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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Istambul, cidade de encontros e desencontros

Hugo Gomes, 08.08.24

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Como teleponto informativo, é-nos dito por via de uma vinheta de abertura que quer na língua georgiana, quer na turca, não existe distinção entre feminino e masculino; a referência é sempre neutra, desta forma sabemos que o género sugerido nas legendas é apenas a interpretação de quem as elaborou, até porque "Crossing", a terceira longa-metragem do sueco Levan Akin ("And Then We Danced"), tem como intenção nunca declarar um explicitamente.

No entanto, evita-se aqui a ideia de se estar perante numa das enésimas histórias de vitimização LGBT, embora exista um pano de fundo relacionado, a trama é inteligentemente orquestrada para evitar os lugares-comuns frequentemente incentivados pelos ditames do “world queer cinema”, com o seu miserabilismo condicionado e toque de exotismo. Nada disso se encontra neste filme, no seu núcleo, temos uma professora reformada (Mzia Arabuli) e um jovem com o seu toque de marginalidade (Lucas Kankava), ambos georgianos, determinados a atravessar a fronteira, em direção à Turquia.

Ela deseja encontrar a sua sobrinha há muito perdida, uma mulher trans de nome Tekla. Ele procura apenas uma alternativa ao fim de mundo onde depositava os seus dias, e vê nesta mulher, imersa numa angústia constante, o seu bilhete de partida. Ambos chegam a Istambul ("cidade onde se vai para desaparecer") e procuram os rastos dessa “sobrinha-sombra”, que se torna automaticamente um macguffin, orbitando em direção a alguns truques ou rasteiras do argumento. No entanto, o filme não persegue esse universo, mantendo uma certa distância, e simultaneamente aconchegando nessa união, esse par improvável, intergeracional, cada um perdido à sua maneira numa cidade que os convence a permanecer. Configura-se um "buddy movie" que abrange todo o espectro social, adquirindo assim uma inesperada subtileza.

São poucos os filmes da nossa atualidade que se comprometem ao seu "território filmico", e que ao mesmo tempo contornam-o sem nunca abdicar das suas próprias ambições. Há uma periferia emocional a explorar, trazendo-lhe um existencialismo marcante de um universalismo dramatúrgico, daí a língua neutra, naturalmente contextualizada, perfilha essa igualdade, seja géneros, corpos e até dramas. 

Com um humor seco, “Crossing” nunca cede aos finais felizes nem às formalidades do cinema emergente. Levan Akin sabe o que faz, evidentemente. Uma surpresa num domínio que já nos soa formulaico. 

Do real para o imaginário cinematográfico ... com queimaduras nas mãos!

Hugo Gomes, 26.05.24

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O cinema de Margarida Gil tem caminhado para produções austeras, em jeito de resiliência e talvez um pouco de "carolice", que a faz avançar contra todas as adversidades. Há uns meses, uma curta e uma longa-metragem estrearam em modo double bill nos cinemas portugueses ["Cavaleiro Vento", "Perdida Mente"], de forma a relembrar a sua existência num meio que resiste aos apoios e aos júris que selecionam quem "filma" e "como deve filmar". Gil, por outro lado, calha a "sorte grande" com um filme de produção modesta, que a extrai dos trabalhos mais artesanais e, em todo o caso, amadores. O que encontra neste refúgio ao abrigo da Ar de Filmes é a sua aparentemente derradeira oportunidade de se reerguer. Daí que a realizadora se conquiste por meio de um cuidado técnico e uma planificação que a vincula às tradições, hoje em modo expiratório, do cinema que a viu nascer. Um cinema oliveriano em trajes de Henry James - "The Turn of the Screw" ("A Volta do Parafuso", na tradução portuguesa da editora Sistema Solar) - mas despido do seu horror gótico e encantado com as possibilidades da sobrenaturalidade trazida à arte de filmar, sobressaindo como relato gótico com vénias ao misticismo que o Cinema nos trouxe.

Ora, convém salientar que em "Mãos no Fogo", ao invés de amas enviadas para mansões remotas, é uma jovem estudante de cinema (Carolina Campanela, interpretando uma Maria do Mar, ligação com a donzela nazarena do homónimo filme de Leitão de Barros e com a última longa-metragem assinada por Gil, “Mar”, em 2019) com a tese do "Real no Cinema" na mente, que se depara com os habitantes do casarão - velha lógica de um cinema visto pela sua burguesia e de contos de realeza e bons costumes -, o qual é cedido por pensamentos de incerteza e de espectros que por lá habitam, tendo como única certeza a sua imortalização por via das imagens. É "filmar o real", mas é para além disso que a câmara e a sua narrativa subjacente captam, numa espécie de erotismo barroco e de mestres implícitos numa intelectualidade e cultura impermeável e intransponível (sob um snobismo vilipendiado de Marcello Urgeghe).

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Margarida Gil opera sob esses tópicos de perfuração do assombro residido naquela instância, cuja protagonista escreve e rasura com constância no seu bloco de apontamentos... isso mesmo, apontamentos sobre o testemunhado e captado numa intenção de se encontrar numa coesão de pensamentos, infelizmente atormentada por visões e presenças (Rita Durão na sua delirante forma) que a fazem desconfiar das suas próprias "crenças" (o peru, o vegetarianismo e a cozinheira Adelaide Teixeira [resgatada do primeiro filme de Gil - "Relação Fiel e Verdadeira" (1988) -, Mefistófeles de bata que a seduz ao pecado e à tentação]). É um filme de imagens, repito isto vezes sem conta, como oposição às acusações de teatralidade ou da narrativa fracassada numa percepção de storytelling aristotélico (sabendo também que é nesta declarada guerra para com tais “inimigos” que o filme nunca desfere a sua transgressividade). 

É a sugestão, o fantasmagórico que projeta como memorialismo de produções ‘tobiescas’ ou de um Manoel Oliveira de mão dada à sua comparsa Agustina Bessa-Luís. Aliás, é aí que entra o elemento crucial da jornada e de convocação de Gil: a casa, o seu efeito, a sua imponência, as histórias aí permanecidas, encobertas em pó ou imprimidas em esquecida película à espera de uma outra e nova projeção. A casa vira tradição, e é através dessa tradição que Margarida Gil deseja lançar o recado para o "mundo" - "Eu continuo aqui!". Visto que chegamos a um tempo de revisionismos e de recuperações - é preciso escrever a história do nosso cinema por linhas direitas - com Solveig Nordlund, António de Macedo, Carlos Vilardebó, Fernando Matos Silva, Monique Rutler e, recentemente, Rui Simões na esperança de um holofote há muito negado. Gil inveja tal salvação e, para tal, demonstra o quão é capaz de invocar cinema na sua pomposa e ostentada estética. Já não se fazem filmes assim! Aliás, este "Mãos no Fogo" poderá ser o último da sua espécie (basta constatar, por exemplo, como “Sibila” sucumbiu a um vazio lírico normalizado nestes novos tempos).

