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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Takes Berlinale 2025: cada um com o seu Mundo

Hugo Gomes, 09.03.25

Paul

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Denis Côté refere-se ao mundo ansioso e depressivo sob o nome de Paul, partilhado por este homem canadiano imerso nas mesmas anomalias sociais. Porém, ao contrário dessa sociedade que se verga e prestigia elementos depreciativos e corrosivos, decide enfrentá-los através de um altruísmo simbiótico. Cleaning Simp Paul, como é tratado nos recantos da internet, confronta a sua condição com um ato de submissão: voluntaria-se para limpar casas de dominatrixes ou mulheres fetichistas, que o recompensam com outros devaneios sadomasoquistas e uma passividade onde a humilhação é apenas construção social.

Côté acompanha as jornadas deste homem disposto a tratar-se, como uma doença algures entre o terminal e o incurável, e é no seio destas mulheres, que procura uma vontade de ser útil e, nessa utilidade, encontrar uma noção de existência que muitos perseguem. Por vezes, roça territórios voyeuristas, “Paul” [o filme] parece buscar o choque na discrição, descortinando manias e fantasias materializadas, à semelhança de Ulrich Seidl na sua incursão pelas caves austríacas. Mas aqui, o confronto com a confortabilidade do convencionalismo torna-se na sua arma de arremesso.

As intenções de Paul [quer o filme, quer o protagonista] permanecem difusas, mas importa lembrar que a Humanidade nunca foi uma equação exata—não se reduz a fórmulas nem a matemática. Há por lá algo mais… inexplicável. Um documentário que conecta formatos, sempre atento às novas linguagens para lá da tela, ou, neste caso, das telas—fazendo desse vício intrínseco e virtual a sua fonte de inspiração.

Secção Panorama



L'Incroyable femme des neiges

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Apropriando-se do título de uma obra anterior de Sébastien Betbeder, “Marie et les naufragés” (filme que contava com o futebolista Eric Cantona no elenco), podemos dizer que “L'Incroyable femme des neiges” carrega um sentido de naufrágio, de afundamento e deambulância pela corrente.

Tragicomédia com Blanche Gardin novamente envolvida em peripécias existencialistas (recordamos o seu personagem em “Tout le monde aime Jeanne, de Céline Devaux), apresenta-nos uma aventureira que, após uma sucessão de encontrões e impasses na vida, parte para a Gronelândia em busca de uma criatura mitológica—algures entre o espírito divino e o Homem das Neves. Ela refere a aura sagrada desta entidade como a de um ser invisual, e de que forma os povos indígenas da região encontram a importância no não-visto do que somente naquilo que o olho humano capta. Agora, se há um valor oculto em “L'Incroyable femme des neiges”, teríamos de procurá-lo na imensidão da neve ou nos gags que roçam a violência e o embaraço. O que importa é que a personagem de Gardin é de difícil empatia e escassas simpatias, mas não nos devemos restringir à nossa reconhecibilidade, porque é no difícil entendimento das suas devoções e dilemas que somos desafiados a penetrar num filme que, como já debitei, oscila entre o naufrágio e o salva-vidas.

É que de existencialismos disfarçados de “autoajuda” e epifanias o cinema já se encontra saturado, e as avalanches desses temas, tal como as nuances deste novo filme de Betbeder, não ajudam em nada. Diríamos, então, que se trata de um spin-off mais lamechas do seu “Le Voyage au Groenland” (2016).

Secção Panorama



Sorda

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Através da sua anterior e homónima curta-metragem, “Sorda” (2021), Eva Libertad encontrou a continuidade para explorar na sua primeira longa, seguindo os trilhos do casal Ángela/Dário—ela, surda-muda; ele, ouvinte—que, para consolidar a relação, decidem aventurar-se na maternidade/paternidade. Porém, a criança nasce ouvinte, o que dificulta o vínculo afetivo com Ángela, empurrando-a para um magnetismo quase autodestrutivo.

Com “Coda”, esse esquecível vencedor do Óscar (remake do igualmente e exageradamente meloso “La Famille Bélier”), a popularizar um formato familiar requintado nos streamings desta vida, Sorda [longa] não ostenta essa apaziguação ou amenização dos dramas humanas, o concentra em dilemas e interações inconclusivas que, já no segundo ato, encontra uma razão de existência com um belíssimo ensaio sensorial, o qual a perspetiva sonora de Ángela. A sua surdez, o seu mundo familiar e de um emudecimento confortável. Talvez seja nesse efeito que o filme adquire a sua emancipação estilística face ao drama convencional—ainda assim, uma convencionalidade plena, sustentada por atores (Miriam Garlo é uma tour de force) com vida para mostrar.

Secção Panorama

 

Fwends

Após o seu estimado trabalho com “Peeps” (2019), curta que retratava duas crianças a deambular por um centro comercial, a australiana Sophie Somerville mantém uma postura de imposição de um cinema que sopra na direção do vento. Aqui, tudo soa espontâneo, natural, como meras pedestrialidades, aliás, é nas caminhadas sem destino que “Fwends” vibra na sua compostura.

Duas amigas, separadas por quilómetros e quilómetros, agendam um fim de semana de conexão em Melbourne, o sprint constante do lufa-lufa serve de "conversa em dia", enquanto as atrizes (Emmanuelle Mattana, Melissa Gan) percorrem uma cidade que as abraça ao ponto de proclamar-se personagem própria. Nada há de estranho neste naturalismo: Richard Linklater já explorava tais causas nos primeiros “Before” (“Sunrise” e “Sunset”) e, muito antes disso, Jean-Paul Belmondo convencia Jean Seberg para um dos seus golpes “amorosos” (“À Bout de Souffle”, 1960), ou a narrativa nunca pausada na descida pela avenida em “Adieu Philippine” (Jacques Rozier, 1962). Somerville, por sua vez, fascina-se com essa espécie de "cinema de rua", embebido na ocasião e no acaso, transformando essa movimentação na sua entrada de pés juntos para uma introspeção quase autoficcional.

Fwends” é, na forma, essa alma viva e natural, enquanto, na teoria, um filme que se desenha a partir de uma amizade disfuncional – disfuncionalmente normalizada. Uma crónica sobre uma sociedade que se entende mais narcisista, acelerada e, paradoxalmente, distante, mesmo que a tecnologia dite o contrário: um mal-estar fingido, talvez. Um fim de semana onde as diferenças confrontadas nada mais servem senão à mera banalização. Eis um pequeno filme sobre pequenos, mas igualmente grandes, assuntos.

Secção Fórum

"Boas meninas" querem-se puras ... ou endiabradas? Sexualidades em jogo com coro associado.

Hugo Gomes, 08.03.25

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Depois da animação “Granny's Sexual Life” (que por cá estreou no BEAST), a realizadora Urška Djukić atravessa outras sexualidades, nesta demanda encobertas e prontamente reveladas tendo como antagonista a disciplina imposta num grupo coral de pré-adolescentes - "Little Trouble Girls" (co-produção entre a Eslovénia, Croácia, Itália e Sérvia). 

No seio destas meninas em revelações hormonais, seguimos atentamente Lucia (Jara Sofija Ostan), que com os seus 16 anos, em comparação com as suas colegas, parece-se atrasar no seu desenvolvimento. Contudo, no “campo de férias”, onde o coro e o treino prescrevem dia-a-dia, encanta-se pelos desejos que espontaneamente lhe surgem, seja através de um trolha de tronco nu, seja pela sua amiga de peitos mais arrebitados que a delícia com certas e determinadas tentações. Pormenor importante nesta sua jornada coming-to-age é o cenário de um convento de freiras cuja madre superior, perante a sua experiência devota a Deus, a tenta encaminhar para um outro trilho. Na consciência de Anjo e Diabo, Lucia terá que escolher entre a cedência aos quentes delírios ou à educação repressiva obtida até então. 

Sexo como emancipação, identidade e até insurreição de um sistema fabricado, Djukić faz destas “meninas de coro” uma representação hiperbolica da sociedade ultra-sexualizada em contraste com outra ultra-puritanista, um ying yang sem equilibrios, ou até um “8 ao 80” em bom português, sem negociações. Mas a grande proeza de “Little Troubled Girls” é a capacidade de repescar perante momentos proustianos, uma bandeja de sensorialidades, não é só o visto que cultiva  a mente de Lucia, é também os cheiros, o toque, e, hereticamente, as imagens-sacra, recordando o igual fascínio fascínio decretado por João Pedro Rodrigues durante o “Ornitólogo”, pontuando a sua detida imagética sexual, por vezes enxuta e opressiva, mas totalmente sugerida a outros territórios carnais. A dubiedade com que a realizadora embrulha esta adolescência vivaz é também ela uma arma sem evidentes posicionamentos. 

