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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Nova Iorque, dentro de horas

Hugo Gomes, 22.03.23

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Mais do que uma peregrinação ao mito, o género tem-se convertido em um constante debate na nossa sociedade, igualmente emancipando-se da consciência da orientação sexual. O cinema, muito dele aliás, alicerçou-se ao fervor da ideia, com vários a desafiar através das suas próprias concepções, uma ginástica e, por si, a diluição da questão de género, como por exemplo Bertrand Mandico (realizador assumidamente não-binário, um dos rostos do ‘Manifesto da Incoerência’) que executou brilhantemente em 2017 no sexualmente febril “Les Garçons Sauvages”. 

Mas outros não ostentam tamanha criatividade em trabalhar os géneros e distorcê-los perante as convenções cinematográficas, grande parte deles e infelizmente saídos de uma determinada escola à lá Sundance têm optado a via do panfleto, mensagens escancaradas na hipótese de “converter” um mundo para essa visão, sem sequer pensar nos cariz sedutor ou nas possibilidades, ora criativas, ora narrativas, que o cinema poderá trazer. Tem sido esse tipo de filmes que proporcionam certos ódios (diversas vezes mensurados) de alguns intelectuais e cinéfilos aos chamados “filmes de agenda”, quiçá sugestivo e redutor título que condena apenas e específicas agendas e não outras. No caso de “Mutt”, também ele saído dessa “tendência apropriada do famoso festival americano” e estreado na Europa através do Festival de Berlim (tendo recebido uma Menção Especial na secção Generation 14plus), a ótica é outra, pertinente e à sua maneira honesta. 

Vuk Lungulov-Klotz, realizador de origens chilenas e sérvias, e que se identifica como trans (aliás a sua carreira orbita sobre esse tema), recorre em 24 horas na vida de Feña (o ator de género neutral Lio Mehiel), homem-trans em plena transição que reside em Nova Iorque. Neste episódio quotidiano, o protagonista aguarda a chegada do seu pai, vindo do Chile, uma conservador “fantasma do passado” que o próprio terá que “esgrimar”, para além de ter reencontrado o seu ex-namorado na anterior “noite de copos”, e a acrescentar à equação o aparecimento da sua irmã mais nova que procura nele conforto familiar. “Mutt” coordena esta trajetória de auto-descoberta numa centrada malapata citadina, ao jeito dos irmãos Safdie, um choque entre acasos e infortúnios que irão culminar num preenchimento pessoal do seu protagonista, sem este se aperceber da sua epifânica jornada. Porém, a desilusão será o destino amassado, nada de repentinamente revelador nascerá daqui, os acidentais trilhos guiarão-lhe ao nada, a recompensa não mora aqui. 

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Lungulov-Klotz não reduz Feña ao vitimismo, nem sequer o banha na condescendência com que muitos retratam a minoria, e muito menos no privilégio cinematográfico (Rúben Alves, estou a apontar para ti), esta personagem é humana até à quinta essência e prova disso é a ambiguidade moral com que “cerra os punhos”, ora transversal nas constantes recaídas e ao mesmo tempo demonstrando resiliência em encontrar soluções que o valha, mesmo que “desenrascadas”, aos seus temporários obstáculos narrativos, mas, mais que isso, é a constatação da sua natureza naquela que é uma das mais subtilmente cruéis desconversas do recente cinema norte-americano: “Eu não te odeio por seres trans, mas sim por seres uma ‘besta’”.

Não podemos culpar o autor desta frase, o realizador não o permite, até porque em matéria de maniqueísmos, não é o padrão da pessoa que o condiciona para uma das “trincheiras morais”, e sim a sua experiência, dentro ou fora do seu género. Por um lado, podemos identificar-nos com essas “bestas”, encarar Feña como um revoltado de uma adolescência expirada (tentando lidar com a sua própria maturação enquanto ‘enfrenta’ a transformação), ou um desencontrado na sua compreensão. O que está entendido é o evidente carinho de Lungulov-Klotz pelo seu Feña (possivelmente há muito do realizador na sua criação) o leva a inseri-lo numa Nova Iorque sem personalidade.

Contudo, “Mutt” funciona como exercício tragicómico aliado à Lei Murphy e tem o trunfo de não se vender pornograficamente à mensagem [leia-se causas], até porque qualquer um consegue-se identificar com as dores do protagonista. Porque ao longo das nossas vidas, em algum momento, já nos sentimos deslocados do nosso lugar (no caso dele, é um “corpo” que não consegue interagir e isso traz uma pendor abstrativo à representação do “nosso lugar”).

Rage Against the Machine

Hugo Gomes, 05.03.23

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Costuma-se vulgarmente sublinhar que “a escola é um reflexo da sociedade corrente”, nesses mesmos termos podemos considerar a “sala de professores” como os bastidores do Poder regedor dessa mesma. Quase como hanekiano na forma como se presta a construir presunções sociológicas através dos pequenos detalhes (como também na estética fria e ocasionalmente rígida), e por sua vez, até de grandes eventos em vias de acontecer (como foi o caso de “The White Ribbon” (2009) e os sinais marcantemente sociológicos no qual previa a Segunda Grande Guerra), em “The Teachers’ Lounge” de İlker Çatak [a sua segunda longa-metragem], não se trata de uma previsão, mas sim constatação.