Takes Berlinale 2024: sociedade, essa amiga e essa inimiga

Hugo Gomes, 24.02.24

Some Rain Must Fall

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Após um acidente desencadeado por um furioso impulso, Cai (Aier Yu) vê a sua vida ser virada do avesso, distanciando-a das relações interpessoais previamente estabelecidas, seja com a família, amigos ou até consigo mesma. Não só enfrenta uma avassaladora solidão nas longas, desesperadamente longas, noites que se sobrepõem aos escassos dias, mas também uma crónica dor que a permeia até ao momento em que esta se torna imune a ela. A sua existência é automatizada, refletindo o ambiente noturno que friamente a acompanha na sua jornada ao âmago dos seus sentimentos. São noites artificialmente iluminadas, destituídas da graça natural, reluzindo uma desesperança, um fatalismo que só tem solução encontrada na morte.

Nesta sua primeira longa-metragem, Qiu Yang (“A Gentle Night”, “She Runs”), realizador que tem marcado presença em festivais internacionais como a Semana da Crítica, adota o registo do slow cinema para incutir, previsivelmente, mais subtileza e explicitude neste retrato derrotista de Cai (até o sexo é insípido). Filme de ambiências onde apenas Aier Yu nos desperta compaixão, ainda que a sua frieza, tangível e reconhecidamente cansada, rejeite qualquer abraço, qualquer empatia do espectador, e qualquer sorriso que pudesse esboçar como vitorioso. “Some Rain Must Fall” é um exercício de solidão, de solitários, de sofrimento e de sofredores, sem martirologias, e com muita estetização dos seus espaços. Nota-se o virtuosismo, mas um virtuosismo voluntariamente citado e não correspondido pelos caminhos do filme.

Secção Encounters

 

Matt and Mara

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Resgatada a dupla de atores [Deragh Campbell e Matt Johnson] do seu anterior filme "Anne at 13,000 Ft." (2019), o realizador Kazik Radwanski sonda territórios comuns ou incipientes da comédia romântica para criar um filme sobre passados, arrependimentos e os habituais "e se". 

É uma incursão jovial fortalecida pela química entre os protagonistas, a história de uma professora de escrita criativa que reencontra um amigo de longa data, agora um autor celebrado, e que desse reencontro ressurge uma cumplicidade e um apelo sexual (possivelmente mais do que emocional), que a coloca em xeque na sua aparentemente estável vida matrimonial. "Matt and Mara" não adere estritamente ao estilo rohmeriano, contudo, conserva os seus dilemas morais e afetivos, aninhando-se no epicentro da urbe de Toronto em deboche do seu biótopo e classe cultural.

Para aqueles que procuram abordagens sociais ou abruptos na sua temática, a leveza deste trabalho de Radwanski poderá suscitar um reprovador sentimento de privilégio - o principal conflito é um casal cujos interesses não se alinham completamente - mas, fora isso, é um filme sereno e formal, com uma aura de mumblecore mas esquivando-se da acidez que caracteriza muitas das comédias contemporâneas, e principalmente oriunda dos Canadá (sim, Monia Chokri, estou a olhar para ti). 

Secção Encounters

 

Sex

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Permitam-me fazer um breve desvio e recordar um episódio particular (e sem interesse, mas é esse o privilégio de ser narrador). Certa vez, juntamente com um amigo, assistimos a um double bill de dois contos estacionais de Eric Rohmer na Cinemateca, experiência essa que não lhe foi agradável. Desde então, esse meu amigo, sempre que deseja referir-se a Rohmer, satiriza a sua "fórmula" como um "filme em que personagens se beijam com pedida permissão e discutem após sobre esse beijo. Haja paciência!". 

Feito este parêntesis, passo então para "Sex" de Dag Johan Haugerud. A matriz dessas fábulas rohmerianas é impressa em papel norueguês, uma tertúlia e debates, ora acalorados, ora apelativos à compreensão, sobre o sexo, o tabu, o matrimónio, o adultério, mas sobretudo sobre como a sociedade vê ou encara todos esses elementos, partindo desse mesmo olhar na determinação destas personagens. Mais do que isso, resulta numa desconstrução das pré-fabricações destes territórios oscilantes, sendo que, inevitavelmente, acaba por ser uma obra mais interessante no seu conteúdo, fomentando eventuais discussões em mesas redondas e drinks a acompanhar, do que na sua forma, esta levada ao excesso das elipses (questiona-se o propósito daqueles "intervalinhos" paisagísticos?) ou planos de menor esforço e movimento que concentram os diálogos pertinentes e de tom arrependido. 

Nessas circunstâncias, é ao cair do pano que outra desconstrução da heteronormatividade e da masculinidade estabelecida se manifesta. Desta vez, nota-se um breve exercício performativo, mas que mesmo assim não consegue resgatar o filme da fidelidade ao(s) seu(s) tema(s), e cuja intromissão dos créditos finais nos faz erguer da nossa cadeira a mando do lufa-lufa quotidiano. “Arre, que já faz tarde

Secção Panorama

 

Cu Li Never Cries

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Primeira longa-metragem do vietnamita Pham Ngoc Lam, é um filme, previsivelmente, sobre passados e reconciliações dos mesmos, detido por um efeito de tropicalismo sombrio que conspira com a fotografia em preto e branco para nos transportar a esse exorcismo constantemente adiado. A história segue Nguyện (Minh Châu), uma viúva que, após trabalhar anos na Alemanha e por lá casar, regressa à sua terra natal acompanhada pelas cinzas do marido e por um lori, uma espécie de primata, com uma doença de pele. À chegada a Hanói, a sua "casa", depara-se com a sua sobrinha maneta, agora maior, grávida e prestes a casar com o namorado, uma relação que Nguyện desaprova visto que replica alguns dos seus erros passados.

Lam constrói um cinema lento, por vezes contemplativo, por vezes enquadrado, que reproduz, esteticamente, e muito, alguns dos autores das suas vizinhanças (parece existir um eixo estético nessa geografia, com algumas coordenadas de nuances), nomeadamente o filipino Lav Diaz, na sua coloração imutável e nos olhares e revisitas aos passados e presentes do seu país. "Cu Li Never Cries" resulta nesse drama de camadas, onde cada personagem, cada gesto ou cada cisão age como um duplo sentido, e como bem sabemos, o Vietname é agora um país abstracto perante um histórico de conflitos e cumplicidades mal resolvidas. Assim como Nguyện deseja reconciliar-se com fantasmas, descartar cinzas e libertar os cativos, Lam demonstra, sem ocultações, ser fruto de uma geração em busca do seu espaço num "país-fénix" que se reergueu, mas que permanece marcado pelas suas cicatrizes.

