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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Amor em tempos de melancolia

Hugo Gomes, 12.01.24

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Aki Kaurismäki reflete, como sempre refletiu, sobre a nossa atualidade, sem com isto reduzir-se a um produto do seu tempo, aliás, este mantêm-se “congelado” na sua estética reconfortante e nos “bonecos” kaurismakianos. “Fallen Leaves” é um prolongamento da sua chamada “trilogia do operário” (“Shadow in Paradise”, “Ariel” e “The Match Factory”), inserindo-se num universo que nos chega por via de um abraço em estes nefastos períodos de pós-verdade e de apatia extrema. Não se pode referir aqui um filme transgressor, ou a marcante manobra de viragem no gesto contínuo do autor finalndês, mas é nessa estabilidade que deparamos uma essência demarcada a uma fuga, de uma alternativa sugerida por via de um optimismo contagiante, sem com isto revelar-se barato e deveras sentimental. Aliás, os tais “bonecos” referidos não nos motiva a isso, e por outro lado nos súplica à nossa empatia.

Comecemos, como sempre começamos, um “when a boys meet a girl”, ele (Jussi Vatanen), operário, esse sim, transgressor das regras impostas; fuma ou não se deve, bebe quando o seu corpo pede, e deixa-se consumir por uma melancolia autodestrutiva [“histeria ártica”, mas já lá vamos]. Enquanto, ela (Alma Pöysti), ‘menina’ de bom coração, cujas intenções, por mais douradas sejam, são incompatíveis para com o seu mundo em questão, e como anterior operadora de supermercado, é despedida através de um ato de beneficência. Quando, ao invés de lançar como ordenado comida com prazos expirados mas de consumo ainda viável, carenciou alguém com dificuldades que por perto pedia auxílio. A sua empatia levou ao seu despedimento, não se pode desafiar as “leis sagradas” do capitalismo feroz. Em casa, procura comoção através da rádio, esta surge “contaminada” com relatos de guerra, seja Ucrânia ou conflito sírio, mortes e desumanidade é o que se ouve. Não são doces as palavras saídas do transmissor, muda-se de estação, eis que surge uma “canção de amor” para reconfortar “corações”.

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Coincidentemente, é na música que o destino uniu estes dois indivíduos, num karaoke para sermos precisos, noite de olhares e mais tarde, convites tímidos, uma ida ao café e a sugestão de cinema. O sorriso acresce no seu rosto após ouvir esta proposta, contrariando a sua expressão seguinte, a de mera indiferença ao filme projetado na grande tela. Nós cinéfilos reconhecemos - “The Dead Don’t Die” (2019) de Jim Jarmusch - uma sátira sobre zombies e que mesmo assim continuam lá, os zombies, tripas e sangue, na tela, ou na plateia, como na realidade que os suporta. À saída, ela confessa que nunca se rira tanto na vida, nós não o vimos, mas não interessa, o riso dela é especial, algo privado, não somos dignos de o presenciar. Se preferirmos, ao lado temos dois cinéfilos “saidinhos da casca”, fazem comparações entre Bresson e Godard, o trajeto é comprido, fazem um outro filme nas suas cabeças eruditas, é outra sátira, até porque Kaurismäki não é idiota nenhum, é atento à espuma dos dias e à saliva das tendências cinéfilas. Aqui, o cinema, o carinho e o local de (re)encontro, o que mais podemos desejar de um filme rodeado de violência? Pois, a violência, que apesar de invisível, é escutada (melhor relatada), há uma aura que paira no ar, e que desgosta tudo e todos, e que mesmo assim banaliza-se, vira mundano, uma parte da fatalidade com que as nossas vidas se reduziram.

“Fallen Leaves” aponta para o abandono da depressão e soluciona-se com suplementos a essa realidade: ele ‘despacha’ o livro de Marko Tapio, “Arktinen Hysteria” [“Histeria Ártica”, eis o prometido, sobre um estado mental melancólico, comumente atribuído a esquimós, mas expandidos a habitantes do Norte], oferece ao amigo com as promessas de que este seja convertido numa história de embalar para crianças, ou da leitura de Superman, primeira edição atenção, como distração aos conflitos bélicos em países não tão distantes (“Waiting for Superman”, ou neste caso, requere-se).

Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.

Portanto, saímos nós da sala, deixemos estes "bonecos" serem devidamente felizes, "agarrando-se" às suas imperfeições, às suas lógicas, às suas devoções. Felizes sós, felizes juntos.

Com Nuri Bilge Ceylan, vi o Além por um travelling ...

Hugo Gomes, 27.12.23

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Da Anatólia, na cadência de “Era uma vez” [2011], o turco Nuri Bilge Ceylan reinventou-se e fez a partir daí um cinema enquanto seu universo. Não repetiu mais atores e tornou a sua obra de longa duração, de passo lento e cuidado, onde a temática central é diversas vezes descurada e deixada à margem para que as personagens possam dialogar, debater, vivenciar, seja de que forma for. Há um ritual de passagem; as personagens agem como se a sua existência não se resumisse àquele filme, àquele episódio, ao invés disso, elas iniciam do nada e terminam para o nada, o incógnito que irá trazer novas aventuras, longe do olho do espectador porque o narrador (Ceylan) decreta o fim da sua narração. Em “About Dry Grasses”, somos (novamente) levados à região da Anatólia para “perder-nos” por entre duas estações, e apenas duas, como salienta o protagonista, um professor de arte designado a uma escola rural (Deniz Celiloğlu), donde surgem boatos sobre uma alegada “aproximação indevida” para com algumas alunas.

Porém, não é só as personagens e os seus conflitos morais (os personagens são sempre ambíguos e nunca exemplos máximos da moralidade) que nos surgem de passagem, o vento, esse elemento tão característico neste cinema ceyleano, que manifesta delicadamente nos cabelos longos das mulheres, interesses românticos dos tais “indivíduos passageiros” - como aquele testemunhado num acidental encontro, da mesma forma que, cinco anos antes, o arrogante aspirante a escritor (Dogu Demirkol) deslumbrava com a face acariciada por estas forças naturas debaixo da pereira selvagem - retorna à sua execução. Porquê que refiro o simples vento? Porque é nele que encontramos a “mão do realizador”, a sua presença afigurada e transformada, e porque é na sua vinda que o realismo bruto e sujo adquire os seus contornos sobrenaturais: o realizador enquanto um deus, onipresente e interveniente. 

O que “About Dry Grasses” distingue dos demais exercícios de tempo de Ceylan é que pouco tempo depois deste “vento-presença”, algo acontece e desafia-nos a "descodificar" o universo do realizador, a Anatólia não como um cenário mas como um território imaginado e pré-fabricado ao ritmo de um "travelling". É uma fuga a essa coerência, a esse simulacro de realidade, um “vai-e-vém” corrompido à nossa credibilidade, antes de enchermos o nosso peito de ar e submetermos a teorias de “meta-linguagem”, ou simplesmente “meta” como corretamente se refere, de forma abreviada e rapidamente indolor. Regressamos ao filme como se a tal quebra fosse um intervalo na lógica, mas mais que isso, a prova de existência desse «deus-realizador», mesmo que invisível, abençoa com convicção, para que tudo siga naturalmente. 

Cinema ao natural, cinema transcendental, Nuri Ceylan Ceylan renova a capacidade dos seus demais quadros, revelando, porém, ânsia em transgredir o seu já acostumado território.

