki, 2018)

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Wadjda (Haifaa Al-Mansour, 2012)

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Home Alone (Chris Columbus, 1990)

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The White Ribbon (Michael Haneke, 2009)

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Let the Right One in (Thomas Alfredson, 2008)

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Little Fugitive (Ray Ashley & Morris Engel, 1953)

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The Florida Project (Sean Baker, 2017)

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The Sixth Sense (M. Night Shyamalan, 1999)

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The 400 Blows / Les Quatre Cents Coups (François Truffaut, 1959)

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The Kid (Charlie Chaplin, 1921)

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The Last Emperor (Bernardo Bertolucci, 1987)

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Zero to Conduite / Zéro de conduite: Jeunes diables au collège (Jean Vigo, 1933)

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Bicycle Thieves / Ladri di Biciclette (Vittorio di Sica, 1948)

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Village of the Damned (John Carpenter, 1995)

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My Life as a Zucchini / Ma vie de Courgette (Claude Barras, 2016)

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The Boy with Green Hair (Joseph Losey, 1948)

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Aniki Bóbó (Manoel de Oliveira, 1942)

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The Shining (Stanley Kubrick, 1980)

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Cinema Paradiso / Nuovo Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988)

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Come and See (Elem Klimov, 1985)

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Pather Panchali (Satyajit Ray, 1955)

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E.T. the Extra-Terrestrial (Steven Spielberg, 1982)

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André Valente (Catarina Ruivo, 2004)

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Ivan's Childhood (Andrei Tarkovsky, 1962)

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Nana (Valérie Massadian, 2011)

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Pixote, a Lei do Mais Fraco (Hector Babenco, 1981)

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Poltergeist (Tobe Hooper, 1982)

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800 Balas (Álex de la Iglésia, 2002)

A serenata do "homem-marioneta"

Hugo Gomes, 14.02.14

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Jorge (Pedro Hestnes), um escritor de romances eróticos de série B sob um pseudónimo feminino, é constantemente confrontado com uma melancolia diária que afecta a sua autoestima e pretensões profissionais. Sempre desejou uma vida distante daquele “mar de solidão” que o afoga gradualmente. Contudo, os seus desejos tornam-se realidade quando por mero acidente depara-se com um misterioso gravador, do qual contém uma mensagem de suicídio oriundo de um desesperado homem. Nela, ele cita uma morada e um nome pronunciado com emoção. Ao encontrar o paradeiro daquele pedido, Jorge encara-se com Laura (Rita Durão) e o seu filho André, a família perfeita que sempre invejara, mas que nunca conseguira alcançar. Aos poucos Jorge vai vivendo a então vida daquele desaparecido sujeito, um sonho sem fim anunciado, “embrulhado” por eternas juras de felicidades. Porém, enquanto mais se aprofunda nesta sua “segunda pele”, mais ele apercebe do quão distante se encontra da antiga vida.

Um protagonista de tendências voyeuristas desafiado pelo próprio voyeurismo provocado, interpretado por Pedro Hestnes, naquela que foi a sua última contribuição para o cinema português (o ator faleceu em 2011 em consequência de uma cancro). É mais ou menos isto que caracteriza a terceira longa-metragem de Catarina Ruivo (“André Valente”, “Daqui Pra Frente”). Uma obra curiosa que invoca as mais diversas influências estilísticas, desde um neo-noir sombrio, auxiliado por uma melancolia e sombria fotografia mimetizado a pele vestida pelo protagonista, ou pelos toques hitchcockianos, evidentemente o seu “Rear Window” (1950), como podemos assistir na fantasmagórica sequência de voyeurismo, onde Jorge visualiza os seus vizinhos como James Stewart “espia” os seus na referida obra do “mestre do suspense”.

Porém, e como se confirma através desta cena-homenagem composta por um curioso split screen estrutural (ao contrário de “Rear Window”, o espectador apenas segue de livre vontade o “vizinho a seguir” ao invés da câmara "ditatorial" de Hitchcock), “Em Segunda Mão” exibe-nos uma montra de vida, uma exposição das razões de ser e de fazer voyeurismo, a cobiça e a insatisfação de realização pessoal que nos faz julgar a felicidade dos outros, desejando as suas rotinas e relações. É estranho, mas sob um jeito algo subtil Catarina Ruivo esboçou e dissecou o efeito “marioneta” das suas personagens, a pseudo-naturalidade dos peões viventes e do descontrolo na automatização da vida e relações afectivas. E tal como a grande maioria dessas mesmas relações, “Em Segunda Mão” transfere o dilema do início fabulado, as iminências caóticas e o desinteresse na exploração das ditas na jornada identitárias de Jorge, o eterno homem-marioneta, a travestida criatura do destino.

Com um começo algo trapalhão, de narrativa minimalista e de ligação inexistente entre cenas (atribuindo um tom de descartabilidade em algumas delas), “Em Segunda Mão” possui o trunfo de se adensar ao longo da sua duração. Após ter terminado as introduções e redefinição de objectivos, Catarina Ruivo contorna as reviravoltas dando uma sensação de prolongado clímax. Assim, o filme assume-se conformista ao mesmo tempo sóbrio, espalhando erotismo e dualidade, convertendo-se num impensável thriller metódico. Por último, destaque a Luís Miguel Cintra, a cooperar com a sua forte presença.