Secção Panorama

Este lugar é interdito a "homens doentes"

Hugo Gomes, 18.02.24

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Vivemos numa época em que a saúde mental encontra-se gradualmente integrada no vocabulário e nas preocupações sociais (e governamentais), tentando com isso retirar a loucura nas mulheres e o melancolismo, comumente diagnosticado, nos homens. Os antigos retratos adquirem novas leituras nesta modernidade cada vez mais doente, contudo, continuam perpetuados por velhos estereótipos ou imposições sociais, religiosas, políticas ou simplesmente morais (visto que o conceito de moralidade é maleável consoante a sociedade vigente). Abordar a saúde mental no universo masculino é, das duas uma, uma romantização à moda do “artista ferido” (síndrome “Kurt Cobain”) ou um embaraço, visto que continuamos a retratá-los como “homens fracos e psicóticos”. Há que desconstruir. 

Mesmo assim, qualquer abordagem corajosa a essa mentalidade em declínio na figura masculina é um arrojo seja como for e nesse sentido, a co-produção alemã-espanhola "Every you Every me" ("Alle die Du bist", de Michael Fetter Nathansky) parte de um interessante tratamento performativo à ansiedade crónica manifestada num homem, cuja perspetiva, por parte de outros, transfigura-se em diferentes personas à medida que o ataque cresce (ou decresce), alcançando a animalidade como a máxima gravidade. É uma espécie de "o rei vai nu", o qual opera na ótica de fora, neste caso na sua companheira matrimonial (Aenne Schwarz), assumindo-se Atlas na relação, que tudo tenta para minimizar essas dores e o sentimento de impotência.

Em termos formais, “Every you Every me” não padece de nenhuma particularidade ou patologia, assentando numa fornalha desesperada ao transferir o redemoinho emocional do parceiro, o tal “homem doente”, para a tal protagonista (dramaturgicamente falando). Se o gesto de focalizar o tema no universo masculino é um passo, é na sua rápida transferência para o outro campo, sentindo a correspondência de um caderno de encargos (parece que as audiências estão mais propensas a ver o sofrimento nas mulheres do que testemunhar homens frágeis a afogarem-se na imperatividade do sistema), faz com que os esforços tornem-se em vão, menosprezando a questão a nível de “filme de tema”, e convenha salientar, o que temos em mãos não passa disso mesmo. 

No geral, há um sentimento deslocado devido a essa mudança de foco, e com isso perdeu-se uma oportunidade e uma contradição (ao focar o sofrimento da mulher, automaticamente encaramos o homem como ser egoista e incapacitado, a mentalidade em degraça revelando-se num antagonismo à sua companheira, ou seja a mensagem transvia-se durante o processo). Uma valente oportunidade perdida, coloco a negrito! Parece que a saúde mental dos homens continua a ser um tabu.

Secção: Berlinale Panorama

"Devemos permitir que o filme e o material falem mais alto do que o nosso ego": uma conversa com Inês T. Alves, uma portuguesa entre os Achuar

Hugo Gomes, 06.09.23

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Águas do Pastaza (2022)

Inês T. Alves convidou-nos a explorar os confins do mundo através dos olhos das crianças, apresentando-nos uma perspectiva universal e quase utópica que transforma a Amazónia num recreio e, ao mesmo tempo, numa sala de estudo. Após passagem por Berlim, por surpresa da realizadora, "Águas do Pastaza" segue agora  por novos caminhos [festivais, mostras e cineclubes] para demonstrar essa visão num exercício imersivo e sensorial. Não observamos esta tribo enquanto meros turistas privilegiados; estamos com eles, unicamente com eles, sendo a montagem a condutora desta experiência. É para isso que o cinema existe, acima de tudo, para nos tirar do nosso comodismo.

Conversei com a realizadora sobre o projeto, sobre os "achuar" e sobre a ocidentalização que muitas vezes tentamos impor a tudo e a todos.

Algo que me fascina no seu filme é a sua determinação em sair de um lugar e chegar a um sítio remoto, longe da civilização. 

Já sentia uma grande vontade de sair da Europa e explorar novos horizontes. Não desejava voltar apenas para seguir o roteiro tradicional de viagens. Em vez disso, ansiava por estar num lugar diferente e aprender com as pessoas desse local. Queria envolver-me e contribuir ativamente nesse encontro. A Amazónia, por vários motivos, sempre exerceu um fascínio sobre mim, despertando um forte desejo de conhecê-la. No entanto, não possuía nenhum contato ou conexão na região, o que me levou a procurar na internet por possibilidades de locais onde pudesse ir, ficar e ser bem recebida. Foi então que descobri um projeto independente iniciado há alguns anos por um casal na comunidade que eu decidi visitar, pertencente à comunidade Suwa da tribo indigena Achuar.

Entretanto, esse casal teve o privilégio de conhecer essa comunidade há alguns anos, pois eram professores na escola primária local. Ao partir, propuseram à comunidade a continuação de receber pessoas de fora com o objetivo de apoiar e colaborar na escola, especialmente com os novos estudantes. Entrei em contacto com eles e receberam-me de braços abertos, explicando-me como o projeto funcionava e como poderia chegar lá no tempo mínimo necessário. Embora não tivesse interesse em ser professora, especialmente num lugar tão distante do meu e com uma cultura tão diferente, senti que essa poderia ser a minha porta de entrada para a comunidade. Além disso, como já realizava oficinas de cinema com crianças em Portugal, pensei que poderia contribuir com esse conhecimento. Fui em busca de um projeto que me permitisse realizar sessões de filmes, e ao conversar com o casal responsável pelo projeto, tomei a decisão de embarcar nessa experiência. É claro que também seria uma oportunidade incrível poder ficar alguns meses imersa nesse ambiente.

Mas antes tinha feito um projeto em Moçambique, certo?

Fiz uma curta-metragem em Maputo, sim.

De Moçambique prossegue para esse local entre o Equador e o Peru, ou seja, encontra no cinema uma forma de viajar?

É também uma forma de viajar dentro de mim, de me conhecer e de conseguir expressar-me e compreender. Compreender o mundo e compreender o mundo à minha própria maneira. Além disso, vejo os filmes como uma forma de perceber como o mundo se comunica comigo e, de certa forma, eles também se tornam um veículo para os encontros. Para mim, fazer filmes é sobre o encontro entre a minha realidade e as pessoas que entram no filme. Estou interessada nesse encontro entre o eu e os outros.

E em que momento desta sua viagem a incentivou a concretizar um filme?

Mesmo assim, o fascínio de conhecer aquelas crianças e testemunhar a forma como se conectam com o ambiente, a floresta e a sua independência e autonomia, bem como o conhecimento que possuíam, que de certa forma também já existiu na nossa cultura ocidental e que faz parte do conhecimento humano. Não se trata apenas de viver de forma direta em relação à alimentação, de acender fogueiras, cozinhar ou colher frutos, mas sim de algo que sinto que estamos a perder. Foi esse encontro com essas crianças que despertou isso em mim. Passei tanto tempo com elas e elas generosamente partilharam a sua vida comigo e eu comecei a perceber que seria interessante fazer um filme sobre essa experiência.

