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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Tentamos a outra fase da moeda dos 70's". Alvalade Cineclube novamente nos trilhos da América da década de 70'

Hugo Gomes, 21.11.23

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Wanda (Barbara Loden, 1970)

Tão distante, tão perto. A década de 70 afasta-se cada vez mais da nossa contemporaneidade, contudo nunca se falou tanto, ou igualmente se repescou, aqueles anos como agora. Saudosismos, reavaliações, ou as lições embutidas que as promessas do amanhã anotam como suas, este período, marcante para várias artes além do cinema, refletiu numa subversão e consequentemente numa ruptura das velhas fórmulas e estéticas acompanhadas pelo teor “Novo Cinema” que difundiria pelo mundo afora desde os 60. Nos EUA, a sua nova vaga foi entardecia para a década seguinte, abraçada por “movie brats” e denominada por “Nova Hollywood”, a frente contra a decadência do velho sistema e a imposição de novas vozes, personagens e historietas, assim como novas preocupações, quer sociais e políticas, desencantando a ficção tida cinematográfica. Apesar da relevância desta onda, o cinema norte-americano não viveu apenas de “Novas Hollywoods”, mas dificilmente mesmo é ignorar essa sua influência nos mais diferentes quadrantes. 

Sendo assim, voltamos ao Alvalade Cineclube, que ano passado nos presenteou com uma rota ao cinema dessa década. Nesta sequela, tendo arrancado no passado dia 8 de novembro com “Wanda” de Barbara Loden, seguimos pela Nova Hollywood e as suas ramificações, com tempo para “truques” de kung fu e pesadelos paternais. Com quatro sessões, e desta vez decorrendo no Cinema Ideal, o ciclo “América ‘70” prossegue nesse cenário cinematográfico de outros tempos e de novos entusiasmos. Falamos novamente com o programador Bruno Castro sobre a mostra, eventualidades e possibilidades.  

Voltamos à tão aguardada segunda ronda pela América dos anos 70, aqui, ao que parece, ocasionalmente nos desviamos da trilha da Nova Hollywood que estava tão presente na primeira parte. Como foi feita a seleção dos filmes para esta "sequela" e qual a razão por trás da escolha destes títulos específicos?

Ficamos a pensar nesta questão da sequela depois de, há um ano atrás, teres perguntado especificamente se fazia sentido voltar a repetir. Foi algo que ficou em cima da mesa. A ideia desta vez foi, em primeira instância, manter a possibilidade de contarmos com uma visão feminina dentro do programa, e é aí que surge o “Wanda", da Barbara Loden. Quando há um ano tínhamos passado o filme do Cassavetes - “Mulher sob Influência" - constatamos que deveríamos ter esta possibilidade de termos um olhar feminino naquela década, e achámos “Wanda" a escolha totalmente óbvia, até porque não é um filme muito visto em tela em Portugal, apesar de ter passado algumas vezes, não é muito disseminado … não é fácil também devido a questões de direitos e afins. E a cópia que existe habitualmente em Portugal é em película, não foi o nosso caso que contamos com uma cópia digital. 

A partir daí, desta vez, a intenção foi de facto fugir um bocadinho da ideia da Nova Acrópole, daí surgindo títulos como o “Enter the Dragon", do “Eraserhead", e , por fim, do “Blue Collar". Tentamos a outra fase da moeda dos 70's. Não insistir apenas nesta ideia da Nova Hollywood, ou seja, não fazer uma sequela direta, mas encontrar dentro da década de 70 pistas para aquilo que aconteceu depois. E daí também, por exemplo, a questão do “Eraserhead”, o início de carreira do David Lynch, que nós possivelmente não associamos o próprio Lynch aos 70's, mas as ‘coisas’ começaram daí. 

