João Miller Guerra sobre "Légua": "desde o princípio o trabalho com a realização, com a autoria, é sempre um exercício de grande entendimento"
Légua (2023)
Conta-se que é uma história de três gerações de mulheres, representadas no soneto de uma morte anunciada. No entanto, em "Légua," encontramos também uma instalação performativa onde corpos dançam ao compasso dos dissabores do tempo que lhes resta. Aqui, Ana (Carla Maciel), uma mulher dividida entre a oportunidade e a gratidão, converte-se numa mártir e igualmente num testemunho à decadência da sua congénere, Emília (Fátima Soares), vencida pela previsível decadência e a sua gradual não-existência.
Filmado em Légua, uma aldeia situada no concelho de Marco de Canaveses, esta nova longa-metragem da dupla João Miller Guerra e Filipa Reis, estreada na Quinzena dos Realizadores em Cannes, é uma amálgama de experiências pessoais e desejos de transgredir o real e a ficção, unindo atores profissionais e não profissionais, corpos jovens e envelhecidos, humanidades e animalidades, ruralidade e a sua iminente extinção.
Conversei, mais uma vez (diga-se), com o realizador João Miller Guerra, antecipando a estreia comercial no nosso país da sua obra conjunta, no abrigo da Cinemateca, num quente dia de junho, explorando vivências, gerações e escolhas.
Primeiramente, gostaria de fazer um ponto de situação desde a nossa última conversa, que ocorreu no âmbito de "Djon África". Referiu-se a mim nessa conversa, mencionando que a morte do seu pai teve um grande impacto em si. Pude constatar, numa entrevista concedida à SIC Notícias, que este filme de certa forma se tornou uma experiência pessoal para si. Isso também tornou mais difícil separar a sua pessoa daquela ficção.
Sim, ou seja, as coisas estão interligadas, não é verdade? O facto de "Djon África" ser sobre um descendente cabo-verdiano em busca do pai, e como conversamos na altura, eu ter perdido o meu pai, e de repente olhar para o Miguel Moreira, com quem já tinha feito três documentários e que considero um amigo, e perceber que ele não conhecia o seu, foi o ponto de partida para a aventura com "Djon África". Aqui, foi igualmente pessoal, e efetivamente está relacionado com a morte do meu pai. Acredito que todas essas experiências são maneiras de lidar ou manter um contacto com a memória do meu pai, que obviamente era muito querido para mim, mas também era uma pessoa muito especial para a Filipa, na nossa relação que tem continuado ao longo destes anos.
Havia também este lugar, fruto dessa relação, para onde eu ia desde pequeno, praticamente desde que nasci, uma casa de família, essa, onde decorre o filme "Légua". Portanto, a Filipa também tinha uma ligação forte com este lugar, sobretudo durante as férias, e em determinado momento, ambos discutimos a possibilidade de passar mais tempo ali e de criar algo que nos permitisse permanecer lá por mais tempo.
Poucos meses depois, não consigo precisar exatamente quanto tempo passou, talvez tenha sido um ano, a senhora que cuidava da casa, desde os tempos da minha bisavó, adoeceu. Quem a acolheu foi outra senhora que também ajudava nas tarefas da casa. Esse gesto foi o ponto de partida para o filme "Légua", ou seja, esse olhar um bocado implicado, sentindo-me também como dono e responsável daquele lugar e vivendo esse momento com impotência. Portanto, esse gesto de grande amizade por parte da senhora mais nova, ao acolher a senhora mais velha, um bonito gesto deve-se dizer, foi crucial para a génese da nossa história. Depois, tal como aconteceu com o Miguel em "Djon África", o filme é uma ficção.
