Cinema em coma até ao regresso da Humanidade
Entendemos que Bertrand Bonello tem-se dedicado aos “fins” acima das criações, seja o término da romantização da “profissão mais velha do mundo” (“L’Apollonide: Souvenirs de la Maison Close”, 2011) como da pornografia e as réstias do seu debatido requinte (“Le Pornographe”, 2009) ou até mesmo da ideologia (“Nocturama”, 2016), esse é o signo trabalhado por um realizador que anseia reafirmar-se num panorama autoral francês. Mais perto de aniquilá-lo do que integrá-lo [círculo da autoralidade francesa], tendo em conta a sua vontade mostrada, é com “Coma” sob os “-idos” de uma pandemia e um sentimento de destruição que tal acarreta, que Bonello encena um apocalipse representado aos mais diferentes níveis; terrenos, éticos e civilizacionais, e para isso, numa carta acentuada na maioridade da sua filha (o qual dedica por inteiro), conduz-se numa alfabetização em oposição aos velhos costumes cinematográficos.
O resultado, porém, possui mais experimentalismo do que anarquismo, visto que o Cinema, contra tudo e contra todos, sobrevive ao fim da Humanidade como bem queremos e ao ponto final decretado ao mundo em questão. Apenas transforma-se em qualquer outra coisa, algo indecifrável e inabitável no nosso biótipo, com as suas devidas regras e operacionalidades. “Coma” não é de todo, o último “grito” da modernização da linguagem cinematográfica até porque a mensagem aí vincada sobressai do ziguezague eclético que percorre os terrenos ficcionais, documentais e as diferentes técnicas de animação (rotoscopia, stop-motion), com isso também extraindo aos mais recentes dialectos semióticos uma tradução da tal prescrita contemporaneidade (o "desktop film”, o “found footage” ou a mimetização do lufa-lufa virtual imposta influencer de pseudónimo Patricia ‘Coma’, interpretada em jeito higienizado por Julia Faure). Essa “decifrada” carta dirigida ao espectador, não é mais que um tormento sobre o final de uma Era, o qual indecisamente não codificamos automaticamente o seu significado.
Por um lado alarmista, por outro pessimista, este é o filme de pandemia (ou de confinamento) que resgata as ramificações depressivas da mera demagogia barata e as insere numa atmosfera esquizofrénica à luz daqueles que se encontraram perdidos entre o tempo e na realidade (para muitos o confinamento é relembrando como uma massa uniforme de horas, dias, semanas e até meses, um evento verdadeiramente traumático). Por outro lado, “Coma” não tem nenhuma salvação preparada para a Humanidade (ou o que resta dela), o desespero torna-se na rota das especiarias desta jornada entre dimensões, a intenção de criar o absolutismo para o depois destruir, e com todo os trilhos cuja civilização ocidental (com a restante por arrasto) prosseguiu, desde o culto ao grotesco até à falta de empatia com vista na sobrevivência da “espécie”.
Para Bonello, depois de esgotar estéticas, fonéticas e representações, o que tem para oferecer à filha é somente o Apocalipse (um filme-testamento?). A próxima história é o que ela verdadeiramente fará com tal oferenda.
“O que podemos esperar da modernidade se o que nos aguarda é a sobrevivência?"