Concordo plenamente com essa perspetiva de que estamos a perder, talvez inconscientemente, algo muito valioso. Quando assisti ao seu filme, pude perceber de forma subtil uma narrativa sobre a liberdade das crianças. Cada uma delas imersa no seu próprio mundo, conectada à natureza. No entanto, à medida que o enredo se desenrola, é introduzida uma máquina, um telemóvel, que se torna um segredo. Há uma cena particular no seu filme em que vemos uma menina e um menino, ele está profundamente envolvido com o telemóvel, ouvindo música, aliás, enquanto ela está a segurar um pauzinho, prestes a fazer alguma coisa. De repente, ela larga-o e vai verificar o ecrã na mão do menino, a partir daquele momento a curiosidade da menina à tecnologia a levou à sua dependência. 

Essa sequência, de certa forma, funcionou como um espelho para a dependência que a nossa sociedade tem em relação às telas. E não estou a falar apenas do cinema, que é algo diferente, mas sim da dependência generalizada dos ecrãs, que nos leva a perder o contacto com o nosso redor.

Sim, a tecnologia traz consigo o risco da alienação. Sentimos isso de forma muito presente. Hoje, estamos extremamente dependentes dos telemóveis e das tecnologias. E não é que eu seja contra todas as tecnologias, acredito que elas trazem coisas boas, mas é importante utilizá-las conscientemente. Na verdade, eles nunca tiveram uma televisão, apenas um rádio, e de repente, sem necessidade, quando cheguei, há apenas dois meses, já tinham telemóveis. Às vezes, era o meu telemóvel, outras vezes o dos pais, mas ainda assim era algo novo e fascinante para eles, e ainda mais porque antes não havia nada disso. O telemóvel é uma porta para o mundo, mas também para um mundo doente. No entanto, também traz muitos desafios que eles terão que aprender a lidar. Espero que eles consigam encontrar uma forma de ser como nós, de refletir sobre como queremos nos relacionar e como queremos interagir com a tecnologia. Talvez, de facto, o filme seja um espelho dessa dicotomia entre estar conectado com a vida, a floresta e o meio ambiente, por natureza.

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Inês T. Alves

E no sentido de que essa invasão dos ecrãs também traz um certo contágio àquele que é o ambiente que dirige a tecnologia? Até porque eles vão ter contacto com um mundo que muitos deles nunca vão conseguir atingir.

Sim, eu percebo a pergunta. Acho que para mim, o mundo em que vivemos é inevitável. Se isso acontecer, e acredito que aconteça, não sinto que tenha o papel de dizer o que é certo ou errado, nem entrar em moralismos. Acredito sim, que é uma realidade sobre o que está a acontecer e eles, como é óbvio, têm curiosidade em perceber o que existe no resto do mundo e que é uma forma de compreender os perigos envolvidos. Então, a mudança também começou com essa introdução. E é, sem dúvida, importante refletir sobre isso. Mas acho que temos que refletir em conjunto, porque é um problema global instalado e claro que aqui temos outra situação, o contacto com a tecnologia foi mais gradual, enquanto lá chegou de repente. Acredito que existem muitos perigos desconhecidos nesse contacto. No entanto, eles também são seres capazes de pensar.

Perante o filme tentei não dar uma resposta, dizer o que é certo ou errado, mas sim observar a realidade e perceber que este é o mundo globalizado em que a tecnologia está presente em tudo. Hoje em dia, até eles têm internet e trabalham com ela. Nós, enquanto humanidade, temos que compreender como queremos nos relacionar com esse acesso quase infinito ao mundo e às diferentes realidades.

Fale-me sobre essa Oficina de Cinema, e desta vontade de trazer para perto da comunidade um pouco de cinema. Houve e quais as reações das crianças ao experimentar aquelas primeiras imagens e de que forma aquilo tornou-se numa narrativa na cabeça deles? Recordo que os Lumiére e os seus instantâneos sucessores também tentaram levar Cinema para o resto do mundo. Havia sempre uma espécie de “tradutores de imagens” nessas projeções, para auxiliar na compreensão de como aquelas imagens se encaixavam / conjugavam numa narrativa aos automáticos espectadores.

Não era a primeira vez que viam filmes; já tinham visto, seja através do telemóvel, seja em projeções organizadas para a comunidade, mas antes da minha chegada, era muito raro essas exibições. Nós colocávamos um lençol... clássico [risos]... e, em pouco tempo, a pedido deles, estávamos a fazer isso todas as noites. Já me encontrava cansada de ter que montar constantemente o projetor [risos]. Também tentava explicar em alguns momentos o que é o cinema, o que é a imagem e o poder da imagem e do som, como se constroem narrativas, a realidade e a ficção. Procurei abordar alguns desses temas, especialmente com as crianças, e por vezes percebia que tinham alguma dificuldade em entender o que era realmente a fantasia. Eles perguntavam: "Mas aquilo existe mesmo?", e tudo o que não fazia parte daquela realidade deles poderia ser real ou não? Poderia ser verdade. Lembro-me de estarem a ver um filme do "Harry Potter" e não saberem que aquilo não era real.

Existem comunidades indígenas que têm uma abordagem diferente em relação ao que chamamos de fantasia. Lembro em uma conversa com o João Salaviza e Renée Nader Messora sobre o seu “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, em que referiam que os krahôs interpretavam os sonhos como passeios do espírito fora do corpo.

Esta coisa de que a fantasia não é real é também uma questão. De repente, começamos a pensar que ela é uma realidade também. Mas é importante compreender o que é que define estes mundos que vemos no cinema. O objetivo foi também permitir que eles percebessem como as coisas são construídas e que alguém as constrói. Há uma construção de uma realidade no cinema e nós fizemos um exercício de stop motion, por exemplo, para os ajudar a entender. A combinação de imagens, numa sequência que cria movimento e com uma determinada velocidade, produz a ilusão de movimento. Então, a partir dessa ideia, surge a ilusão da imagem colocando a criança como criadora de imaginários. Também reconheço a importância de adentrar em conceitos sobre a realidade material e no que é mais real do que a própria realidade.

Foram curiosas reações aquelas que conseguiu desencadear?

Sim, embora tenha tido apenas dois meses, o que não foi muito tempo, foi o suficiente para desenvolver uma relação com a comunidade e aos poucos pudessem expressar para comigo. Havia momentos em que não havia comunicação verbal, e sim uma comunicação corporal ou das reações ao que estavam vendo. Eles expressam-se mais por meio de sensações do que por palavras.

Eu também mostrei filmes que nós próprios filmávamos entre nós, para que pudessem ver em tela e adquirindo a consciência do que viam era uma seleção da realidade que eles vivenciaram. Eles percebiam que o que viam era apenas uma seleção de acontecimentos.

Acho que, no final das contas, isso os ajudou a compreender, mesmo estando bastante isolados do mundo Ocidental e da tecnologia em geral. Como disse, eles já tinham acesso a alguns filmes e livros, não foi assim tão difícil de entender, apesar das diferenças culturais.