A desventura dá-se na perspetiva de Carla Novak (uma destemida Leonie Benesch), uma jovem professora de matemática e de desporto que acarreta novos ideais pouco impressionáveis aos seus mais veteranos colegas. A protagonista coloca em prática o que sabe (aliás, o que acredita) para tentar desvendar uma cadeia de roubos que têm lugar na chamada sala de professores. Furtos, esses, o qual todos suspeitam ser obra de uma aluno. O que Novak descobrirá alterará para sempre a sua posição enquanto professora, como também desequilibrará a hierarquia estabelecida entre lecionadores e pupilos. 

Há dois pontos a reter em “The Teachers’ Lounge” para além da sua alegórica político-social (até um jornal de escola joga-se na representação da liberdade de imprensa), a primeira é o registo narrativo do filme em nunca sair do seu cenário [leia-se escola], como também repugnando automaticamente essa evasão (como soubesse que a sua “força” está enraizada naquele cenário e naquele cenário apenas), desta forma a não evidenciar “backgrounds” pessoais sobre as personagens e principalmente da sua protagonista. A escola é um mundo feito, cumprido e emancipador. 

Segundo ponto, apesar da enorme importação cultural vinda dos EUA que “contagia” sociedades, nomeadamente as europeias, o cinema do Velho Mundo persiste em retratar a figura do enfant como ambígua (ao contráio da "infantilização" dos cogéneres americanos), ou de inclinações maquiavélicas, seja a (re)invocação de Haneke (uma curiosidade, Benesch foi atriz em “The White Ribbon”) ou de outras variações (recentemente presenciamos a crueldade infantil no belga “Un Monde” de Laura Wandel, também nunca fugido do seu espaço escolar). A criança é vista como uma “criatura” perversa, porque serve de protótipo ao adulto do amanhã. 

Quanto a “The Teachers’ Lounge”, os temas são mais que muitos, a sua mesclavagem e embutimento no décor, tornam esta pseudo-distopia fascinante o suficiente para nela encontrarmos o retrato dos nossos dias. A inocência é uma impunidade fantasiada nesta sociedade, ora os educandos não escondem a sua silenciosa anarquia, ora os educadores "cochicham" na sua sagrada “sala” para encontrar formas de os “controlar”. Este controlo parte na instituição de uma doutrina, e como tal é necessário determinar rituais cegamente cumpridos. A nossa protagonista não é “santa” no seu retrato, as palmas ritmadas com que exerce para demarcar a ordem na sua própria sala de aula, respondida de igual pelos seus alunos, é uma detalhe de como esta relação de Poder é uma preocupação neste sistema de ensino. 

Talvez o cinema contemporâneo tenha a urgência de falar da nossa modernidade, uma demonstração das preocupações de uma arte ambivalente, ora propagandista, ora alarmista, conforme a “mão” de quem a usa, e dos “olhos” de quem a vê. Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma. 

Arquitetando males à lá Canijo

Hugo Gomes, 27.02.23

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"Mal Viver" (João Canijo, 2023)

Convém declarar que no cinema de Canijo o processo acaba sempre por ser a atração dos seus projetos, e nele concentra-se uma ação performativa intensamente arrastada, seja nos atores e a sua maleabilidade para aquilo que chamamos de “realismo” (o nosso senso perante essas representações), ou por outra, pela construção de uma instalação visual, cénica e sonora. 

No caso deste recortado “Mal Viver”, a sua característica nata encontra-se no segundo ponto, mais do que as possibilidades com que os seus atores (com muitas “caras” reconhecíveis do universo de Canijo por aqui) possam expressar. É a inteira percepção do realizador em elaborar um filme, arquitetonicamente falando, retalhado em diversas perspectivas (sendo que isso nos levará à outra face do díptico, mas já lá vamos). Assim, com “Mal Viver”, somos conduzidos a uma teia de dramas a ter lugar num hotel rústico, com enfoque na equipa que gerencia este mesmo espaço, esse abordado maioritariamente por vias de planos conjuntos, onde a ação é somente uma janela à escolha do freguês (literalmente e não-literalmente). O espectador assume então a posição de voyeur e é igualmente resistente face a não distrair-se do enredo principal, essa coluna vertebral conectando tudo o resto sem ordenar a sua execução linear. 

João Canijo presta-se ao desafio, vislumbrando o seu mais Tati dos filmes, um objeto aglomerante de ações sob ações, e o procedimento dessas mesmas em grande ecrã, como os diálogos interpolados e independentes, são apenas sintomas dessas personagens em livre arbítrio, pelo menos a sensação dada, visto que o realizador é um realizador por inteiro, autocrata e onipresente (próximo da rigidez de Haneke). O espectador, porém, perde esse estatuto endeusado, convertendo-se num testemunho impotente e sem certezas absolutas, escolhendo a óptica que lhe enquadrar e nisso prescrever o seu próprio filme. 

