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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na Toca de Platão

Hugo Gomes, 10.07.24

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Astrakan 79 (2023)

Catarina Mourão, realizadora e documentarista cada vez mais citada após a aclamação de “A Toca do Lobo”, que - assumindo o tom de investigação, procurou o rasto memorialista do seu avô (Tomás de Figueiredo) - chega-nos, na presença de dois filmes estreados em modo pack promocional, como uma exímia artesã do espaço memória, esse a que o cinema português, nomeadamente na sua área documental, tem conquistado ou até mesmo colonizado através de ensaios e formatos inteiramente maleáveis, e outros nem tanto. O módulo tem encontrado sucesso entre o público resistente deste cinema tão nosso, a “culpa”, que não nasce nem morre solteira, teve como parte do cartório no passo, em jeito de um salto trazido, por Catarina Vasconcelos no seu “A Metamorfose dos Pássaros”, a busca da sua história enraizada num constante e inacabado exercício visual e artístico.

Com Mourão, nomeadamente com “A Toca do Lobo”, a elasticidade do seu artifício pouco sai do “arquivo”, das imagens encontradas e ali alinhadas ao serviço de eventuais interrogatórios, ora ternos, ora esclarecedores e, porque não, também eles crípticos. Daí se nota a sua bravura na descura, uma documentarista com voz, corpo e mente. Com estes dois trabalhos a tomar a sala de cinema como sua, distinguimos duas Catarinas Mourão no processo criativo, e no entanto, são diluídas numa só personalidade e num só método.

O primeiro (e com título que parece ter saído de uma música de Jorge Palma), “O Mar Enrola na Areia” (2019), soa-nos um poema visual de Mello Breyner, a ligação com o Mar presta vénia a essa despertada ligação, mas aparências iludem perante aquelas imagens vintage de convívios balneares em tempos salazaristas, apenas recortados por trechos, palavras, não escritas na areia, mas cujo papel nelas imprimidas higienicamente estabelecem um contacto, não só com o ambiente, como também com o arquivo ali amanhado e montado. É uma busca, como em “A Toca do Lobo”, de uma personagem que hoje vive enquanto lenda verbal. Trata-se do “homem do apito”, caminhante das praias do Estado Novo, de apito na boca e com uma relação ainda hoje por comprovar; há quem fale num sem-abrigo, ou num pedófilo, ou, embarcando na aura de mito urbano, numa espécie de “pai natal” do Verão, e, contudo, num papão. Os relatos de quem o viu ou de quem o presenciou, são esses intertítulos manuais com medo da chegada da próxima onda, eles estabelecem as diferentes visões quanto a esta figura inteiramente entregue a um folclore popular.

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O Mar Enrola na Areia (2019)

Mourão “capturou” 30 segundos da sua presença em antigas bobines, só isso, o restante dos seus quase 15 minutos de duração faz-se pela ondulação de uma poesia imagética, algo nostálgica, de rostos encantados pelo mar e dos seus estados de espírito. Do silêncio trazido por este falso-filme mudo, corresponde-nos cognitivamente, e há que jurar que a sonoridade do batimento das ondas, o vento que sopra dunas acima, dunas abaixo, integra esta composição. É como ouvir um búzio e imaginar …

Já a sua longa-metragem - “Astrakan 79” (2023, ingressado na Competição Nacional do Indielisboa desse ano) - também lidando com mitos enraizados na cultura popular portuguesa, é, formalmente, um atalho para o seu regressar (talvez nunca tenha saído) ao cinema de pesquisa, mas é nos entretantos, sem nunca dispensar esse lado de “descoberta” e de “clarificação”, que resulta numa espécie de reconstituição artística em conjunto com um ato de esvaziar um baú arquivista. Permanece como um ensaio memorialista, até à sua segunda metade, um filme que parte de uma ideia, de uma fabulação, das doutrinas impostas por uma família militante comunista ao seu filho, Martim Santa Rita, e que a sua eventual experiência na União Soviética, em 1979 [Astrakan para sermos exatos], o mergulha num clima de desilusão quanto à “utopia” que lhe fora vendida desde cedo. A sua vivência por lá, assim como o seu retorno a casa, são descritos como temas tabus, engavetados e fechados a sete chaves. Com o segundo tomo, adquirindo um intimismo imediato pela presença do protagonista, 40 anos depois, relatando o que sucedera, e mais que isso, as consequências que tal viagem e percepção tiveram no seu seio familiar. 