Um filme dedicado e delicado, sem ser-se demasiado arrojado, sem ser-se demasiado introvertido, na medida certa.  

Filme visualizado no âmbito da secção Perspectives da Berlinale 2025

"Fazer cinema é uma forma de sonhar", uma conversa com a realizadora ucraniana Eva Neymann

Hugo Gomes, 23.02.25

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When Lightning Flashes Over the Sea (2025)

Nos nossos sonhos somos livres – o nosso escapismo, o atalho inconsciente para a cruel entidade denominada “realidade”. Odessa, cidade imortalizada no cinema graças a “O Couraçado de Potemkin” … ai, aquela escadaria! … continua a ser sonhada, mesmo quando o cenário prenuncia um conflito interminável. A realizadora ucraniana Eva Neymann regressa a este porto-não-seguro em busca de sonhadores: desde a criança que contempla o mar como possibilidade infinita até àqueles que encaram a outra margem como morada da liberdade, e ainda aos que, diante de uma tragédia de insuportável dimensão, se dirigem ao confessionário prontos a responder ao inquérito das suas almas – enquanto as sirenes anunciam refúgio nos abrigos: “Os russos vêm aí!!”. Todos se recolhem; excepto os gatos, esses ficam, e nesse instante transformam a temporária “cidade-fantasma” no seu livre estadantarte.

When Lightning Flashes Over the Sea” assume, através das mãos desta cineasta, a forma de um documento que se contrapõe aos demais oriundos da Ucrânia, onde a dignidade se revela no ponto de encontro entre o filme e os seus sonhadores.

Apresentado na secção Forum da Berlinale, o Cinematograficamente Falando … teve o prazer de manter uma breve conversa com a realizadora.

Para começar esta conversa, gostaria de adentrar no universo que capta no seu filme, portanto a minha primeira pergunta é: é possível continuar a sonhar, mesmo neste mundo, em Odessa?

Acredito que seja essencial conseguir sonhar, independentemente de onde estejas. Para te manteres, tens de ter a capacidade de sonhar – de ver algo para além do que chamamos de realidade. Para mim, por exemplo, fazer cinema é uma forma de sonhar.

É por isso que tenta captar, escutar e partilhar os sonhos de outras pessoas neste filme.

Se essa é a questão, posso tentar responder no que toca aos sonhos …

Nos seus filmes anteriores – lembro que, em “God 's Way” (um dos seus primeiros trabalhos) – retratou Odessa como um lugar onde a esperança parecia distante, mas mesmo assim permaneceu em Odessa. Em “When Lightning Flashes Over the Sea”, inicia com uma criança que partilha os seus sonhos, de querer viajar pelo mar, sair dali [Odessa]. O filme conecta-se com uma certa esperança. Mas como bem sabemos a realidade é “velhaca”, e tendo em conta que “God 's Way” foi realizado em 2006 e este filme surge num estado diferente, emergente, digamos, num outro cenário, mesmo que a cidade seja a mesma…

Pelo que entendo, vê uma ligação entre a Odessa de 2006 e a Odessa de hoje?

Hoje, recorrendo aos seus filmes e ao seu método… Sim, é por causa dos meus métodos; Odessa continua a ser uma cidade dos seus sonhos.

Na verdade, não sou de Odessa, e sim de Zaporozhye. Escolhi Odessa porque é uma fonte de inspiração. Sinto que lá encontro raízes que me nutrem, e que continua a ser a cidade dos meus sonhos. Peço desculpa por mencionar 'sonhos' com tanta frequência, mas é verdade – a cidade ajuda-me a sustentar a minha abordagem ao fazer cinema. 

Honestamente, creio que, apesar de fazer filmes muito diferentes sobre diversos temas, no final estes assuntos servem para expressar algo constante. Tenho uma ideia na minha mente que quero transmitir, e o faço através de temas diversos, de pessoas diferentes e de variados elementos. O cinema é o meio de expressão. A língua que falo.

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Eva Neymann no Festival de Berlim

Ou seja, tenta encontrar um traço comum entre essas pessoas. É como se fosse a sua assinatura – mesmo nas suas obras de ficção, procura esse mesmo padrão subjacente.

Não é que procure conscientemente uma ligação; é simplesmente que não consigo evitar. É a minha assinatura, como disse e bem. É a forma como vejo o mundo e como faço cinema. Claro que estou sempre ansiosa por procurar esperança, especialmente entre as pessoas que se encontram em situações difíceis ou tempos complicados. E, mesmo nos momentos bons, tento elevar algo – por exemplo, ajudar uma criança de rua a manter a sua dignidade, os seus sonhos de infância e tudo aquilo que uma criança deve, e deveria, ter. É muito importante. Penso que o principal ponto a realçar é que as pessoas não são meros produtos das suas circunstâncias. Há, confesso, uma tentação artística de se esconder por detrás de uma situação impressionante, afinal, às vezes é mais fácil, no cinema, mostrar a dor, as lágrimas e o sangue. Mas vejo a minha missão de forma diferente. Existe uma tentação perigosa de retratar as pessoas unicamente como vítimas, como produtos das circunstâncias. Ao invés disso, gostaria de usar o poder da arte para lhes dar validade, de modo a que continuem a ser dignos do nosso interesse, e marcantes também, mesmo nos momentos em que não estão a chorar ou a manifestar um luto ostensivo.

Também é interessante, mesmo que não haja sangue, mesmo que não haja lágrima, para que essas pessoas sejam impressionantes, é preciso reconhecer que é algo muito desafiante. Considero isso o meu objetivo.

Mencionou agora uma palavra que iluminou esta conversa - Dignidade -, porque, neste filme, procura encontrar acima de tudo essa mesma dignidade nestas pessoas. Convidou-as a partilharem as suas tristes e trágicas histórias, dos tempos de Guerra, sobre a perda de um familiar, até de famílias inteiras, dos filhos e tudo o mais, só que não vemos uma única lágrima; não os retrata, como disse e muito bem, como vítimas da situação – pelo contrário, confere-lhes a oportunidade de serem algo mais. O de não serem meros elementos de miserabilismo.

Para mim, é fundamental, por um lado, fazer com que as pessoas abram o seu coração, a sua alma e se coloquem em frente da câmara. E, por outro, desejo respeitá-las – a elas, a mim e também o público – sem explorar indevidamente a situação. Se aquilo se revela sem câmara, porque o deveria fazer com a câmara?

Um dos elementos mais chamativos do seu filme foi a tão livre abordagem que adotou – refiro-me aos gatos. Não dedicou um tempo excessivo a eles, mas reservou bastante a esses felinos que parecem viver com uma liberdade absoluta, os verdadeiros espíritos livres de uma Odessa constantemente oprimida. Os gatos, tornam-se, de algum modo, um refúgio daquela realidade, pois não são apenas animais de estimação – são também um escapismo face ao estado do mundo. Adoramos ver gatos na internet, por exemplo; muitas vezes paramos tudo só para os ver.  Por isso, porque é a decisão deste olhar atento para com os gatos neste documentário – ou neste comentário, como se queira chamar, embora prefira o termo 'filme'?

Necessito destes animais para simbolizarem, de alguma forma, um espírito livre. Fiz um documentário sobre o tempo, o lugar e os gatos em Odessa. Não concebi esses elementos como algo engraçado, tudo foi feito com grande seriedade. Toda a população de Odessa mudou desde a minha infância, mas o que se mantém imutável são os gatos.

Os gatos assumiram completamente o controlo de Odessa, e até disputam o protagonismo, quer na cidade, quer no filme. É quase como se fossem animais sagrados, um símbolo acarinhado por todos. E essa convivência entre pessoas e gatos é algo que não vi em nenhum outro sítio, não sei se vocês em Portugal têm essa admiração, não sei… Estive apenas uma vez em Lisboa, só que não me recordo bem, mas o nosso carinho pelos gatos nota-se – estes animais parecem tão seguros, são alimentados e desfrutam da vida. Estão, de certa forma, muito afastados da realidade dos humanos. É precisamente por isso que representam uma parte importante da vida na cidade, proporcionando um sentimento de alegria e vitalidade a muitas pessoas.

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When Lightning Flashes Over the Sea (2025)

O seu penúltimo filme, “Pryvoz” (2021), sobre um dos maiores e mais antigos mercados da Europa, na Odessa, é claro, era um filme na linha documental, mas também recordo que já realizou ficção (“Song of Songs”, por exemplo). No entanto, dado o peso do mundo de hoje, pergunto se ainda há espaço em ti para a ficção, para a dita narrativa ficcional?

Sim, claro que sim!

Mas é realmente possível filmar ficção na Ucrânia neste momento?

Não, não é. E, sabe, gostaria muito de realizar também um longa-metragem de ficção lá – tenho esse plano. Só espero que o cinema ucraniano signifique não só filmes sobre a guerra ou sobre as situações terríveis que se vivenciam. Desejo que os festivais deixem de ser festivais de luto e se transformem em festivais de arte.