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"Viver Mal" (João Canijo, 2023)

Mal Viver” não se deleita nos corpos dos seus intérpretes (em território “canijiano” são escravos do seu método), é antes disso um filme-edificante, pensando e casuístico, cuja sua arquitetura se revelará ainda mais com “Viver Mal”, que ao contrário do filme-siamês, tende em controlar a perspetiva do espectador, ao invés de deixá-lo a “marinar” no ambiente. Desta feita, o enredo não é novo, já havia sido “descoberto” no filme anterior, e em modo loop é trabalhado com severidade na sua mimetização. Aqui, seguimos três histórias, três reservas, cada uma apresentando hóspedes presos aos seus respetivos pecados capitais ou crónicos bovarismos (“ah, o velho conto dos privilegiados encurralados nos seus ‘mundinhos’”). 

Mais do que a matéria desenvolvida em “Mal Viver”, “Viver Mal” encanta-se com os seus atores, e ainda mais na dramaturgia emanada por eles, os seus corpos tornam-se devidas medidas temporais quanto à narrativa tríptica, expondo o esqueleto deste projeto, entretanto repartido em duas estâncias fílmicas. E a conexão sexual entre os demais, reluzentes atrativos para o “buraco na fechadura” que o então voyeur-espectador não deixará de espreitar. Tal como o referido, e estabelecido, filme anterior, “misturamo-nos” com a plebe, faminta por “conhecer” os traços das vidas animalescas e de excentricidades calcificadas dos passageiros residentes (o qual tão bem nos identificamos com a personagem de Cleia Almeida, a camareira que remexe os pertences dos hóspedes ou que se intervém nas suas trivialidades, uma fantasiadora do degrau que nunca irá “pisar”). 

Contudo, é neste capítulo que presenciamos os desempenhos mais ferozes, seja uma Beatriz Batarda em modo “mommy dearest” ou uma Leonor Silveira, despojada vilã de novela, no desempenho mais desafiador da sua carreira nos últimos (e largos) anos. Poderão ser dois filmes desiguais, um mais cuidado que o outro, mas são provas da maratona que Canijo tem executado ao longo da sua carreira, da performance à idealização de um cinema prestigiado por diversos “pontos de fuga”.

 

"Magoamos a mãe?"

Fisicamente ...

Parir doi ...

Transforma."

E tudo começou na Rua da Cidade de Rabat ...

Hugo Gomes, 22.02.23

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O cinema como confessionário, ou antes divã. Papel branco em jeito diarístico, tela como o mais fiel companheiro, a plataforma de partilha de sentimentos, pensamentos e anotações. Gesto, esse, que se tem sido sugerido como um caminho a percorrer a novas vozes ou a estágios de introspecção, e no panorama nacional, vemos uma normalização desse mesmo estado de “abertura” enquanto matéria fílmica. Para muitos uma tendência de tratar o cinema por “tu” e o espectador por “vocês”, para outros um tratado de ego, um narcisismo, a espreitadela contemplativa ao Espelho de Narciso

Susana Nobre nunca negou que o seu cinema é feito de partilhas, de experiências e motivações concretamente trabalhadas em filme, condensadas e integradas num perpétuo movimento de procura e de redescoberta. Fez desse mote a sua partida observacional no programa das Novas Oportunidades [“Vida Activa”, 2014)”, para mais tarde espelhar as suas reflexões maternais [“Tempo Comum”, 2018] e pelo caminho debruçando em histórias de outros [“No Táxi do Jack”, 2021], Nobre nunca dedicou-se inteiramente a si, até porque sob a sua perspetiva o cinema é um mecanismo “díptico, uma pessoa que ouve, outra pessoa que fala, uma que interpela e outra que responde, num espaço completamente circunscrito”. Mas é aí que “Cidade Rabat” rompe a “tradição”. Confeccionado como a sua primeira longa de ficção assumida, a realizadora se esconde por trás do exercício narrativo para transformar memórias num afazer. 

O exercício está à vista de todos, deitar-se no divã e abordar os seus fantasmas, o seu luto e trazer dessa sua experiência um deslumbramento para novos rumos, mais existencialistas que artísticos. Nessa feita, “Cidade Rabat” parte de um estado de autognose, uma rua lisboeta de igual designação ao do título nas Portas de Benfica, uma escadaria num prédio antigo, moradores singulares, piso a piso, até cedermos ao rés-do-chão, à figura maternal que aí habita (ou habitava), esse início de tudo. A voz de Susana - um espírito concentrado na figura de Raquel Castro, anterior enfermeira (esta informação dará luzes a um discreto e delicioso cameo em tom jocoso de "troca-de-papéis"), agora atriz - nos guia por essa viagem memorialista sem representação visual, é um trajeto imaginário em modo “Big Bang”, a génese, a origem das “coisas”, ou melhor o fim de todas elas. 

