Trio de Odemira (XX)
Naomi Watts, Laura Harring e Dvaid Lynch no Festival de Cannes, durante a premiere de "Mulholland Drive" (2001)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Naomi Watts, Laura Harring e Dvaid Lynch no Festival de Cannes, durante a premiere de "Mulholland Drive" (2001)
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Mohammad Rasoulof, O cineasta político iraniano? Hipocrisia, tendo em conta que o Irão fervilha nessa corrente de cineastas em inversão aos interesses do Estado. São vozes, maioritariamente silenciadas, que, para contornar a censura e as consequências agravosas, estabelecem pacto com a alegoria e a subtextualidade. Contudo, cada vez mais assertivos na mensagem. O Ocidente alimenta-se dessa fúria, emoldurando-os numa vaga de cinema iraniano difundido por festivais e escolas. Rasoulof lidera, sempre a pisar nos calos do sistema, essa provocação, esse ativismo urgente de punho mais do que cerrado e peito aberto às balas, conduzindo um cinema que não mata, mas, parafraseando o saudoso Raul Solnado, desmoraliza e muito a escadaria do Poder.
Talvez o crescente interesse sobre o realizador e a sua ascensão nesse estatuto de cineasta de intervenção se deva sobretudo ao anterior invicto Jafar Panahi, agora encostado ao meio rural, saboreando as suas parábolas de reinante obscuridade (“3 Faces”, “No Bears”). Porém, nessa linha, devemos salientar o nome de Ali Ahmadzadeh — cujo "Critical Zone" abocanhou o prémio principal de Locarno em 2023 —, e já apontado como um avançado na quebra de tabus estabelecidos.
Entre os filmes do momento, absorvido pela atenção ocidental, "The Seed of the Sacred Fig" insere-se na sua alegoria familiar. Laureado com o Prémio Especial do Júri em Cannes, enraíza-se no terreno fértil da indignação coletiva, solo nutrido pelos protestos desencadeados após a trágica morte de Mahsa Amini, em 2022 — jovem arrancada à vida pelas mãos da Polícia dos Costumes, numa punição que refletia o peso insuportável das normas do "hijab". Imagens amadoras e clandestinas dessa indignação intercalam a narrativa, induzindo um senso de zeitgeist que arrasta tanto espectadores como personagens para a atuação do contexto político-social.
Enquanto isso, no seio de uma família — não uma qualquer, mas a de um juiz do Tribunal Revolucionário de Teerão, recentemente promovido —, Iman (Misagh Zare) vê-se encurralado por um acontecimento “banal” e perturbador: o desaparecimento da sua arma — símbolo inequívoco do poder estatal — dentro de casa. Essa ausência, sombra corrosiva, ameaça não apenas a reputação profissional, mas também a estabilidade do lar. Na tentativa de resgatar o objeto perdido, Iman torna-se uma figura inquisidora, tensionando a relação com a esposa (Soheila Golestani) e as filhas (Mahsa Rostami e Setareh Maleki), estas últimas profundamente envolvidas no turbilhão das revoltas.
É na pele da esposa que o filme adquire intenção. Não persuadir uma verdade, mas usar o seu estatuto de cônjuge, mãe e doméstica como ponto de partida para a alegoria, equiparável à Caverna de Platão. O primeiro choque com a realidade humana dá-se na sua descrença, plena confiança nos meios comunicacionais — a televisão, aqui instrumento propagandista estatal, alterador da verdade — e na função do marido, que vindo dele apenas e somente a “verdade inquestionável”. Neste papel de estabilizadora doméstica, insurge-se contra verdades e mentiras: manter a paz dentro das quatro paredes, mas a que custo? O filme avança através desse questionamento, dessa resistência, culminando na entrega e combate à Ordem estabelecida. Iman converte-se no catalisador bruto da ordem e da tradição opressora, e a arma, o macguffin simbólico, concentra o peso de um Poder destituído e a procura da sua restituição, num conflito silencioso desembocado num último ato de completa anarquia familiar. Mulheres unidas para derrotar a essência de uma ordem patriarcal encarnada num pai que se revela tirânico.