Sim, e atualmente o cinema ucraniano – especialmente o documental – está a tirar partido desta situação, o que é, ao mesmo tempo, bom e triste. Espero que seja também possível fazer filmes que não sejam apenas sobre lágrimas e toda esta dor sangrenta, sangue e luto.

É verdade, nos últimos anos, surgiram muitos documentários sobre a situação na Ucrânia. São – digamos – muito cruentos, factuais, até fatais. É difícil afastar-se desta realidade, pelo que recorrem a estes documentos como forma de protesto ou, melhor, como uma janela para o mundo ver o que realmente se passa. 

Mas isso não é cinema. O cinema não é jornalismo; não se trata de um jornal, nem de um artigo, nem de uma reportagem qualquer. Trata-se de arte, e seria triste se a arte se limitasse à tristeza. É, sem dúvida, muito importante mostrar ao mundo o que se passa e expressar essa dor que todos sentimos – é assim que somos feitos. Mas também existem momentos de felicidade.

Certa vez, fiz um documentário sobre a minha tia judia muito idosa, que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, e perguntei-lhe – com as câmaras – sobre a sua trajetória em 1945. Ela contou-me coisas, algumas horríveis, mas no fim acabou por dizer: “Tinha 17 anos e era feliz.” Ou seja, a vida não se resume à morte e a tragédia, há alegrias, vida a ser comemorada, e como tal isso deve ser realçado.

Como cinéfilo, não posso deixar de referir que, no cinema, Odessa é sempre recordada pelo clássico “Battleship Potemkin” (Sergei Eisenstein, 1925), o que nos projeta uma imagem de um campo de batalha eterno, uma cidade em permanente conflito.

Não diria assim. Acho que temos percepções diferentes. Nessa cidade há tantos festivais. Há tanta alegria, e as mulheres são tão bonitas. Há festas, há a orla marítima, há restaurantes, há teatros, e assim por diante. É tão alegre, sabes, e essa ideia de um campo de batalha eterno… simplesmente não concordo. Em Odessa ainda se pode sonhar.

"Sunshine", uma vida interrompida em Manila. Falando com a realizadora Antoinette Jadaone.

Hugo Gomes, 22.02.25

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O “Acontecimento” filipino! Uma jovem ginasta, batizada de Sunshine, descobre que está grávida, o que pode comprometer a sua ida às Olimpíadas e um futuro promissor. Para evitar esse impasse, percorre as ruas de Manila em busca de uma forma de interromper a gravidez, num país altamente rígido e sem intenção de debater o tema.

Apresentado no Festival de Berlim, na secção Generation, onde venceu o seu prémio máximo (o Urso de Cristal), “Sunshine” não é apenas mais um filme na extensa carreira de Antoinette Jadaone, veterana do audiovisual filipino, é também um retomo ao seu lado mais intimista, emergente e, talvez, autoral desde “Fan Girl” (2020), cujo retrato dos segredos obscuros de um ídolo lhe valeu elogios e atenção no Ocidente. Já em “Sunshine”, é a obscuridade ainda vivida num país que lhe aufere um registo de ativismo.

Em conversa com o Cinematograficamente Falando…, a realizadora falou sobre o projeto e a dificuldade de abordar esse cenário num país como as Filipinas.

Gostava de perguntar de onde surgiu a ideia para este filme, visto possuir uma longa carreira tanto no cinema, quer mainstream e mais autoral, como também na televisão. Portanto, como foi trabalhar este tema em particular no seu filme?

Durante a pandemia comecei a desenvolver este conceito. Estava a brincar com a ideia do que acontece dentro da mente de uma adolescente grávida, e a partir daí, mergulhei numa espécie de “toca do coelho” [rabbit hole]: vi documentários sobre o sucedido nas Filipinas, entrevistei raparigas que quiseram levar a gravidez até ao fim, outras que quiseram interrompê-la e também aquelas que recorreram a abortos ilegais no país. Além disso, falei com ativistas dos direitos das mulheres e até com grupos religiosos. Quis olhar para este tema em diferentes perspetivas antes de finalmente decidir avançar com o filme. Estamos a falar de um tema delicado ...

Exacto, até porque está referido no press kit que o aborto ainda é um tabu no cinema filipino. E na sociedade filipina?

Sim, muito. As Filipinas são um país profundamente católico. Veja, o divórcio ainda é ilegal. Apenas existem dois países no mundo onde o divórcio continua proibido: um é o Vaticano, o outro somos nós. A religião está intimamente ligada a tudo na nossa vida, especialmente a política. É por isso que temas como o divórcio, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aborto e os direitos das mulheres ainda são tão difíceis de discutir e precisam de ser amplificados. Não são assuntos facilmente abordados em qualquer contexto, muito menos no cinema filipino.

Este filme surge, creio, três anos depois da consagração de “L'Événement”, de Audrey Diwan (com base no livro de Annie Ernaux), no Festival de Veneza, filme também sobre o aborto que causou um certo frenesim e debate por esse mundo fora. Chegou a vê-lo? Inspirou-a de alguma forma a explorar esta realidade no seu filme?

Não, na verdade, ainda não vi esse filme, mas conheço-o. [risos] Existem muitos filmes que abordam o aborto em diferentes regiões do mundo, ainda que não seja um tema muito comum. No entanto, mesmo quando o aborto é tratado no cinema, nunca é da forma como ele é visto nas Filipinas. Aqui, o aborto é ilegal em todos os casos, mesmo quando está em risco a vida da mãe. Noutros países, há estados ou regiões que permitem a interrupção da gravidez dentro de determinados prazos ou circunstâncias, mas, nas Filipinas, é estritamente proibido em qualquer situação. Não há nada a fazer!

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Antoinette Jadaone

Como funcionou o processo de casting? Posso garantir que a atriz principal é o coração trepidante do seu filme. Como a encontrou?

Sim, a Mariestella Racal [Maris Racal]! Ela, na verdade, não é ginasta como a protagonista. Nunca tinha praticado ginástica antes, mas é uma bailarina, muito flexível, movimenta-se graciosamente e dança muito bem. Queria uma atriz que já tivesse alguma preparação física, fosse flexível e que pudesse treinar para os movimentos de ginástica. Então, ela treinou com a equipa nacional das Filipinas, um dos treinadores da seleção nacional também foi seu treinador e coordenador para o filme.

Já tinha trabalhado com a Maris noutros projetos, numa série de comédia e também numa série dramática. Enquanto trabalhava com ela, percebi que, de certa forma, estava a prepará-la para um papel deste género, algo completamente diferente do que tinha anteriormente feito na sua carreira e fico muito feliz quando as pessoas que veem o filme me dizem que está incrível na pele de Sunshine, porque o papel foi realmente desafiante para ela!

E sobre as crianças que aparecem no filme…

Fizemos duas rondas de audições. Como sabe, é muito difícil selecionar crianças para um filme, por isso, foi um processo mais demorado. Tivemos um psicólogo infantil no set para orientar e explicar o sucedido, e depois fazer um acompanhamento após cada filmagem. Era essencial, porque o tema do filme é muito sensível, e não é algo que uma criança de oito anos compreenda facilmente, mas, na vida real, as crianças do filme são muito espertas, têm um grande sentido de sobrevivência e são muito perspicazes. Conseguimos falar abertamente sobre tudo, também com os pais delas, para garantir que estavam confortáveis com a situação.

O aborto é o núcleo do filme, mas durante a narrativa há sempre espaço para abordar outras questões, como o abuso infantil, juvenil, famílias disfuncionais e até a marginalização da comunidade queer. Como é que estes elementos se juntaram neste argumento?

São todos grupos marginalizados na sociedade. Não foi algo totalmente planeado no início da escrita, mas, ao desenvolver a história da Sunshine, era impossível ignorar o ambiente onde ela vive. E esse ambiente é Manila, que representa o que são as Filipinas atualmente. Como poderia uma adolescente grávida crescer nesta sociedade sem esbarrar noutras formas de marginalização? Era natural que outros aspetos da realidade social emergissem, como a infância em situações precárias e os desafios enfrentados pelas mulheres, tal como acontece com a Sunshine.

Gostava de falar sobre Manila. A cidade tem quase um papel próprio no filme. Enquanto espectador ocidental, vejo Manila retratada em muitos filmes filipinos, como os de Brillante Mendoza … posso referir desde já o seu “Ma’Rosa” (2016), por exemplo, que tal como o seu filme expõem a cidade de forma caótica, mas muito viva. Manila é, de facto, assim? Ou fruto da “magia do cinema”?