Astrakan 79” é, inversamente a “Toca do Lobo”, a perda do fascínio familiar, que com o descortinar do seu mistério percebemos o quão presas, por vezes, estão a essas crenças instituídas, mantendo-se, ditatorialmente, como lemas de união entre eles, e cuja “diferença”, seja ela adquirida de forma for, é ostracizada. Família é nesses termos um regime, “fascista”, “censuratório”, imperando uma só vontade e pensamento. É comunismo soviético, como poderia ser outra ideologia, é a diferença política que antagoniza, e por um lado é valorização da política enquanto cerne de tudo e de todos. Catarina Mourão faz a sua “Metamorfose dos Pássaros”, num encantamento em gradual ruína. Com o seu quê de performativo, e a sua vontade de ir a fundo nos segredos só nossos.

À 7ª edição, o Close-Up decide reunir a "Família". Arranca o Observatório de Cinema de Famalicão.

Hugo Gomes, 14.10.22

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Mamma Roma (Pier Paolo Pasolini, 1962)

Para muitos Cinema é somente ver “pictures on a screen”, parafraseando Hollywood, esse oásis do espectáculo, mas existem outros que deparam com estas imagens em grande ecrã em afetividades, emoções envolvidas e devolvidas para mais tarde serem partilhadas por quem compaixão nutre para com tais sensações e impressões. Chama-se cinefilia, o que não é menos que uma “Família”, improvisada, mas sustentada por essa paixão pela Sétima Arte. Família é também o novo estado do Close-Up, o Observatório de Cinema em Vila Nova de Famalicão (a decorrer na Casa de Artes a partir do dia 15 de outubro até 22 de outubro), a 7ª edição, ou como bem gostam de se apresentar, o 7º episódio desta iniciativa que tem magnetizando cinéfilos e cinefilias para a cidade.  

Como já é tradição, o primeiro dia será marcado pela espetacularidade envolvido em memórias de “fantasmas do Natal Passado”, neste novo episódio a tarefa cabe ao grupo musical Glockenwise (Nuno Rodrigues, Rafael Ferreira e Rui Fiúsa) para acompanhar “Melodie der Welt” (Walter Ruttmann, 1929), com isto esperando trazer até ao seu público toda a melodia que o Mundo contém. O Close-Up também nos convidará a regressar ao Gabinete do doutor Caligari (“Das Cabinet des Dr. Caligari”, Robert Wiene, 1920) através de um filme-concerto assinado por Haarvöl, e a fechar a edição com “Memorabilia”, de Jorge Quintela, desta feita com acompanhamento dos Miramar.  

A programação “passeará” por universos familiares da nossa cinefilia, de Paulo Rocha a Emir Kusturica, este primeiro representado pelo documentário de Samuel Barbosa [“A Távola de Rocha”] e o segundo pelo tão célebre “Black Cat, White Cat”, ou por Antonioni a Pasolini, bem representados com cópias restauradas na seção “Histórias de Cinema”, porém o grande destaque deste ano é o ciclo dedicada à documentarista Catarina Mourão, presente para conduzir uma masterclass, é uma oportunidade de conhecer e reconhecer a sua obra, uma reunião das suas primárias pegadas (“A Dama de Chandor”, 1998) ao seu mais recente trabalho (“Ana e Maurizio”, 2020).

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Vizinhos (Pedro Neves, 2022)

Sem esquecer da apresentação de dois livros sobre a nossa relação com o Cinema, seja pela sua História (“História do Cinema: Dos Primórdios ao Cinema Contemporâneo”, organizado pelo professor Nélson Araújo), seja pela sua pedagogia ("Hipótese de Cinema: Pequeno Tratado Sobre a Transmissão do Cinema dentro e fora da Escola” de Alain Bergala), e da estreia de “Vizinhos”, a nova curta-metragem de Pedro Neves (“Tarrafal”, “A Raposa da Deserta”), produzido pelo Teatro da Didascália e pela Red Desert, sobre a comunidade vivida no Edifício das Lameiras, a ser exibido na mesma sessão de “Black Cat, White Cat” de Emir Kusturica.

E é difícil o Close-Up falar sobre família e não demonstrar a sua. Como é habitual no Observatório de Cinema, todas as sessões são comentadas por diversos convidados, desde jornalistas a críticos, artistas e intelectuais, todos unidos para uma só tradição - celebrar o Cinema enquanto Família que somos.

