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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Há espaço para uma nova releitura de “Nosferatu”?

Hugo Gomes, 02.01.25

Captura de ecrã_2-1-2025_184138_www.facebook.com.

A primeira questão que se impõe é: por que reavivar “Nosferatu”, o intemporal filme de 1922 de F.W. Murnau, que no fundo não era mais do que uma variação não autorizada do romance de Bram Stoker [“Drácula”] que, por mera sorte (e a nossa, diga-se), sobreviveu à fúria judicial de Florence Stoker? A viúva do escritor processou o produtor Albin Grau (figura do ocultismo digna de uma narrativa própria) e a equipa de produção por plágio, levando à falência a produtora Prana Film e ordenando a destruição de todas as cópias do filme. Felizmente, algumas escaparam, permitindo que este clássico não só sobrevivesse, como se tornasse uma peça central do expressionismo alemão e da História do Cinema, para além da do enigmático Max Schreck como Conde Orlok a marcar profundamente o imaginário do género.

A decisão de revisitar algo aparentemente intocável, como fez Werner Herzog em 1979, poderia parecer uma dúvida corrosiva. No entanto, o gesto o alemão transcendeu a simples recriação: foi um ato de justiça poética, devolvendo “Nosferatu” ao seu campo original, ao universo assinado por Bram Stoker. Na sua visão, Orlok (aí encarnado por um mártir de corpo inteiro denominado por Klaus Kinski ... pois claro!)  assumia-se sem embaraços nem inquietações como Conde Drácula, e o seu interesse mortalmente amoroso (das mais estagnadamente belas Isabelle Adjani de sempre) Mina Harker. Herzog ofereceu uma filosófica reinterpretação que se libertava da mera homenagem, criando algo que, por si só, poderia encerrar o ciclo das revisões do clássico de Murnau. Escusado será dizer que o vampiro pálido virou “figurinhas” de cultura pop e de algum fascínio paralelo que motivou obras como “Shadow of a Vampire” (2000), oriundo de um realizador também ele objecto a merecer estudo - E. Elias Merhige (“Begotten“, 1989) - , um relato alternativo à rodagem do filme de 1927, com Willem Dafoe enquanto Max Schreck, ficcionalmente um ator que não é um ator e sim um vampiro pronto ao sacrifício em nome do Cinema.

Assim, a pergunta persiste: há espaço para uma nova releitura de “Nosferatu”? Talvez. Mas, após Herzog, como reinventar este material sem cair em redundâncias ou artifícios? Claramente - a luz que estilhaça vampiradas - não pertence a Robert Eggers, aqui assumindo um remake pouco despreocupado com o percurso histórico da obra de Murnau, até pelo simples facto de retroceder o cometido ato de Herzog, que fora o de devolver “Nosferatu” ao seu espaço originalmente concebido. O realizador-revelação de “The Witch” parece mais interessado em reativar a memória do que em repensá-la. Nesse sentido a existência de um novo “Nosferatu” é supérfluo, e o tratamento dado por Eggers é apenas fogo-de-artifício, ou como ultimamente tem demonstrado, umas quantas massagens eróticas para com o seu ego.

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Contudo, não se trata de um novo suspiro sob as vestes clássicas, ou como deslumbramos no descortinar do filme, a performance sexualizada, os gemidos igualmente magoados e repletos de um desejo entristecido por Lily-Rose Depp (possivelmente o melhor que o filme tem para nos oferecer como devidamente ‘fresco’), é terminada com um jumpscare. Sim, leram bem! Um jumpscare?! Essa praga do “terror de estúdio”, que se encontra muito bem presente em todo este ser. A recontagem faz-se na modernização de um passo pesado e ostensivamente virtuoso, uma estética de ódio plastificada, mas lá estão os tais ‘jumpscares’ em conjunto com as manhas e manientas do terror comercialoíde, a envergonhar, isso sim, a memória das versões anteriores, esses filmes alicerçados ao semiótico do verdadeiro medo e atmosfera. “Nosferatu” é, afinal, uma treva viscosa que se espalha e infesta como a Peste que o vampiro originário usa como arma de arremesso; é um terror engarrafado e consumido como tónico industrializado.

Não duvidemos que exista ocasionais vislumbres de luz, mas rasteiro na obscuridade da sua delirante objetificação. Há, no seu podre coração, um conflito interno e devastador entre a “visão de autor” e a “obra de estúdio”, mas ambos os lados são sequazes às manobras obedientes aos códigos do mainstream global.

