Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A tentação chamada Eva

Hugo Gomes, 13.06.18

Eva_(film_2018).jpg

Se é bem verdade que a Benoît Jacquot atribuímos a força das suas propostas acima do resultado, que revela-se na maior parte das vezes passivo, para “Eva” implicaria uma maior agressividade, o que acaba por nunca acontecer, visto que o propósito deste conto de luxúria e fantasias de farsante é o fascínio.

E de onde vem esse fascínio? Na atriz, Isabelle Huppert, transformada numa persona acorrentada aos maneirismos reconhecidos da sua longa carreira, a mulher que o Cinema sonha e neste caso a fantasia sexual de qualquer homem empenhado. Da mesma forma que a personagem de Gaspard Ulliel absorve desta sua convivência com Huppert, a Eva do título para ser mais preciso (uma musa para a sua criação dramaturga somente planeada e projetada por vias de uma emotividade composta pelo tabu), Benoît Jacquot manipula o espectador a sentir a fenomenologia neste meta-enredo. Aliás, todos nós somos deslumbrados pela sua figura, até mesmo quando Huppert se torna somente Huppert, a mulher acima de qualquer homem.

Nesse sentido, o filme inteira-se nessa mesma “proeza” e o realizador revela-se esforçado em atribuir a todas estes “crimes e escapadelas” uma natureza psicológica, algures entre o desejo e a obsessão, eficazmente cedendo à falsa perspetiva masculina (nota-se aqui palco para a dominância "hupperteana"). Mas “Eva” [o filme] tende a ceder nas ideias esgotadas, assim encara o realizador perante o seu material, perdendo numa corrida contra ao tempo para o desfecho idealizado. Evidencia-se um desleixo técnico e narrativo nas proximidades do terceiro ato - deixando-se levar pela força do terceiro grau (o equivalente teatral) - o loop que nos guia à queda do protagonista em distorcido reflexo para com as primeiras cenas, a intro forçada no pecado do disfarce.

Desaproveitar-se o potencial da intriga, deixa-se à mercê o potencial da atriz Julia Roy (que trabalhou com maior afinco com Jacquot no anterior “À Jamais”) e desconeta-se a potência do desejo proposto. Assim, regressando ao primeiro ponto de partida, como manda a lei do terceiro grau, a proposta é sempre mais interessante que o todo. No final, caímos no universo teatral em jeito Almeida Garrett: “Quem é? Ninguém!

"À Jamais": assumindo o corpo pela alma da arte

Hugo Gomes, 02.01.17

aténunca-site.jpg

Benoît Jacquot não é necessariamente o realizador agressivo que o Cinema necessita, a sua passividade tem vindo a tornar-se, de certa maneira, uma rédea que o encurta de explorar psicologicamente e atmosfericamente as suas personagens. Como tal, esta adaptação de uma das obras mais exquisite de Don DeLillo, “Body Artist”, foi vista inicialmente como um projeto arriscado e demasiado ambicioso para os dotes de Jacquot. A merecer a bênção do próprio escritor, que supervisionou esta coprodução luso-francesa de Paulo Branco, e a protagonista, Julia Roy, a revelar os seus “truques” no argumento e na construção autodidata da sua personagem, Até Nunca é uma surpreendente nova faceta de um realizador em vias de penetrar territórios nunca antes explorados pelo próprio. Porém, não a sua total entrega carnal.

A intriga, cenicamente transladada a Portugal, leva-nos a Laura (Julia Roy), uma artista performativa que terá que lidar com o suicídio do seu companheiro (Mathieu Almarich). De forma a lutar contra a perda e a constante saudade que a sufoca, Laura utiliza o seu método artístico para mimetizar os movimentos, os gestos, o dialeto, as rotinas, mais concretamente “ressuscitar” mentalmente o seu amor como um método freudiano enviesado em “mitologia” de Mary Shelley tratasse. Não existe um cadáver, uma entidade física onde uma vida pode ser devolvida de forma lazariana, abundam sim, as memórias, e a força destas que são “armas de apelo” da nossa protagonista, “barricada” na casa do seu ente querido, aguardando por fantasmas. Benoît Jacquot filma um trabalho de concepção de uma artista, o método invocado e elaborado como uma manifestação emocional, um saudosismo pesaroso pelo qual Julia Roy espelha no grande ecrã.