Sim, é caótica, mas também vibrante e cheia de cor. Desde o início, quis que Manila fosse uma personagem à parte no filme. É lá que a Sunshine encontra os medicamentos ilegais para abortar, mas também é onde faz amigos para a vida. Manila pode ser uma amiga para ela – às vezes leva-a a lugares perigosos, mas também a pessoas que a apoiam. Acho que é isso que define uma sociedade: há partes sombrias, mas também há esperança. O nosso objetivo, a nossa visão, é que estas crianças encontrem o caminho para os aspetos mais positivos da sociedade, em vez de ficarem presas às partes mais escuras.

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Queria falar sobre o final do filme, porque me pareceu bastante otimista. Não sei se, naquela situação, seria um desfecho realista, mas é como se fosse o "nascer do sol" para a Sunshine. Sentiu a necessidade de dar um final mais feliz à história? Foi uma escolha intencional em oposição ao que geralmente se retrata no cinema sobre este tema?

Sim, o final foi um tema recorrente nas nossas discussões – creio ter voltado a ele umas 10 ou 12 vezes em conversa com os produtores. O desfecho em si nunca mudou; o que variou foi a forma de o apresentar. Seria uma representação negativa ou uma visão mais positiva?

Pus-me no lugar de uma rapariga que, no futuro, possa ver este filme, alguém na mesma situação da Sunshine. Pensei no impacto dessa experiência e quis que encontrasse nas Filipinas uma imagem que a apoiasse, que lhe desse esperança, em vez de um futuro marcado apenas pelo desespero e uma sensação ainda maior de impotência.

Nas Filipinas, ao abordar estes temas, o desfecho tende a ser trágico – morte, destruição ou violência. A mensagem manteve-se, mas procurei uma perspetiva diferente, algo mais luminoso, mais "ensolarado", por assim dizer. Não sei se esse futuro se concretizará, mas em 2024 e 2025, quando fiz este filme, quis acreditar que era, pelo menos, uma possibilidade.

Este filme teve a sua estreia mundial em Toronto no ano passado, se não me engano. Agora estreia em Berlim. Já foi exibido nas Filipinas ou será para breve?

Ainda não estreou lá.

Certo. E como espera que seja a receção nas Filipinas? Imagino que vá gerar discussão e debate…

Isso é o mínimo que espero. Claro que queremos mudança, queremos uma sociedade melhor para estas crianças, mas tem de ser um passo de cada vez, um filme de cada vez. O nosso grande desejo é poder exibi-lo nas Filipinas, para que o filme possa "voltar para casa". Estamos otimistas, mas temos uma comissão de censura muito rigorosa no país. Ainda assim, espero que consigam ver para além do tema sensível e enxergar “Sunshine” pelo que realmente é: a história de uma rapariga a crescer, que deseja apenas um futuro brilhante para si.

Sente-se otimista em relação à sociedade filipina? Não apenas sobre este tema, mas também sobre os outros que aborda no filme?

Essa é uma questão político-social complexa. É muito difícil ser otimista hoje em dia, não só em relação às Filipinas, mas ao Mundo em geral. Ainda assim, acho que é sempre melhor ter esperança do que simplesmente ser pessimista. Acredito que a verdadeira esperança para o nosso país está na juventude, nas crianças. Já não sou jovem. [risos] Já fui como a Sunshine, já tive esse olhar para o mundo… E sim, o mundo está difícil, mas se o virmos através dos olhos da Sunshine, talvez as coisas não sejam assim tão más.

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Agora, para terminar, uma pergunta um pouco banal … Tem novos projetos em mente? Já pensa num novo filme? Talvez sobre outro tabu nas Filipinas?

Na verdade, tenho um projeto que ficou perdido devido à pandemia. Chama-se “Boldstar” e chegou a fazer parte do Mercado de Coprodução da Berlinale em 2020, mas tive de o suspender para o desenvolver melhor e também para esperar pela atriz principal. Talvez seja esse o projeto que vou retomar depois de “Sunshine”. É engraçado, porque escrevi “Sunshine” depois de “Boldstar” – o plano era trabalhar nele, mas durante a pandemia acabei por mergulhar completamente neste tema e decidi avançar com “Sunshine”. Depois, quem sabe, posso finalmente retomar ao dito “Boldstar”. A protagonista é, mais uma vez, uma mulher – como acontece em todos os meus filmes. Vamos ver o que acontece depois disto.

Sophie Somerville e as amizades distantes em "Fwends": "o espaço onde filmamos molda sempre a forma como a história é contada"

Hugo Gomes, 15.02.25

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Um fim-de-semana em Melbourne é tudo o que, de momento, estas duas amigas de longa data, afastadas geograficamente, têm. O reencontro levará as duas a dialogar sobre os seus anseios, problemas e confidências, sem perceberem que a distância entre elas não é apenas uma questão de local, mas algo mais profundo do que imaginam. Filmado na cidade que as acolhe, a realizadora australiana Sophie Somerville aventura-se na sua primeira longa-metragem sem perder rasto do registo explorado em “Peeps” (2019), a sua valorizada curta-metragem sobre duas meninas no interior de um centro comercial. Aqui, temos duas jovens e a cidade como terceira e crucial personagem, num divagar pelas dores de uma geração e pela nossa suposta conectividade, com humor, acidez e subtileza.

Fwends”, a sua inaugural longa, estreia na secção Forum do Festival de Berlim e o Cinematograficamente Falando... teve o privilégio de conversar com a realizadora sobre o projeto e os futuros trabalhos que "caminham" lado a lado.

Esta é a sua primeira longa-metragem, portanto, gostaria de saber quais foram os desafios que teve de lidar ao passar do universo das curtas para longas?

Embora tenha sido a minha primeira longa-metragem, mantive-me num micro-orçamento. Por isso, em vez de a encarar como uma grande mudança, tratei-a quase como uma curta, só que extendida. Trabalhámos com a mesma comunidade com a qual já tinha feito os meus curtas e encontrámos uma forma de produção que nos permitiu manter os custos baixos. No fundo, não foi uma transição para o modelo tradicional de produção, aquela com semanas de rodagem — tivemos apenas 10 dias e depois fizemos alguns complementos adicionais.

Referiu o orçamento reduzido do filme. Acha que essa limitação ajudou a capturar a autenticidade das relações retratadas na história?

Sim, sem dúvida. Trabalhar com um baixo-orçamento significou que tínhamos uma equipa muito pequena, o que criou um ambiente bastante intimista no set. Isso proporcionou uma experiência de grande proximidade e colaboração, além disso, as protagonistas - Emmanuelle [Matana] e Melissa [Gan] - já tinham uma química incrível fora das câmaras. Davam-se muito bem de forma natural, e isso transpareceu no filme de maneira muito autêntica. Tivemos muita sorte nesse sentido.

E como escolheste estas duas actrizes? Como chegaste até elas?

Bem, trabalhei com a Melissa num curta-metragem que fiz há alguns anos. Já a Emmanuelle encontrei-a no Instagram. Ela também vive em Melbourne e tinha amigos em comum comigo. Portanto, ambas eram locais e parte do nosso círculo de contactos [risos].

Gostaria de falar um pouco sobre o tema da amizade, pois no seu filme a natureza dessa amizade é, sem dúvida, o coração da história. No seu diretor 's statement, presente no press kit, refere que “Fwends” representa a amizade feminina moderna. De certa forma, podemos encarar o filme como um retrato das dinâmicas afetivas da sua geração? Como vê esta evolução, não apenas na amizade entre mulheres, mas também na amizade de modo geral, num mundo cada vez mais global e tecnológico?

Parte do motivo pelo qual fiz este filme foi a forma como, enquanto jovens, podemos sentir-nos muito sós. Mas há algo profundamente curativo em passar tempo de qualidade com alguém que realmente nos conhece – a verdadeira versão de nós, não uma fachada.

É difícil generalizar sobre a amizade de forma abrangente, e sobre a amizade entre mulheres em particular, mas o que mais me motivou foi a vontade de criar uma espécie de carta de amor à amizade. Queria mostrar o quão essencial é preservar as relações, especialmente à medida que vamos crescendo e perdendo o contacto com pessoas que, apesar de não terem nada em comum connosco, dão cor e leveza à nossa vida. De certa forma, o filme tenta explorar essa ideia.

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As personagens do filme têm essa amizade de longa data, mas devido a um hiato, deixaram de partilhar os mesmos interesses ou pontos de vista, ou seja, deixaram de ser aquelas pessoas cuja amizade inicialmente juntou. Há também um pequeno conflito na narrativa: a sensação de que nenhuma delas quer realmente ouvir a outra. Cada uma quer falar sobre si própria, mas ninguém quer escutar a próxima. Sentimos que o filme executa uma subtil crítica a esta atual sociedade? Tornamo-nos mais egocêntricos, quem sabe, mais … narcisistas?