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Eraserhead (David Lynch, 1977)

É uma evidência da década de 70 ser um espaço de liberdade criativa, ou seja, não só do ponto de vista formal, não só desta possibilidade de surgirem novos realizadores com novas abordagens, fora daquilo que eram os mecanismos normais dos estúdios e da forma de fazer cinema, como também do ponto de vista artístico, se quisermos. Este espaço enorme de liberdade onde parecia não haver grandes convenções: e quer o “Eraserhead”, quer mesmo o “Enter The Dragon”, são bons exemplos dessa ideia de liberdade e, portanto, focamos nessas possibilidades, não fugindo da ideia das personagens e das narrativas, e deparando com outras linhas de discussão e, devido a isso apresentamos outros tipos de convidados desta vez.

No caso do "Eraserhead" vamos contar com Vasco Araújo, artista plástico, pintor, precisamente porque queremos olhar para os filmes de outra perspetiva e de não estagnar num sítio tão cinéfilo puro e duro. 

Ao explorar novamente esta América, descobrimos que existe um público interessado nas propostas e no cinema deste período. No geral, como correu o primeiro ciclo de exibições? As expectativas foram cumpridas?

Sim, foram aliás cumpridas e ultrapassadas. Em primeira instância o conceito da década de 70 era que era uma premissa muito nossa, mas foi muito interessante perceber que há vários tipos de público para este tipo de iniciativa e por exemplo, no ano passado, na sessão do “Taxi Driver” deparamos com jovens de 16, 18 anos que nunca tinham visto o filme e muito menos em tela, e cinéfilos infiltrados com 60 anos, que não só viram o várias vezes, como ainda desejavam lá voltar. 

E, portanto, eventualmente a cinematografia americana de 70 tem esta capacidade, esta elasticidade de chegar a públicos muito diversos e de os "resgatar" por uma abordagem de cinema que é bastante diferente. E isso significa que de facto, aquele ciclo correu muitíssimo bem e como tal decidimos regressar a ele. Era uma aposta sedutora, nós gostamos sempre de correr alguns riscos depois e ao mesmo tempo perceber a existência de audiências possíveis para este tipo de iniciativas.

Confesso que fiquei surpreso por ver “Enter the Dragon” nesta mostra, não porque não faça parte do cenário cinematográfico americano da época, mas porque parece destacar-se em termos de estilo e perspectiva política-social, em comparação com os outros filmes. Bruce Lee e a sua equipa poderiam justificar um ciclo de artes marciais? E já agora como olha para esse subgénero numa óptica de importância (ou não) cinematográfica?

Olhando para o “Enter the Dragon” … Bom, em primeira instância, a ideia de surpresa, nós gostamos sempre de ter um joker no meio destes ciclos. Ter algo que de facto nos aufere aquele sentimento WTF. No ano passado foi através do "Car Wash", um filme muito diferente dos restantes do ciclo, este ano acontece com o caso “Enter the Dragon", até porque o trabalho do Bruce Lee está completamente associado ao Hong Kong e aqui contamos com uma produção americana, devido à possibilidade da América de 70s acolher produções que não tinham necessariamente a ver com o seu próprio contexto, sendo outro espaço de liberdade que não sabemos se voltou a repetir depois. 

Bruce Lee e a sua equipa poderiam justificar um ciclo de artes marciais? E já agora como olha para esse subgénero numa óptica de importância (ou não) cinematográfica?

Temos dúvidas, ou por outra, o Bruce Lee claramente podia justificar um ciclo de artes marciais, temos dúvidas se existiria público para esse efeito. Parece existir um goodwill muito grande relativamente a este tipo de filmes o que não reflete necessariamente em público, e portanto, dificilmente olharemos para essas questões, sobretudo as questões de género ou de subgénero que colocas na ótica de importância cinematográfica. Tem mais a ver com a possibilidade da sua contextualização, mais do que outra coisa. 