Fechar os olhos para abri-los sob um novo olhar

Hugo Gomes, 07.12.23

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Mesmo que Nanni Moretti e a sua trupe circense, aparentemente exuberantes, desfilem pouco antes da entrada dos créditos finais no seu "Il sol dell'avvenire", toda aquela "festividade" é-nos dada como um disfarce de uma certa derrota, a de um homem vencido e enraizado no passado, pronto a ceder para se dirigir, possivelmente enquanto subsistência, ao Amanhã. Mais do que claramente o choro do "Cinema Morreu", como os mais "progressistas" destas esquinas reduziram a obra em prol de um artifício ultra-produtivo e despejado nas plataformas de streaming (um alvo que Moretti não deixou ir sem lesões), é um adeus ao seu Cinema para que possa usufruir a vida tal como ela é; por outras palavras, o conforto na resignação. A invocação de Moretti do seu falso-estado de graça entra em confronto com o muy antecipado regresso do cineasta espanhol Victor Erice, naquela que é a sua primeira longa-metragem em 30 anos de distância com o formato. 

Pelo meio, contou-se a curta "Vidros Partidos" - integrada no quarteto fantástico angariado para o antológico "Centro Histórico" (ao lado de Manoel de Oliveira, Aki Kaurismaki e Pedro Costa) -, onde se verificava um olhar ao passado num jeito memorialista e quiçá, igualmente derrotista perante as ruínas de Ontem. Há nele uma sequência final, a de um acordeão tocado por um intérprete de costas para a câmara e de frente para um painel fotográfico, um recordações de outros tempos, onde vemos "atores", diríamos antes operários, fantasmagoricamente presentes naquela não-fábrica que serve de abrigo à fílmica de Erice. A partir daí, a câmara desliza pela fotografia, tentando enquadrar todas aquelas faces, agora desvanecidas, apenas “eternizadas” pelo arquivo. É um reencontro, um dos elementos pelo qual o realizador faz uso do cinema, e desta melancolia chegamos a "Cerrar los Ojos", novamente focando nessa hipótese de regressar a um tempo, a uma pessoa e a um local. O Cinema enquanto “Perdidos & Achados”.

A história envolve um realizador, ou o foi, Miguel Garay (Manolo Solo), que abandonou o ofício à sua segunda metragem, incompleta e desviada dos olhares do público, tudo porque o seu amigo e protagonista, Julio Arenas (Jose Coronado), desaparecera, misteriosamente, certo dia. Muitas teorias orbitam a sua ausência: suicídio, homicídio, acidente ou simplesmente um desaparecimento, cujo mistério revela-se alvo de atenção para um programa televisivo de investigação, como um mito criptozoológico. "Cerrar los Ojos" arranca com esse falso-filme (o seu início como ilusão ao espectador desatento, ou simplesmente, ao espectador que deseja encantar-se, ingenuamente, ceder ao engano, ao belo engano) em que um auto-cognominado "Rei Triste" solicita os serviços de um detetive privado, um pedido como amenização de um desejo, o de ser olhado com um outro olhar. O tal olhar de reencontro.

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Víctor Erice procura com "Cerrar los Ojos" esse novo deslumbre pelo cinema, pelas velhas ‘coisas’, pelos amores perdidos. O faz, contrariando Moretti, contrariando a sua cedência, puxando lustre ao classicismo bem seu. Em uma das sequências, Miguel visita a filha, agora adulta (Ana Torrent, a 'menininha' de "El espíritu de la colmena" / "The Spirit of the Beehive", o filme-estandarte de Victor Erice), de Arenas, guia do Museu do Prado [Madrid]. Naquele reencontro (mais uma vez), a sua profissão é abordada por via de uma confissão, do tédio acumulado ao longo de anos em "falar do mesmo" sobre “aquela determinada” pintura, banalizando o belo e vulgarizando a obra-de-arte, desprovendo-a de mistério. Claramente, surge a necessidade de um novo olhar, o "outro" inserido no pedido do "Rei Triste". Não é um olhar de ruptura ou o desvio do mesmo, é a renovação do olhar nesses tais elementos de sempre. Enquanto Moretti decide adaptar a sua perspectiva, Erice opta pela re-exaltação para com os mesmos. Não o devemos julgar, e sim, aplaudir.

Portanto, o "Cinema Morreu" não abunda nestas esferas, neste noir degenerado e igualmente classificado, ao invés disso é a Esperança, encontrada, salientada e revalidada. O milagre, conforme o céptico declara inexistentes desde a "morte de Dreyer", é a pretensão do cineasta requer, o de voltar a acreditar no Cinema, no seu Poder (se é que existe, e deste lado, crente yo soy), no seu espírito, na sua conexão. Portanto, a epifania faz-se através do confronto com realidades, como o shakespeareano “Hamlet”, em que a peça dentro da peça incentiva a culpa do velhaco Cláudio, cuja encenação manifesta-se como um espelho de consciências, porém, aqui na "peça" ericieana, espera-se, despertar. Um despertar com contrariedade, porque é no encerrar os olhos que o Cinema vive. É no fechá-los que voltamos a Acreditar. Victor Erice acredita, acreditou e acreditará, a sua persuasão leva-nos a acreditar também.

Fim da Humanidade, o "sonho húmido" secreto da Civilização

Hugo Gomes, 02.11.23

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"Sonhamos” com a destruição da civilização desde o seu nascimento. Faz parte do nosso ADN. A submersão de Atlântida, a queda do Império Romano, as sete pragas do Egipto, ou, como é recentemente projetado, o Apocalipse (essa ideia nunca caduca), são sintomas de um desejo autodestrutivo que encontra a sua romantização nas diferentes plataformas artísticas, nomeadamente no Cinema. Com “Le Règne Animal”, somos levados a outro medo, talvez correlativo ao fim da Humanidade como a conhecemos; referimo-nos à perda das nossas características enquanto seres “civilizados”, ao retrocesso às nossas ancestralidades, ou seja, ao primitivismo, ao animalesco. 

Essa ideia foi recentemente transmitida em grande escala no “War of the Planet of the Apes”, a terceira parte das prequelas rebeldes do clássico de Franklin J. Schaffner, em que uma misteriosa doença atinge os sobreviventes humanos do conflito com os símios sapientes, reduzindo-os a “selvagens”, explorando a hipótese de uma animalidade como erradicação do antropocentrismo. No entanto, entendemos que, mesmo ao romantizar/fabular esse desfecho, podemos extrair dele um reflexo da nossa contemporaneidade. 

Voltando ao “Le Règne Animal”, Thomas Cailley, que já havia conduzido a Humanidade (num contexto íntimo) ao seu próprio survivalismo com a primeira longa - “Les Combattants” (filme que revelou a atriz "desaparecida em combate" Adèle Haenel) - disfarça-se numa variação cine-apocalíptica, substituindo os subutilizados zombies e outros mortos-vivos numa epidemia que gradativamente converte humanos em bestas híbridas. A narrativa segue a ótica de uma relação entre pai e filho, sendo este último inadvertidamente portador da misteriosa patologia. Digamos que poderíamos antever o pior em “Le Règne Animal” se a sua produção fosse fruto dos estúdios americanos, previsivelmente preenchida com CGI à vontade ou embrenhada nos seus clichés para as grandes massas. 