Antes de avançar para "Légua", permita-me fazer outra ligação com a nossa última conversa. Quando lhe perguntei sobre novos projetos, mencionou um filme que seria rodado no norte de Portugal, abordando o fim da ruralidade, ou melhor, a resiliência face ao declínio da vida rural. No filme que estamos a discutir, principalmente através da personagem mais jovem que se muda para o Porto juntamente com outros que emigram, vemos a reflexão sobre esse tema da ruralidade. Em suma, de certa forma, essa projeção transformou e levou-nos ao “Légua”?
Sim, é isso mesmo. Este filme também parte dessa ideia de transformação. Há o fim de algo, mas também o início de algo novo. Gostaria de me concentrar um pouco mais neste outro aspeto que era muito importante para nós retratar: a ideia das três gerações de mulheres a viverem, não todas na mesma casa, mas ligadas a essa casa de alguma maneira. Principalmente a Mónica (Vitória Nogueira da Silva), que está ligada à Emília (Fátima Soares), como se fosse uma tia. Em relação à Ana (Carla Maciel), visto que o marido estava frequentemente ausente devido à sua vida de imigrante, contou sempre com a sua grande amiga e fiel companheira de trabalho, Emília, para ajudar a cuidar dos filhos. Nesse sentido, voltando à ideia das três gerações, Emília representa alguém que ainda segue o regime feudal, aceitando desde muito jovem servir e cuidar de um património que não é seu. Servir os senhores. Já a Ana encara isso como uma profissão. Basta verificar que a Emília vive na casa e a Ana não, constituindo família e tendo os seus momentos, como vemos no filme.
João Miller Guerra e Filipa Reis
Quanto à Mónica, efetivamente estudou e possui um curso superior, equivalente ao dos donos da casa, e um dia desejará o mesmo para si. A vida da Ana também não se prevê que seja de forma alguma semelhante à da Emília, servindo e aceitando a subserviência. O filme também aborda o fim desse regime feudal e a transformação. O fim é sempre uma transformação. O filme também enfatiza a ideia de ciclo, o ciclo da natureza, as quatro estações, e a transformação da Ana que ocorre com a morte da Emília. Talvez a Ana tenha encontrado a si mesma ao aceitar cuidar da Emília e decidir ficar, em vez de seguir a vontade dos seus filhos e marido e emigrar.
No seu filme, como mencionou anteriormente, aborda também a questão da transformação dos corpos. A primeira sequência do filme, com Carla Maciel a cantar "Fruta Fresca", mostra o corpo dela, ainda “jovem” em comparação com o corpo que Fátima apresenta durante a sua própria decadência. No final, vemos Vitória / Mónica, a figura mais jovem numa festa de transe, e o movimento do seu corpo sincroniza-se com o das outras duas [Carla / Ana e Fátima / Emília]. Portanto, a minha dúvida é se há uma tese subjacente a essa questão dos corpos e de como ela se relaciona com a existência da pessoa? Porque sabemos que há um ponto em que a Fátima parece ter deixado de existir, embora ainda esteja o corpo no terreno.
Sim, há. Quase como uma transferência de poder. Vejo a festa de transe como uma espécie de ritual de iniciação, marcando a passagem da vida adulta de Mónica, exatamente no momento em que Emília falece ou "passa para o outro lado", por assim dizer. Para nós, os corpos eram de extrema importância, assim como os gestos de trabalho. Essa ênfase nas diferenças de idade sublinha ainda mais o ciclo da vida. Nascemos, crescemos, envelhecemos e eventualmente partimos para o outro lado. Essa narrativa foi cuidadosamente planeada desde o início do guião. Recordo-me, por exemplo, da nossa colega que colaborou na escrita do guião, a Sara Morais, mencionar a comparação que se poderia fazer entre a rugosidade das pedras e todo o granito ao redor, e essa transformação que também ocorre no nosso corpo e na nossa pele ao longo do tempo, à medida que nos transformamos, entenda-se envelhecer.
Mas certamente, falando dessa rugosidade, da questão mineral do filme, julgo que o “Légua” também reforma a sua questão animalesca. Há muitos animais, e de variadas espécies, neste filme, o que também contrasta um pouco com essa questão humana.