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Enter the Dragon (Robert Clouse, 1973)

Não temos a certeza de que o cinema de artes marciais seja um subgénero cinematográfico, sinceramente, mas estamos seguros de que ele teve, em certa medida, um contexto específico, bastante concentrado, apesar de existirem exemplos ao longo do tempo. Existe um período muito específico desse ponto de vista, no qual havia a capacidade de integrar a dimensão das artes marciais com outras componentes narrativas, entre outras abordagens. Isso, de alguma forma, foi-se diluindo ao longo do tempo ou viu surgirem outras abordagens um pouco distintas, algumas mais plásticas e visuais, outras mais focadas na tradição asiática, o que não era o caso das propostas que referi, e assim por diante. Mais adiante, temos alguns exemplos ligados à comédia slapstick.

Não estamos inteiramente seguros que isso possa fazer sentido. Pode fazer sentido sim encontrar objetos que, num outro contexto como este específico, podem encaixar e fazer sentido para audiências, mas não enquanto proposta muito concreta. Portanto é uma ideia que eventualmente não fica assim tão a pairar. 

É inegável que Paul Schrader continua a desempenhar um papel direto e indireto neste prisma cine-americano, como demonstrado por um dos seus filmes mais reavaliados, "Blue Collar".

Nós queríamos ir ao Paul Schrader há algum tempo. Interessa-nos a sua faceta enquanto realizador, visto que Schrader argumentista, encontra-se mais visível, o seu trabalho está muito revisitado. Interessou-nos ir a uma visão direta de realização, e mais antiga, claramente, até porque o Paul Schrader recente não estamos a avaliar qualitativamente, é diferente. 

Este “Blue Collar” tem uma série de características muito interessantes, a questão do dilema moral dos personagens. O próprio Richard Pryor, que acaba por ser uma espécie de grande figura ali no meio, que se foi perdendo depois ao longo do tempo de outra forma, interessou-nos esta lógica também ligada a um movimento sindical e a forma como ela era vista e trabalhada, e portanto também vamos ter na sessão do “Blue Collar”, Manuel Carvalho da Silva, ex-dirigente da CGTP, para a conversa e trazendo com isso um ângulo muito laboral, um outro olhar para este “Blue Collar” e isso interessou-nos mais do que outra coisa.

O que poderá dizer sobre os convidados? Que tipo de dinâmica espera criar através dessas interações?

Sobre os convidados … o que tentamos sempre é ter convidados, até este ano mais que a do ano passado, e com poucos especialistas. Não gostamos da ideia de especialistas, tentamos fugir dela como o “Diabo da cruz”, o que pretendiamos era procurar vozes que tenham opiniões diferentes sobre os filmes.  

Como já referido, no “Eraserhead” vamos ter o artista plástico Vasco Araújo, com uma visão claramente diferente sobre aquilo e, portanto, não nos interessa a ideia de género, por exemplo, ligado a terror ou a bizarria, mas outro tipo de abordagem. E na última sessão, para além de outro convidado, o Carvalho da Silva, também com uma visão sobre mais a ideia do mundo laboral do que cinefilia. Interessa-nos sempre haver esse tipo de discussão, sair do filme e não ficar fechado dentro dele. O ano passado conseguimos isso em espaços. Dependeu um ‘bocadinho’ dos convidados. Neste caso específico fizemos um esforço claramente maior para que isso aconteça.

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Blue Collar (Paul Schrader, 1973)

Finalmente, teremos o desfecho da trilogia?

A resposta permanece a mesma que há um ano: não temos certezas. Tudo dependerá da avaliação que faremos disso e também muito do contexto do próximo ano, se se adequar. Não apreciamos a ideia de um festival ou de uma mostra cíclica que se repete. Isso significa que, muito possivelmente, há casos em que até podemos realizar uma vez ou duas, mas não necessariamente transformar isso numa iniciativa que ocorre anualmente e se consolida. Dependerá muito do que acontecer na programação ao longo do ano e do que pretendemos fazer também em torno desta questão dos anos 70. Isso pode implicar assumir outra abordagem, explorar diversas direções ou integrar-se em outros tipos de iniciativas. Esta é uma questão que estará claramente em discussão, mas, por enquanto, ainda é muito precoce para fazer essa avaliação.

