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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Falta muito para chegarmos à Cabana do Céu!

Hugo Gomes, 20.08.21

Cabin_in_the_Sky_(1943)_1.jpg

Inicio esta rubrica em oposição à ideia alicerçada a uma corrente de pensamento atual, de que certos temas e “minorias” estavam expulsas na Hollywood clássica e só hoje são priorizados por essa “máquina” no sentido de ousar consciências. Pois bem, pode estar datado, mas sugiro este filme peculiar – “Cabin in the Sky” (“Um Lugar no Céu”, 1943).

Um musical pioneiro, não por nos apresentar um emancipado Vincente Minnelli na realização (em cumplicidade com o grande senhor deste género - Busby Berkeley - sombreado no estatuto de “não-creditado”), mas por “oferecer-nos” um elenco inteiramente negro em meados da Segunda Grande Guerra, numa altura em que atores e personagens afro-americanas eram cortadas para que as metragens pudessem estrear no sul dos EUA. Não foi o primeiro da sua linha, é certo, antes dele, exemplares mais obscuros como “Hearts in Dixie” (Paul Sloane, 1929), “Aleluia!” (o primeiro filme sonoro de King Vidor, 1929) ou a recriação bíblica, “The Green Pastures” (Marc Connelly e William Keighley, 1936) chegaram a nós, cada um com o seu grau de controvérsia, mas foi este conto moral e religioso composto por alguns dos talentos mais cobiçados da idealizada “Hollywood Negra” (Eddie 'Rochester' Anderson, Rex Ingram, a ascendente Lena Horne e o célebre músico Louis Armstrong) a desafiar as convenções e tornar-se num sucesso em diversas partes do país, o que repercutiu, quer na representatividade (não automática, convenhamos afirmar), quer na carreira de um dos mais importantes cineasta dessa indústria em tons dourados (sim, esse, Minnelli).

O filme centra-se nas aventuras e desventuras de um marido ingrato e apostador compulsivo, Little Joe (Anderson), cuja sua “má sorte” o coloca entre a vida e a morte, apenas poupado do destino certo graças às orações dedicadíssimas da sua amada esposa, Petunia (Ethel Waters). Apesar disso, não se livrou da sentença divina, estando na mira de um lacaio do próprio Diabo e de um Anjo que jogarão pela sua alma. Tendo sido nomeado ao Óscar de Melhor Música Original - "Happiness Is a Thing Called Joe" – “Cabin in the Sky” é, para todos os efeitos, um espetáculo à moda de Hollywood, carregada por uma fantasia escapista ao serviço dos bons costumes pregados por essa Casa de Cinema.

Sob a dita perspetiva atual, os estereótipos raciais estão visíveis assim como a característica hipocrisia desta “fábrica de sonhos”, que se pode verificar, por exemplo, num satisfeito protagonista no seu trabalho precário e árduo (apesar de ser uma assumida fábula, ainda não se estava preparado para ver representado um afro-americano fora do trabalho forçado e segregado), declara viver num “país livre”. São citações datadas sem pingo algum de criticismo à sociedade contemporânea, revelando-nos um ainda longo trilho à nossa normalidade. Mas há que começar por algum sítio, não?

 

*Texto inicialmente publicado na revista Metropolis Nº77, Julho de 2021