Sim, percebo o que queres dizer... Acho que, durante as filmagens, o que mais me interessava era essa ideia de que, quando encontramos alguém, mostramos primeiro uma espécie de camada superficial, quase como uma performance. E depois, com o tempo, essa camada vai-se desfazendo. O que adoro em “Fwends” é precisamente poder ver esse processo acontecer em tempo real, à medida que as personagens se vão aproximando e aprofundando a relação.

Não sei se consigo comentar ou generalizar sobre o narcisismo dos tempos actuais, mas, sim, as redes sociais e o mundo digital incentivam-nos a pensar em nós próprios como as personagens principais das nossas histórias. Esse pensamento acaba por influenciar muito a forma como nos vemos e como interagimos uns com os outros.

Isso é um ponto interessante! No seu filme há duas protagonistas e, ao longo da história, há quase uma disputa sobre quem é, de facto, a personagem principal. No fundo, percebemos que não há um verdadeiro protagonista – somente essa disputa silenciosa.

Sim, exactamente! Foi isso que tornou o processo tão divertido. Criámos estas personagens que, de certa forma, vivem essa luta interna, e penso que todos nós sentimos um pouco isso – acreditamos que somos o centro do nosso próprio enredo e, por vezes, isso pode tornar-nos um pouco cegos, demasiado presos à nossa própria experiência do mundo.

Seguindo agora para o cenário. Melbourne desempenha um papel significativo no filme. De que forma a cidade influenciou a abordagem, o estilo e até a própria narrativa de “Fwends”?

Há alguns anos, fiz um curta-metragem com uma abordagem semelhante, filmado num centro comercial [“Peeps”]. Foi um processo muito ao estilo guerrilha, com um olhar mais observacional, recorrendo a lentes longas e a zooms. Com “Fwends”, percebi que queria fazer o mesmo, mas numa escala maior – sair de um espaço fechado, como a do centro comercial, e prosseguir numa cidade no seu todo.

Melbourne, especialmente a zona do CBD [central business district], é relativamente pequena e pode-se percorrê-la a pé de uma ponta a outra. Então, a ideia foi estruturar a rodagem como um percurso pela cidade, movendo-nos de um local para outro e filmando ao longo do caminho. Grande parte do filme foi filmado por ordem cronológica, o que permitiu que houvesse uma progressão muito natural – as personagens deslocavam-se fisicamente, e isso espelhava-se na narrativa.

Quanto à influência da cidade no cinema... nunca tinha pensado muito nisso! Mas acho que, no fundo, o espaço onde filmamos molda sempre a forma como a história é contada.

Talvez seja um reparo um pouco pretensioso da minha parte, mas ao ver o seu filme, não pude deixar de me recordar de alguns títulos da Nouvelle Vague francesa, como “Adieu Philippine” de Jacques Rozier ou “À bout de souffle” de Jean-Luc Godard. Nessa época, era bastante comum – e até inovador – ver as personagens a dialogarem enquanto caminhavam pelas ruas, com a ação filmada em plano-sequência, em contraste com a decupagem tradicionalmente utilizada em Hollywood.

Sim, definitivamente. Sou fã desse movimento, adoro esses filmes! Sem dúvida, fiquei muito inspirada por essa abordagem e pela filosofia do cinema francês, de simplesmente pegar na câmara, ligar e ser espontânea. Há uma grande dose de espontaneidade no filme também.

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Acredito que os escritores escrevem, de uma maneira ou doutra, sobre eles próprios, da mesma forma que os cineastas também o fazem. Portanto questiono, no caso das personagens, será que elas são, de alguma forma, representações da própria realizadora? Qual das duas personagens – a de Emmanuelle ou a de Melissa – te parece mais próxima de si, ou com qual se identifica mais?

Sim, essa é uma pergunta interessante, porque a resposta está sempre a mudar. Quando estamos a escrever um guião, normalmente há sempre uma personagem que sentimos ser mais "nós", e depois a outra acaba por ser o contraponto, quase o oposto, para criar um contraste. Penso que, em diferentes fases da minha vida, já fui ambas as personagens, e talvez a verdade seja que, quando escrevemos personagens, elas acabam por ser pequenos fragmentos de nós próprios. Damos-lhes uma forma, e depois fazemos com que elas discutam entre si, como se fossem duas partes de nós.

Talvez seja cedo para perguntar isto, mas tem algum novo projeto em mente? Deseja continuar no universo das longas-metragens? Quais são os teus planos para o futuro?

Eu e o meu produtor [Carter Looker] estamos a desenvolver um guião para um projeto com um orçamento muito maior. Queremos mesmo filmá-lo na Austrália, e vai ter sete personagens muito complicadas, com vidas igualmente complicadas, todas a colidir ao mesmo tempo. Vai ser… bem, não sei o quanto posso revelar, mas vai ser um desafio, com certeza. Muitas personagens, muita complexidade.

Klára Tasovská remexe no arquivo de vida de Libuše: "Há uma história por trás de cada uma dessas fotos, e tentámos trazê-las à tona."

Hugo Gomes, 20.01.25

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Um clique aqui, um clique acolá — bilhões de fotos tiradas diariamente graças aos dispositivos tecnológicos de que hoje dispomos. Mas, para onde vão essas fotos? Para que servem? Que histórias têm para contar sobre quem as tirou? Através da galeria cinematográfica concebida por Klára Tasovská, refletimos sobre o nosso entorno, sobre as imperatividades estéticas das redes sociais e o nosso desapego ao físico. Se um cataclismo acontecesse já amanhã, que marcas teríamos para mostrar sobre a nossa contemporaneidade?

Em “I’m Not Everything I Want To Be”, a jornada da checa Libuše Jarcovjáková revela-se um achado—uma estória com História, um acontecimento. A sua vida pulsa nas suas fotografias: tem presença, tem ritmo, tem pessoas. Muito se pode dizer sobre os frutos de quase meio século de captação, mas acima das questões identitárias, sociais ou políticas, destaca-se o indivíduo que imprimiu a sua pegada. A sua existência está assinalada.

O Cinematograficamente Falando … conversou com a realizadora sobre o filme, o arquivo, a potencialidade cinematográfica da fotografia e daquelas atualidades emolduradas. Como podemos tornar-nos vivos num mundo que cada vez mais se dissolve em pó eletrónico?

Gostaria de começar por falar sobre a génese deste projeto. Como surgiu a ideia para este filme e o que despertou o seu interesse na figura de—deixe-me ver—Libuše Jarcovjáková? Espero estar a pronunciar o nome corretamente. [risos]

[Risos] Então … sim, na verdade, a ideia surgiu da Televisão Checa. Eles queriam que fizesse um pequeno documentário televisivo sobre o sucesso da Libuše após a sua exposição em Arles, França, até porque ela foi subitamente reconhecida lá. Foi uma exposição enorme, e até foi mencionado no The Guardian, chamando-a a melhor exposição do ano—acho que foi em 2019. Então, foi há cerca de quatro anos que conheci a Libuše, e fiquei muito entusiasmada com a sua personalidade, ainda mais com o seu enorme arquivo e tudo o que ela representava.

Mas então como é que chegou à conclusão que o projeto ganharia “melhor porto” no Cinema do que na televisão?

Para mim, ela era a protagonista perfeita para explorar temas femininos, a história checa e a liberdade. Era algo muito especial para mim, e por isso decidi que este tinha de ser um documentário maior, ao invés de apenas um pequeno projeto para televisão

E de onde surgiu a abordagem? Esta viagem narrada somente pelas suas fotos …

Começámos a trabalhar neste projeto há uns quatro anos. Mas sabes, fiquei sempre a pensar: como é que se conta uma história que já aconteceu no passado? E foi aí que comecei a pensar em usar apenas as fotografias dela, o arquivo, os diários… todo esse material. Só que, claro, explicar esta ideia aos meus colegas e produtores não foi fácil.

Depois, veio a pandemia de COVID, e acabou por ser uma sorte para nós, porque todos ficámos em casa. Foi então que a Libuše começou, pela primeira vez, a digitalizar o seu arquivo do Japão. Para mim, isso foi tão entusiasmante, porque era uma parte tão pessoal do arquivo—refletia completamente quem ela era naquela altura. Ela era o Japão naquele momento. E foi aí que percebi que era mesmo possível construir toda a história dela só com esses materiais.

Por isso, para mim, era crucial fazer o filme através dos olhos dela, para que o público pudesse experimentar o mundo como a Libuše o via e vivia. Não acrescentei nada meu à história dela, nenhuma imagem ou algo assim—quis mesmo ser fiel à perspetiva dela. E foi assim que começámos a trabalhar no filme.

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Klára Tasovská e Libuše Jarcovjáková / Festival de Berlim 2024

A Libuše era como uma observadora inquieta, e ao longo do filme o seu trabalho reflete a sua busca por pertença e identidade. Acredita que a jornada dela é mais uma experiência universal ou algo profundamente pessoal? Com base no seu filme, qual é a sua opinião sobre isso?

