MDOC 2025: Como filmar a Guerra? [Parte 2]

Voltamos à questão … Em Melgaço, o cinema é uma janela para estes conflitos mundiais, alguns expirados fisicamente, mas nunca desvanecidos na memória de quem os viveu, e consequentemente na herança cultural dos seus “pueblos”. Cicatrizes difíceis de cicatrizar, é o que é. Ou melhor, a “Guerra infinita”, nunca várias, nem variações, tudo integra uma uniformidade que é essa crise bélica. Os filmes desta seleção levam-nos a esses caminhos, e por um lado ou outro, implementar a semente do questionamento estético … e ético: Como filmar a Guerra?
Todos os movimentos, todas as temáticas, tecem a sua experimentação e prosseguem na sua emancipação (encontra-se um encadeamento, um clarão antes do apagamento criativo), até a irrelevância conduzi-los ao questionamento das suas devidas naturezas. Aconteceu com o neorrealismo. Aconteceu com a porno-miséria (que o colombiano Luis Ospina, perante o erro cometido pelo fácil puxar a alavanca que é filmar ‘Pobreza’, reconheceu esse voyeurismo vampírico). Portanto, chegamos à guerra, e o porquê agora questioná-la? Com a vinda do digital, a produção saturou-se, os canais 24 hour news enchem os nossos confortos domésticos com directs ou sob o salivar do reality show do miserabilismo - a Guerra em directo, o sonho de qualquer órgão de comunicação. Em luta contra o deferido, em favor ao imediatismo. É o facto que com novo foco conflitual a surgir são imensas as obras que nos encostam à parede, uns para nos relembrar, outros para denunciar, outros para aproveitar.
“Como filmar a Guerra?”, talvez devemos trabalhar e operar um código deontológico ou (re)conquistar as linhas-guias para as produções, da sua abordagem e da sua postura moral. Como o “travelling de Kapo”, o título do texto-crítico de Rivette, mais tarde repescada e ecoada por Serge Daney, como emprego de uma abjeção estética. “Este realizador apenas merece o nosso mais profundo desprezo”, lê-se após o retrato da cena da morte da personagem de Emmanuelle Riva no infame filme de Gillo Pontecorvo. Por outro, impondo uma ética ou um conceito consensualizado da mesma, restringimos a sua potencialidade de reinvenção? Quem sabe?

Voltando ao propósito do Festival de Melgaço, a dinamarquesa Birgitte Stærmose decidiu olhar para uma guerra esquecida, o conflito bósnio-servio, não num retrato ao sangue e destruição cometido nas suas arestas, mas às feridas abertas, aos ditos “filhos da guerra”. Filmou “Afterwar” durante 15 anos, e nesse espaço descobriu a importância de se guiar por três tempos: Passado, Presente e Futuro. Aproveitando esses “órfãos”, somos reconduzidos (sob o cunho do Passado), aos sussurros destas “crianças perdidas”: vendendo ilegalmente tabaco, prostituindo-se, envolvendo-se em furtos e miserabilidades, a caminho da soturnidade impestosa, na sonoplastia envolvente (que nunca se cala, porque não o deve por intuitos manipuladores), da montagem “ao Deus dará”, das constantes quebras da quarta parede. É uma história a ser contada, pensou a realizadora quanto ao estratagema performativo. Um Malick sem as suas imitáveis maliquices, apenas na essência de uma teologia interior que confronta estes enfants um requisito de salvação, ou redenção.
No Presente, os ‘miúdos’ cresceram, são agora adultos, são “putas tristes” (citando Gabriel Garcia Marquez). Continuam no ilícito, no precário, no desmotivacional, deixam o tabaco vendido banca a banca, balcão a balcão, são os amendoins a nova contrafacção. Prometem não ceder aos erros dos progenitores, prometem lutar pelo futuro. O malickiano prossegue como envolvência na sua montagem encavalitada, a música estabelece-se como catalisador emocional. Já não sussurram, o emudecimento voluntário das crianças era medo, agora falam e também rappam, sonoramente, mas quanto ao medo? Esse, não os larga, nem despede, ocupa espaço-tempo-coordenação e recusa a sair.
Dirigem-se ao público, acto sempre constante, repetidamente, trovando a desgraça das suas vidas desperdiçadas, frutos dos traumas da sua identidade dilacerada pela Guerra, essa que o Cinema nunca retratou devidamente além do abstracto … e Jean-Luc Godard, esse traquinas, levou a memória desse conflito para esse campo metamorfoseado, alegórico [“Je vous salue, Sarajevo”, “For Ever Mozart”], a ele também poderemos inquirir a questão: como filmar a Guerra?

“Afterwar” conserva esse retrato martirológico e a serve como a sua interpretação, aqueles ‘não-actores’ são obrigados a mentir, não por via da encenação, mas também quanto à sua natureza. “Isto não é um filme, são vidas reais”, dirigem-se novamente ao público. Deste lado da bancado, sussurramos: “Que mentira!”. A vossa história pode ser verdadeira, mas no preciso momento em que o filme indicia essa vertente estética, performática, arte plastificada e “malickiada”, aqueles ‘não-actores’ estão ao serviço de uma ficção, docuficção talvez, viram ‘bonecos’, com violinos estridentes de fundo.
Como se filma a guerra? perguntamos nós em Melgaço. Não há resposta devida nem pré-feita, mas digamos, está na hora de começar a pensar nisso.

