Esse jogo de tensões, elástico prestes a romper, culmina numa extraordinária potência imagética. As imagens, meticulosamente arquitetadas, transcendem o literal, insuflando um imaginário revolucionário que ecoa muito além da tela. A arma, a poeira, a mão hirta do defunto / derrotado — assim dito para evitar revelações excessivas — constroem uma gramática visual que é, simultaneamente, um statement e um grito abafado, e igualmente libertador. Uma observação de um regime sustentado não apenas pelos pilares do patriarcado, mas pelos véus densos de um fundamentalismo que tudo encobre.
No fim de contas, um thriller sem suavizações politizadas, um megafone que brada bem alto a sua mensagem, com direção ao Mundo, aproveitando a sua globalidade enquanto ainda pode, e nessa linguagem, como digamos universal, o cinema, as imagens, a suas causas-efeitos. O Ocidente aplaude, premeia, Rasoulof arriscou o pescoço... mais uma vez, no seu gesto mais gritante desde o clandestino "Manuscript Don’t Burn" (por cá, apenas exibido no encerramento de uma edição do Doclisboa). A sua estirpe como realizador da revolução ainda está por vir, mas, por agora (e ainda), é apenas um fazedor de cinema como ato de resistência.
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Papel icónico em "Tacones lejanos" (Pedro Almodóvar, 1991)
Na rodagem de "Petra" (2018), com o realizador Jaime Rosales e a atriz Bárbara Lennie
Espelho Mágico (Manoel de Oliveira, 2005)
Cannes 2018: no lançamento de "Petra" (Jaime Rosales), ao lado de Bárbara Lennie
Entre tinieblas (Pedro Almodóvar, 1983)
Com Marcello Mastroianni em "Trois vies et une seule mort" (Raúl Ruiz, 1996)
Rainha 'almodovariana', um “empréstimo” de luxo a Manoel de Oliveira e Raúl Ruiz, nunca escondendo o amor por Portugal e pelos seus amigos portugueses (os seus regozijantes olhos após saber, num encontro em Cannes, que era português, un hermano) . Hoje despedimo-nos de Marisa Paredes, diva de uma época em que o cinema do sul europeu possuía uma certa e luminosa resistência.
Marisa Paredes (1946-2024)
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O sexo é a moeda de troca nesta América “redesenhada” por Sean Baker, é o seu mote, o seu mantra, a partir do qual florescem histórias da sua visão yankee. Realizador que, nos últimos tempos, muito devido ao seu “filme de rua” “Tangerine” (2015), captado por um iPhone, conquistou o estatuto de grande nome do cinema independente norte-americano, isto num momento em que essa cinematografia de baixo orçamento parece ceder a fórmulas sundescas, com um ou dois nomes destacados. Depois desse “Kids” transgressivo, Baker acampou às portas da Disney numa busca incessante pela inocência, distanciando-se do mercantilismo e da desfiguração trazida pelos “pecados capitais” dos EUA em “The Florida Project” (2017). Seguiu-se “Red Rocket” (2021), onde resgatou o ator Simon Rex, conhecido pelas suas comédias disparatadas, impondo-lhe o papel de uma decadente estrela pornográfica, protagonizando uma série de peripécias tragicómicas sem qualquer réstia de redenção.
Aliás a comédia é uma droga que corre nas veias da cinematografia de Baker, de doses comedidas sem nunca induzir overdose, e é com esse humor presente que “Anora” se instala, manejando espaço para os seus lugares-confortáveis, a do sexo, aqui representado, industrialmente, pela nossa Anora - Ani como ela prefere ser chamada (Mikey Madison) - dançarina exótica que aceita serviços de protituição para o filho de um oligarca russo com uma quantas propostas indecentes e aliciantes pelo caminho. Neste primeiro ato de delírio e ostentação, o filme abraça uma espiral de excesso, como um sonho repetitivo e musicado, que se assemelha aos infinitos anúncios de excentricidades. No entanto, quando esse sonho se dissipa, um “banho de realidade” espreita para tomar a nossa protagonista, sem nunca a banhar por completo devido à sua entranhada fantasia / alucinação. É nesse momento que Baker encontra um ritmo perfeito: o filme aguarda, esclarece, e o humor aí sugerido revela-se numa especiaria de aprumo paliativo, cada momento que Ani experiencia é trágico, dramático para não dizer mais, mas o cómico da situação extrai desses enredos o seu quê de ridículo, até mesmo sexo é olhado de vesga como um embaraço.