Para mim, sim, absolutamente. Apresentámos o filme em muitos festivais em diferentes países, e as pessoas disseram que é uma história universal. A busca por nós próprios, pela identidade, é algo identificável—todos a experienciam à sua maneira.

Para mim, isso também era crucial porque não queria apenas fazer uma biografia. Queria criar algo mais universalista, algo que explorasse esses temas de uma forma que fosse próxima e inspiradora. É uma jornada que ressoa com tantas pessoas—este processo de se descobrirem.

Uma coisa que me deixou curioso foi o título. Li várias interpretações sobre ele, e a mais comum que ouvi é que reflete a insatisfação que vem com ser uma pessoa criativa.

Mas, com base no seu filme, a minha interpretação do título é um pouco diferente. Para mim, parece mais que o mundo, em si, não é um lugar perfeito para nos tornarmos totalmente aquilo que queremos ser. O mundo é adverso, está sempre a mudar. Por exemplo, na história da Libuše, sempre que ela acha que encontrou o seu caminho, o mundo muda, e tudo se altera. O mundo muda ao longo do seu filme, assim como ao longo da vida dela.

Sim, é verdade. Para mim, também foi importante porque li os diários dela, e ela escreveu durante toda a sua vida. Na verdade, encontrei o título nos diários dela, porque, sabes, ela escreveu isto cerca de doze vezes. Sempre que tomava uma grande decisão para mudar a sua vida, ou quando decidiu mudar-se para o estrangeiro, ela escrevia isto. Era como um mantra para ela.

Algumas pessoas perguntam-nos se isso não é demasiado negativo, mas para ela, era algo positivo. Era como: “Não sou tudo o que quero ser, então vamos encontrar outro caminho.

E também, a Libuše dizia muitas vezes que não é possível ser o que as pessoas querem que sejamos, porque quando chegamos aonde achamos que queríamos estar, provavelmente vamos querer ser outra pessoa. Portanto, é uma história sem fim. Para mim, foi o título perfeito para tudo isso, porque, sim, acho que é exatamente assim.

Como foi o processo de montagem deste filme, especialmente em relação às fotos? Acredito que a Libuše tenha uma vasta coleção de imagens, então, como selecionaram as especiais para contar esta narrativa?

Passámos dois anos na sala de edição, a trabalhar todos os dias, oito horas por dia. Começámos com poucas fotos e algumas anotações dos diários dela—nada mais. Foi necessário criar tudo do zero: encontrar todos os sons, compor a música, e todo o restante trabalho. Um dos grandes desafios foi o arquivo da Libuše, que é um pouco desorganizado ou, talvez, caótico. Sem muitas exposições realizadas, ela apenas digitalizou algumas das melhores fotos que fizeram parte dessas exibições, e tem, salvo erro, dois livros. Essas fotos foram o ponto de partida, mas o resto do arquivo precisou de ser explorado.

Todos os negativos estavam em casa e foi preciso mergulhar na pesquisa. O objetivo era encontrar todos os auto-retratos, porque a ideia era que ela estivesse presente—não apenas como figura central através da voz-off, mas também na sua presença física nas fotos. Procuraram-se também imagens com movimento, para dar uma sensação dinâmica às fotografias.

Foi um trabalho enorme, que envolveu digitalizar todo o material. Ainda assim, foi um processo fascinante, e o editor [Alexander Kashcheev], que também trabalhou no design de som, ajudou a criar tudo na sala de edição. Contar a história de forma cronológica foi uma decisão baseada na leitura dos diários. Dividir em dois capítulos facilitou bastante o processo, permitindo trabalhar por partes, começando pela primeira secção e selecionando fotos específicas para ela antes de avançar para a próxima.

O editor empenhou-se em tornar as fotos mais dinâmicas. Por exemplo, gosto muito de filmes como “Tarnation” (Jonathan Caouette, 2003), mas aqui pretendia que as imagens fossem apresentadas como uma sequência estática—foto após foto, sem outros elementos. Não queríamos isso. A intenção era tornar mais vividas estas fotografias. Há uma história por trás de cada uma dessas fotos, e tentámos trazê-las à tona.

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Existe uma possibilidade cinematográfica numa imagem estática?

Para mim, sim. Sabe, o cinema de Chris Marker é uma grande inspiração para , e “La Jetée” está entre os meus filmes favoritos. Durante o período na FAMU, fiz um pequeno filme que seguiu essa abordagem, o que ajudou a perceber que podia funcionar. É possível construir a história de alguém através de imagens, som e voz-off, e esse método tem algo de especial. Trabalhar com estas imagens é um processo incrivelmente criativo e envolvente.

Quando vi o seu filme, uma frase veio à minha mente. A frase é uma citação oriunda de um filme independente americano, que convém, não se destaca para lá disso [“Kodachrome”, Mark Raso, 2017] , mas temos uma personagem interpretada por Ed Harris que diz algo como: "Não é a foto que importa, mas o facto de a ter tirado: "As pessoas tiram mais fotografias agora do que nunca, bilhões delas, mas não há diapositivos, nem impressões. Apenas dados. Poeira eletrónica. Daqui a anos, quando nos estudarem, não haverá fotografias para encontrar, nenhum registo de quem fomos ou de como vivemos.”. 

No caso da Libuše, quando encontramos o seu arquivo, não encontramos apenas um registo de uma pessoa, como igualmente um registo de meio século de vida dela—o fim do domínio soviético, a queda do Muro de Berlim, por exemplo. Portanto, isto é mais um comentário do que uma questão. Mas vou perguntar na mesma: será importante para nós, enquanto indivíduos marcados na nossa sociedade, tirar fotos físicas, apenas para deixar uma marca da nossa presença neste mundo?

Sim, penso que isso é muito importante. Por exemplo, quando a Libuše tirou fotos naquele clube, sabes, um clube que já não existe [T-Club]. Era um clube gay, e a polícia secreta estava lá, e ninguém mais tem fotos desse clube. Ela é a única que as tem. Por isso, é algo muito especial e único. Ela estava lá, a capturar aquele período no clube.

Para mim, essa abordagem histórica também foi crucial. E acho que, sim, as pessoas... Ela também tirou fotos dela própria e do seu quotidiano. Mas, no fundo, acho que as coisas pessoais têm uma grande carga política. Porque, de algum modo, estão todas conectadas a isso.

Por isso, fiquei contente por ela ter conseguido capturar esse nível de profundidade nas suas fotos, pois isso ajudou a tornar o filme não só histórico, mas também único.

Nos próximos projetos, pensa continuar a trabalhar com imagens estáticas / fotografias? 

Não sei...

Sabes, neste momento estou a trabalhar em dois filmes de ficção, por isso estou a mudar-me para esse campo. Mas também adoro este tipo de trabalho, e temos algumas curtas feitas com o arquivo da Libuše. Uma delas é sobre a mãe dela e é um diálogo entre a Libuše e a mãe, abordando o envelhecimento. Portanto, isso também é algo interessante para nós. Mas não sei o que virá a seguir. O meu próximo filme provavelmente será de ficção, mas vamos ver. Adoro trabalhar com filmes de arquivo, embora seja um trabalho árduo. É difícil selecionar, editar e até rotular—por exemplo, qual foto pertence a qual época ou ano. Foi um processo complicado.

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Posso imaginar que tenha sido difícil. E hoje em dia, sobre o filme... acredita que o trabalho da Libuše—porque sei que The Guardian—e no final dos créditos, há uma nota a dizer que ela se tornou uma das maiores fotógrafas do nosso tempo. Mas achas que este filme vai ajudar as gerações mais jovens, ou um determinado tipo de geração, a conhecer o trabalho dela?

Sim, acho que sim, porque frequentemente viajamos pelo mundo para festivais, e pessoas de todas as gerações e nacionalidades nos dizem que, de alguma forma, é importante para elas. E também é engraçado, porque ela tem muito a ver com o filme. Ela tem muitos seguidores no Instagram, cerca de 10.000, e adora isso. Ela realmente gosta.

Além disso, de alguma forma, temos distribuição em cinco países, e alguns distribuidores estão interessados em fazer exposições do trabalho da Libuše. Ela também teve a sua primeira exposição retrospetiva em Praga, na Galeria Nacional, o que foi uma grande conquista. Agora, ela tem este reconhecimento na Europa e também nos EUA. Ela está muito feliz com isso.

Sim, está a funcionar de alguma forma. E as pessoas dizem que é inspirador para elas, especialmente as gerações mais jovens. Elas disseram-nos que este filme de amadurecimento é inspirador. Mesmo que a Libuše tenha vivido essa experiência há 40 anos, para as pessoas, continua a ser algo inspirador, mesmo hoje em dia. Por isso, estou muito feliz com isso.