Porque é através do luto que “Cidade Rabat” despoleta, metamorfoseia-se num retrato de dor (o verbo não é coincidência, o filme prossegue do mesmo ponto que A Metamorfose dos Pássaros de Catarina Vasconcelos, da ausência), numa terapia à mesma, porém, ao contrário do seu cinema não dá “ares” de partilha, remonta-se como uma demanda sua e só sua poderá se revelar. Porém, o exercício esgota na sua própria premissa, a veste fúnebre é intransponível, a realizadora fala para ela própria (com imagens sobre ela própria) enquanto despe a sua ficção de todas as suas vertentes fabulistas, ao espectador cabe entender o nojo, a negação, a deambulação e por fim, superação em forma de emancipação (muitos “ãos” aqui reunidos!). Com “Cidade Rabat”, uma “coisa” é certa, Susana Nobre é mais arregaçada em falar dos outros do que resumir-se a si própria. 

Em memória do Carteiro de Nápoles

Hugo Gomes, 18.02.23

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Mario Martone no processo de edição de "Laggiù qualcuno mi ama” / Somebody Down There Likes Me" (2013)

Para Mario Martone, de “pá na mão”, a justiça tem de ser feita: «Massimo deve ser celebrado e colocado à igual imagem de outros que conquistaram a sua luz por direito».

Assim nasce “Laggiù qualcuno mi ama” (“Somebody Down There Likes Me”, título internacional que soa contraponto a “Somebody Up There Likes Me” de Robert Wise), a revitalização do popular ator e realizador napolitano Massimo Troisi (1953-1994), que com 41 anos de idade e com um póstumo êxito a atravessar fronteiras - “Il Postino” de Michael Radford (recebendo a nomeação de Melhor Ator) - nos prematuramente deixou, porém, o documentário parte, não só da ideia de colheita e ostentação de uma carreira, como também, de uma prolongada tese, iluminando o percurso artístico deste “autor”, designação segundo Martone

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Massimo Troisi em "Ricomincio da tre" / "I’m Starting from Three" (Massimo Troisi, 1981)

Trata-se aqui de um objeto de fascínio, originando um empenho investigativo e de pensamento (compara-se Troisi a Antoine Doinel de Léaud, da sua "incapacidade existencialista de se integrar na sociedade”, e enquanto a sua face de realizador, a Truffaut, “a vida, o amor, e pouco mais”), reservando um lado académico na disposição informativa (a filmografia, da sua cronologia à leitura desta, dos seus gestos e a contextualização performativa), e um lado emocional como embate do legado Troisi ao seu impacto cultural (ou quiçá popular, como presenciamos no cinema ao ar livre, participado por um jovem e emotivo público), com recurso ao seu trajeto trágico (recusou tratamento cardíaco imediato por desejar fazer “Il Postino” com o seu “próprio coração”, segundo consta, faleceu 12 horas após o fim das filmagens). 

Portanto, falar de “Laggiù qualcuno mi ama” é falar da nossa relação com o ator, interagir e aderir a este episódio de revisão e revitalização da sua memória, e com isto, subtilmente “destruindo” o mito da decadência do cinema italiano nos anos 80 e início de 90, coroando o ator, realizador e argumentista numa das mais importantes vozes como também impulsores de uma aderência popular a uma indústria que abandonava bruscamente a sua audiência. 

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Massimo Troisi em "Il Postino" (Michael Radford, 1995)

Talvez estejamos na altura de escutar atentamente Martone e “desenterrar” de uma vez por todas Massimo, o ator-máximo ou o realizador-mínimo, e colocá-lo de frente à luz do qual devido direito tem. Um encontro, ora umbiguista e cerebral, ora histórico e sentimental.

Retrato de família

Hugo Gomes, 16.12.22

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Uma rústica janela de pedra é visionada como uma moldura que enquadra um burro num acidentado retrato. Singela e planeada imagem servida de abertura em “Return to Dust”, sexta longa-metragem do chinês Li Ruijun, mantendo-se ativo na sua região-berço, a cidade de Gattai, situada na fronteira da Mongólia, terra de quatro e austeras estações, signos o qual seguimos um casal improvável. A cena-introdutória aqui mencionada não é pura coincidência, essa automaticamente nos dialoga, subtilmente e em mudez animalística a cerne de tudo o que iremos contar neste retorno poeirento, um olhar romantizado, a procura de um embelezamento provisório na rudeza do seu mundo. 

