Na Toca de Platão
Astrakan 79 (2023)
Catarina Mourão, realizadora e documentarista cada vez mais citada após a aclamação de “A Toca do Lobo”, que - assumindo o tom de investigação, procurou o rasto memorialista do seu avô (Tomás de Figueiredo) - chega-nos, na presença de dois filmes estreados em modo pack promocional, como uma exímia artesã do espaço memória, esse a que o cinema português, nomeadamente na sua área documental, tem conquistado ou até mesmo colonizado através de ensaios e formatos inteiramente maleáveis, e outros nem tanto. O módulo tem encontrado sucesso entre o público resistente deste cinema tão nosso, a “culpa”, que não nasce nem morre solteira, teve como parte do cartório no passo, em jeito de um salto trazido, por Catarina Vasconcelos no seu “A Metamorfose dos Pássaros”, a busca da sua história enraizada num constante e inacabado exercício visual e artístico.
Com Mourão, nomeadamente com “A Toca do Lobo”, a elasticidade do seu artifício pouco sai do “arquivo”, das imagens encontradas e ali alinhadas ao serviço de eventuais interrogatórios, ora ternos, ora esclarecedores e, porque não, também eles crípticos. Daí se nota a sua bravura na descura, uma documentarista com voz, corpo e mente. Com estes dois trabalhos a tomar a sala de cinema como sua, distinguimos duas Catarinas Mourão no processo criativo, e no entanto, são diluídas numa só personalidade e num só método.
O primeiro (e com título que parece ter saído de uma música de Jorge Palma), “O Mar Enrola na Areia” (2019), soa-nos um poema visual de Mello Breyner, a ligação com o Mar presta vénia a essa despertada ligação, mas aparências iludem perante aquelas imagens vintage de convívios balneares em tempos salazaristas, apenas recortados por trechos, palavras, não escritas na areia, mas cujo papel nelas imprimidas higienicamente estabelecem um contacto, não só com o ambiente, como também com o arquivo ali amanhado e montado. É uma busca, como em “A Toca do Lobo”, de uma personagem que hoje vive enquanto lenda verbal. Trata-se do “homem do apito”, caminhante das praias do Estado Novo, de apito na boca e com uma relação ainda hoje por comprovar; há quem fale num sem-abrigo, ou num pedófilo, ou, embarcando na aura de mito urbano, numa espécie de “pai natal” do Verão, e, contudo, num papão. Os relatos de quem o viu ou de quem o presenciou, são esses intertítulos manuais com medo da chegada da próxima onda, eles estabelecem as diferentes visões quanto a esta figura inteiramente entregue a um folclore popular.
O Mar Enrola na Areia (2019)
Mourão “capturou” 30 segundos da sua presença em antigas bobines, só isso, o restante dos seus quase 15 minutos de duração faz-se pela ondulação de uma poesia imagética, algo nostálgica, de rostos encantados pelo mar e dos seus estados de espírito. Do silêncio trazido por este falso-filme mudo, corresponde-nos cognitivamente, e há que jurar que a sonoridade do batimento das ondas, o vento que sopra dunas acima, dunas abaixo, integra esta composição. É como ouvir um búzio e imaginar …
Já a sua longa-metragem - “Astrakan 79” (2023, ingressado na Competição Nacional do Indielisboa desse ano) - também lidando com mitos enraizados na cultura popular portuguesa, é, formalmente, um atalho para o seu regressar (talvez nunca tenha saído) ao cinema de pesquisa, mas é nos entretantos, sem nunca dispensar esse lado de “descoberta” e de “clarificação”, que resulta numa espécie de reconstituição artística em conjunto com um ato de esvaziar um baú arquivista. Permanece como um ensaio memorialista, até à sua segunda metade, um filme que parte de uma ideia, de uma fabulação, das doutrinas impostas por uma família militante comunista ao seu filho, Martim Santa Rita, e que a sua eventual experiência na União Soviética, em 1979 [Astrakan para sermos exatos], o mergulha num clima de desilusão quanto à “utopia” que lhe fora vendida desde cedo. A sua vivência por lá, assim como o seu retorno a casa, são descritos como temas tabus, engavetados e fechados a sete chaves. Com o segundo tomo, adquirindo um intimismo imediato pela presença do protagonista, 40 anos depois, relatando o que sucedera, e mais que isso, as consequências que tal viagem e percepção tiveram no seu seio familiar.
“Astrakan 79” é, inversamente a “Toca do Lobo”, a perda do fascínio familiar, que com o descortinar do seu mistério percebemos o quão presas, por vezes, estão a essas crenças instituídas, mantendo-se, ditatorialmente, como lemas de união entre eles, e cuja “diferença”, seja ela adquirida de forma for, é ostracizada. Família é nesses termos um regime, “fascista”, “censuratório”, imperando uma só vontade e pensamento. É comunismo soviético, como poderia ser outra ideologia, é a diferença política que antagoniza, e por um lado é valorização da política enquanto cerne de tudo e de todos. Catarina Mourão faz a sua “Metamorfose dos Pássaros”, num encantamento em gradual ruína. Com o seu quê de performativo, e a sua vontade de ir a fundo nos segredos só nossos.