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Ora, sendo uma produção francesa (leia-se europeia) e tecnicamente bem alicerçada, este cenário algo distópico relega-se para segundo plano, nunca ocultado, até porque a panóplia de criações antrozoológicas evoca ‘fantasmas’ da sua contemporaneidade [Covid, refugiados, populismo]. O resto é um drama familiar com algumas veias shyamalianas, nada formidável, nem vergonhosamente rejeitado. Porém, “Le Règne Animal” vale pela sua sugestão, pelas possibilidades, nunca cumpridas, de como pôr termo à nossa Humanidade de maneira orgânica. Uma contemplação sobre o retorno às reminiscências naturais que, ironicamente, sempre repudiamos no âmbito do nosso progresso, tudo isso no velcro de um “monster movie

João Miller Guerra sobre "Légua": "desde o princípio o trabalho com a realização, com a autoria, é sempre um exercício de grande entendimento"

Hugo Gomes, 26.06.23

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Légua (2023)

Conta-se que é uma história de três gerações de mulheres, representadas no soneto de uma morte anunciada. No entanto, em "Légua," encontramos também uma instalação performativa onde corpos dançam ao compasso dos dissabores do tempo que lhes resta. Aqui, Ana (Carla Maciel), uma mulher dividida entre a oportunidade e a gratidão, converte-se numa mártir e igualmente num testemunho à decadência da sua congénere, Emília (Fátima Soares), vencida pela previsível decadência e a sua gradual não-existência.

Filmado em Légua, uma aldeia situada no concelho de Marco de Canaveses, esta nova longa-metragem da dupla João Miller Guerra e Filipa Reis, estreada na Quinzena dos Realizadores em Cannes, é uma amálgama de experiências pessoais e desejos de transgredir o real e a ficção, unindo atores profissionais e não profissionais, corpos jovens e envelhecidos, humanidades e animalidades, ruralidade e a sua iminente extinção.

Conversei, mais uma vez (diga-se), com o realizador João Miller Guerra, antecipando a estreia comercial no nosso país da sua obra conjunta, no abrigo da Cinemateca, num quente dia de junho, explorando vivências, gerações e escolhas.

Primeiramente, gostaria de fazer um ponto de situação desde a nossa última conversa, que ocorreu no âmbito de "Djon África". Referiu-se a mim nessa conversa, mencionando que a morte do seu pai teve um grande impacto em si. Pude constatar, numa entrevista concedida à SIC Notícias, que este filme de certa forma se tornou uma experiência pessoal para si. Isso também tornou mais difícil separar a sua pessoa daquela ficção.

Sim, ou seja, as coisas estão interligadas, não é verdade? O facto de "Djon África" ser sobre um descendente cabo-verdiano em busca do pai, e como conversamos na altura, eu ter perdido o meu pai, e de repente olhar para o Miguel Moreira, com quem já tinha feito três documentários e que considero um amigo, e perceber que ele não conhecia o seu, foi o ponto de partida para a aventura com "Djon África". Aqui, foi igualmente pessoal, e efetivamente está relacionado com a morte do meu pai. Acredito que todas essas experiências são maneiras de lidar ou manter um contacto com a memória do meu pai, que obviamente era muito querido para mim, mas também era uma pessoa muito especial para a Filipa, na nossa relação que tem continuado ao longo destes anos.

Havia também este lugar, fruto dessa relação, para onde eu ia desde pequeno, praticamente desde que nasci, uma casa de família, essa, onde decorre o filme "Légua". Portanto, a Filipa também tinha uma ligação forte com este lugar, sobretudo durante as férias, e em determinado momento, ambos discutimos a possibilidade de passar mais tempo ali e de criar algo que nos permitisse permanecer lá por mais tempo.

Poucos meses depois, não consigo precisar exatamente quanto tempo passou, talvez tenha sido um ano, a senhora que cuidava da casa, desde os tempos da minha bisavó, adoeceu. Quem a acolheu foi outra senhora que também ajudava nas tarefas da casa. Esse gesto foi o ponto de partida para o filme "Légua", ou seja, esse olhar um bocado implicado, sentindo-me também como dono e responsável daquele lugar e vivendo esse momento com impotência. Portanto, esse gesto de grande amizade por parte da senhora mais nova, ao acolher a senhora mais velha, um bonito gesto deve-se dizer, foi crucial para a génese da nossa história. Depois, tal como aconteceu com o Miguel em "Djon África", o filme é uma ficção.

Antes de avançar para "Légua", permita-me fazer outra ligação com a nossa última conversa. Quando lhe perguntei sobre novos projetos, mencionou um filme que seria rodado no norte de Portugal, abordando o fim da ruralidade, ou melhor, a resiliência face ao declínio da vida rural. No filme que estamos a discutir, principalmente através da personagem mais jovem que se muda para o Porto juntamente com outros que emigram, vemos a reflexão sobre esse tema da ruralidade. Em suma, de certa forma, essa projeção transformou e levou-nos ao “Légua”?

Sim, é isso mesmo. Este filme também parte dessa ideia de transformação. Há o fim de algo, mas também o início de algo novo. Gostaria de me concentrar um pouco mais neste outro aspeto que era muito importante para nós retratar: a ideia das três gerações de mulheres a viverem, não todas na mesma casa, mas ligadas a essa casa de alguma maneira. Principalmente a Mónica (Vitória Nogueira da Silva), que está ligada à Emília (Fátima Soares), como se fosse uma tia. Em relação à Ana (Carla Maciel), visto que o marido estava frequentemente ausente devido à sua vida de imigrante, contou sempre com a sua grande amiga e fiel companheira de trabalho, Emília, para ajudar a cuidar dos filhos. Nesse sentido, voltando à ideia das três gerações, Emília representa alguém que ainda segue o regime feudal, aceitando desde muito jovem servir e cuidar de um património que não é seu. Servir os senhores. Já a Ana encara isso como uma profissão. Basta verificar que a Emília vive na casa e a Ana não, constituindo família e tendo os seus momentos, como vemos no filme.

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João Miller Guerra e Filipa Reis

Quanto à Mónica, efetivamente estudou e possui um curso superior, equivalente ao dos donos da casa, e um dia desejará o mesmo para si. A vida da Ana também não se prevê que seja de forma alguma semelhante à da Emília, servindo e aceitando a subserviência. O filme também aborda o fim desse regime feudal e a transformação. O fim é sempre uma transformação. O filme também enfatiza a ideia de ciclo, o ciclo da natureza, as quatro estações, e a transformação da Ana que ocorre com a morte da Emília. Talvez a Ana tenha encontrado a si mesma ao aceitar cuidar da Emília e decidir ficar, em vez de seguir a vontade dos seus filhos e marido e emigrar.

No seu filme, como mencionou anteriormente, aborda também a questão da transformação dos corpos. A primeira sequência do filme, com Carla Maciel a cantar "Fruta Fresca", mostra o corpo dela, ainda “jovem” em comparação com o corpo que Fátima apresenta durante a sua própria decadência. No final, vemos Vitória / Mónica, a figura mais jovem numa festa de transe, e o movimento do seu corpo sincroniza-se com o das outras duas [Carla / Ana e Fátima / Emília]. Portanto, a minha dúvida é se há uma tese subjacente a essa questão dos corpos e de como ela se relaciona com a existência da pessoa? Porque sabemos que há um ponto em que a Fátima parece ter deixado de existir, embora ainda esteja o corpo no terreno.

Sim, há. Quase como uma transferência de poder. Vejo a festa de transe como uma espécie de ritual de iniciação, marcando a passagem da vida adulta de Mónica, exatamente no momento em que Emília falece ou "passa para o outro lado", por assim dizer. Para nós, os corpos eram de extrema importância, assim como os gestos de trabalho. Essa ênfase nas diferenças de idade sublinha ainda mais o ciclo da vida. Nascemos, crescemos, envelhecemos e eventualmente partimos para o outro lado. Essa narrativa foi cuidadosamente planeada desde o início do guião. Recordo-me, por exemplo, da nossa colega que colaborou na escrita do guião, a Sara Morais, mencionar a comparação que se poderia fazer entre a rugosidade das pedras e todo o granito ao redor, e essa transformação que também ocorre no nosso corpo e na nossa pele ao longo do tempo, à medida que nos transformamos, entenda-se envelhecer.

