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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A francesa

Hugo Gomes, 16.07.21

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Léa Seydoux é uma vedeta do mundo da reportagem, “uma” Caronte para a manipulação que os medias exercem para criar uma visão particular sobre o mundo. Bruno Dumond instala-se com uma narrativa cínica da feira de vaidades que a nossa sociedade assumiu sem preconceitos, e o faz apoiando-se na imagem desta mulher que tenta lidar com a humanidade que acidentalmente encontrou. “France” foi dos títulos mais indigestos da Competição, a crítica não parece ter ficado impressionada com esta farsa à lá Dumont que oscila entre um brilhante retrato dos nossos dias e uma masturbação fílmica. Até para os mais puristas do realizador (convém salientar, que se trata um dos mais versáteis e delirantes nomes do cinema francês), a obra não convenceu, um trilho acidentado que nos encaminhará com algum esforço ao lugar desejado.

Nada é sagrado nas parábolas de Bruno Dumond

Hugo Gomes, 19.05.19

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Depois de desconstruir o género musical com a infância de Joana D’Arc, Bruno Dumont sob o gosto das sequelas (anteriormente concebeu a continuação de “P’tit Quinquin”) prossegue na história da criança abençoada que desafia um exército, para no final cair nas mãos daqueles a quem jurou defender.

"Jeanne" vem apimentar o rol de variações da mítica história da canonizada jovem que mudou o rumo da História da França. Dumont persiste na ainda pequena Lise Leplat Prudhomme, de volta no papel da heroína, o que atribuirá uma outra interpretação na luta de Joana D’Arc (aqui transmitida como uma “birra de uma criança”). Diríamos que é através desta persistência na incoerência [a escolha de uma atriz de 11 anos para interpretar um papel com os seus 19 anos] é somente o esboço do sentido de falsidade que Dumont quer submeter a este “Jeanne”, num regresso da teatralidade e de todo o artifício imaginário que o anexa. Depois do musical, é o épico a ser vítima dessa desconstrução; é a distorção das leis fixas da arte ficcional cinematográfica que o cineasta explicita a sua jornada pelo “faz-de-conta” sintetizado.

É o apontar a um amontoado de pinheiros e ver Paris, é o julgamento sob o efeito “dramático” de um Monty Python (cada juiz tem o seu irrisório maneirismo) e a inexpressividade da sua protagonista a fazer frente a (sobr)expressividade de Maria Falconetti na mais famosa incursão cinematográfica da figura histórica – “La passion de Jeanne d'Arc”, do dinamarquês Carl Theodor DreyerMas se em “Jeannette”, Dumont tomou os seus devidos riscos, nesta previsível sequela agarra o dispositivo como algo garantido. O filme já não avança e apenas contempla a sua postura passiva de um “amadorismo” voluntário, assim como a “pequena” Joana olha para o céu, ouvindo atentamente os monólogos cantados de Deus.

O musical tem que morrer!

Hugo Gomes, 01.07.18

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Bruno Dumont não acredita em musicais e reflete isso nesta sua nova criação – “Jeannette, l’enfance de Jeanne d’Arc” – a musicada juventude da mais amada das heroínas de França, onde o absurdismo do género torna-se num veículo de provocação. Já vimos tais tons a serem experimentados nas suas duas últimas obras (“Ma Loute”, “P’tit Quinquin”), mas até agora nunca tínhamos sentido tamanha heresia em ridicularizar um género.

Diríamos antes que “Jeannette” é um anti-género, uma blasfémia aos musicais. Aqui, os não-atores fazem o melhor que podem nas suas cantorias. Dumont afirmou que nada fora filmado em playback, tudo é verídico, as vozes desafinadas, ou simplesmente ausentes de dotes musicais, as coreografias atípicas, algo entre o estilo metaleiro e do frenético trance, as questões religiosas discursadas com uma extrema opacidade e uma deselegância de toda esta natureza musical ilustrada num cenário apenas, citando constantemente o seu anterior filme (“Ma Loute”).

Jeannette” é o “Je vous salue, Marie” de Dumont, uma afronta ao sagrado, a desmistificação do estabelecido, a prece de Joana D’Arc (Jeanne Voisin) cuja divindade que apela encontra-se do outro lado da tela, quebrando a “virginal” quarta barreira para nos trazer o mais mortal dos deuses – o espectador. Por outro lado, a comédia involuntária aqui exposta tem o seu quê de voluntarismo. É a História relatada como um experimento e não uma rigorosa reconstituição. É a coragem de ser ridicularizado, por ele próprio.