Toda a informação sobre o ciclo aqui

Meter-se com a família é meter-se com o Cinema. Um ciclo à portuguesa no Cineclube de Alvalade

Hugo Gomes, 13.06.23

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Gipsofila (Margarida Leitão, 2015)

Foi com o muy celebrado “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos que o Alvalade Cineclube abriu o seu mais recente ciclo, uma mostra de filmes que nos soam familiar até porque Família é Família, como diz o título da iniciativa, e família, por bem ou mal, toda a gente a tem. Serão no total cinco obras que exploram os laços, sejam sanguíneos, sejam fabricados, que compõem esta íntima comunidade, por um lado são um espelho da nossa identidade, por outro são matéria para a criação. O cinema português celebrando “lugares-comuns”, salvo seja, com a intenção de ir mais além do mero álbum de fotografias. 

Em conversa com o programador Bruno Castro, desvendamos pouco a pouco a viagem pelos filmes e as suas respectivas famílias. A não perder no Cinema Fernando Lopes, este ciclo iniciado em 8 de junho e com desfecho (e que desfecho!), ao som de Trio de Odemira, com “Desterro” de Maria Clara Escobar no dia 29 desse mesmo mês. 

Curiosamente, alguém me afirmou numa daquelas tertúlias cinematográficas de que o cinema português “anda eternamente atrás da avó e do avô”, uma clara referência às enésimas temáticas familiares que deparamos neste panorama. O cinema português é no seu maior sumo um cinema que procura encontrar a sua identidade nas suas raízes familiares?

Temos muitas dúvidas sobre o conceito de “cinema português” hoje em dia…. Mas para além disso, o que queremos neste caso é dar espaço a realizadoras e realizadores que andam à procura de si mesmos. A Catarina Vasconcelos fê-lo na "Metamorfose dos Pássaros" ao partir de uma morte e ficcionar uma vida. O António Aleixo vai atrás sim, mas para perceber-se a si mesmo. A família enquanto tema do cinema feito em Portugal não nos pareceu mais do que uma desculpa para estes olhares, que estão longe de outras abordagens sobre os “avós”. Ainda assim, se entrar no espaço de intimidade da família for uma forma de encontrar identidade, então somos portugueses. Estes são cinco filmes para questionar inclusive o conceito de família. Parece-nos que o traço de identidade deste cinema português é a curiosidade e a vontade de fazer perguntas, seja ao avô ou ao bebé.

Tendo em conta esta seleção de filmes, que noção podemos ter de Família? Ou se no seu todo deparamos com uma tese?

Nada de tese! Não queremos ter noções, queremos ter diálogos. Nunca programamos com uma proposta de tese, mas sempre com um móbil de questionamento. E ainda por cima acreditamos piamente que família é o que se quiser. Só não está o Hirokazu Kore-eda neste ciclo porque não nasceu na maternidade Alfredo da Costa.

Um dos filmes selecionados é o “Desterro” de Maria Clara Escobar, que entra neste ciclo em oposição aos demais, é uma obra que deseja destruir laços familiares e não criá-los, e coincidentemente (ou não) é o desfecho da mostra.

É curioso como habitualmente se olha a ideia de família sobre o prisma da construção ou destruição. Como se fosse um edifício, que decidimos erigir ou demolir. “Desterro” surge pela diferença e pela coragem mais do que por oposição. A Maria Clara teve a vontade em assumir que "os dias que correm” podem ser fugas ou desagregações, e que a vida pode ser sair de casa, porque pode existir outra casa lá fora, ao ar livre. É um filme formalmente maravilhoso e de uma coragem surpreendente, pelo contexto de produção (filmado em plena era-Bolsonaro) e porque existe, apesar desta Humanidade. É também um filme que nos permite afirmar de forma bastante clara que família não é um conceito binário, boa vs má, sólida vs frágil, protegida vs exposta. É bastante mais dúbia que isso, e é por isso que fecha o programa. Adoramos zonas cinzentas.