Mas certamente, falando dessa rugosidade, da questão mineral do filme, julgo que o “Légua” também reforma a sua questão animalesca. Há muitos animais, e de variadas espécies, neste filme, o que também contrasta um pouco com essa questão humana.

Sim, os animais têm um papel importante no filme, servindo como representações da transformação da natureza. Eles desempenham um papel fundamental na transmissão da ideia das estações, marcando o tempo ao longo do filme. Além disso, eles simbolizam um retorno à vida quotidiana que Ana havia perdido. No final do verão, ela, de um certo ponto de vista, recupera a liberdade e deixa de se sentir na obrigação de cuidar da filha.

Quanto ao cão branco que leva as meninas a presenciarem o ritual da coruja, a interpretação é aberta, sendo que cada pessoa poderá interpretá-la de acordo com a sua perspetiva pessoal. Na minha, é que a coruja simboliza a Emília, alguém que talvez, ao passar por essa transição ou passagem, tenha se fundido com a coruja ou já esteja presente de alguma forma no corpo da coruja. É uma interpretação interessante e aberta à interpretação pessoal de cada espectador.

Voltando àquela entrevista da SIC, foi referido que o João e a Filipa tiveram ideias diferentes sobre o projeto, e o filme foi fruto dessa diplomacia. Gostaria de perguntar, a título pessoal, se houve alguma ideia que achasse que resultaria no filme, mas que tenha sido rejeitada durante o processo de criação?

Não, creio que desde o princípio o trabalho com a realização, com a autoria, é sempre um exercício de grande entendimento. Cada um de nós contribui com as suas ideias, lançando propostas, e o outro também. Às vezes, como a Filipa mencionou nessa mesma entrevista, é necessário confiar. Acredito que sempre tivemos muita confiança um no outro. O que acho que mudou neste filme, e a Filipa também o menciona, é que pela primeira vez olhamos um para o outro e dissemos: "não vamos estar com atenção àquilo que cada um costuma estar. Se um está com mais atenção ao enquadramento e o outro aos atores, desta vez vamos tentar com que ambos atendamos ao enquadramento e igualmente trabalhando junto dos atores" E foi o que fizemos. Houve momentos em que filmamos, como nos filmes anteriores, em que isso era uma questão de atenção. Em certas ocasiões, o nosso diretor de fotografia, o nosso querido Vasco de Viana, ao não ter a certeza sobre qual caminho seguir, adotava ambas as abordagens.

Ele fazia uma versão para a Filipa e outra para mim. Por vezes, essas escolhas só seriam claras na fase de montagem. Poderia sair de uma cena, após a filmagem, convencido de que a minha opção era a correta e, mais tarde, descobrir, como já aconteceu, que a abordagem do outro era a mais adequada. Na edição, em determinados momentos, com o ritmo e a mensagem que queremos transmitir, a versão do outro revelava-se na escolha certa.

Queriam que me abordasse a vossa relação e colaboração com “não-atores” …

Prefiro o termo “atores não profissionais”.

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Légua (2023)

Muito bem, o vosso trabalho com “atores não profissionais”, nomeadamente com Fátima Soares, que revelou-se numa das grandes forças de “Légua”.

Fátima Soares é uma pessoa de uma generosidade extraordinária. Sempre me pergunto como seria encontrá-la na rua daqui a alguns anos, mesmo que a sua presença seja diferente. Tenho esta ligação com o cinema, enquanto ela não tinha nenhuma; estava envolvida num grupo de teatro que era uma das atividades que realizava na Universidade Sénior do Marco de Canaves. O facto de ser abordada e convidada a encenar a sua própria morte, relativamente próxima da sua idade (ou seja, mais próxima da idade em que alguém pode vir a falecer, de acordo com a probabilidade, é claro), foi um ato de tremenda magnanimidade por parte dela.

A Carla Maciel também foi uma lição para nós, naquilo que se refere a trabalhar e gostar de trabalhar. Mesmo que inicialmente pensássemos que não seria possível para nós trabalhar com atores profissionais, percebemos que a personagem da Ana precisava da elasticidade que talvez apenas uma atriz profissional pudesse oferecer. Realizamos um casting e encontramos a Carla, ficando absolutamente maravilhados com a duplicidade que desenvolvemos com ela. Demonstrou ser uma profissional de excelência, trouxe novas ideias e esteve sempre no local certo, à hora certa. Repetiu as cenas e contribuiu significativamente para o concepção do “Légua”.

Assim, penso que tivemos muita sorte, tanto com a atriz profissional quanto com a amabilidade da Fátima. Além disso, a dinâmica entre as duas atrizes também foi algo notável. A relação entre elas foi desenvolvida pelo Luciano, um preparador de elenco vindo do Brasil. Isso foi fundamental, especialmente porque trabalhar com atores profissionais era novo para nós, ainda mais, a contracenar com atores não-profissionais. O preparador de elenco desempenhou um papel crucial na criação dessa ligação, trazendo uma grande mais-valia às suas performances.

Já que estamos na a conversar na Cinemateca, deixa-me perguntar como é que Manuel Mozos, o zeitgeist do cinema português, entrou neste projeto?

O Manuel é um amigo nosso de longa data. Ele estava envolvido na Associação Portuguesa dos Realizadores, onde a Filipa também estava, e foi lá que estreitamos a nossa relação para com ele. Em dado momento, estávamos à procura de alguém que pudesse interpretar o papel do padre Guilherme. Queríamos alguém que fosse uma mistura entre um ator profissional e um não-profissional, e estávamos a considerar quem seria a melhor escolha. Tínhamos uma ideia muito clara do que queríamos para a personagem e foi então que a Filipa teve a ideia de convidar o Manuel Mozos

Sabíamos que o Manuel tinha experiência como ator, embora ele não se considerasse um. Aceitou o desafio, talvez mais amizade do que profissionalmente. Ficámos muito contentes. Na verdade, já estávamos em contacto com ele, pois tinha-nos dado, generosamente, uma lista de atrizes que se encaixavam no perfil que precisávamos para o papel da Ana. Quando percebemos que a atriz que a interpretaria teria que ser uma profissional, o Manuel elaborou-nos uma lista, na qual estava incluído a Carla Maciel.

Contudo, quando falámos com a Carla, percebemos que ela tinha uma experiência pessoal que foi a de cuidar da sua própria mãe, o que a tornou-a uma escolha ainda mais adequada para o papel. Essa experiência, que talvez tenha deixado uma marca no seu corpo, acabou sendo uma grande vantagem para a interpretação da personagem. Mais uma vez, fomos agraciados com muita sorte.

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Légua (2023)

Quanto a novos projetos?

O meu próximo projeto é, na verdade, um antigo que estou a retomar. A rodagem foi interrompida devido às filmagens do "Légua", depois houve a fase de montagem e a estreia. Trata-se de um documentário que tenho vontade de deixar-me influenciar um pouco pela ficção. É sobre um rapper descendente de cabo-verdianos chamado Ghoya, que canta em crioulo e é uma espécie de pioneiro do rap crioulo em Portugal. Ele também passou 10 anos na prisão, e eu o conheci antes de ser encarcerado. Nos últimos anos, mantive um contacto contínuo com ele. No ano passado, obtive apoio do ICA para a fase de finalização. Portanto, agora posso continuar a filmar e concluir o projeto. Esse será o meu próximo trabalho.