“Anora” estabelece uma espécie de malapata improvisada, Coney Island e arredores a servirem de trilhos carroleanos de requinte, um “After Hours” brejeiro, deliciosamente brejeiro, onde um secundário, a passos da relevância, Yura Borisov (“Compartment Nº 6”), estabelece um vínculo humano para com o espectador — algo que, por vezes, parece faltar a Ani. Mas vamos com calma… Sean Baker arrisca-se em território que lhe é confortável, e esses riscos trazem os seus frutos. A duração do filme contribui para a maturação das personagens e das suas demandas rocambolescas, bem como para a evolução do enredo e do tom, depois, é a comédia sem nunca encostar-se totalmente à sátira, e nisso bofeteia a tendência de caricaturas-supra dos super-ricos ou dos machos tóxicos que muitas produções populares, como a série “White Lotus” ou o recente fenómeno de género “The Substance”. Aqui a crítica é sóbria e mascada e discursada em poucos minutos, sem sobreliteralidades, sem imediatismos, de lições devidamente retiradas à Nova Hollywood que espelha como exemplo formal.
No final, a nossa Ani revela-se humana, sem que isso desculpe as suas “anomalias” sociais, partilhadas por tantos de nós, e nesse ato, quase como um canto do cisne, o sexo, novamente palavra de ordem, aponta ao seu holofote, desta vez sob uma cor fria, em que a carne anseia por um afeto qualquer, uma empatia, um abraço de conforto. Somos humanos, dançamos, e para Sean Baker, fornicamos igualmente como ato lúdico, cada vez mais afastada da interação pessoal. “Anora” é isso, um abraço quente em tempos frios.
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Os Monty Python em Cannes, 1983
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A odisseia de um homem que escapa pela rota do Oriente da mulher considerada "a mais teimosa do Mundo" configura um casamento que, movido por uma determinação inabalável, sugere ao semi-protagonista, Edward (interpretado por Gonçalo Waddington), uma sensação de aprisionamento. Esta premissa, aparentemente absurda, dilui-se rapidamente numa alegoria cinematográfica, pois a ideia, independentemente de qual seja, é transcendida, temida e, de certa forma, recusada como passível de negociação. O que seria das aventuras humanas se estas fossem, de alguma maneira, domesticadas?
Não se deve interpretar "Grand Tour" como um mero pesadelo matrimonial, mas antes como uma reflexão sobre os múltiplos simbolismos que o casamento, ou a mera possibilidade deste, acarreta. Esta instituição é aqui retratada como um "macguffin" inquieto, encarnado por Crista Alfaiate, que traz consigo o mais “irritante” dos tiques. Tal alusão ao conformismo ameaça as fantasias humanas, matéria com a qual o cinema frequentemente dialoga, e essas mesmas, apresentadas como relatos de terras distantes e exóticas, são aquilo que nutre o cinema de Miguel Gomes. Há nelas uma violência latente, uma vontade de as capturar, moldar e expor como troféus.
Miguel Gomes navega nesta densa selva semiótica com plena consciência do seu papel enquanto realizador, mas não para revisitar histórias de colonizações ou evocar memórias do colonizador. Antes disso, é a imagética dos caminhos das especiarias, do exotismo que escapa ao nosso quotidiano, que se torna o verdadeiro estandarte da sua cinematografia. Para Gomes, o cinema permanece como uma janela aberta para o mundo — seja geográfica, intelectual, social, alegórica ou politicamente. É neste território que o realizador se move, onde a busca onírica pelo exotismo inalcançável se entrelaça com o sonho e a pretensão, elementos indissociáveis da linguagem cinematográfica. De certa forma, esta exploração da fantasia humana desde os seus primórdios sapientes confunde-se com a própria essência do cinema, inscrito num mesmo processo evolutivo. Já havia dito que paralelismos causavam-lhe vertigens, tonturas desgarradas nas apresentações da trilogia “As Mil e uma Noites” (2015), contudo, é essa subjugação ao seu mal-estar que Gomes se expõe em tela.