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Desterro (Maria Clara Escobar, 2019)

De alguma maneira, todos nós identificamos com estes filmes de uma forma emocional, diremos mesmo que a Família é uma palavra universal e até que ponto não é um caminho fácil para cinema, principalmente enquanto “primeiros passos” de um(a) realizador(a)?

Boa pergunta para realizadores! E porém, com os que falámos e falamos, dizem-nos que é dos caminhos mais difíceis. É mais próximo, sim, mas comporta maior risco, porque se a ligação emocional do filme não se dá com o espectador, é um “falhanço”. E depois há aquela vontade dos realizadores de ajustarem contas com a sua própria vida. Alguns fazem-nos com zombies. Outros preferem ir almoçar com a avó. São todos humanos (menos os zombies).

Havia algum critério para o ciclo ser uma demonstração do universo português (mesmo “Desterro” ser ambientado e possuir coprodução brasileira)?

Boa pergunta. Na verdade, inicialmente a ideia era existir diversidade de cinematografias, e de famílias. Mas depois os astros alinharam-se de uma forma específica e surgiram oportunidades para ter as realizadoras e realizadores em sala, para discurso directo, e não quisemos perder esse comboio. “Gipsofila", por exemplo, é uma raridade em sala e isso permitirá ter a Margarida Leitão de novo connosco. O mesmo com o António Aleixo, a Catarina, o Jorge Vaz Gomes. Não trocamos uma boa conversa em carne e osso por um taco gordurento da cidade do México, sem chicha ao vivo.

Novas familiaridades … quer dizer, novos projetos para o Alvalade Cineclube?

Podíamos fazer trocadilhos e dizer que o scoop agora vai ser de gelado de limão durante o Verão. Em vez disso, damos mesmo um scoop sumarento: em setembro os olhares têm título bem grosso: “Da Glória das Mulheres em Portugal”, com três documentários sobre senhoras desta terra. Em outubro, o primeiro ciclo participativo, em que os filmes a ver serão votados pelo público a partir das sessões mais marcantes dos últimos anos. Em novembro, o regresso da América 70 com mais cinco colarinhos azuis. Em dezembro, Noites Portuguesas serão três saraus cinéfilos especiais. Pelo meio o arranque do projecto educativo Cinedojo, com paragem pelo Cinema São Jorge. Chega para conversa de Natal no jantar de família? Nós levamos a compota para trocar no quintal.


Todas as sessões iniciam às 21h00 (ver programação aqui)

Que Cinema se fazia nos '70? Alvalade Cineclube apresenta novo ciclo.

Hugo Gomes, 02.11.22

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Five Easy Pieces (Bob Rafelson, 1970)

Entre “The Graduate” de Mike Nichols e “Bonnie & Clyde” de Arthur Penn declarou-se o fim da Hollywood clássica que tão bem aprendemos a amar, e o epíteto chegou-nos através de um recomeço. 

O mundo mudou drasticamente e com isso, a linguagem cinematográfica encontrava-se sensível a movimentos crescentes e a estéticas subvertentes. É o “novo cinema” e com isso, a “bem-vinda” de novos protagonistas, “contaminados" pelas manifestações de vagas, refrescantes e acidamente desconstrutivas, que surgiram por esse mundo fora. Os EUA, que tão tardio acolheu essas mesmas vontades, aprendeu a olhar para si com a desconfiança, a crítica e a motivação em reencontrar a sua própria identidade, essa, renegada e negada vezes sem conta por quem o poder estava instituído. Assim nasceu o que chamamos de Nova Hollywood, ou os “Movie Brats”, ou simplesmente os 70s, a cada vez mais discutida e mais recente idade de ouro do cinema americano. 