Quanto à Filipa, tem um filme em mente que ainda está por escrever, e à partida, será um projeto apenas dela. Não sei se terei algum envolvimento no filme ou não. O tema é prazer feminino.

Confessou-me numa anterior entrevista que não fazia distinção entre documentário e ficção.

Sim, há umas ‘coisas’ que eu ainda não filmei e que acho que poderiam colocar o filme mais nesse lugar. Aquilo que tenho, para já, no filme do Ghoya, é mais documental.

Falando com Carla Maciel, de "Légua" à condição de atriz: “temos que resistir, resistir, resistir, resistir, resistir”

Hugo Gomes, 22.06.23

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

"Sou uma atriz com os pés assentes na terra", assegurou-nos Carla Maciel, uma atriz presente no "mercado" (vamos chamar-lhe assim) há mais de 30 anos, recorrendo às mais diversas formas de arte, seja num palco ou num pequeno e grande ecrã, vivendo sem ilusões, mas com ambições em relação à sua performance e ao seu compromisso artístico.  E é com "Légua", a nova longa-metragem da dupla João Miller Guerra e Filipa Reis (a estrear dia 19 de junho nos cinemas portugueses), que finalmente encontra um papel de protagonista, embora não de forma unilateral, uma vez partilha o holofote com a "não-atriz" Fátima Soares, numa espécie de bailado de corpos em decadência. Aceitando o convite do Cinematograficamente Falando…, Maciel participou numa conversa sobre esta sua experiência, abordando temas que vão desde o performativo até às questões geracionais e sociais, bem como o seu percurso enquanto atriz. Mais uma vez, destacou o seu caminho, que foi trilhado a custo de muito trabalho, resistência e sensatez.

A Carla encontra-se neste território [o Cinema] há anos, mas só agora é que se tornou protagonista, isto sem contar com a curta assinada por João Lopes - “Luís” - onde dava ‘corpo’ ao Camões.

Sim, de facto. Acredito que, após 30 anos, finalmente conquistei um papel principal. Mudar no cinema não é fácil e depende muito dos realizadores não assistirem aos filmes de outros realizadores. Por padrão, acredito também que os realizadores não frequentam muito o teatro, pois veem o teatro de uma forma ... Não é que não gostem, mas não se identificam com a sua linguagem. Normalmente, consideram os atores como detentores de uma interpretação exagerada, pois é uma linguagem distinta a do cinema. A menos que o teatro seja um pouco mais intimista. Portanto, não costumam ir muito ao teatro para ver, nem repescar os atores. Acredito que isso tenha sido uma das coisas que desmistifiquei neste filme, inocentemente digamos. Porque o João e a Filipa preferem trabalhar com "não-atores" ou "atores não profissionais"...

Sim, eles preferem esse termo, “atores não profissionais” …

E a juntar isso, o facto de trabalhar maioritariamente com elementos documentais. Acredito que os convenci de que há atores capazes de fazerem excelentes trabalhos de forma subtil, leve, como eles desejam, e também, ao mesmo tempo, de forma livre, estando disponíveis e abertos ao que os realizadores pretendem. Normalmente, eles têm sempre a ideia de que o ator vem completamente preparado para o papel, definindo as suas regras e limites. Isso depende dos atores. Portanto, é necessário fazer castings ou conversas com os atores para perceber se estão disponíveis para o projeto em questão. Para o que estão a fazer. E sim, este é o meu primeiro protagonista e estou mesmo muito feliz por ter, pela primeira vez, conseguido estar num filme do início ao fim [risos], o que é muito importante para um ator, poder sentir o filme, sentir o papel, sentir a evolução, o arco dramatúrgico. Foi muito libertador trabalhar nesse sentido.

Neste papel, vai contracenar com uma "não profissional", que é a Fátima Soares. Ao falar sobre a sua liberdade enquanto artista, gostaria de referir que este é um filme muito performativo, culturalmente performativo. Começamos "Légua" consigo alegremente a cantarolar "Fruta Fresca", e depois temos um vislumbre do seu corpo jovial em contraponto com a decadência da Fátima. Existe uma consistência corporal presente. Também é importante destacar o facto de contracenar com uma "não profissional", como fez, e trabalhar nesse seu papel.

Quando aceitei verdadeiramente este projeto, a Filipe e o João foram muito específicos e abertos, demonstrando muita sensibilidade. Tornou-se claro que estaríamos disponíveis para explorar várias versões e abordagens. Estudei profundamente o papel, questionando-me sobre como retratar essa mulher inspirada na pessoa que trabalhou na casa do João Miller. Realizei uma imersão, trabalhando tanto o estado físico quanto emocional da personagem. Sempre tive em mente a Celina, a pessoa que me inspirou, mas também quis imprimir o meu toque pessoal. Em suma, desejei emprestar a minha essência à personagem, usando as minhas próprias experiências e vivências. Como ator, é isso que fazemos: utilizamos as nossas ferramentas para dar vida à personagem e servi-la da melhor forma possível.

Trabalhar com a Fátima foi como embarcar numa montanha-russa, nunca sabendo o que esperar. Foi um desafio para mim, pois nunca tinha trabalhado com uma pessoa “não-profissional”. Essa experiência também me permitiu ser menos metódica, não ficar presa a pensamentos excessivos sobre as cenas, já que era a personagem principal e desejava interpretá-la da melhor maneira.

Permite-me ter liberdade e deixar-me levar pelas indicações do Miller e da Filipa, assim como pela própria Fátima. Foi importante perceber e escutar atentamente, pois isso faz parte do trabalho de um ator: escutar o outro. Estive sempre muito atenta, e acredito que essa atenção tenha se refletido na minha interpretação. A personagem servia intensamente a outra personagem, e acredito que, de forma inconsciente, também fiz isso na realidade, durante a interpretação. Estive sempre a servir a Fátima e o filme como um todo, por meio das ações. O "Légua" realmente destaca essas ações, mostrando os cuidados que uma mulher tem com outra, com delicadeza, poesia nos movimentos e amor dedicado a essa relação entre duas mulheres, uma mais velha e outra mais nova.

Acredito que alcançamos esse objetivo, e digo isso sem falsa modéstia, pois é a realidade. O filme realmente conseguiu destacar esses cuidados de forma bela e poética. Trabalhar neste filme foi extremamente gratificante para mim nesta fase da minha carreira, com 30 anos de experiência. Foi um novo desafio deixar de lado a preparação prévia detalhada e mergulhar completamente na atmosfera daquela casa no campo.

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

Além disso, já tive experiências anteriores relacionadas ao tema, pois minha mãe foi cuidadora de pessoas mais velhas. Cresci imersa nessa linguagem do cuidado, pois ela trabalhava como auxiliar no Hospital São João e, mesmo após se aposentar, continuou a cuidar de idosos. Portanto, esse filme é uma homenagem à minha mãe, que infelizmente já não está mais aqui. Ela faleceu durante a pandemia e foi uma grande fonte de inspiração para mim. Ela costumava dizer que ninguém quer cuidar dos idosos e que as pessoas não têm paciência para eles. Essa mentalidade é prejudicial para o futuro, afinal, todos nós vamos envelhecer e planejamos nosso próprio futuro, não querendo nos tornar um fardo para os nossos filhos, considerando eventualmente a possibilidade de ir para um lar. Infelizmente, os lares ainda não são devidamente valorizados; falta amor e carinho neles. Os idosos são frequentemente desvalorizados devido a preconceitos sobre possíveis odores desagradáveis que possam ter.