Ainda há Bill Skarsgård — a assumir o lugar multifacetado que Johnny Depp ocupava no colo de Tim Burton, sucessor de Tim Curry e mais distante de Lon Chaney, intérpretes que captaram com vigor a essência carnavalesca no seu modus operandi —, a encarnar este Conde Orlok regressado da ilegalidade de Murnau. E aqui se percebe por que motivo Eggers faz um filme certinho, moldado ao gosto do grande público: porque esconde a besta demoníaca até à última consequência, incapaz de acreditar na sua presença corpórea, algo que os anteriores exploraram tão bem e vilmente. O vampiro é barulhento, animalesco e hiperbólico, exatamente como o cinema de Eggers se converteu… e mal.

Que os mundo dos mortos seja o palco da tua vingança ...

Hugo Gomes, 22.08.24

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Através da imprensa, ficou-se a saber que foram tomadas precauções rigorosas durante as filmagens de "The Crow". Segundo consta, nenhuma arma "real" foi utilizada nas sequências de ação (que contam com múltiplos tiroteios), provavelmente sob a sombra do fatídico caso de "Rust" (a produção de Alec Baldwin ainda a preencher manchetes), assim como pela memória do original de 1994. Nesta decisão nenhuma crítica “disparo”, contudo, é por estas mesmas cautelas que ressalta o facto de que, independentemente do número de versões, qualquer adaptação deste "anti-herói" das páginas de James O'Barr nunca conseguirá emancipar-se da sua assombração. 

Como bem sabem, há vinte anos, Brandon Lee, filho de Bruce Lee, em ascensão na indústria, preparava-se para alcançar o esperado estrelato com a adaptação de "The Crow", mas, estranhamente, uma arma carregada presente no set ditou o seu trágico fim. Lee eternizou-se à custa dessa tragédia, que, ironicamente, auxiliou o sucesso do filme e impulsionou a carreira do realizador Alex Proyas, alimentando mitos em torno do projeto, desde uma maldição sobre a família Lee (recordando que Bruce Lee também faleceu a meio de uma rodagem - "Game of Death", de Robert Clouse, em 1978) até à ideia de uma anátema associada ao corvo. Apesar das sequelas de baixo orçamento, lançadas em modo direct-to-video, os estúdios nunca esconderam o desejo de ressuscitar a história, e foi preciso aguardar duas décadas, com inúmeros falsos começos (muitos projetos anunciaram-se e morreram logo de seguida) para chegarmos a esta adaptação gótica desajustada, com a assinatura de Rupert Sanders, um um “tarefeiro” sem grande expressão, convém afirmar ("Ghost in the Shell", "Rise of the Planet of the Apes"). 

Mas, voltando ao início da "conversa": qualquer "The Crow" que seja trazido ao ecrã será sempre associado ao filme de 1994 e aos eventos que o envolveram. Uma versão como esta, mesmo tentando distanciar-se, acaba por nos conduzir àquela memória coletiva; a dissociação é inevitável, pois desde a sua génese, está estabelecida uma comparação e como sabemos, não podemos voltar a 1994; as audiências exigem outros elementos, mas nem por isso são menos ou mais exigentes. Enquanto o filme de Proyas era mais direto na sua narrativa trágica, aqui, somos encurralados num romance que dá origem ao pacto mefistotélico. Bill Skarsgård (“It”), o novo "corvo", e a artista musical FKA Twigs, sua "Julieta" de todos os terrenos, vivem um amor vampírico que desespera pelo gótico-pop que caracteriza este universo, uma "palha" que tenta estabelecer no espectador uma sensação de amor "bigger than life". 

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Infelizmente o trágico parece ser injustificável à particularidade que levará à compaixão da ave negra, e fora disso a postura inteiramente sonolenta de Twigs dissipa qualquer compaixão à sua figura, de certo ambígua e relevante para o coração da trama. Skarsgård, por sua vez, oferece as ferramentas óbvias para justificar esta nova incursão (o olhar de desalento que o acompanha é a sua personagem), mas até o filme encontrar o seu tino (há uma clara falta de ritmo), o seu lamento revela-se deplorável, numa busca por uma gravidade que Sanders parece incapaz de alcançar. 

No entanto, é quando a maldição se interioriza na sua magnificência que a violência "R" manifesta as suas liberdades e libertinagens, com coreografias de violência gratuita (da autoria do stunt coordinator Adam Horton, "Mission: Impossible") a preencher os requisitos operáticos. Curiosamente, é na Ópera, sob os acordes de "Robert le diable" [ópera francesa composta por Giacomo Meyerbeer, entre 1827 e 1831], que a magnificência da sua produção é nos descortinada. Para um filme com cuidado em não mesclar legados e tributos, a sua dose generosa de pólvora e mutilações por via de katanas japonesas é um “fuck off”, um malabarismo de cinismo e dos propósitos de uma produção como esta - “queremos ação porque o sabemos fazer, enquanto que o drama, a sua Humanidade, nem por isso”. 