É por estas e por outras, que um camponês é unido a uma mulher com deficiências através de um casamento arranjado. Ela um fardo familiar, ele um solitário como ninguém, convergem numa família “fabricada”, e desse traço, forçosamente ou não, Ruijun filma um afeto a tecer ciúmes à inocência. O carinho dos gestos, o silêncio ou as palavras economizadas numa rotina partilhada como bem entendem, momentos remetidos ao conforto de uma pobreza sem volta. “Return to Dust” é esse “burro emoldurado”, não apenas numa captação bucólica, e sim na transfiguração, algo ilusória, de desgraças, miserabilismo e denúncias político-sociais embrulhadas numa falsa-ingenuidade, ou diríamos melhor na busca de uma beleza qualquer, que apazigua a dor, a nossa, a deles, ou de mais alguém que deseja manifestar empatia. Não se trata de um punho erguido no ar, nem sequer num dedo indicador esticado acompanhado por um olhar inquisidor, ao invés disso um encolher de ombros, uma expressão impotente e um - “é a vida” - libertado num sofrido suspiro. 

O trágico tem a sua beleza, e a pobreza, longe do que se espera, não contém fórmula definitiva para a filmar. É possível "emoldurar" a miséria sem nos sentirmos insensíveis ou exploratórios? Sim, basta ter compaixão e com “Return to Dust” existe compaixão por estes “pobres coitados”.  

Andreas Fontana: "A violência do “Azor” está fora do campo do filme. Distanciado, sim, só que não ausente."

Hugo Gomes, 24.11.22

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"Azor" (2021)

Na gíria bancária, “azor” significa “cuidado com o que dizes”, é uma palavra embalada num castrador silêncio funcionando simultaneamente como um aviso e ameaça perante as aventuras em territórios obscuros. E é com “azor” na mente e secretamente mencionado por quem bem ou mal lhe deseja, que Yvan De Wiel (Fabrizio Rongione, ator ambientado ao cinema dos Dardennes), um banqueiro privado genebrino, parte para Buenos Aires, Argentina, no trilho deixado pelo seu misteriosamente desaparecido colega, a fim de reconectar as ligações e os negócios estabelecidos com os seus clientes. Aí “mergulhará” num mundo de promiscuidades onde os vários poderes encontram-se diluídos num só monopólio. O dinheiro e o poder são religiões monoteístas, e a ignorância é uma bênção em climas ditatoriais. 

Azor”, primeira longa-metragem do suíço Andreas Fontana, marcou presença na edição de 2021 da Berlinale na secção Encounters, um thriller assombroso que tece um universo que bem poderia ser extraído dos enésimos “filmes sobre Máfia” ou dos gestos calculados e maturados de Costa-Gavras. Aqui, nesta Argentina dos anos 80, sem nunca condicionar a um evento histórico preciso, o silêncio é de ouro e a meticulosidade poderá garantir a nossa sobrevivência nesta descida ao inferno capital. 

Ao sabor da estreia mundial no festival berlinense, conversei com o realizador sobre esta sua obra e o que mais o fascinou neste território desconhecido e “conquistado”. Fontana falou das suas raízes como incentivo à concepção de “Azor” e também de uma violência que, como tudo no filme, goza da ausência. 

Curioso, que a sua anterior obra [a curta-metragem “Pedro M. 1981”] lidava com a busca de um “personagem” desaparecido. Volta com “Azor” com o mesmo registo, no trilho de alguém em parte incerta, estamos perante a sua “imagem de marca”?

O “Pedro M, 1981” como o “Azor” lidam com a ausência de pessoas como motor narrativo, é o elo de ligação entre ambas as obras, apesar do desaparecimento no “Azor” ter uma ressonância política. Trata-se de um recurso que me agrada, essa, da personagem-ausente, que é verdadeiramente estimulante porque o espectador acaba por projetar nessa ausência uma imagem idealizada, ao contrário da mecânica da personagem em questão, qualquer uma poderia preencher aquele "desaparecimento". No caso do Azor, aquele banqueiro é uma personagem invariável, a sua ausência surge de maneira distinta para qualquer personagem, resultado da adaptação do mesmo aos desejos dos demais, tornando difícil a sua decifração. Por outro lado, essa ferramenta é um íman ao interesse do espectador, porque esta identidade desconhecida alimenta a curiosidade do mesmo, logo é sinónimo de fidelidade para com a narrativa. 

Nas suas notas de intenção refere “Azor” como uma alusão a história de “Conquistadores”, bem sabendo que a descolonização é uma discussão recorrente nos dias de hoje, gostaria que me explicasse o uso desse termo ao indicar a sua obra. Temos uma alegoria ao colonialismo moderno? Já agora, tendo em conta o seu filme, continuamos [nós europeus] a olhar para o Novo Mundo numa perspetiva colonial?

Primeiro, devo dizer que não sou um teórico nem acadêmico para aprofundar a questão colonialista. Referia ao termo “Conquistador” num prisma literário. Obviamente que se é uma figura de forte conotação política e histórica, mas também reserva uma aura literária fortíssima. Os “conquistadores” deixavam diários sobre as suas conquistas, o qual tracei paralelo com os do banqueiro e as suas determinantes viagens. Suponho que eles, nas suas saídas profissionais, têm como objetivo “conquistar” um terreno, uma pessoa, uma posse, sejam “territórios virgens" ou propriedades de outros. Esses banqueiros a que refiro não são aqueles que se encontram sentados num balcão aguardando o depósito dos clientes. Nada disso, para estes banqueiros, esse estilo de vida é ofensivo, eles viajam de forma a angariar clientes e fundos, daí o termo “conquistadores”. 