Eu mesma costumava pensar dessa forma: de que os idosos cheiram mal, enquanto os bebês cheiram bem. Essa ideia estava enraizada em mim, baseada nas experiências e referências da minha vida pessoal, e isso foi algo que entreguei à personagem. O trabalho no campo também foi algo que vivenciei quando adolescente, por meio de uma amiga que vinha de uma família de agricultores. Passei minhas férias de verão ajudando-a no campo. Portanto, eu tinha essa conexão com o campo também. Esse papel realmente foi... Se não fosse para mim, teria que ser para alguém que tivesse essas referências. Era necessário que fosse alguém que soubesse do que estava falando. 

Quando li o guião, pensei: "Eu faria isto muito bem". E isso é algo raro de acontecer para um ator. De repente, olhas para um guião e pensa: "Uau, eu faria isso muito bem, nem precisaria me esforçar tanto". É algo natural, não forçado. Claro que não disse isso diretamente à Filipa e ao Miller, obviamente, mas senti essa conexão ao ler o argumento. Identificava-me com aquilo, conhecia esses sinais, essas rotinas, esses detalhes do cuidado com uma pessoa mais velha, porque também cuidei do meu pai quando ele estava doente. Portanto, todas estas ações estavam entranhadas em mim de forma instintiva e espontânea.

Pegando nessa frase da sua mãe, "ninguém quer tomar conta de velhos", e sabendo que “Légua” presta uma homenagem aos cuidadores voluntários, também aborda a história de três gerações diferentes de mulheres e os valores que as separam. No seu caso, por fazer parte da geração "do meio", a sua personagem torna-se uma espécie de mártir. Ela é consumida pela gradual não-existência de Fátima, mas, ao mesmo tempo, o filme dá-lhe a liberdade de manifestar a sua própria presença. Pode-me falar destas presenças e das suas respectivas relações com o mundo que as rodeia?

Essas mulheres estão a desaparecer. As mulheres que cuidam das casas. As mulheres possuíam um espírito de sacrifício, partindo de um ensinamento antigo. Cresci com uma mãe e um pai que nos ensinavam a seguir os nossos sonhos, a fazer aquilo que gostamos, mas advertindo que existem momentos em que temos de fazer sacrifícios pelos outros, ou seja, olhar para o próximo. Muitas vezes, em prol do outro, prejudicamo-nos. Aprendi isso muito bem e tento transmitir essas lições aos meus filhos. Não é que eles devam prejudicar-se ou fazer isso frequentemente, pois isso criaria um culto de vampirismo em relação a certas pessoas, e esse não é o propósito. Mas sim, quando sentimos que, por mais que falemos da história, que a personagem da Fátima tenha sido má (porque assim foi construída), a personagem da Ana não a quis abandonar. Ela poderia ter tido uma vida melhor com o marido lá fora. Podia ter ido com ele, mas acabou por abdicar da sua própria felicidade para cuidar dela, porque também se envolveu nessa situação.

A gratidão é, de facto, muito importante, não é verdade? São valores que estão a perder-se nos tempos de hoje, também como o espírito de sacrifício e até mesmo o amor pelo próximo. Estes valores estão a desvanecer-se à medida que as pessoas se tornam mais individualistas, mais centradas em si mesmas. Parece que dizem: "Não me importo com os outros, só quero avançar e ir mais longe". Estes ensinamentos têm um significado profundo para a Ana, e ela deseja transmiti-los à sua filha, mas esta não os compreende completamente, uma vez que pertence a uma diferente geração. Uma geração que já não dá tanta importância a possuir uma casa, já que vivem em vários lugares. O tema da família já não é tão valorizado como antigamente. São gerações que ainda desejam ter uma família, mas estão mais focadas na construção pessoal. Assim, existem aspectos positivos nessa evolução, mas também se perdem valores fundamentais nas relações com os outros.

Quanto à Ana, apesar de mártir, ela também encontra a sua emancipação no preciso momento em que recusar ir com o seu marido para a França. Ela gosta de ali estar, daquele sítio, que lhe faz bem, e entre ir limpar “a merda dos franceses”, como diz a certa altura no filme, e ficar ali a tomar conta da ‘velha’. Ela acaba por escolher a ‘velha’, porque esta sempre lhe fez algo, a ajudou durante muitos anos a criar os filhos enquanto o marido estava na França. Não pretende deixá-la sozinha, portanto, é uma questão de lealdade e de princípio ético. Ela também não a quer porque ela gosta do cão, gosta das flores, de estar naquele sítio que a faz sentir bem.

E, portanto, há aqui uma tomada de posição da Ana. Ela decide, tem o poder de decisão ali. Isso também é importante no filme, pois para ela, como mulher, é um passo acima, está a evoluir de alguma forma. 

Conversei com o João Miller Guerra em três ocasiões diferentes, e m todas elas me falava de um projeto sobre o fim da ruralidade. Ou seja, a desertificação destas áreas. E neste caso, você é a mulher cujo marido vai para outro país e a filha muda-se para a cidade, contudo, a sua posição é ali. O plano final do filme é da agência imobiliária pendurando na fachada da casa, naquele campo de batalha, uma placa de “Vende-se”. Por outras palavras, indiretamente, “Légua” é o tal desertificação rural …

Para dizer a verdade, eu agora coloco em causa esse “fenómeno”. Tenho notado que muita gente da cidade está a procurar um cantinho rural. Houve uma altura em que pensávamos que essa tendência ia desaparecer, mas depois da pandemia comecei a perceber que muitos gostam da vida no campo, e não só pelo bem-estar psicológico, mas também como uma espécie de investimento, uma forma de poupança. Se algo acontecer, sempre teremos uma casa com algum terreno. Acredito que a pandemia não acabou com a ruralidade como pensávamos. Quanto às pessoas cuidarem das casas, acho que já não há muitas disponíveis para alugar. Os chamados caseiros estão em extinção. 

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

Mas isso não poderá ser causado com a gentrificação de algumas cidades?

Sim, é verdade. Lisboa está a empurrar os seus habitantes para “fora”, e estes “deslocam-se” para as periferias. Por sua vez, as periferias estão a ficar cheias, e as pessoas acabam por encontrar um cantinho mais afastado. Mais de 90% dos jovens estão a perceber que se sentem bem lá, na verdade. Daqui a uns anos, Lisboa pode estar vazia. Não sabemos, mas é o mais provável, considerando as dificuldades em encontrar ou alugar uma casa neste momento, especialmente para os jovens. Por isso, que estes veem a casa como algo flexível. Não é um lugar fixo, como costumava ser nos anos 90, ou como os meus pais viam nas décadas de 60, 70, 80 e 90. Agora, com as oportunidades no estrangeiro, os jovens não pensam mais "ah, vou sair da faculdade e comprar uma casinha". É difícil. Por isso, talvez não seja o fim da ruralidade como pensávamos. O que achávamos que ia acontecer.

Sobre essa frase que proferiu há bocado - “sou uma atriz com os pés assentes na terra” - gostaria lhe colocar uma questão, talvez mais abstracta mas isso poderá a abordar por onde quiser, e do facto de estar presente, há vários anos (devemos salientar) nas três plataformas - cinema, teatro e televisão - como é ser atriz em Portugal?