Um dos momentos de maior destaque em “Grand Tour” ocorre quando Edward, em plena fuga de comboio em direção a Saigão, é envolvido pelos sons imersivos e indecifráveis da floresta. De súbito, uma "ereção violenta" o detém, algo que não vemos, mas que nos é comunicado por um narrador omnisciente e omnipresente. A cena, contudo, apenas nos mostra a perspetiva traseira da carruagem, com os carris que se prolongam infinitamente e um horizonte que se desvanece, preenchido por lugares inexplorados. O narrador informa-nos que Edward adormece, e, assim, o sonho começa por breves instantes. Curiosamente, “Grand Tour”, embora distante da estética murnauiana de “Tabu” (2012), evoca um certo encantamento dos maneirismos do cinema mudo (sente-se mais Dreyer aqui). Existe um "primitivismo" deliberado, uma invocação de uma época em que o cinema surpreendia não apenas pelas suas possibilidades técnicas, mas pelo seu poder de "faz de conta" e lirismo. Todavia, o sonho aqui é a cores, realista e contemporâneo, acima de tudo documental — o expoente máximo do cinema moderno. Uma bela alegoria: o cinema a preto e branco que sonha em cores, o cinema do passado que sonha com o futuro, o cinema fabulista que sonha com o real.
É possível que Miguel Gomes, com o seu passado de crítico de cinema, esteja constantemente a falar sobre a própria arte nos seus filmes. Mais do que utilizar narrativas lineares ou transmitir mensagens explícitas, “Grand Tour”, a sua quinta longa-metragem a solo (se considerarmos “As Mil e uma Noites” como uma única obra), funciona como um espelho do Cinema e do seu Cinema, não apenas o referenciado, mas também o que pratica. Nesta "demanda", o espectador é convidado a ver as costuras do filme, identificando nelas os "tiques e manias" que marcam as suas obras anteriores: o cruzamento de tempos, memórias e naturezas, todos condensados num único espaço, tal como a narrativa, que se divide em dois atos, alternando conforme a perspetiva do seu eventual protagonista. Havia feito, salientemente, com “A Cara que Mereces” (2004) e com “Tabu”. Esse salto ao eixo. Se Edward prossegue a sua jornada pela Ásia Oriental como uma comédia de acasos, fisicamente débil, já Molly (Alfaiate) encarna uma tragicomédia de uma determinação implacável até à exaustão. E é através de Molly — novamente com uma interpretação exuberante de Alfaiate — que sentimos o fado desta arte, do Cinema propriamente dito e sem hesitações, na ilusão do seu happy ending idealizado, e nunca materializado, esperado o trágico com que a existência da determinação se afunda nas sua próprias projeções.
“Grand Tour” é Miguel Gomes sendo Miguel Gomes, sendo a Molly, corajosa e irrefutável, que persegue o seu Edward, por mais avisos que lhe dirigem. A isso, chamamos de autor …
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Em conferência de imprensa em Cannes deste ano [2024], Karim Aïnouz ligava a imagem do motel, brasileiramente falando, com a de um país hipócrita, cujos desejos, muito deles reprimidos só poderiam ser concretizado no refúgio destes lugares, com pouco contacto com o exterior, e sob o sigilo monetário. Será isto a sua representação de Brasil? Uma sociedade vivida com intensidade no oculto?
Quanto a “Motel Destino”, o filme que o motivou a essa relação, é previsivelmente o encarar dessa metáfora, até porque o estabelecimento do qual título partilha com o filme, revela-se num abrigo “mágico” de Heraldo (o estreante Iago Xavier), que após um noite a tresandar sexo ocasional, acorda, algumas horas depois, roubado pela sua companheira de passagem. Incapacitado de pagar a estadia, pede auxilio a Dayana (Nataly Rocha), funcionário do local (e devido a sua relação com o proprietário, meia-dona daquilo tudo), e prossegue em modo relâmpago para a tarefa pedente, mas atrapalhada pelo lapso temporal.