Toda a programação poderá ser consultada aqui.

O "menosprezo" da importância do cinema de investigação

Hugo Gomes, 25.10.17

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Quem é Bárbara Virgínia? (Luísa Sequeira, 2017)

Há uma vertente que levemente tem surgido no panorama do documentário português, uma vertente jornalística, não a de mera entrega de informação, mas de investigação. Essa no qual poderá denotar o pessoal (identitário) ou coletivo (demanda para a divulgação, preservação de memória). Este tipo de documentários, que se prolongam ou evitam o cinema como mera lente de documentação de imagens (que porventura poderá anexar-nos a memórias etnográficas e épicas), não são de todo bem vistas na comunidade-nicho da cinefilia. Há quem os acuse de aligeirar o poder e possibilidades (de momento infinitas) de Cinema, desde a sua narrativa até ao estilo intrínseco e extrínseco, porém, e tendo em conta a muita da seleção presente de um Doclisboa, poderemos considerar esta “básica” forma de fazer documentário num registo outsider e porque não, na maioria dos casos, mais experimentais e concisos na sua abordagem.

Como exemplo desse cinema-investigação, Catarina Mourão elevou-se numa busca ínfima de autodescoberta com “A Toca do Lobo”, onde seguiria o paradeiro do avô da realizadora, figura que não conhecera por completo mas que deixou marcas. A realizadora / documentarista apresenta-nos um objetivo claro na sua proposta (“descobrir quem é este homem”), convite claro que o espectador retém no seu arranque, a viagem, essa, vinculada num híbrido entre a investigação propriamente dita e a deambulação pelas memórias pessoais. Em todo o caso, porque não reconhecer “A Toca do Lobo” como um objeto no limiar do intimismo e da retribuição social.

De estética pessoal, mas de caráter mais urgente, está “Quem é Bárbara Virgínia?”, de Luísa Sequeira, outra investigação [presente nesta edição do Doclisboa] que regista um pedaço de História portuguesa, neste caso Bárbara Virgínia, a multifacetada artista que se tornou na primeira mulher realizadora nacional, atualmente “apagada”, é o corpus de estudo que despoleta uma tremenda jornada de conhecimento pessoal com vista maioritária para o público e memória futura na “salvação” deste personalidade. O objetivo neste caso encontra-se no título (Quem é Bárbara Virgínia?). O espectador tem com isto a certeza do que vai encontrar, a proposta é clara. Quanto à forma como a mensagem é emitida, essa tem a sua razão de divergir dos moldes, digamos, televisivos. Luísa Sequeira consegue sobretudo uma investigação com uma apresentação intimista, até porque esta procura torna-se, para todos os efeitos, bastante pessoal (apercebemos o quanto a imagem de Bárbara Virgínia transgride da meta de estudo para a transferida pessoalidade numa determinada sequência, a anunciada morte de Virgínia e a reação da nossa documentarista perante tal).

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Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo (João Monteiro, 2016)

Porém, talvez de caráter urgente acima da sua pessoalidade, temos “Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo”, de João Monteiro, uma contagem de linguagem televisiva que visa em projetar o legado de Macedo e apurar as causas do seu “desaparecimento”. Obviamente que este documentário completamente destilado por entre footages e talking heads possui um propósito de preocupação pública e patrimonial, mas se o considerarmos como um objeto cinematográfico de requinte, a sua pobreza não o exaltará como algo mais. Contudo, o objetivo de Monteiro é mais do que simplesmente integrar uma teoria estilística, social e cinematográfica, é como um apelo, um ato ativista, esse, que poderá originar consequências futuras, quem sabe, a revalidação absoluta de Macedo, não simplesmente como tentador do cinema de género em Portugal, mas como cineasta. Estes três exemplos recentes de documentário português, uma minoria perante a divulgação dos festivais, formam um cinema de causa-efeito, a investigação como uma narrativa que não deve ser sobretudo desprezada.

O outro cinema, com exceção de alguns casos que conseguem através dos seus meios desbravar a sua linguagem, apresenta-se como máscara, escondendo a incapacidade e o amadorismo de muitos “documentaristas” pretensiosos, em busca do caminho fácil do estatuto autoral. Esse anti-cinema não deve ser sobretudo erguido como o Cinema, assim como o cinema na sua forma mais clássica, universalmente empática, não deve ser rebaixado a anti-cinema.