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Andreas Fontana

Quanto ao colonialismo em si, há um grande debate, porém, na Suíça existe uma realidade bem distinta, um mundo de bancos e alta-finança que partem por este mundo fora ao encontro dos mais cobiçados clientes. Julgo que temos aqui uma espécie de neo-colonialismo, porque muitas destas “instituições” possuem ligações ou financiamento a organizações militares que desbravam novos territórios para si. Na Argentina, encontramos muitos sectores que pertencem a investidores que não são argentinos, muitos deles são ingleses ou até mesmo suíços. Em questão de energia nuclear ou farmacêutica são principalmente suíços. 

É sabido que o seu avô foi banqueiro privado, ou seja, direta ou indiretamente está habituado a este universo. Foi daí que surgiu a inspiração para este “Azor” e até diria, interesse?

Para dizer a verdade, não sei se o meu interesse por esta história vem com as minhas raízes, como bem disseste, o facto do meu avô ter sido banqueiro privado, ou de que com este "background" me sentia legitimado para abordar e materializar este universo no grande ecrã, visto ser um tema complexo, ambicioso e difícil. Não creio na questão de sangue, mas sim na questão de herança, diria até simbolicamente nesse sentido. E a herança não é só apenas dinheiro e direito, é também toda uma temática do “não-dito”. Sinto, como muitos da minha geração, uma vontade de falar sobre ‘coisas’ que simplesmente não nos queriam falar. 

E o facto de ter um avô banqueiro também facilitou a minha entrada neste mundo e na minha pesquisa sobre bancos suíços e até mesmo em relação à Argentina. É bizarro, mas a Argentina tem um enorme fascínio pela Suíça, país, que segundo eles, é uma representação da perfeição a todos os níveis.

Deixou claro nas suas “notas” de que a Argentina que reconstitui no seu filme, é uma Argentina sem contexto histórico próprio, não inserida em nenhum período concreto. Mesmo a menção da década de ‘80, esta Argentina poderia ser a de ontem como a de quarenta anos atrás. Há algo de “não-lugar” neste retrato de Buenos Aires?

Estou a perceber a lógica e o uso do “não-lugar”, mas não acredito seja o caso deste filme, diria até que este lugar é esfarrapado e distorcido. Vivi em Buenos Aires por vários anos, e quando chegava à cidade tinha uma sensação de entrar numa cidade europeia, dotado de semelhanças evidentes. Contudo, não me sentia genuinamente numa, e esse dilema interno atribuía ao lugar um efeito algo abstracto. É um sentimento difícil de explicar, mas é de que aquele cenário não fosse realmente aquilo que via, era uma miragem, ou até meio embusteira, a de uma cidade europeia que nada de identidade europeia possuía. E não apenas na questão identitária, como também social e política. Tentei mostrar no meu filme todo um universo composto, elitista, bem-educado, e em certo jeito, harmonioso, em oposição a um presente sentimento de violência, como se espreitasse, mas nunca assumisse visualmente. A violência do “Azor” está fora do campo do filme. Distanciado, sim, só que não ausente. 

Para tentar recriar esse sentimento vivido para com a cidade, aventurei-me na concepção de uma cidade minimalista, sempre em contraste e em inconstância. Porém, é bastante difícil posicionar “Azor” num período histórico em concreto.

Nesse constante ambiente de ameaça de que fala, devo sublinhar que a música de Paul Courlet tem um papel fundamental aí.

Sim. O trabalho com a música foi muito intuitivo. No meu último trabalho [“Pedro M. 1981”] não tive essa preocupação, porque pretendia focar no som ambiente e na música em diegese, mas aqui senti a necessidade de criar um ambiente, de instalar o filme num género. Portanto, abordei Paul Courlet, que é um músico que admiro e o qual senti que fosse capaz de transportar “o seu mundo” para um filme, sobre uma possível colaboração … devo dizer que ele não trabalhava para o cinema, “Azor” foi a sua inaugurada experiência no ramo. Pedi simplesmente que me enviasse “coisas”, trabalhos seus e daí tentaria idealizar uma atmosfera, sintonizando um ambiente. Respondeu-me ao pedido, e a partir daí iniciou-se um exercício conjunto de como aquelas partituras musicais pudessem dialogar com o filme ou meramente o oposto. 

Courlet falava de como a música teria que assumir de forma interior em relação ao filme para que não fosse destacadamente notada, assim integraria por completo a obra como um só corpo. Curiosamente, pretendia o contrário, uma música exterior ao filme, como havia falado, que pudesse emanar uma atmosfera e ao mesmo tempo sugerir uma violência que não veríamos, de modo algum, no ecrã. Penso que funcionou às mil maravilhas. 