“Até Nunca” (“À Jamais”) vive da atriz, vive do seu trabalho, da sua dedicação, e é nessa força que o espectador contempla, por fim, a fraqueza de Benoît Jacquot por detrás das câmaras, a referida passividade. O realizador revelou que não interferiu no desempenho de Roy, dando a liberdade para a sua criação. O resultado desta saudação à protagonista, é um ensaio psicológico que manifesta e expande para a além da sua atmosfera, mas a isso, devemos inteiramente a Laura Roy.

Adeus, minha Camareira!

Hugo Gomes, 31.12.15

journal-d-une-femme-de-chambre.jpg

Journal d'une femme de chambre (Benoit Jacquot, 2015)

Edouard_Manet,_A_Bar_at_the_Folies-Bergère.jpg

Un Bar aux Folies-Bergère (Édouard Manet, 1881 / 1882)

Se em “Les adieux à la reine”, Benoît Jacquot ousou em caricaturar a aristocracia francesa sob a perspetiva de uma simples, mas devota, serva, na sua nova obra – “Journal d'une femme de chambre” (“Diário de uma Criada de Quarto”) – o realizador ostenta o mesmo fascínio na exposição, tendo como alvo principal, porém, a burguesia do início do século XX.

Inspirado na homónima obra literária de Octave Mirbeau, um livro publicado em 1900 que causou polémica por abordar a domesticidade como uma forma de escravidão em tempos modernos e por denunciar comportamentos indignos da classe burguesa, eis um filme morno que concentra-se num rigoroso trabalho de reconstituição de época e no desempenho aventureiro de Seydoux, novamente na pele de uma serviçal com aspirações para mais do que apenas assistir os seus respetivos “amos”.

Contudo, a acidez prevista por Jacquot neste retrato, onde utiliza a mesma arma da sua obra anterior, é algo dissipada, não só pela sua narrativa emaranhada por flashbacks sem intenção cronológica e pela fraqueza do seu clímax, como pelos holofotes constantemente apontados na sua protagonista, mais do que o cenário envolto. Tal condução torna a personagem de Seydoux, Celestine, numa figura omnipresente, efeito que prejudicará tudo o resto. Até mesmo Vincent Lindon, que compõe um homem ambíguo sustentado por ódios e medos irracionais, é defetivamente transladado para segundo plano.

Mas a grande fragilidade aqui é nunca conseguir constituir uma crítica em jeito cronista nem afinar as causas levadas a cabo por Mirbeau (a versão de Luis Buñuel em 1964, com Jeanne Moreau, é mais "certeira”). “Diário de uma Criada de Quarto” apenas “dispara” em disfuncionalidades ultrapassadas e nesse sentido o filme parece reconhecer sem trespassá-los para a modernidade dos nossos dias. Para todos os efeitos temos uma obra que emana um pedaço de História antiga e a velha questão da luta entre classes que o cinema francês tanto adora abordar, mas sem efeitos verdadeiramente transcendentes às nossas causas impostas.

Todavia, mesmo dissolvendo-se nos seus atributos técnicos e na prestação da sua atriz, Benoît Jacquot evidencia o seu gosto pela cultura artística, “easter eggs” que servem não como dispositivo narrativo, mas como embelezamento da mesma. Um exemplo disso, por breves momentos, temos à nossa mercê uma reconstituição fílmica do famoso quadro de Édouard Manet, “Un Bar aux Folies-Bergère”, contrariando a sua essência melancólica.