Há muita resistência. Como a Nina diz na peça de Tchekhov - "A Gaivota" - “temos que resistir, resistir, resistir, resistir, resistir”. Não é fácil, como costumo dizer aos jovens que estão a começar e a trabalhar comigo, se realmente gostas disto, tens que resistir. Agora, com o aumento das plataformas, das redes sociais, tudo está a mudar rapidamente, é tudo muito mediático, tudo gira em torno dos seguidores. Mas quando queres fazer um trabalho consistente, começas pelo teatro, vais gradualmente entrando no cinema e na televisão. São todas linguagens diferentes.

Acredito que o teatro amador contribuiu muito para esta época. Comecei muito jovem, a cantar, tinha um grupo de música popular e fazia teatro amador com o meu pai nas freguesias. A ideia de atuar nas freguesias e nas coletividades pode parecer um pouco modesta, mas não é. Isso nos dá força, porque percebemos o quão difícil é ser ator em Portugal. Ou atriz em Portugal, especialmente para as mulheres, quando queres seguir um caminho sério e mostrar o teu trabalho, sem ter um nome conhecido, sem seres filha de alguém famoso, sem ter sangue azul, sem ter conexões especiais.

Portanto, quando és uma pessoa completamente desconhecida e decides sair da tua zona de conforto e aventurar-te, a regra é nunca desistir. Não vou dizer que foi fácil. Em 2000, deixei o Porto e vim para Lisboa. Tentei de tudo, fiz revista, explorei todas as oportunidades. Sou uma atriz versátil e posso orgulhar-me disso, a vida me ensinou a ser assim. Tive que me desenrascar, porque não tinha dinheiro nem recursos. Não pude estudar em Londres ou na França, como gostaria, se tivesse ido para lá aos 18 anos, hoje certamente não estaria aqui. Tenho consciência disso e sei o meu valor. Daqui a 30 anos, não subestimarei as minhas capacidades. Trabalho muito, escuto muito, e gosto de colaborar com pessoas que me estimulam e me desafiam. Nesta fase da minha vida, não tenho tempo para más vibrações. Prefiro envolver-me em projetos onde também seja valorizada, porque valorizo muito os projetos em que me envolvo.

Sou alguém que se entrega a 200%, e quem trabalha comigo pode confirmar isso. Vim do Porto para Lisboa em 2000 e enfrentei inúmeras adversidades, fiz cerca de 400 audições e consegui apenas uma. Às vezes, quando os jovens dizem "tantas audições, tantas self-tapes", eu só posso dizer: "Antes, os castings eram presenciais. Eu fazia viagens constantes entre o Porto e Lisboa para castings e esperava meses para saber se fui escolhida ou não."

Comecei de forma humilde e olhava para as novelas com admiração, sonhando em trabalhar com atores talentosos. Eventualmente, consegui oportunidades de trabalho e fui progredindo na minha carreira. Sempre perseverei e segui os meus sonhos, mesmo quando as condições eram difíceis. Tive altos e baixos, mas continuei a lutar.

Além disso, sou casada com um ator [Gonçalo Waddington] e temos o desejo de construir uma família. Tenho dois filhos, um deles começou a faculdade em Roterdão recentemente. Quando se quer constituir uma família e ter uma vida decente, as coisas ficam (ainda) mais complicadas, especialmente em Portugal. A minha filha está a estudar Belas Artes e ficou impressionada com as instalações da universidade em Roterdão, que estão num nível completamente diferente do que temos no nosso país.

Encorajei-a a seguir os seus sonhos no estrangeiro, porque aqui as oportunidades podem ser limitadas. Tanto eu como o meu marido trabalhamos arduamente e produzimos os nossos próprios projetos. Não dependemos do nome dos nossos pais. A minha filha também não quer depender do nosso nome.

Hoje, com 49 anos, continuo a fazer self-tapes, a preparar projetos e a submeter guiões. Precisamos criar o nosso próprio trabalho e sermos versáteis. Comecei na música e atuei em musicais, revistas e muito mais. Quando vim para Lisboa, o meu primeiro trabalho foi na revista no ABC, onde desempenhei funções de liderança. Ninguém me conhecia na altura, e era uma altura em que o Porto e Lisboa estavam bastante distantes no mundo das artes. Foi um processo de conquistas constantes e muita resistência. Muitas vezes, pensei em desistir ou mudar de profissão, mas continuei. A incerteza financeira é uma constante, mesmo hoje em dia, mas é algo que faz parte deste caminho.

Já que menciona a idade como um fator, lembro-me de uma entrevista com Luís Miguel Cintra, durante a apresentação da cópia restaurada de "Ilha dos Amores", de Paulo Rocha, em Cannes. Questionei-o sobre a falta de personagens mais velhas, e a sua resposta foi: “Portanto, se a pessoa envelhece provavelmente tem um destino diferente. Mas vamos esperar o quê? Que os mais novos inventem personagens de velhos?  Não conhecem. Não têm conhecimento de como funciona um velho. Portanto, a imaginação deles não vai para velhos. Por isso temos de nos resignar, como em tudo na vida.

Agora, cada vez mais, vemos mais representatividade das gerações mais velhas nas novelas. Há uns 4 ou 5 anos, senti que os idosos estavam a ser esquecidos na indústria. As personagens mais velhas existem na vida real, na ficção e em todas as áreas. Felizmente, começou a haver uma maior procura por atores mais velhos, até mesmo nas próprias televisões. Estão a reconhecer a importância de manter os artistas a trabalhar, o que é fundamental. É triste e desrespeitoso quando um artista é esquecido após uma longa carreira. Muitos desses atores foram incríveis em tempos e ainda podem continuar a sê-lo.

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Luís (João Lopes, 2012)

Claro que hoje em dia se escrevem menos textos longos, porque as pessoas têm outras capacidades e nem todos conseguem decorar texto de um dia para o outro, especialmente os mais velhos. No entanto, atores talentosos e experientes podem contribuir muito para o cenário artístico em Portugal. É importante escrever mais papéis para personagens mais velhas.

Curiosamente, acho que a faixa dos 30 anos é mais desafiadora do que a dos 40. No meu caso, não foi um percurso fácil. A partir dos 45 anos, comecei a ter mais oportunidades de trabalho e maior visibilidade. No entanto, a competitividade entre as atrizes mais jovens, na faixa dos 20 anos, é intensa, pois há uma abundância de personagens disponíveis para essa faixa etária. O período entre os 30 e os 40 anos é um território incerto.

E juntando ao envelhecimento o factor mulher?

Exatamente. Para as mulheres, é ainda mais complicado. Porquê? Porque parece que é esperado que estejam sempre jovens. Não concordo com isso. As pessoas devem envelhecer naturalmente. Não vou contra isso e não farei cirurgias para parecer sempre jovem e manter a aparência de alguém com 30 ou 40 anos. Claro, cuido de mim com uma boa alimentação e exercício, mas isso também faz parte do meu trabalho. Não tenho a ambição de parecer jovem para sempre. Quero ter papéis aos 50, 60 e 70 anos. A partir de agora, parece que as pessoas estão a mudar a forma como veem os "40". No último ano, tenho sentido como se tudo o que fiz ao longo dos anos finalmente estivesse a ser reconhecido. O cinema trouxe visibilidade, é verdade, mas o teatro também, pois tenho trabalhado com diversos criadores e encenadores. A minha busca constante é aprender e conhecer pessoas, especialmente compreender a mente dos encenadores e como eles dirigem. Gosto de ser dirigida por diferentes pessoas. Devemos continuar a escrever mais boas histórias e a criar bons filmes.