E é pelos rumos das novas inserções, cinema que nos distancia mais e mais, e que mesmo assim, nem por um minuto, nos deixa impressionar, que o Alvalade Cineclube se lança num muito antecipado ciclo - "América ‘70" - um conjunto de sete obras que resumem a década ainda hoje relembrada como uma das importantes e revigorantes da cinematografia “yankee”. 

Arranca no dia 3 de novembro com “Five Easy Pieces” de Bob Rafelson (1970), terminando no dia 15 de dezembro com “Killer of Sheep”, de Charles Burnett (1978). Todas as sessões acontecem à quinta-feira (e com convidados especiais), no Cinema Fernando Lopes [Lisboa]. Em conversa com o Cinematograficamente Falando …, o programador Bruno Castro explica as razões para não ficarmos de fora nesta mostra. 

Gostaria de, antes de mais, que me falasse sobre a natureza deste ciclo e a importância dele. É um ciclo sobre Nova Hollywood, o movimento, ou do cinema produzido na América na década de ‘70?

É um ciclo sobre a vida, num ecrã. A década de 70 no cinema americano é o pós-musical e a antecâmara do screen sugar dos 80s, e isso significa que foram 10 anos de muita honestidade, dilemas, indigências, inconformidades, pequenas felicidades seguidas de pequenas infelicidades, tiros falhados que afinal acertam noutro alvo sem comédia. E de repente tudo isto nos parece familiar em 2022, não? Somos uns suckers pelos 70 americanos, foi talvez a década de cinema mais honesta de sempre, e é essa visceralidade que nos interessa. Claro que depois podemos ter um olhar mais cinéfilo hard core e falar da Nova Hollywood e dos realizadores e de como a queda dos estúdios motivou algumas dinâmicas (e isso virá ao de cima nas conversas com os convidados dos ciclos, que são imensos desta vez!), mas o que nos interessa mesmo é a honestidade naquilo tudo. Caramba, o cinema voltou a ser assim?

Na programação podemos encontrar obras incontornáveis do “movimento” como “Taxi Driver” de Scorsese, “Serpico” de Lumet ou “A Woman Under Influence" de Cassavetes, mas é nos detalhes, como se costuma dizer, que somos conquistados. “Car Wash” e “Killer of Sheep”, queria que me falasse na seleção destes filmes. Aliás, como se procedeu à escolha desta programação?

O diabo nos detalhes, é sempre assim. Comecemos pelo mais fácil: era óbvio para a equipa de programação que não podíamos ficar nos grandes filmes, nos que toda a gente conhece. Claro que “Taxi Driver” e “Serpico” fazem sentido (até porque existem diversas gerações que nunca os viram no grande ecrã), mas os 70s foram também o Richard Pryor a chegar de limousine a uma estação de lavagem de carros, e a ser gozado pela fatiota. “Car Wash” é o ponto de fuga deste ciclo. Tem mais funk que o Prince, mais blackness que Sidney Poitier e uma bizarria dançável impossível de ver noutros filmes. Os 70s foram também aquela zona estranha em que dançamos enquanto lavamos carros, personalidades da cultura popular entram e saem de cena. Foi essa a zona de liberdade dos 70s. Se “Serpico” era um homem amargurado pela corrupção numa cidade suja, é verdade que também houve momentos luminosos naquele tempo. 

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Serpico (Sidney Lumet, 1973)

Já "Killer of Sheep" tinha que ser a forma de terminar um ciclo sobre esta América. É um filme precioso, invulgar, de periferias, com uma visão lindíssima sobre a realidade que não está refém de uma narrativa construída convencionalmente. É mais um exemplo de liberdade formal, e um filme muito incompreendido, pouco visto, que o tempo veio afirmar como um dos grandes. Como cineclube temos a responsabilidade de assumir um trabalho de curadoria real, isto é, de não facilitar e mostrar “apenas” o mais óbvio. Os espectadores confiam no nosso olhar, e na possibilidade de descobrir filmes que não imaginam existir. Temos que estar a esse nível.