Reparação Histórica?

Hugo Gomes, 26.11.24

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Às portas do meio académico, fora das paredes onde o debate em torno do acesso ao conhecimento se prolonga entre jovens pensadores e outros interlocutores, discute-se a vinda de 26 artefactos históricos do Louvre para o Senegal. Entretanto, um vendedor de rua organiza os seus livros numa estante improvisada — um simples manto estendido no chão, para sermos mais precisos. Sem grandes preâmbulos, a câmara instala-se nesta sua “montra”, onde vemos obras de Voltaire, Rousseau e até Petitfils, partilhando espaço com o inevitável Cheikh Hamidou Kane. Trata-se de uma espécie de utopia filosófica ilusória, em que o pensamento ocidental ainda predomina, obscurecendo a riqueza do pensamento subsariano. A imagem que se desenha, porém, é derrotada pelas intensas discussões que envolvem as figuras em cena, os tais académicos ou livres-pensantes. Fala-se desde reflexões e críticas sobre a natureza da “doação”, até ao conceito ocidentalizado de museu e à pertinência destes objetos museológicos no Senegal contemporâneo. Por entre este emaranhado de ideias, surge uma tertúlia pontuada por perguntas sem resposta e respostas sem as perguntas adequadas.

Dahomey”, o premiado documentário de Mati Diop (“Atlantique”) - Urso de Ouro em Berlim - vive deste olhar, desta análise, desta (a)provação. Não se trata de um discurso único nem ditado por agendas, o filme repousa nos jovens, sedentos de ideias e visões culturais pan-africanas, e é precisamente na sua inquietação que o documentário encontra o seu devido tom. Não há certezas absolutas, mas sim incertezas deliberadas. Reparações históricas? É fácil falar delas, mas o que significam verdadeiramente?

Fazendo um breve parênteses, recordo da busca do maliano cineasta Manthia Diawara da casa arquitetada por Ângela Ferreira no seu “Maison Tropicale” (2008). O artefacto de interesse cultural foi removido no fim da era colonialista e transladado para um museu europeu. Num dado momento, o filme debate-se sobre a possibilidade de uma devolução, porém a aceitação do projeto num museu estrangeiro como uma forma de preservação, perante as frágeis instituições do Mali e a sua incapacidade de proteger a própria história, é colocada em cima de mesa por alguns naturais, nomeadamente acadêmicos do ramo. O que clarifica que o assunto “Reparações Históricas”, por vias de um retorno cultural, não é consensual até mesmo nos países interessados.

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Feito o parênteses, voltando a “Dahomey” [título alusivo ao extinto Reino de Daomé], Mati Diop começa a sua “viagem” com uma certeza: o regresso dos 26 artefactos de Paris ao Benin, Senegal, o seu esperado “regresso a casa”. O filme adota uma abordagem semi-wisemaniana, observacional e sem interações diretas, mas com uma câmara atenta que, mesmo sob curto tempo de antena, incide criticamente sobre o museu e o processo de restituição. Nesse sentido, faz lembrar o esforço hercúleo de Nicolas Philibert em “Louvre City” (1990), mas num sentido inverso, e não o descarte de um fragmento de um vasto acervo.

Diop, no entanto, tenta apelar a um chamamento ancestral a toda esta recolocação. Há uma estátua — o número 26 — que, como num debate existencial, parece ecoar uma voz numa eternidade obscura. Existe um lado xamânico, característico do cinema de Diop, que anseia libertar-se, uma vocalização que transcende o tempo e o Homem. Contudo, esse elemento reforça um lugar-comum: o da África mística, incompreendida. Este chamamento parece supérfluo em relação ao que o filme realmente procura estabelecer: o foco numa discussão essencial, por vezes, desvirtuada por radicalismos oriundos do Primeiro Mundo. Um megafone dando ao espiritualismo desvirtua esse vínculo para com Mundo real e físico, onde estes objetos e as suas culturas se inserem. 

Em “Dahomey”, os verdadeiros protagonistas falam por si, sem depender de intermediários. Nós, espectadores, limitamo-nos a ouvir e a refletir.

Istambul, cidade de encontros e desencontros

Hugo Gomes, 08.08.24

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Como teleponto informativo, é-nos dito por via de uma vinheta de abertura que quer na língua georgiana, quer na turca, não existe distinção entre feminino e masculino; a referência é sempre neutra, desta forma sabemos que o género sugerido nas legendas é apenas a interpretação de quem as elaborou, até porque "Crossing", a terceira longa-metragem do sueco Levan Akin ("And Then We Danced"), tem como intenção nunca declarar um explicitamente.

No entanto, evita-se aqui a ideia de se estar perante numa das enésimas histórias de vitimização LGBT, embora exista um pano de fundo relacionado, a trama é inteligentemente orquestrada para evitar os lugares-comuns frequentemente incentivados pelos ditames do “world queer cinema”, com o seu miserabilismo condicionado e toque de exotismo. Nada disso se encontra neste filme, no seu núcleo, temos uma professora reformada (Mzia Arabuli) e um jovem com o seu toque de marginalidade (Lucas Kankava), ambos georgianos, determinados a atravessar a fronteira, em direção à Turquia.

Ela deseja encontrar a sua sobrinha há muito perdida, uma mulher trans de nome Tekla. Ele procura apenas uma alternativa ao fim de mundo onde depositava os seus dias, e vê nesta mulher, imersa numa angústia constante, o seu bilhete de partida. Ambos chegam a Istambul ("cidade onde se vai para desaparecer") e procuram os rastos dessa “sobrinha-sombra”, que se torna automaticamente um macguffin, orbitando em direção a alguns truques ou rasteiras do argumento. No entanto, o filme não persegue esse universo, mantendo uma certa distância, e simultaneamente aconchegando nessa união, esse par improvável, intergeracional, cada um perdido à sua maneira numa cidade que os convence a permanecer. Configura-se um "buddy movie" que abrange todo o espectro social, adquirindo assim uma inesperada subtileza.

São poucos os filmes da nossa atualidade que se comprometem ao seu "território filmico", e que ao mesmo tempo contornam-o sem nunca abdicar das suas próprias ambições. Há uma periferia emocional a explorar, trazendo-lhe um existencialismo marcante de um universalismo dramatúrgico, daí a língua neutra, naturalmente contextualizada, perfilha essa igualdade, seja géneros, corpos e até dramas. 

Com um humor seco, “Crossing” nunca cede aos finais felizes nem às formalidades do cinema emergente. Levan Akin sabe o que faz, evidentemente. Uma surpresa num domínio que já nos soa formulaico. 

Do real para o imaginário cinematográfico ... com queimaduras nas mãos!

Hugo Gomes, 26.05.24

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O cinema de Margarida Gil tem caminhado para produções austeras, em jeito de resiliência e talvez um pouco de "carolice", que a faz avançar contra todas as adversidades. Há uns meses, uma curta e uma longa-metragem estrearam em modo double bill nos cinemas portugueses ["Cavaleiro Vento", "Perdida Mente"], de forma a relembrar a sua existência num meio que resiste aos apoios e aos júris que selecionam quem "filma" e "como deve filmar". Gil, por outro lado, calha a "sorte grande" com um filme de produção modesta, que a extrai dos trabalhos mais artesanais e, em todo o caso, amadores. O que encontra neste refúgio ao abrigo da Ar de Filmes é a sua aparentemente derradeira oportunidade de se reerguer. Daí que a realizadora se conquiste por meio de um cuidado técnico e uma planificação que a vincula às tradições, hoje em modo expiratório, do cinema que a viu nascer. Um cinema oliveriano em trajes de Henry James - "The Turn of the Screw" ("A Volta do Parafuso", na tradução portuguesa da editora Sistema Solar) - mas despido do seu horror gótico e encantado com as possibilidades da sobrenaturalidade trazida à arte de filmar, sobressaindo como relato gótico com vénias ao misticismo que o Cinema nos trouxe.

Ora, convém salientar que em "Mãos no Fogo", ao invés de amas enviadas para mansões remotas, é uma jovem estudante de cinema (Carolina Campanela, interpretando uma Maria do Mar, ligação com a donzela nazarena do homónimo filme de Leitão de Barros e com a última longa-metragem assinada por Gil, “Mar”, em 2019) com a tese do "Real no Cinema" na mente, que se depara com os habitantes do casarão - velha lógica de um cinema visto pela sua burguesia e de contos de realeza e bons costumes -, o qual é cedido por pensamentos de incerteza e de espectros que por lá habitam, tendo como única certeza a sua imortalização por via das imagens. É "filmar o real", mas é para além disso que a câmara e a sua narrativa subjacente captam, numa espécie de erotismo barroco e de mestres implícitos numa intelectualidade e cultura impermeável e intransponível (sob um snobismo vilipendiado de Marcello Urgeghe).