Mas fora o ato de ocasional génio do seu género que se vai com a sua alegórica queda do pano, resta-nos um anti-clímax, um romantismo demagogo e pacóvio, e pouco mais. Promete sequela, mas o medo dos fantasmas de 1994 está bem presente; "The Crow" prossegue numa vitória artificial sobre as suas amarras. Vénia a Brandon Lee, um beijo na mão e seguimos com a nossa vida, o corvo vem logo atrás.

"Clown Hype"

Hugo Gomes, 19.09.17

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Para entendermos a natureza desta nova versão do êxito literário de Stephen King, devemos inteirarmos numa das sequência-chaves de ambas as conversões, a infame minissérie que foi transmitida em 1990, e o filme que tem culminado num grandiloquente hype.

No projeto televisivo, Tim Curry veste a pele desta entidade que assume a forma do palhaço como catalisador de um medo comum e, não só, criar um engodo, uma empatia fraudulenta para com as suas vítimas. Na cena em questão, que intitularemos simplesmente como sarjeta, seguimos Georgie, uma criança que desfruta um dia chuvoso na “companhia” de um barco de papel, fabricado pelo seu irmão mais velho. Enquanto segue as correntes induzidas pela forte precipitação e das eventuais sarjetas que se encontram à berma dos passeios, Georgie perde a sua embarcação numa delas e, desesperadamente, ao tentar reavê-lo, é surpreendido por um palhaço. Existe nele um sorriso amigável, um discurso de promessas, iguarias, dotado de um humor matreiro, mas que para qualquer criança é um comité de confiança. O rapazinho cai na armadilha, assim como muitas crianças cairiam na “conversa de estranhos”, esses terrores comuns dos progenitores.

Claramente, com possibilidades de censura televisiva, nunca vemos verdadeiramente a criatura consumir a sua presa, tudo cai num cliffhanger de cena, dando lugar aos créditos iniciais. Na versão de 2017, por sua vez, o “palhaço”, agora interpretado por Bill Skarsgård (filho do ator Stellan Skarsgård), é uma ameaça evidente, sorriso malicioso, aspeto pomposo, com diálogos arrastados e uma voz asquerosa. Um verdadeiro pesadelo para a “criançada”. A sua abordagem é tudo menos engodo, a farsa como um isco, mas sim a persistência, aquela de consumir a sua presa o mais depressa possível. No caso da alimentação, contrariando o repentino corte da minissérie, este “IT” é explicitamente gráfico. A exposição dos novos tempos do horror acaba por contornar um dos grandes tabus do cinema de horror, isto porque poucos são os que demonstram expressamente a morte de uma criança de forma visualmente macabra.

Apontado por muitos como uma nova faceta do terror contemporâneo, e ainda mais a operar nos grandes estúdios, Andy Muschietti concebeu "Mama" há quatro anos atrás (apadrinhado por Guillermo Del Toro). Vencedor do Fantasporto, o filme apresentava um conjunto de nuances na vertente do fantástico e da estética terrorífica de outros tempos. Muschietti é fascinado pelo terror hoje “infabricável”, pelo desconhecido como signo e neste IT pelo regresso do carismático vilão do género (algo que não víamos desde a morte de Jigsaw na “longuíssima” saga iniciada por James Wan).

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Como importante influência na conceção desta ameaça antagónica, “A Nightmare on Elm Street” parece ganhar dimensão nos aspetos visuais e na tentativa de conceder uma atmosfera penetrável. Tal como as criação de Wes Craven, existe um imenso “carinho” pelo vilão, pela entidade maligna que se assume como o derradeiro protagonista de um conto sob contornos comuns do imaginário de King (sim, todo aquele cenário “Stand By Me” não é meramente déjà vu).

Nesse sentido, a “palhaçada” tem tendências a estorvar o potencial narrativo do filme. "IT" desenvolve-se desequilibradamente entre uma preocupação com as personagens (os jovens capazes que se fundem na reconstituição de época) e os jumpscares – como manda a agenda (até “Annabelle 2” conseguia ser mais inventivo nessa abordagem)- gratuitos que nada contribuem para um cenário de medo. Aliás, o medo é coisa inexistente por estas bandas.

Obviamente que somos induzidos a uma produção competente, quer a nível técnico (apesar do excesso do CGI que não se separa do protagonista), quer na narração (saber condizer duas nuances opostas é, em termos industriais, uma bravura). Porém, a competência nunca salvou projetos do esquecimento e em “IT” existe uma ausência de agressividade na sua abordagem … E não. Não me refiro ao grafismo, mas sim ao inconsciente, o elemento mais tenebroso de todos.