Havia escola?

Sim, pré-escola e escola primária.

Pois, no filme eles falam espanhol.

Sim, aquelas comunidades já falam espanhol. As crianças falam sobretudo espanhol entre elas, embora saibam que é uma língua estrangeira, e os adultos falam "achuar" entre eles, a sua língua nativa. De alguma forma, os adultos começaram a sentir que fazia mais sentido falar espanhol com as crianças, mesmo que estas não tenham total domínio do idioma.

O que as crianças transmitem é bastante básico, no sentido de que usam o espanhol no dia-a-dia e, em seguida, desenvolvem formas de expressão e de comunicação. Contudo, as crianças compreendem o idioma “achuar” só que não praticam muito entre elas, e o seu espanhol é muito simples em termos de vocabulário. Na escola, as aulas são dadas em espanhol maioritariamente, mas também tem aulas de “achuar” para não perderem a ligação com a sua identidade. 

Saliento que a escola foi reconhecida pelo Estado. Portanto, é necessário seguir o programa do Estado, o que também envolve uma questão de coerção.

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Águas do Pastaza (2022)

Porquê? 

Porque a infância está muito distante da realidade imposta pela escola. Por exemplo, eles estão a aprender a Roda dos Alimentos, e muitos dos alimentos que estudam não fazem parte da sua alimentação, ou até mesmo nunca verão algo idêntico na vida. É importante considerar que, na fase inicial, muitos deles nunca tiveram a oportunidade de experimentar alimentos como queijo ou maçã. Até mesmo a textura de uma cenoura pode ser desconhecida para eles. Assim, coisas que podem parecer óbvias para nós não o são para eles. Eles estão constantemente a aprender e a descobrir imagens que percebemos como naturais, mas que também são novidade para eles. É uma realidade diferente da deles que estão a experienciar.

Além disso, quando falamos sobre as comunidades indígenas, frequentemente fazemo-lo da perspetiva do 'outro' e não a partir da sua perspetiva interna. No sistema educacional, podemos ensinar sobre os indígenas e as suas comunidades, mas frequentemente é feito como se fosse algo distante, algo que não faz parte de quem somos. É uma abordagem de 'outro' e não uma compreensão a partir de dentro. Portanto, é importante considerar estas perspetivas.

Eles sentem-se marginalizados com esta questão do “outro”?

Acho que sim. Em relação à escola, por vezes, sinto que se torna uma abstração, pois está frequentemente desconectada da realidade prática das crianças. Essa sensação é ainda mais acentuada porque, na verdade, eu próprio vivi muita frustração na escola. Questiono por que o processo de aprendizagem muitas vezes se afasta tanto da realidade deles. Certamente, eles fazem adaptações e tentam integrar conhecimento em seu dia a dia, mas acredito que ainda existe muita frustração nesse processo. Não era um ambiente em que eu me sentisse totalmente à vontade. Como colaboradora na escola, também não estava preparada para lidar com questões relacionadas à leitura, o que contribuiu para essa sensação.

Voltando à Oficina de Cinema, que filmes exibia a eles?

Charlie Chaplin, principalmente! Porque apresenta uma linguagem universal e são filmes bastantes divertidos. Um deles, o The Kid era importante exibir para que criassem uma empatia com a criança, apesar dos filmes serem de uma realidade distante a deles, essa perspetiva infantil o conseguia integrá-los nessa “estranheza”. 

Sinto que não fui tão bem preparada como pretendia em termos de seleção cinematográfica, agora, olhando para trás, tenho ideias do que pode ser mostrado a eles, possivelmente o pratique no meu retorno. Mas, recordo, que na altura que cheguei à aldeia tinham mostrado o “The Jungle Book”, da Disney, o qual deixou-os maravilhados. A toda a hora pediu para rever o filme, sinto que se identificaram com o Mowgli de alguma forma [risos]. 

Mas também mostrei alguns documentários como o “Baraka”, de Ron Fricke, o qual ficaram encantados com aquelas imagens de culturas provenientes dos quatro cantos da Terra. No geral, tentei apresentar um programa de filmes com poucos diálogos, como por exemplo, a curta “Le Ballon Rouge” de Albert Lamorisse.

Não é segredo, mas ao captar todas estas imagens durante as filmagens, ao sentar-se olhando para aquele expositor e ao planear a ordem em que o filme seria construído, tinha uma visão clara em mente? Além desta narrativa o qual estou a descrever, “Águas do Pastaza” resultou num filme bastante atmosférico, que nos permite entrar no seu ambiente e simplesmente pairar dentro dele.

Sim, por isso é que considero um filme importante para ser visto no cinema, precisamente porque não se trata apenas de uma história, e sim uma proposta aventureira com um desfecho envolvente. Não sei, é uma experiência que nos permite mergulhar profundamente na floresta, através da imagem, como também do som.

Os cheiros e os sons da floresta são particularmente impressionantes, especialmente quando ouvimos os animais e a chuva a cair durante a noite. Este tema é intensificado pelo ambiente sonoro. O nosso objetivo era realmente imergir o público nesse mundo por meio da sensação, não apenas por meio de uma narrativa convencional. Mesmo que não tenha uma história clara, é um filme que nos faz sentir parte da floresta e da vida das crianças de uma forma contemplativa nos lugares mais tranquilos.

E conseguiu levar essa ambiência a Berlim …

É verdade, quando fui para a Amazónia, não tinha a expectativa de estrear um filme em Berlim. Na altura em que 'Águas do Pastaza' se transformou num filme, imaginei que o veria em festivais de menor dimensão, com um foco mais etnográfico. No entanto, Berlim proporcionou uma maior visibilidade e permitiu que fosse visto por um público mais vasto do que inicialmente antecipava. Após isso, com o apoio da Oublaum, o filme continuou a sua jornada em festivais, como o Indielisboa, o Cine Eco, Porto/Post/Doc, bem como exibições em cineclubes e eventos especiais. A natureza atmosférica do filme, como mencionaste, e o seu afastamento das narrativas convencionais fazem com que se enquadre numa variedade de temáticas para além do puramente etnográfico. Ele fez parte do Festival de Arquiteturas, por exemplo, e do Festival de Cinema e Literatura de Olhão.

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Nana (Valerie Massadian, 2011)

O seu filme me fez recordar outro, o “Nana” da Valerie Massadian. Não sei se chegou a ver? 

Não …

Deixe-me contextualizar: "Nana" leva-nos até uma criança de 4 anos que vive com a mãe numa zona remota, numa casa no meio da floresta. Certo dia, por motivos não muito claros, a mãe morre, e a menina fica sozinha naquele lugar, desconhecendo a condição da progenitora, mas "sobrevivendo" graças à sua imaginação. O filme nunca assume um tom fantasioso; em vez disso, somos convidados a adotar a mesma perspetiva da protagonista, que nada conhece e pouco desconhece. Ficamos à mercê dela. Em "Águas do Pastaza", também são as crianças que ditam a nossa perspetiva. São as anfitriãs daquele mundo, e o vemos através da sua percepção.