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"Azor" (2021)

Ao ver “Azor” ficamos com a sensação, e por vários momentos, de estarmos perante a uma variação do género “mob”, gangster ou “filme de máfia”, como quisermos chamar. Diversas vezes o filme declara-se a esses territórios de um forma resistente e inquietante, mas igualmente conduzindo-se nos exatos códigos. E já agora, destaco as comprometedoras gírias e os códigos secretos que este seu mundo é composto, não devendo nada ao tipo de cinema de que falo. Confessa-se um admirador do género?

Sou uma pessoa cinéfila e tenho um especial carinho, não diria de filmes de máfia, mas da temática mistério. Quanto à questão do código, descobri que o banco é uma tradição oral, desta maneira tem o cuidado em não apresentar provas escritas sobre as transações nem do perfil “discreto” dos clientes, nem deixam notas quanto às suas viagens estritamente profissionais. A principal ferramenta do banqueiro é a sua memória, não deixa rasto nem traços. E essa oralidade incentiva rituais e operações secretas, um mundo nas sombras guiado por esses mesmos códigos. Por isso, essa comparação com a máfia não é uma pura coincidência, há uma convergência desses dois territórios. Também devo salientar que este tipo de ambiência e sugestão na Argentina não é despropositada. A política argentina sempre foi encarada por quem vive lá como um extensivo complot. 

E quantos a novos projetos?

Estou a trabalhar num filme sobre diplomáticos em Genebra. Penso que isto tudo faz parte do meu apelo por estes temas, o de gostar trabalhar com “pessoas discretas” [risos]. Já o escritor Stefan Zweig dizia que os diplomatas são “uma espécie de intelectual pouco investigada, mas a mais perigosa que está ao nosso redor”. Tenho muito interesse em delinear e explorar essa sombra que segue o mundo diplomático. 


O filme estreou em Portugal em abril deste ano, com o selo Legendmain Films. Está disponível no catálogo da Filmin Portugal.

No luto como na luta ...

Hugo Gomes, 02.06.22

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Una Femmina” não inventa ‘coisa alguma’ neste costurado universo da Máfia italiana, neste caso a 'Ndrangheta (da Calábria), é um ponto claro o qual se deve sublinhar mas não rasurar. Até porque é na sua transladação óptica o qual encontramos neste trabalho de Francesco Costabile (a sua primeira ficção) um motivo que chegue para a sua existência. Dito e feito, o olhar feminino posiciona o espectador a mote de uma atmosfera de silêncios, rituais e inquietações manifestadas na presença de uma invisibilidade ilícita, mais concretamente sob o ponto de vista da personagem Rosa (Lina Siciliano), jovem e órfã que desde sempre duvida quanto às circunstâncias do desaparecimento da sua mãe. 

Costabile resguarda um filme calculado, mas acima de tudo contemplativo para com este ambiente prevalecido em cenários rústicos e austeros - de pedra sobre pedra, e ruelas a becos - “construções humanas” que por breves momentos dão lugar ao belo natural, um refúgio onde as personagens evadidas (assim pensam elas) se lamentam [“Nós não merecemos toda esta beleza”]. Mas voltando à prisão, é evidente apontar a este filme um fascínio nada encoberto, interligado pelos constantes movimentos panorâmicos, quer nos interiores e exteriores, afinando a sua utilidade - a vontade de observar, enquanto deixa a protagonista a mercê desses “nefastos tentáculos”. 

Una Femmina” (adaptação do livro “Fimmine ribelli. Come le donne salveranno il paese dalla ndrangheta”) arranca em modo nublado (literalmente), dando de caras o cartão-de-visita a um mundo abstrato apelativo à nossa (anormal) compreensão, carregando o mistério para os sete ventos, até Lina Siciliano, por fim, surgir em ecrã, minando com expressividade todo o campo. Ela, uma descoberta por parte de Costabile, revela-se num real ponto de fuga para um filme demasiado cronometrado. Os seus pedidos à Lua até à suspeita crescente que a consome a olhos vistos, mesmo situando-se em segundo plano. E o realizador parece reconhecer esse seu achado na perfeição, conduzindo-a e por fim emancipá-la numa procissão das mulheres-vítimas dessa densa escuridão que as abate. Rosa, ou melhor Sciliano, não se empoleira como a Voz, mas antes como a Face … e frontal … de uma luta suprimida e sem réstias de ruído.

Tarifa 3 para Nova Iorque ...

Hugo Gomes, 28.04.22

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Focada na temática do trabalho, quer através do programa Novas Oportunidades que serviu de estudo em “Vida Activa” (2014), quer pelo peso e experiência da maternidade no percurso profissional da mulher (“Tempo Comum”, 2018), Susana Nobre, sem nunca desviar do trajeto, recorre ao seu zeitgeist, o taxista a passo da reforma Joaquim Calçadas para a dirigir em novas andanças.