Voltando às menções de “Taxi Driver”, é possível contar a história de uma Nova Hollywood sem a solicitação de cânones ou obras charneiras?

Uff.... A ideia de “obra charneira” e de “cânone” vem da crítica, de uma certa intelligentsia de um tempo... Na verdade, não queremos contar a história de um movimento. Nunca nos move a ideia escolástica de “explicar” algo, ou “demonstrar”. Isso seria fechar as leituras dos espectadores, e era um crime lesa cinema. Dito isto, “Taxi Driver” é um enorme filme apesar do cânone. Isto é, não foi essa tentativa de canonização que motivou o seu aparecimento, nem é essa a leitura que queremos fazer do filme dentro do ciclo. A grande questão com os “grandes filmes” é sobre quantas pessoas verdadeiramente os viram no cinema? Que gerações de espectadores atuais nunca viram estes filmes num ecrã e numa sala de cinema? Ou conversaram sobre eles? A experiência de sala está no nosso estômago, e por isso vamos sempre procurar dar oportunidades para que filmes que merecem ser vistos sejam vistos no ecrã que os viu surgir. Conhecemos imensas pessoas que nunca viram “Taxi Driver”. Que uma sala de cinema e um ecrã de cinema sejam o espaço que habitam para essa experiência inacreditável.

Há um sentimento de que hoje muita da Nova Hollywood é rejeitada por não corresponder em parte a vários padrões ou requisitos morais e político-sociais atuais. Falo por exemplo no vigilantismo, tópico diversas vezes requisitado em muitas obras deste período, ou até mesmo à antagonização feminina e de certas minorias, como também orientações sexuais. Isto tudo para lhe questionar se é possível olhar para a Nova Hollywood e a década de 70 com outros olhos, ou devemos instalá-los como algo estagnado, mas de importância histórica?

Ahahaha, que boa pergunta! Dava toda uma outra entrevista.... Ou um Q & A! Temos muito medo do revisionismo, seja ele histórico, político ou outro. Claro que é impossível olhar para trás sem os olhos de hoje, mas deve um filme ficar refém das ideologias que lhe aplicamos hoje? Não há nada de estagnado na América de 70. Aliás, nunca foi tão atual! Quantas das disfunções de 70s vemos hoje? Quantos dos dilemas? Aliás, se calhar mais hoje do que em 2000, por exemplo. Ter um posicionamento ideológico ativo hoje sobre filmes de 70s é, para nós, estranho. 

Uma coisa é compreender que muito do cinema (como de todas as manifestações culturais) é filho do seu tempo e como tal incorpora abordagens que hoje podem ser vistas como datadas. Outra coisa é passar a barreira e apontar os dedos. Se alguns destes filmes promoviam práticas que hoje sabemos não fazerem inteiro sentido? Claro. Se nos cabe a nós um posicionamento revisionista, para apontar o dedo ou mesmo fazer censura ao programar? Completamente não. Cabe-nos sim mostrar e discutir. Um cineclube é um espaço de descoberta e discussão aberta. Sempre.

Em relação ao Alvalade Cineclube, a Nova Hollywood será um ciclo fechado, ou existe possibilidade de expandir em tidas “sequelas”? 

É uma questão que nós temos colocado a nós mesmos, e nem devíamos fazê-lo porque o programa ainda nem arrancou. No final faremos um balanço, como sempre, e depois vamos pensar na vida. Vontade de voltar onde somos felizes há sempre, mas ao mesmo tempo não acreditamos na “festivalização” da cultura, e promover edições de determinados programas pode cair aí. E há muitas questões legais envolvidas, de direitos de exibição, cópias, que dificultam muito estas iniciativas. Este é o programa mais difícil, nesse ponto de vista, do cineclube desde que existe. É uma oportunidade incrível! Temos que ponderar todas as questões e perceber se faz sentido. É muito cedo ainda para pensar nisso. Queremos viver os 70s agora. Queremos que os vivam connosco.

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Car Wash (Michael Schultz, 1976)