Cantar para os espíritos reunir ...
(...) talvez tenha sido o que mais me emocionou, que vocês, tu João e tu Renée, tenham deixado para trás o antropológico, tenham deixado para trás o etnográfico,entregando-nos a condição humana, deixando-nos simplesmente perante a vida, que é observada, que é olhada e também amada.
Paz Encina, “Passagens” / Edições Batalha Centro de Cinema
Aproveitando a deixa da realizadora paraguaia de “Eami”, assumidamente amiga deste casal-cineasta, lanço-me naquilo que tanto me fascinou neste “A Flor do Buriti”, e que já havia sido sugerido em “Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos”: o convite e completa submersão num mundo que não é o nosso, sem estranhezas e sem pedagogias de qualquer espécie. Assim, começamos pela noite escura, envolvida numa fogueira sob cânticos ancestrais. Há um chamamento, ou talvez premonição, perto daquela intimista festividade: uma grávida na angústia das suas dores, natural como é assim dito para acalmar a “pobre criatura”. Mais afastado desse círculo, um bando de crianças depara-se com um animal estranho no seu território: um bovino, o símbolo de uma civilização, como os seus integrantes adoram apelidar em prol de uma superioridade modernista, que estes Krahôs pouco ou nada desejam conhecer. Uma praga, ou antes uma espécie invasora anexada a outra com iguais fins. Com este prelúdio, damos de cara à espectralidade que nos aguarda sossegadamente.
“A Flor do Buriti”, que conta com a escrita de um dos membros da comunidade indígena (Henrique Ihjãc Krahô), e filmado em 16mm, assume a urgência de um arquivo memorialista, dando palco a estes protagonistas na partilha das suas interações, das suas dores, tragédias com que vivem, ou no medo que os habita. Talvez seja longe do seu costume, mas difícil testemunhamos um sorriso nas suas faces, soam-nos, não “criaturas” tristes, mas indivíduos conformados com a sua fatídica existência no mundo moderno, ora indesejável nestas lides do progresso e das políticas daquele Brasil que declara posse das suas vidas.
E é nessa existência que Salaviza e Messora encaminham invisivelmente, é o tratado do indígena, não uma extração de recordações e de passados que mereciam estar confinados nas profundezas, é o seu simbolismo, como o mundo parece-lhes ou como a fauna e a flora lhes encaram. Resistência e resiliência, transcendências e onirismos terrenos, como os Krahôs acreditam que os seus sonhos são apenas pedestridades da sua alma e como a morte, esse fim, não é mais que uma passagem. Os espíritos permanecem com eles, comunicam e deixam-se ser comunicados, dançam e cantam, a noite torna possível essa tradução, rompendo dimensões e barreiras impostas pela sobrenaturalidade, esse ditame ocidentalizado que coloca numa caixa tudo o que desconhece.
“A Flor do Buriti” bebe dessa naturalidade à sobrenaturalidade, o que já estava indiciado na obra anterior, mas leva-nos mais agreste, mais familiarizado (e pudera). Porém, há um contágio, um resquício nessa civilizacionalidade no percurso destes “índios”. Perante as “portas escancaradas” deixadas pelo Governo de Bolsonaro, o par que se destacou, partindo em direção a Brasília, percorrendo um Brasil contaminado pelos cantos e sermões evangélicos (prova viva de colonização) ou da mentalidade de vaqueiro e tudo o que isso acarreta, manifestando-se por um lugar desapropriado, desfeito, desvinculado, são indígenas de tribos várias, que de punho erguido, solicitam um estatuto deveras naquele país multicultural.
Neste último ato, como havia acontecido no “Chuva’” ("Krahô? Não. O teu nome de Branco?", como nunca esquecer aquele golpe de realismo sob comentário social), Salaviza e Messora lançam “farpas”, consolidam a sua experiência e cometem o seu ativismo possível, o seu gesto político, perfeitamente sincronizado com o zeitgeist e com as vontades desses seus protagonistas, é o retiro da realidade que nos impôs, a realidade dos “Krahô”.
Após a fuga, o tal movimento de protesto, as heroínas no palanque prometendo mundo e fundos numa luta, sem questão, desigual, voltemos ao “mato dos Krahôs”, aos seus rituais, à sua oralidade contada, partilhada envolto de cicatrizes e calos, e deixemos enraizar entre eles. O filme leva-nos a isso, a permanecer com eles, sem com isso nos tornarmos iguais, e por sua vez, sem nunca ceder a um olhar de estranheza, “estrangeiro” acrescentamos àquela comunidade. Não se trata do “selvagem conquistado”, mas antes disso do “espectador amestrado”. Uma viagem para além do terreno, do político, de uma dimensão que nós desconhecemos com força. O olhar dos Krahôs!
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro
Em sombra, em luz, em som magnífico
Caetano Veloso