Figura, ora passageira, ora fulcral na sua filmografia, Joaquim ou Jack (para os amigos) é um homem que não esconde a sua ansiedade em chegar à reforma, mas para isso terá que proceder perante burocracias e uma espera sobretudo demoroso. No entanto, Nobre dá-lhe palco, o nosso motorista que passou anos a conduzir um táxi nas ruas de Nova Iorque, é um orador fascinante e patusco quanto aos seus detalhes. “No Táxi do Jack” segue na boleia desse discurso e obviamente na sua presença para indiciar um paralelismo para com o homem a ser encostado à “box” e com a desindustrialização de Vila Franca de Xira, onde o nosso protagonista vive.

Diversas vezes, Jack faz uso das comparações rocambolescas entre a cidade que o acolheu enquanto emigrante e a cidade que o “abraçou” enquanto repatriado, dessa conexão nasce um filme que mantêm um pé no passado e outro no angustiante presente, manejando o tempo como um só veio, o que resulta em flashbacks diluídos na ação, com os seus quê de voluntária artificialidade e na recusa da representação exata (há uma convergência para com o recente filme de Spike LeeDa 5 Bloods: Irmãos de Armas – ambos renegando esse truque de rejuvenescimento cinematográfico). Por outras palavras, o nosso Jack mantém-se intacto na deriva das suas memórias e na espera do seu digno fim.

Susana Nobre deparou-se com um “achado”, infelizmente não consegue extrair toda a sua tragicomédia, levando-a, por momentos, a dispersar do seu “objeto estudo”, até por fim se reencontrar uma costela algo camp do cinema de máfia norte-americano. Contudo, Joaquim, nobre figura, merecia um palco mais abrangente do que este sentimento de expansiva curta-metragem.

Serão Danado ... e há fotos que o comprovem!

Hugo Gomes, 10.04.22

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“Sou eu e a puta da shotgun”

Lembro como se tivesse sido ontem … Foi na projeção de imprensa de “Verão Danado”, na sede do ICA, pronto para ver uma prometida “primeira longa-metragem”, "saidinha do forno” para se “enfiar” em Locarno. Benzi-me inicialmente mesmo não sendo religioso, possivelmente tratei daquele ato como um ato de superstição (ou de preconceito), e como previsto (julgava eu), as imagens começaram a rolar … ou em modo de trocadilho manhoso - “rural”. “Mais um relato de fascínio pela nossa ‘portugalidade’”, revirei os olhos após os primeiros minutos, contudo, e como havia insinuado, “lembro como se tivesse sido ontem”, esse momento, esse filme e esse realizador [ler crítica e entrevista no site C7nema].

Francisco (Pedro Marujo) pode muito bem ser um jovem do interior, mas é em Lisboa, essa cidade-perdição (não se via tal desde “O Sangue” de Pedro Costa), que a sua viagem começa, e como grande parte delas, o trajeto revela-se mais entusiasmante do que a sua derradeira paragem. Já nos seus vinte, o protagonista mal-amparado, de precariedade mas desinteressado na estabilidade, vive o dia como fosse noite e a noite como fosse dia. Ou seja, o que parecia mais um nos relatos abundantes, converteu-se num retrato de uma juventude alimentada pelas últimas luzes da sua “imortalidade” e, mesmo assim, à deriva do seu limbo criado e socialmente gerado. Pedro Cabeleira, o realizador do qual “tivesse sido ontem”, nos enganou bem. Felizmente nos enganou!  

Com “By Flávio" (a sua nova curta-metragem, que estreou no Festival de Berlim), o engodo também acontece, desta feita na forma da atriz Ana Vilaça, aqui Márcia, uma jovem mãe solteira cujas suas decisões parecem remeter-nos a um caminho predestinado, de extrações moralistas ou reflexivo conforme seria a previsão de uma geração refém das redes sociais e das suas ditaduras estéticas. Contudo, retém-se a segunda - ditaduras estéticas - para sermos embalados num filme estetizado sobre a estética que desejamos definir para nós próprios. Por outras palavras, e apoiando-se no primeiro momento da curta, onde aquela foto destinada ao Instagram é cuidadosamente seleccionada, mas sem nunca descartar dos seus devidos retoques (requisitadas manipulações), centra-se na imagem de como nos vemos e como desejamos que os outros nos vejam. A rede social, esse idealizado avatar, converteu-se na nossa identidade priorizada, cuja nossa existência deve-se ser manuseada e comprovada com fotografias ou “pegadas tecnológicas”. 

By Flávio" é em pouco de meia-hora de peripécias um caderno de rascunhos passageiros sem nunca instalar-se, e por um lado, funcionando na “mouche” em nunca persistir nem perseguir os temas (Cabelereira é tudo menos realizador de “filmes-de-tema” e mais autor de "filmes com vida", talvez sangue na guelra seja a palavra adequada). Foi o que aconteceu com “Verão Danado”, os tópicos estão lá para consumo rápido, mas não de jeito efémero, ao invés disso, nómada. O engano, feliz golpe, é já a sua marca. Danado do rapaz!