Parece-me válida essa comparação, tenho que ver esse filme.

Aviso … porque sempre nos dias de hoje fica sempre bem avisar devido à sensibilidade do público … o filme inicia com uma matança do porco. Bem, se formos a ver o seu filme também nos apresenta algumas morte nesse sentido, o que me deixa questionar sobre esta relação ocidental com a morte e como estamos a lidar com ela.

Tem a ver com isso, com esse sentimento de alienação, não é sobre o que temos. Estamos a afastar-nos da perda de conhecimento, mais do que da própria vida, do ciclo natural da vida. Viver é também uma forma de morrer. E, de certa forma, estamos a consumir a nós próprios. Ao falar assim sobre a natureza, o que acontece? É claro que a forma como o fazemos hoje em dia, com as florestas a serem destruídas, os aviários e o consumo abusivo de carne, é um grande problema. Mas, ao mesmo tempo, não podemos fechar os olhos a isso. Não é porque não queremos mostrar na tela, às vezes é necessário mostrá-lo, é preciso confrontar-nos com essas realidades. Essa é a parte difícil, não é sobre a vida da qual temos consciência. Como nos relacionamos com ela? Não podemos ignorá-la, não podemos esquecê-la. 

A morte é um tabu que precisa ser desconstruído. Vemos a morte de animais, mas a nossa própria morte, para mim, não é apenas uma questão de matar, é sobre como lidamos com ela. O que significa alimentarmo-nos uns aos outros? É importante perceber como estas coisas são representadas, como são sentidas. Não é deixar de mostrá-las, não é deixar de refletir sobre elas. É confrontar-nos com as complexidades. Não é pecado observar carne embalada no supermercado mas é pecado experienciar a morte de um animal para fins de alimentação? Acho que é importante reconhecer esta desconexão que estamos a viver, essa separação que criamos, e também garantir que as crianças não se afastem dessa realidade. Acho que é um tipo de alienação que estamos a perpetuar.

Mudando de assunto, em alturas de Berlim recordo algumas entrevistas da altura em que referia a um projeto coletivo na Mouraria …

[risos] Está um pouco parado, especialmente depois de termos recebido os resultados do apoio da Câmara de Lisboa. Não está esquecido, mas, de facto, está parado. Agora, tenho outro projeto, envolvendo uma senhora cabo-verdiana. Este surgiu de forma espontânea, mas ainda não obtive qualquer apoio para ele. Portanto, estamos neste ponto, ainda estamos a processar e a perceber o que pode surgir a partir deste filme.

Apesar de também permitir que as coisas se manifestem por si próprias, para mim, o que descobri em relação à criação de filmes é que sempre se trata de encontros. É sobre como esses encontros acontecem com as pessoas, com o material dos filmes, e permitir que eles se manifestem de maneiras por vezes muito misteriosas para mim. Portanto, na fase de montagem, quando o filme realmente se materializa, é um processo em que nós, como realizadores, não sabemos ao certo o que vai acontecer. É como se nos dispuséssemos a ser veículos para algo que está para além de nós.

Como última questão, tenho consciência de que muitos realizadores têm um forte apego às imagens que captam, o que dificulta a seleção. Em muitos casos, isso leva à intervenção do produtor para "forçar" o corte, se é que posso colocar dessa forma. Neste contexto, observei que o seu filme tem apenas 60 minutos, em comparação com muitos dos seus colegas que apresentam trabalhos de longa duração. Quero deixar claro que não é uma crítica à duração em si, mas tenho a sensação de que houve um intenso trabalho de seleção e edição em 'Águas do Pastaza'.

Sem dúvida, acho que o trabalho mais difícil, talvez até mais importante do que vencer, é o desapego. Isso se aplica a tudo na vida, mas também envolve perceber o que realmente contribui para a narrativa do filme e o que está ali apenas por causa do nosso apego. Incomoda-me quando assisto a um filme e percebo que o realizador não quis eliminar uma determinada imagem, simplesmente porque tem um apego a ela, mesmo que essa imagem não contribua mais para a história. Isso é um exercício muito difícil para mim, mas extremamente importante. Tive que lidar com muitas imagens e ainda hoje sinto pena de algumas que não estão presentes no filme. É um desafio perceber o que é essencial, o que já está lá, e o que precisa ser deixado de fora.

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Águas do Pastaza (2022)

Acredito que quando estamos verdadeiramente conectados, devemos permitir que o filme e o material falem mais alto do que o nosso ego. Portanto, este exercício é sobre entender o que realmente serve ao filme, em vez de servir aos nossos desejos pessoais. Não é fácil, não é um exercício simples.

Filmei muitas coisas escondidas, porque quando estava lá, não sabia o que iria capturar, e os adultos faziam parte do filme. Foi somente durante a edição que percebi que precisava remover quase completamente a presença de adultos, tal ajudou-me a fazer seleção de muitas cenas das quais, hoje, sinto pena não terem sido incluídas, não por causa do que estava acontecendo nelas, mas porque havia um adulto, mesmo que fosse ao fundo. Decidi removê-los posteriormente.

As crianças se tornaram no foco. Mais tarde, percebi que poderia criar um lugar utópico e fantasioso. Acho que isso é o que torna essa experiência especial, única. Afinal, ser um mundo exclusivo das crianças não deixa de ser uma realidade. No filme, quase tudo aconteceu sem a presença dos adultos. A ideia era que as pessoas sentissem isso. Claro, os adultos existem, mas na realidade, as crianças fazem a maior parte das coisas por si próprias. São muito autónomas e têm muita confiança. Deixamos que vivam as suas vidas e aprendam. Claro que aprendem com os pais, mas também ensinam uns aos outros. Existe um forte senso de colaboração entre elas. São dois mundos paralelos: o dos adultos e o das crianças.

O filme será exibido na 4ª edição do “Imagens no Tejo - Mostra de Cinema Português”, no dia 16 de setembro [ver programação completa aqui]

Espírito animal

Hugo Gomes, 25.06.23

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O charme de "Tótem", a segunda obra de Lila Avilés ("La Camarista"), provém da sua (aparente) inércia - os preparativos para uma festa aniversário com a mesma energia de um ritual fúnebre - e no centro desse turbilhão humano, onde os estresses relacionados aos avanços dessa cerimónia se fundem com as emoções contidas (voluntariamente ocultas para não ferir susceptibilidades), reside Sol (Naíma Sentíes), uma menina de sete anos cujo pai (o motivo deste frenesim), encontra-se debilitado por uma doença cancerígena.

Desde o início do filme, deparamo-nos com a pequena protagonista em convívio com a sua progenitora (Iazua Larios), uma mulher de contagiante vitalidade (contrastando com o outro progenitor, de abraços com a morte), pressentimos um certo encobrimento, sorrisos amarelos, forçados como máscaras sociais. A celebração que parece nunca "descolar" do seu planeamento resume-se a uma interminável tortura (pessoalmente) dirigida a esta criança, mantida na ignorância do seu redor, suspeitando das suas adversas características. 