Heraldo, juntamente com o seu irmão, Jorge, tinham como plano assassinar um francês residido naquela cidadela cearense, como forma saldar a dívida para com a máfia local. Chegou tarde demais, e como era “esperado”, o francês continuava vivo e o seu irmão morto. A cabeça do nosso protagonista está agora a prémio, tendo como única solução regressar ao motel e pedir asilo. Durante dias, na sombra dos corredores que dão acessos às alas privadas, autênticas montras lascivas, sob olhar atento do gerente, e também esposo tóxico de Dayana, Elias (Fábio Assunção, ex-galã de novela, aqui cedido à decadência que lhe aufere um lúdico antagonista), Heraldo torna-se num “faz-tudo”, até cometer um (outro) erro na sua vida: envolver-se com Dayana.
Com uma direção fotográfica assinada pela sua colaboradora habitual, a francesa Hélène Louvart (“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” e “Firebrand”), “Motel Destino” proclama um certo onirismo suado enquanto retrata aquele cerco agora criado para conter Heraldo e a sua tentação. Um interior que se vai confortando até ser, isso mesmo, o exterior como perigo iminente. Toda a vez que o nosso protagonista sai do seu recinto, tememos pela sua vida, da mesma forma que de fora para dentro, de clientes sarados a “fantasmas do Natal passado”, até aos acidentes animalescos (a cobra como carga simbólica bíblica evidente - “problemas no paraíso!”), tudo chega-lhe sob um toque de aviso ou sinal xamânico.
Aïnouz regressa aos guetos de mística e sexualidade ali reencontrados na encruzilhada do ilícito (“Madame Satã” como a sua maior auto-referência), ou dos desencontros, essa nova estância perdurante na sua filmografia, e cujo apogeu repousou na sua adaptação de Martha Batalha (“A Vida Invisível”, como esquecer?). Aqui, o desencontro não é uma traição do destino, mas antes uma sorte em que o espectador deseja prevalecer. “Motel Destino”, por outro lado, ostentando uma pobreza disfarçada, como pechisbeque se tratasse, com neons e cores obtusas cobrindo as suas limitações técnicas (mais um ponto para Louvart!), mas que nunca atingem a gravidade dramática ansiada por Karim Aïnouz.
A culpa? Esta recai sobretudo na fragilidade do protagonista - Iago Xavier - isento de ferramentas performativas para abraçar a sua tragicidade. Há pelo menos dois momentos que a sua emotividade de jardim-escola retrai as ênfases e a dramaturgia que as cenas em questão suplica; uma delas na intenção confessionária do seu passado, algo trágico, não só à personagem de Rocha como também, indiretamente, ao espectador, sendo que a outra, lá mais perto do final, como o Auto da Barco do Inferno numa declaração de resiliente (“Nasci com um alvo no peito”) proclamado com frouxidão. A sua sorte, porém, como a de Aïnouz, é Rocha e ainda mais Assunção (com aquelas vibes à “pornochachada”) a assumirem-se reforços.
Cai o pano, ou melhor, o cavalo (ao ver o filme entenderão!) e o que fica é um exercício de crítica social que vai em corrente oposta ao muito, e dito, “cinema brasileiro político”, este fraquejado pela sua sobre-literalidade. “Motel Destino”, como faz Kleber Mendonça Filho desde … sempre talvez … utiliza a sua geografia como holofote alegórico. É o motel como espelho do Brasil, esse país que Karim Aïnouz proclama encontrar. Um país a viver loucamente nas suas sombras, só que o tal "sombreado" ostenta tons carnavalesco. Bem haja …
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"Grand Tour", de Miguel Gomes: desde 2006 que não tinhamos um filme português na Competição do Festival de Cannes!