Talvez seja esta a obra mais desafiante da carreira do realizador, e a mais inacessível. A resposta que precisávamos da ilusão onírica tão presente no género, aos “La La Land” que perpetuam uma memória cinematográfica, "Jeannette" responde destruindo todo esse legado, rabiscando e delineando a partir do zero. Vai ser difícil recuperar o fôlego para futuras incursões musicais depois disto, e muito mais a forma que olharemos para Joan D’Arc no cinema, heroína tão celebrada em importantes trabalhos como os de Dryer, Bresson e até (porque não) Besson.

O "acting" como demarcação social

Hugo Gomes, 18.04.17

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Bruno Dumont é o senhor do burlesco, a pitoresca caricatura que adquire a absoluta forma cinematográfica, e conseguiu transmitir tal aura em “Petit Quinquin”, uma minissérie que tentou a sua sorte como longa-metragem (uma longa, mas relevante metragem da sua carreira). “Ma Loute”, por outro lado, segue a passos essa marca estabelecida, remetendo-nos a um enredo da Belle Époque, onde o início do século parecia revelar-se num magnífico quadro de aristocracias mecanizadas, porém, iludidas a uma miragem. E essa mesmo, resultando sob ecos da Revolução Francesa, o poço cada vez mais fundo que separa classes. Tema que persegue o espírito “gaulês”, os franceses teimam em focar nas suas fitas a divergência recorrente no Cinema e “Ma Loute” não é exceção. Só que, vejamos, a linguagem é simplesmente outra.

Em 1928, Louise Brooks, atriz norte-americana, chegaria à Europa para se concentrar num novo rumo da sua carreira. Entre os filmes que desempenhou no Velho Continente, destaca-se “Pandora’s Box” (“A Boceta de Pandora”), onde interpretava uma sedutora, os primórdios da crescente imagem da femme fatale. A sua arma de sedução era uma, o seu método de desempenho, algo vincado no realismo dos atos que entra em contraste com o drama teatral dos atores europeus da altura. E foi nesse contraste que soube-se criar uma nova linguagem narrativa, a linguagem derivada da interpretação. Anos mais tarde, Federico Fellini concentrou em atribuir um tom quase alienígena para a burguesia pseudo-cultural representada em “La Dolce Vita”, seres estranhos que se destacavam do resto do Mundo em constante decadência pelos seus respectivos e gravitacionais egos que os isolavam às suas fantasias anteriores.

Em “Ma Loute”, a tal linguagem narrativa encontra-se perfeitamente estabelecida nesta diferença de classes, nota-se o “underacting” dos camponeses deste vilarejo costeiro, e o “overacting” da aristocracia que eventualmente surge em cena, com Fabrice Luchini e Juliette Binoche à cabeça. O ridículo das sequências protagonizadas servem, não como um veículo de comédia, mas como uma reflexão de um grupo em vias de se extinguir, portanto perdoa-se os veios oníricos e o paradoxismo que se escuta como brisa marítima neste filme que resiste à sua memória. A memória de um cinema sem medo da reprovação do espectador, um cinema que ergue a visão do seu autor em prol de uma mensagem, do que providenciar um género, neste caso, como fora caído em erro, a comédia como um círculo fechado. Não, “Ma Loute” espelha uma diversidade de tons que desaguam para um exercício de alienação interpretativa, aliás o foco dessa crítica é tão evidente, a burguesia iluminista é somente uma espécie extinta, só que ainda não haviam percebido tal desaparecimento.

Contudo, nem tudo é perfeito. Dumont tende a cansar com o seu registo. Os tons perdem fôlego e a partir daí é óbvio que dialoga cada vez mais alto. É então que, sem conseguir segurar a tragicomédia de gostos nos carris, “Ma Loute” verga-se pela caricatura fácil, principalmente no seu grande comic relief, que à imagem do anterior “Petit Quinquin”, é uma homenagem aos clowns que perpetuam na nossa memória cinéfila. Se em “‘Quinquin” era a alusão dos Irmãos Marx a resultar na autoridade, em “Ma Loute” são os clássicos Laurel e Hardy sob iguais causas. São momentos deliciosos, envolvidos num humor de camadas que vai desde o godardiano acaso de um “Pierrot Le Fou”, até ao inglês non sense e absolutamente metafórico dos Monty Python.

Sim, é um doloroso sorriso que nos faz esquecer por momentos que a tragédia vive em nós, ou será antes, a tragédia num novo tipo de comédia?