Sim, os animais têm um papel importante no filme, servindo como representações da transformação da natureza. Eles desempenham um papel fundamental na transmissão da ideia das estações, marcando o tempo ao longo do filme. Além disso, eles simbolizam um retorno à vida quotidiana que Ana havia perdido. No final do verão, ela, de um certo ponto de vista, recupera a liberdade e deixa de se sentir na obrigação de cuidar da filha.
Quanto ao cão branco que leva as meninas a presenciarem o ritual da coruja, a interpretação é aberta, sendo que cada pessoa poderá interpretá-la de acordo com a sua perspetiva pessoal. Na minha, é que a coruja simboliza a Emília, alguém que talvez, ao passar por essa transição ou passagem, tenha se fundido com a coruja ou já esteja presente de alguma forma no corpo da coruja. É uma interpretação interessante e aberta à interpretação pessoal de cada espectador.
Voltando àquela entrevista da SIC, foi referido que o João e a Filipa tiveram ideias diferentes sobre o projeto, e o filme foi fruto dessa diplomacia. Gostaria de perguntar, a título pessoal, se houve alguma ideia que achasse que resultaria no filme, mas que tenha sido rejeitada durante o processo de criação?
Não, creio que desde o princípio o trabalho com a realização, com a autoria, é sempre um exercício de grande entendimento. Cada um de nós contribui com as suas ideias, lançando propostas, e o outro também. Às vezes, como a Filipa mencionou nessa mesma entrevista, é necessário confiar. Acredito que sempre tivemos muita confiança um no outro. O que acho que mudou neste filme, e a Filipa também o menciona, é que pela primeira vez olhamos um para o outro e dissemos: "não vamos estar com atenção àquilo que cada um costuma estar. Se um está com mais atenção ao enquadramento e o outro aos atores, desta vez vamos tentar com que ambos atendamos ao enquadramento e igualmente trabalhando junto dos atores" E foi o que fizemos. Houve momentos em que filmamos, como nos filmes anteriores, em que isso era uma questão de atenção. Em certas ocasiões, o nosso diretor de fotografia, o nosso querido Vasco de Viana, ao não ter a certeza sobre qual caminho seguir, adotava ambas as abordagens.
Ele fazia uma versão para a Filipa e outra para mim. Por vezes, essas escolhas só seriam claras na fase de montagem. Poderia sair de uma cena, após a filmagem, convencido de que a minha opção era a correta e, mais tarde, descobrir, como já aconteceu, que a abordagem do outro era a mais adequada. Na edição, em determinados momentos, com o ritmo e a mensagem que queremos transmitir, a versão do outro revelava-se na escolha certa.
Queriam que me abordasse a vossa relação e colaboração com “não-atores” …
Prefiro o termo “atores não profissionais”.
Légua (2023)
Muito bem, o vosso trabalho com “atores não profissionais”, nomeadamente com Fátima Soares, que revelou-se numa das grandes forças de “Légua”.
Fátima Soares é uma pessoa de uma generosidade extraordinária. Sempre me pergunto como seria encontrá-la na rua daqui a alguns anos, mesmo que a sua presença seja diferente. Tenho esta ligação com o cinema, enquanto ela não tinha nenhuma; estava envolvida num grupo de teatro que era uma das atividades que realizava na Universidade Sénior do Marco de Canaves. O facto de ser abordada e convidada a encenar a sua própria morte, relativamente próxima da sua idade (ou seja, mais próxima da idade em que alguém pode vir a falecer, de acordo com a probabilidade, é claro), foi um ato de tremenda magnanimidade por parte dela.