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Margarida Gil opera sob esses tópicos de perfuração do assombro residido naquela instância, cuja protagonista escreve e rasura com constância no seu bloco de apontamentos... isso mesmo, apontamentos sobre o testemunhado e captado numa intenção de se encontrar numa coesão de pensamentos, infelizmente atormentada por visões e presenças (Rita Durão na sua delirante forma) que a fazem desconfiar das suas próprias "crenças" (o peru, o vegetarianismo e a cozinheira Adelaide Teixeira [resgatada do primeiro filme de Gil - "Relação Fiel e Verdadeira" (1988) -, Mefistófeles de bata que a seduz ao pecado e à tentação]). É um filme de imagens, repito isto vezes sem conta, como oposição às acusações de teatralidade ou da narrativa fracassada numa percepção de storytelling aristotélico (sabendo também que é nesta declarada guerra para com tais “inimigos” que o filme nunca desfere a sua transgressividade). 

É a sugestão, o fantasmagórico que projeta como memorialismo de produções ‘tobiescas’ ou de um Manoel Oliveira de mão dada à sua comparsa Agustina Bessa-Luís. Aliás, é aí que entra o elemento crucial da jornada e de convocação de Gil: a casa, o seu efeito, a sua imponência, as histórias aí permanecidas, encobertas em pó ou imprimidas em esquecida película à espera de uma outra e nova projeção. A casa vira tradição, e é através dessa tradição que Margarida Gil deseja lançar o recado para o "mundo" - "Eu continuo aqui!". Visto que chegamos a um tempo de revisionismos e de recuperações - é preciso escrever a história do nosso cinema por linhas direitas - com Solveig Nordlund, António de Macedo, Carlos Vilardebó, Fernando Matos Silva, Monique Rutler e, recentemente, Rui Simões na esperança de um holofote há muito negado. Gil inveja tal salvação e, para tal, demonstra o quão é capaz de invocar cinema na sua pomposa e ostentada estética. Já não se fazem filmes assim! Aliás, este "Mãos no Fogo" poderá ser o último da sua espécie (basta constatar, por exemplo, como “Sibila” sucumbiu a um vazio lírico normalizado nestes novos tempos).

Takes Berlinale 2024: sociedade, essa amiga e essa inimiga

Hugo Gomes, 24.02.24

Some Rain Must Fall

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Após um acidente desencadeado por um furioso impulso, Cai (Aier Yu) vê a sua vida ser virada do avesso, distanciando-a das relações interpessoais previamente estabelecidas, seja com a família, amigos ou até consigo mesma. Não só enfrenta uma avassaladora solidão nas longas, desesperadamente longas, noites que se sobrepõem aos escassos dias, mas também uma crónica dor que a permeia até ao momento em que esta se torna imune a ela. A sua existência é automatizada, refletindo o ambiente noturno que friamente a acompanha na sua jornada ao âmago dos seus sentimentos. São noites artificialmente iluminadas, destituídas da graça natural, reluzindo uma desesperança, um fatalismo que só tem solução encontrada na morte.

Nesta sua primeira longa-metragem, Qiu Yang (“A Gentle Night”, “She Runs”), realizador que tem marcado presença em festivais internacionais como a Semana da Crítica, adota o registo do slow cinema para incutir, previsivelmente, mais subtileza e explicitude neste retrato derrotista de Cai (até o sexo é insípido). Filme de ambiências onde apenas Aier Yu nos desperta compaixão, ainda que a sua frieza, tangível e reconhecidamente cansada, rejeite qualquer abraço, qualquer empatia do espectador, e qualquer sorriso que pudesse esboçar como vitorioso. “Some Rain Must Fall” é um exercício de solidão, de solitários, de sofrimento e de sofredores, sem martirologias, e com muita estetização dos seus espaços. Nota-se o virtuosismo, mas um virtuosismo voluntariamente citado e não correspondido pelos caminhos do filme.

Secção Encounters

 

Matt and Mara

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Resgatada a dupla de atores [Deragh Campbell e Matt Johnson] do seu anterior filme "Anne at 13,000 Ft." (2019), o realizador Kazik Radwanski sonda territórios comuns ou incipientes da comédia romântica para criar um filme sobre passados, arrependimentos e os habituais "e se". 

É uma incursão jovial fortalecida pela química entre os protagonistas, a história de uma professora de escrita criativa que reencontra um amigo de longa data, agora um autor celebrado, e que desse reencontro ressurge uma cumplicidade e um apelo sexual (possivelmente mais do que emocional), que a coloca em xeque na sua aparentemente estável vida matrimonial. "Matt and Mara" não adere estritamente ao estilo rohmeriano, contudo, conserva os seus dilemas morais e afetivos, aninhando-se no epicentro da urbe de Toronto em deboche do seu biótopo e classe cultural.

Para aqueles que procuram abordagens sociais ou abruptos na sua temática, a leveza deste trabalho de Radwanski poderá suscitar um reprovador sentimento de privilégio - o principal conflito é um casal cujos interesses não se alinham completamente - mas, fora isso, é um filme sereno e formal, com uma aura de mumblecore mas esquivando-se da acidez que caracteriza muitas das comédias contemporâneas, e principalmente oriunda dos Canadá (sim, Monia Chokri, estou a olhar para ti). 

Secção Encounters

 

Sex

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Permitam-me fazer um breve desvio e recordar um episódio particular (e sem interesse, mas é esse o privilégio de ser narrador). Certa vez, juntamente com um amigo, assistimos a um double bill de dois contos estacionais de Eric Rohmer na Cinemateca, experiência essa que não lhe foi agradável. Desde então, esse meu amigo, sempre que deseja referir-se a Rohmer, satiriza a sua "fórmula" como um "filme em que personagens se beijam com pedida permissão e discutem após sobre esse beijo. Haja paciência!". 

Feito este parêntesis, passo então para "Sex" de Dag Johan Haugerud. A matriz dessas fábulas rohmerianas é impressa em papel norueguês, uma tertúlia e debates, ora acalorados, ora apelativos à compreensão, sobre o sexo, o tabu, o matrimónio, o adultério, mas sobretudo sobre como a sociedade vê ou encara todos esses elementos, partindo desse mesmo olhar na determinação destas personagens. Mais do que isso, resulta numa desconstrução das pré-fabricações destes territórios oscilantes, sendo que, inevitavelmente, acaba por ser uma obra mais interessante no seu conteúdo, fomentando eventuais discussões em mesas redondas e drinks a acompanhar, do que na sua forma, esta levada ao excesso das elipses (questiona-se o propósito daqueles "intervalinhos" paisagísticos?) ou planos de menor esforço e movimento que concentram os diálogos pertinentes e de tom arrependido. 

Nessas circunstâncias, é ao cair do pano que outra desconstrução da heteronormatividade e da masculinidade estabelecida se manifesta. Desta vez, nota-se um breve exercício performativo, mas que mesmo assim não consegue resgatar o filme da fidelidade ao(s) seu(s) tema(s), e cuja intromissão dos créditos finais nos faz erguer da nossa cadeira a mando do lufa-lufa quotidiano. “Arre, que já faz tarde

Secção Panorama

 

Cu Li Never Cries

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Primeira longa-metragem do vietnamita Pham Ngoc Lam, é um filme, previsivelmente, sobre passados e reconciliações dos mesmos, detido por um efeito de tropicalismo sombrio que conspira com a fotografia em preto e branco para nos transportar a esse exorcismo constantemente adiado. A história segue Nguyện (Minh Châu), uma viúva que, após trabalhar anos na Alemanha e por lá casar, regressa à sua terra natal acompanhada pelas cinzas do marido e por um lori, uma espécie de primata, com uma doença de pele. À chegada a Hanói, a sua "casa", depara-se com a sua sobrinha maneta, agora maior, grávida e prestes a casar com o namorado, uma relação que Nguyện desaprova visto que replica alguns dos seus erros passados.

Lam constrói um cinema lento, por vezes contemplativo, por vezes enquadrado, que reproduz, esteticamente, e muito, alguns dos autores das suas vizinhanças (parece existir um eixo estético nessa geografia, com algumas coordenadas de nuances), nomeadamente o filipino Lav Diaz, na sua coloração imutável e nos olhares e revisitas aos passados e presentes do seu país. "Cu Li Never Cries" resulta nesse drama de camadas, onde cada personagem, cada gesto ou cada cisão age como um duplo sentido, e como bem sabemos, o Vietname é agora um país abstracto perante um histórico de conflitos e cumplicidades mal resolvidas. Assim como Nguyện deseja reconciliar-se com fantasmas, descartar cinzas e libertar os cativos, Lam demonstra, sem ocultações, ser fruto de uma geração em busca do seu espaço num "país-fénix" que se reergueu, mas que permanece marcado pelas suas cicatrizes.

Secção Panorama