Avilés cria um filme de ambientes, de conflitos aligeirados para serem sentidos por "enfants", aliás, é nesse olhar, algo infantil e confuso, que "Tótem" presta serviço quanto à sua formalidade. Sol, "ilumina-nos", entre esconderijos (refúgios improvisados) e a vontade de ver o seu pai, erudito no seu quarto, no seu túmulo guardado pelos totens animalescos. Essas forças místicas (e bem vivas) não deixam o filme em aconchegos. O corvo marca a morte predatória, os anciãos pressentem com clareza os sinais da sua vinda, tentando contrariar o fim abrupto e previamente anunciado com a manutenção (humanamente) possível da vida - o "bonsai" - esse símbolo de prosperidade (com paciência à mistura), é ali mesmo, o combate contra esses alados antagónicos de mau agoiro. 

Na sequência final, de rosto iluminado pelas velas do enfim bolo de aniversário, Sol transmite algo mais do que mera inocência infantil, o seu olhar trespassa a quarta parede, por minutos foca-nos [a audiência]. O mistério ali orquestrado foi em vão, Sol sabe e muito bem do “crime” ali ocorrido. Inocência termina, o conflito já se encontrava persuadido na sua mente, como uma Virginia Woolf que em espaços pequenos deambula pelos seus íntimos e perigosos pensamentos.

Nova Iorque, dentro de horas

Hugo Gomes, 22.03.23

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Mais do que uma peregrinação ao mito, o género tem-se convertido em um constante debate na nossa sociedade, igualmente emancipando-se da consciência da orientação sexual. O cinema, muito dele aliás, alicerçou-se ao fervor da ideia, com vários a desafiar através das suas próprias concepções, uma ginástica e, por si, a diluição da questão de género, como por exemplo Bertrand Mandico (realizador assumidamente não-binário, um dos rostos do ‘Manifesto da Incoerência’) que executou brilhantemente em 2017 no sexualmente febril “Les Garçons Sauvages”. 

Mas outros não ostentam tamanha criatividade em trabalhar os géneros e distorcê-los perante as convenções cinematográficas, grande parte deles e infelizmente saídos de uma determinada escola à lá Sundance têm optado a via do panfleto, mensagens escancaradas na hipótese de “converter” um mundo para essa visão, sem sequer pensar nos cariz sedutor ou nas possibilidades, ora criativas, ora narrativas, que o cinema poderá trazer. Tem sido esse tipo de filmes que proporcionam certos ódios (diversas vezes mensurados) de alguns intelectuais e cinéfilos aos chamados “filmes de agenda”, quiçá sugestivo e redutor título que condena apenas e específicas agendas e não outras. No caso de “Mutt”, também ele saído dessa “tendência apropriada do famoso festival americano” e estreado na Europa através do Festival de Berlim (tendo recebido uma Menção Especial na secção Generation 14plus), a ótica é outra, pertinente e à sua maneira honesta. 

Vuk Lungulov-Klotz, realizador de origens chilenas e sérvias, e que se identifica como trans (aliás a sua carreira orbita sobre esse tema), recorre em 24 horas na vida de Feña (o ator de género neutral Lio Mehiel), homem-trans em plena transição que reside em Nova Iorque. Neste episódio quotidiano, o protagonista aguarda a chegada do seu pai, vindo do Chile, uma conservador “fantasma do passado” que o próprio terá que “esgrimar”, para além de ter reencontrado o seu ex-namorado na anterior “noite de copos”, e a acrescentar à equação o aparecimento da sua irmã mais nova que procura nele conforto familiar. “Mutt” coordena esta trajetória de auto-descoberta numa centrada malapata citadina, ao jeito dos irmãos Safdie, um choque entre acasos e infortúnios que irão culminar num preenchimento pessoal do seu protagonista, sem este se aperceber da sua epifânica jornada. Porém, a desilusão será o destino amassado, nada de repentinamente revelador nascerá daqui, os acidentais trilhos guiarão-lhe ao nada, a recompensa não mora aqui. 

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Lungulov-Klotz não reduz Feña ao vitimismo, nem sequer o banha na condescendência com que muitos retratam a minoria, e muito menos no privilégio cinematográfico (Rúben Alves, estou a apontar para ti), esta personagem é humana até à quinta essência e prova disso é a ambiguidade moral com que “cerra os punhos”, ora transversal nas constantes recaídas e ao mesmo tempo demonstrando resiliência em encontrar soluções que o valha, mesmo que “desenrascadas”, aos seus temporários obstáculos narrativos, mas, mais que isso, é a constatação da sua natureza naquela que é uma das mais subtilmente cruéis desconversas do recente cinema norte-americano: “Eu não te odeio por seres trans, mas sim por seres uma ‘besta’”.

Não podemos culpar o autor desta frase, o realizador não o permite, até porque em matéria de maniqueísmos, não é o padrão da pessoa que o condiciona para uma das “trincheiras morais”, e sim a sua experiência, dentro ou fora do seu género. Por um lado, podemos identificar-nos com essas “bestas”, encarar Feña como um revoltado de uma adolescência expirada (tentando lidar com a sua própria maturação enquanto ‘enfrenta’ a transformação), ou um desencontrado na sua compreensão. O que está entendido é o evidente carinho de Lungulov-Klotz pelo seu Feña (possivelmente há muito do realizador na sua criação) o leva a inseri-lo numa Nova Iorque sem personalidade.

Contudo, “Mutt” funciona como exercício tragicómico aliado à Lei Murphy e tem o trunfo de não se vender pornograficamente à mensagem [leia-se causas], até porque qualquer um consegue-se identificar com as dores do protagonista. Porque ao longo das nossas vidas, em algum momento, já nos sentimos deslocados do nosso lugar (no caso dele, é um “corpo” que não consegue interagir e isso traz uma pendor abstrativo à representação do “nosso lugar”).

Rage Against the Machine

Hugo Gomes, 05.03.23

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Costuma-se vulgarmente sublinhar que “a escola é um reflexo da sociedade corrente”, nesses mesmos termos podemos considerar a “sala de professores” como os bastidores do Poder regedor dessa mesma. Quase como hanekiano na forma como se presta a construir presunções sociológicas através dos pequenos detalhes (como também na estética fria e ocasionalmente rígida), e por sua vez, até de grandes eventos em vias de acontecer (como foi o caso de “The White Ribbon” (2009) e os sinais marcantemente sociológicos no qual previa a Segunda Grande Guerra), em “The Teachers’ Lounge” de İlker Çatak [a sua segunda longa-metragem], não se trata de uma previsão, mas sim constatação.