A Carla Maciel também foi uma lição para nós, naquilo que se refere a trabalhar e gostar de trabalhar. Mesmo que inicialmente pensássemos que não seria possível para nós trabalhar com atores profissionais, percebemos que a personagem da Ana precisava da elasticidade que talvez apenas uma atriz profissional pudesse oferecer. Realizamos um casting e encontramos a Carla, ficando absolutamente maravilhados com a duplicidade que desenvolvemos com ela. Demonstrou ser uma profissional de excelência, trouxe novas ideias e esteve sempre no local certo, à hora certa. Repetiu as cenas e contribuiu significativamente para o concepção do “Légua”.
Assim, penso que tivemos muita sorte, tanto com a atriz profissional quanto com a amabilidade da Fátima. Além disso, a dinâmica entre as duas atrizes também foi algo notável. A relação entre elas foi desenvolvida pelo Luciano, um preparador de elenco vindo do Brasil. Isso foi fundamental, especialmente porque trabalhar com atores profissionais era novo para nós, ainda mais, a contracenar com atores não-profissionais. O preparador de elenco desempenhou um papel crucial na criação dessa ligação, trazendo uma grande mais-valia às suas performances.
Já que estamos na a conversar na Cinemateca, deixa-me perguntar como é que Manuel Mozos, o zeitgeist do cinema português, entrou neste projeto?
O Manuel é um amigo nosso de longa data. Ele estava envolvido na Associação Portuguesa dos Realizadores, onde a Filipa também estava, e foi lá que estreitamos a nossa relação para com ele. Em dado momento, estávamos à procura de alguém que pudesse interpretar o papel do padre Guilherme. Queríamos alguém que fosse uma mistura entre um ator profissional e um não-profissional, e estávamos a considerar quem seria a melhor escolha. Tínhamos uma ideia muito clara do que queríamos para a personagem e foi então que a Filipa teve a ideia de convidar o Manuel Mozos.
Sabíamos que o Manuel tinha experiência como ator, embora ele não se considerasse um. Aceitou o desafio, talvez mais amizade do que profissionalmente. Ficámos muito contentes. Na verdade, já estávamos em contacto com ele, pois tinha-nos dado, generosamente, uma lista de atrizes que se encaixavam no perfil que precisávamos para o papel da Ana. Quando percebemos que a atriz que a interpretaria teria que ser uma profissional, o Manuel elaborou-nos uma lista, na qual estava incluído a Carla Maciel.
Contudo, quando falámos com a Carla, percebemos que ela tinha uma experiência pessoal que foi a de cuidar da sua própria mãe, o que a tornou-a uma escolha ainda mais adequada para o papel. Essa experiência, que talvez tenha deixado uma marca no seu corpo, acabou sendo uma grande vantagem para a interpretação da personagem. Mais uma vez, fomos agraciados com muita sorte.
Légua (2023)
Quanto a novos projetos?
O meu próximo projeto é, na verdade, um antigo que estou a retomar. A rodagem foi interrompida devido às filmagens do "Légua", depois houve a fase de montagem e a estreia. Trata-se de um documentário que tenho vontade de deixar-me influenciar um pouco pela ficção. É sobre um rapper descendente de cabo-verdianos chamado Ghoya, que canta em crioulo e é uma espécie de pioneiro do rap crioulo em Portugal. Ele também passou 10 anos na prisão, e eu o conheci antes de ser encarcerado. Nos últimos anos, mantive um contacto contínuo com ele. No ano passado, obtive apoio do ICA para a fase de finalização. Portanto, agora posso continuar a filmar e concluir o projeto. Esse será o meu próximo trabalho.
Quanto à Filipa, tem um filme em mente que ainda está por escrever, e à partida, será um projeto apenas dela. Não sei se terei algum envolvimento no filme ou não. O tema é prazer feminino.
Confessou-me numa anterior entrevista que não fazia distinção entre documentário e ficção.
Sim, há umas ‘coisas’ que eu ainda não filmei e que acho que poderiam colocar o filme mais nesse lugar. Aquilo que tenho, para já, no filme do Ghoya, é mais documental.