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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Never dumb down the audience"; James Mangold haveria dito, ombro-a-ombro com Bob Dylan

Hugo Gomes, 22.01.25

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Quando me refiro a James Mangold como um “bom tarefeiro”, não estou, de forma alguma, a reduzi-lo a uma espécie de “faz o que basta” ou a alguém incapaz de se apresentar como um cineasta de pleno direito. Não, não o coloco nessa posição depreciativa, até porque Hollywood foi habitada por décadas de grandes tarefeiros. Basta lembrar que, em Fevereiro, a Cinemateca irá dedicar-se a Michael Curtiz, um exemplo paradigmático de um tarefeiro que participa no debate da autoralidade.

Quanto a Mangold, especificamente, atribuo-lhe essa designação por uma razão concreta: ele é o “o homem perfeito para trabalhos” que os estúdios querem impor, sem nenhuma estrutura egocêntrica que o impeça, os efetua acima da mera eficiência, “A Complete Unknown”, o esperado biopic (a award season tresanda a esse subgênero) sobre Bob Dylan, é um exemplo disso mesmo.

No filme, Timothée Chalamet - que, ainda que ultrapasse a sua habitual postura de desapego Gen Z, nunca nos convence totalmente ser o Dylan na mimetizada forma – mas, enfim, o cinema não está aqui para se colar à realidade e o verdadeiro aprovou o desempenho, por isso quem somos nós para o contrariar - interpreta o cantor enquanto este transita de um desconhecido errante para o cantautor (e poeta, para agradar à decisão do Nobel) que conhecemos tão “bem”. Um dos momentos altos do filme decorre no Newport Folk Festival. Após Johnny Cash (interpretado por Boyd Holbrook, “Logan) ter dominado o palco, Dylan apresenta-se de seguida diante de uma multidão tradicionalmente ligada ao género folk. Na plateia, a sua, digamos, “namorada”, interpretada por Elle Fanning, encoraja-o de longe apenas com o olhar, espera ver o seu “graúdozinho” a brilhar.

É então que, de guitarra em riste e com a harmónica suspensa ao nível do seu beiço, Dylan começa a cantarolar “The Times They Are A-Changin’”. Primeiro, há o silêncio da estranheza – uma canção nova, um lirismo esperançoso -, e por fim, o público, rendido, entra ao rubro. Nasce aqui o momento de glória de Dylan: um artista, uma estrela, no sentido mais vulgar do termo. A câmara corta então para o rosto de Elle Fanning e se aproxima lentamente. Os seus olhos, entre o deslumbramento e a tristeza, encharcam-se com as lágrimas que eventualmente irão lhe escorrer pela face. Nesse preciso instante, ela sabe: Bob Dylan já não lhe pertence. O ‘vagabundo’ que acolhera meses antes, com quem imaginara partilhar o quotidiano, é agora do Mundo.

Mangold transmite tudo isto apenas com imagens (e, claro, a música, perfeitamente alinhada com o efeito pretendido). Nada é explicado de forma redundante, como o próprio realizador mencionou recentemente num podcast [The Director 's Cut. A DGA Podcast”], evita ao máximo os “dumb downs” para o espectador, criticando os estúdios por tratarem as audiências como se fossem cada vez mais “parvas” – e estas, numa espécie de Síndrome de Estocolmo, cedem sem resistência.

Isto, sim, é ser um “bom tarefeiro”: o realizador das fragilidades (talvez seja esse o ponto em comum entre as suas obras), nunca condescende perante o espectador. O oposto, diria, do tarefeiro-mor (aqui, sim, em sentido pejorativo): Ridley Scott.

Burguesias como bolos sortidos

Hugo Gomes, 18.05.17

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Para Arnaud Desplechin, em algumas das suas notas de recomendação, “Les Fantômes d'Ismaël” é um ensaio fílmico sob o olhar atento à natureza do pintor Jackson Pollock, nuances e teores todos eles divergentes que se fundem, dando lugar a um só organismo, complexo, mas um só. Infelizmente, o que o realizador diz não se escreve, porque este seu novo filme, que tem a honra de abrir a 70ª edição do Festival de Cannes, é uma quimera defeituosa.

Uma obra que não faz jus ao seu criador e que conduz o espectador a um espelho deformado que distorce todo o elo narrativo da fita. Saímos com a sensação de termos assistido a 5 filmes diferentes, passando pelo policial com leves “piscadelas” a Le Carré, ao romance parisiense, e até ao humor involuntariamente burlesco. Infelizmente, Desplechin não desenvolve uma coluna vertebral consistente, nem sequer tenta transvestir a palete de cores, pois nenhum dos tons se mistura verdadeiramente. O que este se dispõe é, através dos mais variados lugares-comuns, a apresentar um elenco francês all-star, onde nenhum deles verdadeiramente entrega, para além dos seus reconhecidíssmos egos, um filme que não esteja em pleno estado de malabarismo, não seja pretensioso e igualmente despersonalizado.

Pollock tinha personalidade, aliás, tal talento é reconhecido nas suas mais variadas pinturas expressionistas, e em todo o caso era um artista em constante fase de superação. Desplechin não. Ele é um burguês que explicita cinema burguês sem nada de novo para embicar com o vento. Do mesmo jeito que usufrui das transposições para trazer um artificialismo visual (talvez o melhor que o filme tem para oferecer), ou da oportunidade que tem para citar Bob Dylan e o seu “It Ain’t me baby”.

Bem, como alguém já dizia … peças separadas, sem conexão, nem infusão. Será este o pior filme de Desplechin?