A desventura dá-se na perspetiva de Carla Novak (uma destemida Leonie Benesch), uma jovem professora de matemática e de desporto que acarreta novos ideais pouco impressionáveis aos seus mais veteranos colegas. A protagonista coloca em prática o que sabe (aliás, o que acredita) para tentar desvendar uma cadeia de roubos que têm lugar na chamada sala de professores. Furtos, esses, o qual todos suspeitam ser obra de uma aluno. O que Novak descobrirá alterará para sempre a sua posição enquanto professora, como também desequilibrará a hierarquia estabelecida entre lecionadores e pupilos. 

Há dois pontos a reter em “The Teachers’ Lounge” para além da sua alegórica político-social (até um jornal de escola joga-se na representação da liberdade de imprensa), a primeira é o registo narrativo do filme em nunca sair do seu cenário [leia-se escola], como também repugnando automaticamente essa evasão (como soubesse que a sua “força” está enraizada naquele cenário e naquele cenário apenas), desta forma a não evidenciar “backgrounds” pessoais sobre as personagens e principalmente da sua protagonista. A escola é um mundo feito, cumprido e emancipador. 

Segundo ponto, apesar da enorme importação cultural vinda dos EUA que “contagia” sociedades, nomeadamente as europeias, o cinema do Velho Mundo persiste em retratar a figura do enfant como ambígua (ao contráio da "infantilização" dos cogéneres americanos), ou de inclinações maquiavélicas, seja a (re)invocação de Haneke (uma curiosidade, Benesch foi atriz em “The White Ribbon”) ou de outras variações (recentemente presenciamos a crueldade infantil no belga “Un Monde” de Laura Wandel, também nunca fugido do seu espaço escolar). A criança é vista como uma “criatura” perversa, porque serve de protótipo ao adulto do amanhã. 

Quanto a “The Teachers’ Lounge”, os temas são mais que muitos, a sua mesclavagem e embutimento no décor, tornam esta pseudo-distopia fascinante o suficiente para nela encontrarmos o retrato dos nossos dias. A inocência é uma impunidade fantasiada nesta sociedade, ora os educandos não escondem a sua silenciosa anarquia, ora os educadores "cochicham" na sua sagrada “sala” para encontrar formas de os “controlar”. Este controlo parte na instituição de uma doutrina, e como tal é necessário determinar rituais cegamente cumpridos. A nossa protagonista não é “santa” no seu retrato, as palmas ritmadas com que exerce para demarcar a ordem na sua própria sala de aula, respondida de igual pelos seus alunos, é uma detalhe de como esta relação de Poder é uma preocupação neste sistema de ensino. 

Talvez o cinema contemporâneo tenha a urgência de falar da nossa modernidade, uma demonstração das preocupações de uma arte ambivalente, ora propagandista, ora alarmista, conforme a “mão” de quem a usa, e dos “olhos” de quem a vê. Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma. 

Arquitetando males à lá Canijo

Hugo Gomes, 27.02.23

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"Mal Viver" (João Canijo, 2023)

Convém declarar que no cinema de Canijo o processo acaba sempre por ser a atração dos seus projetos, e nele concentra-se uma ação performativa intensamente arrastada, seja nos atores e a sua maleabilidade para aquilo que chamamos de “realismo” (o nosso senso perante essas representações), ou por outra, pela construção de uma instalação visual, cénica e sonora. 

No caso deste recortado “Mal Viver”, a sua característica nata encontra-se no segundo ponto, mais do que as possibilidades com que os seus atores (com muitas “caras” reconhecíveis do universo de Canijo por aqui) possam expressar. É a inteira percepção do realizador em elaborar um filme, arquitetonicamente falando, retalhado em diversas perspectivas (sendo que isso nos levará à outra face do díptico, mas já lá vamos). Assim, com “Mal Viver”, somos conduzidos a uma teia de dramas a ter lugar num hotel rústico, com enfoque na equipa que gerencia este mesmo espaço, esse abordado maioritariamente por vias de planos conjuntos, onde a ação é somente uma janela à escolha do freguês (literalmente e não-literalmente). O espectador assume então a posição de voyeur e é igualmente resistente face a não distrair-se do enredo principal, essa coluna vertebral conectando tudo o resto sem ordenar a sua execução linear. 

João Canijo presta-se ao desafio, vislumbrando o seu mais Tati dos filmes, um objeto aglomerante de ações sob ações, e o procedimento dessas mesmas em grande ecrã, como os diálogos interpolados e independentes, são apenas sintomas dessas personagens em livre arbítrio, pelo menos a sensação dada, visto que o realizador é um realizador por inteiro, autocrata e onipresente (próximo da rigidez de Haneke). O espectador, porém, perde esse estatuto endeusado, convertendo-se num testemunho impotente e sem certezas absolutas, escolhendo a óptica que lhe enquadrar e nisso prescrever o seu próprio filme. 

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"Viver Mal" (João Canijo, 2023)

Mal Viver” não se deleita nos corpos dos seus intérpretes (em território “canijiano” são escravos do seu método), é antes disso um filme-edificante, pensando e casuístico, cuja sua arquitetura se revelará ainda mais com “Viver Mal”, que ao contrário do filme-siamês, tende em controlar a perspetiva do espectador, ao invés de deixá-lo a “marinar” no ambiente. Desta feita, o enredo não é novo, já havia sido “descoberto” no filme anterior, e em modo loop é trabalhado com severidade na sua mimetização. Aqui, seguimos três histórias, três reservas, cada uma apresentando hóspedes presos aos seus respetivos pecados capitais ou crónicos bovarismos (“ah, o velho conto dos privilegiados encurralados nos seus ‘mundinhos’”). 

Mais do que a matéria desenvolvida em “Mal Viver”, “Viver Mal” encanta-se com os seus atores, e ainda mais na dramaturgia emanada por eles, os seus corpos tornam-se devidas medidas temporais quanto à narrativa tríptica, expondo o esqueleto deste projeto, entretanto repartido em duas estâncias fílmicas. E a conexão sexual entre os demais, reluzentes atrativos para o “buraco na fechadura” que o então voyeur-espectador não deixará de espreitar. Tal como o referido, e estabelecido, filme anterior, “misturamo-nos” com a plebe, faminta por “conhecer” os traços das vidas animalescas e de excentricidades calcificadas dos passageiros residentes (o qual tão bem nos identificamos com a personagem de Cleia Almeida, a camareira que remexe os pertences dos hóspedes ou que se intervém nas suas trivialidades, uma fantasiadora do degrau que nunca irá “pisar”). 

Contudo, é neste capítulo que presenciamos os desempenhos mais ferozes, seja uma Beatriz Batarda em modo “mommy dearest” ou uma Leonor Silveira, despojada vilã de novela, no desempenho mais desafiador da sua carreira nos últimos (e largos) anos. Poderão ser dois filmes desiguais, um mais cuidado que o outro, mas são provas da maratona que Canijo tem executado ao longo da sua carreira, da performance à idealização de um cinema prestigiado por diversos “pontos de fuga”.

 

"Magoamos a mãe?"

Fisicamente ...

Parir doi ...

Transforma."