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Aki Kaurismäki reflete, como sempre refletiu, sobre a nossa atualidade, sem com isto reduzir-se a um produto do seu tempo, aliás, este mantêm-se “congelado” na sua estética reconfortante e nos “bonecos” kaurismakianos. “Fallen Leaves” é um prolongamento da sua chamada “trilogia do operário” (“Shadow in Paradise”, “Ariel” e “The Match Factory”), inserindo-se num universo que nos chega por via de um abraço em estes nefastos períodos de pós-verdade e de apatia extrema. Não se pode referir aqui um filme transgressor, ou a marcante manobra de viragem no gesto contínuo do autor finalndês, mas é nessa estabilidade que deparamos uma essência demarcada a uma fuga, de uma alternativa sugerida por via de um optimismo contagiante, sem com isto revelar-se barato e deveras sentimental. Aliás, os tais “bonecos” referidos não nos motiva a isso, e por outro lado nos súplica à nossa empatia.
Comecemos, como sempre começamos, um “when a boys meet a girl”, ele (Jussi Vatanen), operário, esse sim, transgressor das regras impostas; fuma ou não se deve, bebe quando o seu corpo pede, e deixa-se consumir por uma melancolia autodestrutiva [“histeria ártica”, mas já lá vamos]. Enquanto, ela (Alma Pöysti), ‘menina’ de bom coração, cujas intenções, por mais douradas sejam, são incompatíveis para com o seu mundo em questão, e como anterior operadora de supermercado, é despedida através de um ato de beneficência. Quando, ao invés de lançar como ordenado comida com prazos expirados mas de consumo ainda viável, carenciou alguém com dificuldades que por perto pedia auxílio. A sua empatia levou ao seu despedimento, não se pode desafiar as “leis sagradas” do capitalismo feroz. Em casa, procura comoção através da rádio, esta surge “contaminada” com relatos de guerra, seja Ucrânia ou conflito sírio, mortes e desumanidade é o que se ouve. Não são doces as palavras saídas do transmissor, muda-se de estação, eis que surge uma “canção de amor” para reconfortar “corações”.
Coincidentemente, é na música que o destino uniu estes dois indivíduos, num karaoke para sermos precisos, noite de olhares e mais tarde, convites tímidos, uma ida ao café e a sugestão de cinema. O sorriso acresce no seu rosto após ouvir esta proposta, contrariando a sua expressão seguinte, a de mera indiferença ao filme projetado na grande tela. Nós cinéfilos reconhecemos - “The Dead Don’t Die” (2019) de Jim Jarmusch - uma sátira sobre zombies e que mesmo assim continuam lá, os zombies, tripas e sangue, na tela, ou na plateia, como na realidade que os suporta. À saída, ela confessa que nunca se rira tanto na vida, nós não o vimos, mas não interessa, o riso dela é especial, algo privado, não somos dignos de o presenciar. Se preferirmos, ao lado temos dois cinéfilos “saidinhos da casca”, fazem comparações entre Bresson e Godard, o trajeto é comprido, fazem um outro filme nas suas cabeças eruditas, é outra sátira, até porque Kaurismäki não é idiota nenhum, é atento à espuma dos dias e à saliva das tendências cinéfilas. Aqui, o cinema, o carinho e o local de (re)encontro, o que mais podemos desejar de um filme rodeado de violência? Pois, a violência, que apesar de invisível, é escutada (melhor relatada), há uma aura que paira no ar, e que desgosta tudo e todos, e que mesmo assim banaliza-se, vira mundano, uma parte da fatalidade com que as nossas vidas se reduziram.
“Fallen Leaves” aponta para o abandono da depressão e soluciona-se com suplementos a essa realidade: ele ‘despacha’ o livro de Marko Tapio, “Arktinen Hysteria” [“Histeria Ártica”, eis o prometido, sobre um estado mental melancólico, comumente atribuído a esquimós, mas expandidos a habitantes do Norte], oferece ao amigo com as promessas de que este seja convertido numa história de embalar para crianças, ou da leitura de Superman, primeira edição atenção, como distração aos conflitos bélicos em países não tão distantes (“Waiting for Superman”, ou neste caso, requere-se).
Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.
Portanto, saímos nós da sala, deixemos estes "bonecos" serem devidamente felizes, "agarrando-se" às suas imperfeições, às suas lógicas, às suas devoções. Felizes sós, felizes juntos.
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