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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinema em coma até ao regresso da Humanidade

Hugo Gomes, 14.05.22

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Entendemos que Bertrand Bonello tem-se dedicado aos “fins” acima das criações, seja o término da romantização da “profissão mais velha do mundo” (“L’Apollonide: Souvenirs de la Maison Close”, 2011) como da pornografia e as réstias do seu debatido requinte (“Le Pornographe”, 2009) ou até mesmo da ideologia (“Nocturama”, 2016), esse é o signo trabalhado por um realizador que anseia reafirmar-se num panorama autoral francês. Mais perto de aniquilá-lo do que integrá-lo [círculo da autoralidade francesa], tendo em conta a sua vontade mostrada, é com “Coma” sob os “-idos” de uma pandemia e um sentimento de destruição que tal acarreta, que Bonello encena um apocalipse representado aos mais diferentes níveis; terrenos, éticos e civilizacionais, e para isso, numa carta acentuada na maioridade da sua filha (o qual dedica por inteiro), conduz-se numa alfabetização em oposição aos velhos costumes cinematográficos. 

O resultado, porém, possui mais experimentalismo do que anarquismo, visto que o Cinema, contra tudo e contra todos, sobrevive ao fim da Humanidade como bem queremos e ao ponto final decretado ao mundo em questão. Apenas transforma-se em qualquer outra coisa, algo indecifrável e inabitável no nosso biótipo, com as suas devidas regras e operacionalidades. “Coma” não é de todo, o último “grito” da modernização da linguagem cinematográfica até porque a mensagem aí vincada sobressai do ziguezague eclético que  percorre os terrenos ficcionais, documentais e as diferentes técnicas de animação (rotoscopia, stop-motion), com isso também extraindo aos mais recentes dialectos semióticos uma tradução da tal prescrita contemporaneidade (o "desktop film”, o “found footage” ou a mimetização do lufa-lufa virtual imposta influencer de pseudónimo Patricia ‘Coma’, interpretada em jeito higienizado por Julia Faure). Essa “decifrada” carta dirigida ao espectador, não é mais que um tormento sobre o final de uma Era, o qual indecisamente não codificamos automaticamente o seu significado. 

Por um lado alarmista, por outro pessimista, este é o filme de pandemia (ou de confinamento) que resgata as ramificações depressivas da mera demagogia barata e as insere numa atmosfera esquizofrénica à luz daqueles que se encontraram perdidos entre o tempo e na realidade (para muitos o confinamento é relembrando como uma massa uniforme de horas, dias, semanas e até meses, um evento verdadeiramente traumático). Por outro lado, “Coma” não tem nenhuma salvação preparada para a Humanidade (ou o que resta dela), o desespero torna-se na rota das especiarias desta jornada entre dimensões, a intenção de criar o absolutismo para o depois destruir, e com todo os trilhos cuja civilização ocidental (com a restante por arrasto) prosseguiu, desde o culto ao grotesco até à falta de empatia com vista na sobrevivência da “espécie”. 

Para Bonello, depois de esgotar estéticas, fonéticas e representações, o que tem para oferecer à filha é somente o Apocalipse (um filme-testamento?). A próxima história é o que ela verdadeiramente fará com tal oferenda.

O que podemos esperar da modernidade se o que nos aguarda é a sobrevivência?"

Devolver a natureza original ao morto-vivo

Hugo Gomes, 02.01.20

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Se descurarmos a definição de zombie, longe da criatura vendida que hoje deparamos na sua mais informe saturação, vemos uma mitologia, aliás, uma crença por um culto pagão de origens africanas. Desde as mordidas das mambas negras, os seus efeitos secundários e a sua transladação das Américas através do transe e do vudu, culminando cultos afro-ameríndios olhados com desdém pelas culturas anglo-cristãs. A história do zombie, propriamente dito, é rodeada de apropriação cultural ou até, de um certo jeito, “branqueamento” (se não fosse muito do cinema que consumimos um fiel servidor da tradição judaico-cristã, temente das aventuras do “paganismo”).

E na história do cinema de terror, tais estados zombificados eram personalizados em visões estrangeiras que refletem esse mundo de espíritos e incorporações com uma distância higiénica, onde este “desconhecido” é um inimigo impune ao mundo ocidental. Talvez seja por isso que Hollywood nos orientou com Victor Halperin (White Zombie, 1932) e Jacques Tourneur (Zombie, 1943), até ser constantemente domado e descaracterizado do seu historial “negro” com George A. Romero no tão incontornável “The Night of the Living Dead”. O resto, o leitor deve estar ciente: é “Walking Dead” de um lado, é Brad Pitt do outro a ser jogado em batalhões de mortos-vivos. É a capitalização do tema no expoente máximo!

Bertrand Bonello, por sua vez, requer os zombies para contrastar essa ocidentalização numa narrativa bilateral que nos leva aos confins do mundo, mais concretamente ao Haiti, centrado num conto de zombies e espiritualidades num liceu de meninas francesas com todos os problemas de primeiro mundo associados. É curioso que nesta jornada de dois tons o realizador tente devolver as dignas origens à criatura hoje enraizada na nossa cultura popular. Através disso, joga pelo incompreensível, pelo menos para as audiências não familiarizadas ao culto, e cria uma falsa enfâse dramática à cultura branca eternamente despida de mitologia própria. As apropriações são aqui um jogo bifurcado, ora nos guias por um colonialismo estruturado sobre uma disposição ao digno “exotismo” (que deve ser falado como racismo e não somente como admiração cultural) e, por fim, descortinando esquematicamente todo um folclore.

Em “Zombi Child” falta essa distância, a imaculabilidade do mistério que não compreendemos nem procuramos respostas, mas apenas testemunhamos sem intervenção. Lembramos que não foi há tanto tempo assim que João Salaviza e Renée Nader Messora pediram autorização à tribo krahô para experienciar o seu Mundo. A explicação para a relação destes indígenas para com aquilo que chamamos de sobrenatural, não é algo que seja traduzido no dialeto do “Homem civilizado”.

E num mundo onde as cinematografias filipinas e tailandesas (sim, os Apichatpongs e as suas difusões no gosto ocidental) preservam o encanto desse misticismo normalizado, pedia-se a Bonello que não explicasse as encruzilhadas xamânicas como quem tivesse a descrever reviravoltas. Por que de resto, ele faz muito bem, em devolver à natureza o genuíno zombie.

A profissão mais antiga do mundo

Hugo Gomes, 01.11.16

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O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu (João Botelho, 2016)

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Total Recall (Paul Verhoeven, 1990)

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L'Apollonide (Souvenirs de la maison close) (Bertrand Bonello, 2011)

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Calígula (Tinto Brass, 1979)

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Byzantium (Neil Jordan, 2012)

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Noite Escura (João Canijo, 2004)

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Sucker Punch (Zack Snyder, 2011)

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Belle de Jour (Luis Buñuel, 1967)

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Vénus Noire (Abdellatif Kechiche, 2010)

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Sleeping Beauty (Julia Leigh, 2011)

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Il Casanova di Federico Fellini (Federico Fellini, 1976)

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Street of Shame (Kenji Mizoguchi, 1956)

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Pretty Baby (Louis Malle, 1978)