Acredito que a sociedade atual está muito centrada na imagem. Tudo tem que ser belo, perfeito e impecável. Parece que nada pode estar fora do lugar. Mas o mundo real não é assim. Existem pessoas com diferentes aparências, algumas podem não ser consideradas bonitas à primeira vista, mas são incríveis atrizes e atores. A beleza ainda é muito valorizada e tem um grande poder nesta indústria.

Essa questão da beleza é igualmente própria da televisão.

Sim, é verdade. No cinema, vemos muito disso também. Chamam muitas celebridades populares, o que atrai audiências e faz sentido, desde que estejam comprometidas com a indústria cinematográfica. No entanto, é importante lembrar que não deve ser "tudo ou nada". Existem pessoas que trabalham na área há muitos anos e merecem reconhecimento. Falo, não apenas por mim, mas por pessoas que têm formação, experiência e que dedicam suas vidas a esta arte, e de repente, são esquecidas. Isso acontece mesmo com artistas mais jovens. Há muitos jovens talentosos que saem dos conservatórios e não conseguem oportunidades. Por quê?

Vivemos numa sociedade demasiado preocupada com a estética?

Posso falar do caso português, e sim. Noto que quando vemos produções nórdicas ou sul-coreanas, por exemplo, acreditamos na existência daquelas pessoas, por parecem-nos exatamente isso, pessoas. Claro que vemos atores que cuidam da sua aparência e podem fazer alguns ajustes, mas sem exagerar. O culto da beleza e da perfeição é cada vez mais evidente. 

Em Portugal, parece que se dá demasiada importância à imagem superficial, como o carro que se conduz, a casa onde se vive, a roupa que se veste, e as pessoas são frequentemente julgadas por esses critérios. Infelizmente, este foco excessivo na imagem muitas vezes leva as pessoas a negligenciar o seu crescimento interior.

As pessoas não leem tanto quanto deveriam, não procuram enriquecer os seus horizontes e não buscam conhecimento. Se dedicássemos mais tempo a isso, talvez nos sentiríamos mais realizados e não sentiríamos a necessidade de nos expormos de forma tão exagerada. É importante frisar que a verdadeira riqueza está nas nossas experiências profundas e na nossa capacidade de crescer enquanto seres humanos, ao invés de apenas focar na superfície.

Dentro dessa ideia, podemos dizer que o “Légua” é um filme contra essa estética?

Não sei explicar, mas não é a beleza exterior convencional. É mais uma beleza que se manifesta nas ações, nos movimentos, na performance, de alguma forma, e sim, vindo da Natureza.

Do Sagrado ao Primitivo

Hugo Gomes, 13.06.23

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Partimos de encontro ao bíblico - a história que todos conhecem e recitam (Cristo e os seus seguidores, a crucificação e o nascimento de uma religião) - profanando-a para com o divino graças a uma reconstituição (porque não chamá-la de desconstrução?) para lá do existente relato, fundido como ferro neste “Magdala”, quarta longa-metragem de Damien Manivel (“Un Jeune Poète”, “Les enfants d'Isadora”)

Na exposição está Maria Madalena (interpretada pela fiel colaboradora Elsa Wolliaston, longe do senso-comum da figura), representada como a mais fiel dos apóstolos de Jesus, que após testemunhar o seu Senhor (romanceado seja) torturado e sentenciado, auto-exila ao remoto, escondendo-se no “coração” da impenetrável floresta, subindo ao cume mais íngreme ou, por fim, ocultando-se na mais profunda e tenebral caverna, a mesma que receberia tempos atrás a ressurreição e a ascensão aos bravos Céus. Uma cartada ao naturalismo austero a roçar um primitivismo que o Cinema nunca atingira durante a sua trajetória histórica, até porque esse minimalismo produtivo, a câmara enquanto único recurso moderno a captar elementos como bem vieram ao mundo, é uma fabricação do cinema moderno, uma obsessão entre pares para igualar a arte à pureza da sua natureza, despindo-a de megalografia industrial (poderemos afirmar que há qualquer ‘coisa’ de político nesta determinação). 

Assim sendo, “Magdala” recorre ao tempo, ao gesto desdenhoso para com o mesmo, testando a paciência do espectador, colocando-o no embalo da sua cadência (esculpindo, como diria Tarkovsky). Mas não deparamos aqui ao enésimo exercício tarkovskiano contudo, o que vemos é a nudez da maquinaria, o recolher do luzimento oriundo da isolada vela na inversa Caverna de Platão (o mundo da claridade é aquele que desejamos abandonar, regressando às trevas), ou dos corpos decadentes das suas heroínas, banhadas pelas mágoas do seu amor incompreendido e apagado pela crueza da doutrina. Se Jesus pairou pelo deserto, 40 dias como está escrito, enfrentando as forças demoníacas das tentações incentivadas pelo “bastardo”, Maria Madalena reflete no selvagem oposto a fim de arrancar o seu coração, e como oferenda ao seu Deus, reduzir-se ao Nada, aguardando os anjos que a busquem para a sua redentora paz. 

Esse pacto com o divino, a sacra desconstruída e refeita, é a tentativa de Manivel, ao nível dos mais celebrados conquistadores do primitivismo-moderno (contraposição, mas essa obsessão tem sido muito mais de agora) como Albert Serra nos seus “verdes anos” ou o destino de muito cinema galego a brotar na nossa contemporaneidade (Oliver Laxe ou Lois Patiño, dois a contabilizar a equação), de penetrar num cinema “carne-viva”, onde o místico é resgatado do mero mundano (seja gesto, pessoas ou quotidiano na sua original forma). 

Se este é o caminho a seguir, o percurso não está tão longe daquele que vem sendo caminhado pelo realizador, o amadorismo no rigor da sua semântica como aproximação dessa invocada pureza, a iconografia apropriada e regida à rudeza (e quiçá a decadência, tão humana, diga-se de passagem). É o Cinema que procura Deus no Estado das Coisas. 

Lamentos e lamentos ...

Hugo Gomes, 19.05.23

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Na manhã de segunda-feira, antes do visionamento de imprensa de “Fast X”, alguém que costuma presença neles (sinceramente nem sei se é jornalista ou o que faz na vida, se calhar é só mascote) dirige-se ao enviado do Público, com dedo em riste, reclamando sobre o fraco destaque do seu jornal perante filmes como aqueles que iríamos ver a poucos minutos. “Só querem saber de ciclo de japonês sei lá o quê [óbvia alusão à Kinuyo Tanaka], e esquecem dos filmes que as pessoas realmente querem ver”. Perante as provocações deste ser, o representante do jornal do P vermelho aponta para o cartaz gigante com Vin Diesel estampado e responde: “Estes filmes já estão vendidos antes de sequer estrear”.

Como podemos ver, 90% dos órgãos de comunicação falam de “Velocidade Furiosa”, de Daniela Melchior (das enésimas entrevistas exclusivas) e como Portugal deve-se sentir “orgulhoso” por integrar a trama de um produção hollywoodesca e bilionária. Ninguém quer saber do resto, como Cannes, onde só notícias de Johnny Depp e Indiana Jones parecem preencher as grelhas mais genéricas. Porquê de não passarmos disto?

Relembro de um ano, 2018 para ser preciso, em Cannes, na fila para ver “já não sei o quê” (em homenagem ao ser do parágrafo acima), em que ouvia a conversa de dois distribuidores que comentavam a qualidade do, na altura, último filme de Jafar Panahi ["3 Faces"], até que um deles lamenta: “Estamos aqui a ver estes filmes, muitos deles maravilhosos, e o Mundo só quer saber e falar de ‘Infinity War’.

Lamentos e lamentos ... é a vida! O romantismo do Cinema é resiliente, o mercado é outra ‘coisa’.